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t e a t r o
Os textos aqui impressos foram escritos pelos alunos da Oficina de Dramaturgia, ministrada por Roberto Alvim de 21 de fevereiro a 15 de março, quintas e sextas. As peças receberam a encenação dos alunos da Oficina de Atuação nos dias 30 e 31 de março. O laboratório foi comandado por Juliana Galdino, de 8 a 29 de março, quartas e sextas. Ambas as ações integraram a programação paralela da temporada da Cia. Club Noir no Sesc Campo Limpo, onde também realizaram a estreia do espetáculo Todos os Que Caem, inspirado no texto de Samuel Beckett, com dramaturgia e direção de Roberto Alvim.
NÉVOA Por Tales Ordakji Cenário: um quarto vazio cheio de penumbras e mal iluminado. Nele há uma janela, uma porta e uma cadeira revestida por um pano preto no centro da sala. (Sentada na cadeira, uma mulher com os olhos vidrados e profundos para uma única direção: a janela. Em sua mão, segura um pequeno gravador que fica pendurado ao seu pescoço como uma espécie de colar. Sem tirar os olhos da janela, a Mulher dá início a mais uma gravação) MULHER –
Diário. Quinto dia. Estou bem, definitivamente bem. 22 horas sem dormir, 2 dias sem comer e algumas horas sem água. Mas permaneço alerta. Abrir espaço em casa foi essencial para abrir algum espaço em mim. Dias olhando pela janela e não vejo nada... o quê? Se levanta extasiada. Um homem... um, homem! Ele está andando, caminhando como se não tivesse acontecido nada. Espere. O quê?! Um garoto está com ele, parece, parece ser seu filho. Comocomo pode? Estão saindo sem proteção, sem nada. Estão bem... como-estão... estão... rindo. O pai coloca o garoto em cima do pescoço e... vai embora. A Mulher ainda extasiada, com os olhos vidrados, sem entender o que aconteceu, pega o gravador,
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e clica para desligar. Então acabou. Esboça um sorriso inconformado. Chegou a hora. (Pega lentamente um frasco de seu bolso, que está recheado por um líquido azul, e bebe de uma vez só. Ela começa a ficar estranha internamente, algo nela mudou, aos poucos vai dobrando os joelhos até chegar no chão, e seus olhos, vidrados e arregalados miram em direção para o alto, a mulher começa a se deitar, e, por fim, fecha os olhos. A cadeira no centro do quarto começa a ganhar vida, o pano preto que a revestia começa a não conseguir cobrir a humanização de sua forma, aos poucos, pra fora do pano preto, suas mãos se revelam, uma a uma, e suas pernas, uma a uma, e rapidamente assume uma posição ereta) CADEIRA –
Hahahé! Estou... estou vivo.
(O Cadeira vai se deslocando para trás da Mulher, com um estampado sorriso amedrontador) CADEIRA –
Acorde.
(A Mulher abre os olhos e senta no chão) MULHER –
Quem é você?
CADEIRA –
...
MULHER –
Por onde veio?
CADEIRA – Hahahé! Acho que sempre estive aqui. (O Cadeira coloca os pés nas costas da Mulher, a forçando a ficar de bruços no chão) CADEIRA –
Porque estou aqui?
MULHER –
Há dias, sobreviventes
os últimos estão presos
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em suas casas, a... a rua foi dominada pela morte. CADEIRA –
E...?
(Força ainda mais o corpo da Mulher no chão) MULHER –
Uma-uma névoa escura e baixa começou a cobrir toda a terra em que pisamos. Só se salvou quem estava em lugares acima do nível do asfalto. Muitos morreram, e eu, como jornalista e filha de médico, me foi dada a missão de observar, observar e observar até algum loucosuicida sair de casa e desenvolver imunidade pela névoa. Meu pai fabricou um frasco e me deu pra tomar quando avistasse um homem caminhando pela rua sem morrer. Isso antes d’ele partir com uma máscara de gás para pesquisar. Faz cinco dias que ele partiu. E não sei, não sei porque está aqui.
CADEIRA –
Pra que precisa de mim?
MULHER –
Eu - não - sei! Por favor sai de cima de mim.
(O Cadeira cede ao pedido) CADEIRA –
Por algum motivo quando bebeu o frasco ganhei vida. Hahahé! (Olhando para as próprias mãos) Vida... Fale! O que quer?
MULHER –
Acho-acho
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que
tem
uma
coisa que pode me ajudar.
CADEIRA – Tem que ver se eu vou querer ajudar. MULHER –
Precisa ir lá fora.
CADEIRA –
Quê?
MULHER –
Precisa ir lá fora, na névoa.
CADEIRA –
Você tá louca! Hahahé! Depois de tudo que me falou, depois de ganhar um corpo, uma alma você quer que eu morra? Tô indo sim. Hahahé!
MULHER –
Você não ganhou vida à toa! Deve... deve ser esse o seu propósito!
CADEIRA –
Propósito? E esse é o seu propósito? Manipular e assassinar seres vivos?
MULHER –
Se você não for, não tem como saber se está seguro.
CADEIRA –
E por que você não vai?
MULHER –
Porque-porque não posso!
CADEIRA –
Por que não pode?
MULHER – PORQUE VOCÊ QUE É UMA UMA CADEIRA! (Breve silêncio) CADEIRA –
E daí? Você é uma pessoa, talvez eu tenha até mais
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índole e caráter do que você. MULHER –
Tá certo. Tá certo. Quanto?
CADEIRA –
Quanto o quê?
MULHER –
Quanto quer?
CADEIRA –
Você tá falando de dinheiro? Hahahé! Hahahé! Não tenho nenhum interesse em notas de papel.
MULHER –
O que você quer?
CADEIRA – O que eu quero? Interessante pergunta. MULHER –
DIZ - LOGO - O QUE - QUER!
CADEIRA –
Sabe... sabe de uma coisa, já sei. Huhuhu... já sei o que quero! Veja, olhe, olhe bem pra mim, tenho braços, tenho pernas, tenho uma vida que posso chamar de minha. Aparentemente, posso fazer o que quiser. (Começa a olhar fixamente para o peito da Mulher) Mas algo me instiga em você, algo diferente que não vejo-tenho em mim... (Toca uma trilha sonora com as batidas de um coração) Isso... É isso que preciso... Hahahé... Preciso de um coração... ah! É isso que falta... Vamos... vamos mulher, me dê o seu coração.
MULHER –
Você está louco.
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CADEIRA – E quem é um coração? MULHER –
são
sem
Pra que precisa de um?
CADEIRA – Me diz você, pra que precisa de um? MULHER –
Porque sem ele eu não vivo.
CADEIRA –
Então quer dizer que eu estou morto? Hahahé. Não... Não. É justamente por isso que eu quero, de que adianta ter um corpo, braços, pernas, até mesmo uma alma se não é pra ser realmente vivo? Com um coração serei vivo de verdade.
MULHER –
Cadeira. Se te der o meu coração eu morro.
CADEIRA – Não se você decidir viver igual a mim. MULHER –
Isso jamais.
(Mulher recua) CADEIRA –
Me dê o seu coração e procuro o homem na névoa.
MULHER –
Isso não vale o meu coração.
CADEIRA –
Você não quer saber quem é aquele homem? Será mesmo que o seu coração vale mais do que a “sobrevivência de sua espécie”, será que vale mais do que achar uma cura, ou até mesmo, encontrar seu
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papai? MULHER –
Sem meu coração não consigo fazer o que tenho que fazer quando encontrar o homem – e a criança.
CADEIRA –
Criança?!
MULHER –
É, uma criança estava com ele, parecia ser seu filho.
CADEIRA – Hahahé! Hahahé! acredito! Uma criança!
Não
MULHER –
O que foi?
CADEIRA –
Eu odeio crianças. Na minha pobre vida de mero objeto inanimado me lembro de algumas delas, faziam de tudo comigo, mordiam, rabiscavam, chutavam, pisavam, raramente usavam a função pra qual fui designado, a de simplesmente: sentar. Hahahé. Eu odeio mesmo crianças. Hahahé! Sinto muito, mas acho que agora nem o seu coração vale atravessar essa névoa para ir atrás de um pirralho com um marmanjo.
MULHER –
Você tem que ir.
CADEIRA –
Não vou, não mesmo. Hahahé.
MULHER –
Você vai.
CADEIRA –
Já disse que não.
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MULHER –
Vai.
CADEIRA –
NÃO!
MULHER –
ESTÁ BEM. (Pausa) Está bem. Quer saber... te darei.
CADEIRA –
Mesmo? Hahahé!
MULHER –
Espere. Ainda não terminei. Te darei mais que meu coração. Te darei a mim... por inteira.
CADEIRA –
Por inteira...?
(A Mulher se aproxima ainda mais do Cadeira. Pega o seu gravador e dá início a mais uma gravação) MULHER –
E quando acabar, você irá pra névoa, e retornando, te darei mais uma vez, e se quiser, pode pegar meu coração, porque, na verdade, ele já é seu.
CADEIRA –
Meu...?
MULHER –
Seu.
(A Mulher investe sua boca para cima do Cadeira, ela começa o beijar, ele desenvolve uma afeição que nunca experimentara e corresponde, o beijo vai estendendose até ficar um por cima do outro no chão. Se beijam incessantemente. De repente, batidas na porta.) CADEIRA –
O que é isso?
MULHER –
Nada. Não é nada.
(Continuam a se beijar. Batem novamente)
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CADEIRA –
Não é possível.
MULHER –
Cadeira, não deve ser nada...
CADEIRA –
Calada.
(O Cadeira se levanta, batem na porta mais algumas vezes, lentamente vai até a porta e abre. O dono das batidas entra no quarto, descontrolado e gritando. Cadeira e Mulher ficam assustados) X–
Ah! Ah! Ah! Ahhhhhh! Não aguento mais. Prisão eterna. Pano. Escuro. Trancado. Dor. Dor. Dor. Onde estou? Porque... Ahh... Sim... me lembro. Não. Não. Você, você é uma monstra. Me lembro bem... tentou me apagar, sumir comigo, mas, ah! Estou aqui. Eu me lembro desgraçada. Ah... Voltar aqui me trouxe mais dor do que imaginava.
CADEIRA –
Quem é esse?!
MULHER –
Como veio parar aqui?
X – Eu acordei. Estou realmente vivo. MULHER –
vivo,
Im-impossível.
CADEIRA – Quem é esse porra, como ele passou pela névoa? X – Névoa? estive lá. CADEIRA –
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Hahaha.
Nunca
Mas... Mas quem é você? Quem é ele Mulher?
X – Vamos mulher, diga quem eu sou. (Mulher perplexa, não diz nada) X –
Diga!
CADEIRA –
Quem é ele Mulher?!
X –
Anda!
CADEIRA –
FALA!
MULHER –
É O MEU CONTROLE REMOTO!
(Silêncio) CONTROLE –
Eu era. Eu era o seu controle remoto. Eu despertei, cansei de ser seu brinquedo. Demorou, mas acordei.
CADEIRA –
Do que você tá falando?
CONTROLE –
E você é o que? Uma cadeira? Há. Como você é podre mulher, ou melhor, Marília. A pobre e doente Marília.
CADEIRA –
Marília?!
CONTROLE –
Essa mulher durante os últimos vinte anos desistiu da vida humana, desistiu de se relacionar com as outras pessoas e decidiu foder conosco, literalmente, foder conosco. Essa bruxa nos dá vida, e conforme ela vai falando, nós acabamos ficando aprisionados por suas histórias cinematográficas.
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Realmente essa névoa existe, isso é inegável. Mas essa névoa não passa de um subterfúgio para ela nos enrolar em mais uma de suas histórias fetichistas e foder conosco, nos usar e, em seguida, nos botar pra dormir. E ela faz isso dia após dia, depois de olhar fixamente para janela, delira e bebe uma espécie de alucinógeno e em sua mente, apenas em sua mente, nós criamos vida. Eu existia até então dentro da mente podre da Marília. Nesse exato momento, Cadeira, você existe apenas na mente dela, e como eu já fiz parte, posso te ver e me comunicar com você, mas eu despertei, cortei o tecido da dimensão e fugi da mente da Marília. (Breve silêncio. Marília perplexa recua alguns passos) CADEIRA –
Como?!
CONTROLE –
Através do mesmo frasco em que ela bebeu, consegui ganhar vida, realmente vida na realidade em que ela deve ser vivida, no mundo real, na Terra, longe da cabeça doente dessa mulher. Mesmo o mundo real sendo belo e execrável ao mesmo tempo, é melhor ser livre aqui do que preso aí. Não se engane, Cadeira, ela irá enjoar de você, como enjoou de mim, e enjoou de todos os outros objetos que passaram por ela, e agora, é a sua vez.
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(Controle dá um frasco para o Cadeira) CONTROLE – Cadeira, beba Desperte.
o
frasco.
CADEIRA – É verdade Mulher? Ou posso dizer, Marília? MARÍLIA –
Vocês... vocês são melhores, você é melhor, em tudo.
CADEIRA –
Então eu existo e não existo, eu-eu estou vivo apenas para ser seu objeto de prazer?
MARÍLIA –
Não Cadeira! Você é mais que isso, você é único pra mim... Não houve outro igual a você.
CADEIRA –
(Inconformado) Então... Hahahé... Então, toda aquela história de me convencer a ir pra névoa não passou de uma... uma... preliminar?!
MARÍLIA –
Cadeira, por favor, esquece isso. Você é livre, livre aqui, dentro de mim. Você não tem ideia de como é o mundo lá fora. O Controle tem inveja de você, ele saiu de mim, experimentou a liberdade, não aguentou e voltou. Agora quer arrastar todos com ele pra esse mundo.
CONTROLE –
Cadeira, eu voltei para ter o que ela merece, com ou sem você, vivo ou não, eu viria para acertar as contas, você foi um contratempo, um bom contratempo. Te considero
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um irmão Cadeira, afinal, nós saímos do mesmo lugar. MARÍLIA –
Cadeira, eu posso não ser a melhor pessoa do mundo, mas você-você me conhece... eu sei que é há pouco tempo... mas você sabe como eu sou... não sou uma monstra... Olha só pra ele, Cadeira, ele acha que é melhor que eu, mas no fundo, no fundo, é igual a mim, adquiriu o mesmo cerne humano.
CONTROLE –
Cadeira, agora, você é um objeto com vida. Você estava igual mim, apenas com um corpo e uma alma. Mas só nós sabemos o vazio de não ter um coração. Cadeira, vamos lá irmão. Beba o frasco.
(Cadeira pensativo. Olha para o frasco e bebe de uma vez só. Ele começa a ficar diferente internamente, algo mudou dentro dele. Ele vai crescendo de forma, o seu corpo vai se expandindo internamente, vai respirando vida, acumulando ar até não caber mais, e solta de uma vez só) CADEIRA – Agora sim... Agora realmente vivo... CONTROLE –
estou
Cadeira, agora que conhece a liberdade, temos que acabar com o nosso carrasco. Imagine, mais e mais irmãos nossos presos na mente dela? Não... não...
(O Cadeira pega o pano preto que o revestia ainda como objeto sem vida)
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MARÍLIA – Talvez a morte seja um dos meus maiores desejos. (Cadeira enrola o pano no pescoço de Marília) CADEIRA – Parece que o papai vai sentir sua falta. Hahahé! MARÍLIA –
Não vai não.
CADEIRA – Filha da puta. Mentiu pra mim sobre isso também?! MARÍLIA – Agora de a verdade.
nada
adianta
CONTROLE –
Cadeira, irmão, você merece saber toda verdade. Essa mulher quando tinha seis anos de idade, ficava sozinha em casa toda madrugada, enquanto seu pai trabalhava de médico em um plantão da madrugada. Em um dia comum de plantão, ele fez um milagre, salvou a vida de um traficante que foi baleado em diversas partes do corpo. Dois anos mais tarde, esse mesmo traficante assaltou um restaurante a mão armada, e por coincidência do destino, era o mesmo restaurante que os dois estavam jantando. O rapaz fez o pai dela de refém, e no auge do nervosismo, a arma dispara. E a Marília, a pequena Marília, já órfã de mãe desde o parto, vê tudo com seus próprios olhos.
MARÍLIA –
Co-como?
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CONTROLE –
Eu passei tempo demais com você para desvendar cada centímetro de suas memórias. Talvez você tenha razão, hum, morrer pra você é lucro.
CADEIRA –
Então é por isso. É por isso.
CONTROLE –
Cadeira, não esqueça o que ela fez com você, não esqueça o que ela fez comigo e com todos os outros que passaram pela mão dela. Ela merece isso. Enforque-a.
(O Cadeira enforca Marília, e devido tanta força, o Cadeira senta em cima dela para ter mais jeito de enforcar. Depois de algum tempo agonizando em silêncio, Marília chega a óbito. Silêncio. Som de batidas de um coração) CADEIRA –
O que... o que é isso? Não... um... coração. Mas como?
CONTROLE –
Era o que faltava Cadeira, sujar as mãos de morte te deu o que você tanto queria.
CADEIRA –
E agora, o que faço? O que adianta se for pra viver com esse peso?
(Controle pega o pano preto enrolado no pescoço de Marília, e cobre o corpo dela por inteiro) CONTROLE –
De nada adianta a vida. Vivemos buscando liberdade, mas no final, sempre acabamos presos.
HUMANO –
Agora... Eu sou humano.
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(O Humano comeรงa a esboรงar um sorriso dolorido que vai se transformando em choro. A luz vai caindo. Vazio)
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MI CABARET, NO! Por Rodrigo Rope
Personagens: Madame Laura Perón, Humberto e Regina. Cenário: um camarim ou quarto de hotel, não se sabe.
CENA 1 Música instrumental de fundo – “Don’t Cry For Me Argentina”. Em uma das laterais da frente do palco uma penteadeira, sobre ela uma caixa de música aberta, uma escova de cabelo, um batom vermelho, uma taça com vinho tinto e um castiçal palmatória com a vela acesa. Madame Laura Perón está sentada de costas para a plateia, segura um lenço branco com uma mancha vermelha. Ela arruma seus cabelos e seu coque. Da plateia, vê-se apenas o rosto dela refletido no espelho. Num outro local do palco: um foco de luz no quadro com a foto de Evita, uma cadeira e uma mesa pequena, sobre ela um vaso com rosas vermelhas, um telefone antigo e uma garrafa de vinho. (Fala para si enquanto saboreia o vinho) “Esto no será fácil. Você achará estranho quando eu tentar explicar como me siento. Que ainda preciso de tu amor después de tudo que fiz. Você no acreditará em mim. Tudo que verás é a garota que conheceu um dia. Embora esteja mejor vestida...”
LAURA –
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O palco vai se iluminando aos poucos. Num outro local do palco: uma cama coberta com lençol vermelho e ao lado uma mesinha lateral. Sobre ela um telefone, outro castiçal uma vela apagada e um impresso. Humberto e Regina transam. Laura percebe a movimentação sob o lençol, coloca seu lenço na caixa de música e a fecha. A música para. Ela apaga a vela e vai até a porta. Procura por alguém e se volta para a cama. Luz. LAURA – Que hacén acá ustedes? HUMBERTO – (Colocando o rosto para fora do lençol) Quem é você? LAURA – Brasileño?.... Eu quero saber como entraram en mi camarim? HUMBERTO – Seu camarim? LAURA – Sí. Soy Laura Perón. REGINA – (Embaixo das cobertas) O que está acontecendo? HUMBERTO – Tem um homem fantasiado no quarto. LAURA – Un homem, no! Una dama de Dior. REGINA – (Embaixo das cobertas) Houve alguma confusão. Liga na recepção. Laura vai até o telefone antigo e disca. Humberto pega o telefone ao lado da cama e disca. REGINA – (Decepcionada) Isto é inacreditável.... Com tanto lugar.... Acabamos num decadente.... LAURA – (Desliga o telefone) Quem es decadente? REGINA – Este hotel! (Coloca o braço para fora dos lençóis e procura por suas roupas) LAURA – Aqui no es un hotel. (alterada) Nunca será! Aqui es un Cabaret. (Vai até a
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porta) Ramón, Ramón! Donde estás? REGINA – Humberto, não acho minhas roupas. HUMBERTO – O telefone está mudo. (Desliga o telefone e procura as roupas do seu lado da cama) Regina, acalme-se. Vamos resolver tudo com o gerente. LAURA – Eu soy la gerenta e proprietária.... REGINA –
Não quero mais ficar aqui.... Antes que eu me arrependa de ter vindo a Buenos Aires....
LAURA – Eu no queria estragar esse momento, pero... REGINA – Não acho meu celular. (Nervosa) Cadê minhas roupas, Humberto? HUMBERTO –
Não achei nossas roupas e não estou vendo as malas.
REGINA – Como assim? Isto está virando um pesadelo... HUMBERTO – E parece que Evita quer nos fazer companhia... Laura volta a se sentar a penteadeira. Fala para si enquanto retoca o batom.
LAURA – A verdade es que nunca os abandonei... HUMBERTO – (sem ouvir direito) Você disse alguma coisa?
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LAURA – Que vocês vieram dançar tango no infierno. HUMBERTO –
(procurando pelo celular) Vamos resolver logo isso.
Laura caminha com a taça de vinho na mão em direção da Regina. HUMBERTO – Por favor, deixe minha esposa em paz. Laura desvia. Vai até a porta e procura por Rámon. HUMBERTO – Não acho meu celular também. Vou descer enrolado numa toalha mesmo. REGINA – Não.... Não me deixa sozinha com.... HUMBERTO – (para Laura) A senhora poderia nos ajudar e chamar um camareiro, garçom, porteiro, arrumadeira...? Algum funcionário do hotel, me desculpe, do seu Cabaret. LAURA – Por favor, Señora no. Madame, si? O que vocês estão precisando? HUMBERTO – Das nossas roupas e das outras coisas que estavam conosco no hotel. LAURA – Ah, si.... Qual o nome do Hotel mesmo?
REGINA –
Hotel La Señora, Madame.
LAURA – No, no, no.... No será possível, porque o hotel se incêndió. Lo siento.
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REGINA – O que ela disse, Humberto? Não entendi. HUMBERTO –
(confuso) Que o Hotel pegou fogo. Como? .... Quando? .... Do que você está falando?
LAURA –
No sei.... Dejame ver..... Foi antes ou después do terremoto? .... No lembro muy bien... Perdón, estou confusa.
HUMBERTO – Terremoto? Levanta Regina, vamos. Regina desencobre o rosto. Som com chiados. Laura faz sinal para que Humberto espere em silêncio. Lembranças de Laura: enquanto ouve o que pela informalidade parece ser uma entrevista, ela deixa a taça na penteadeira acende a sua vela e leva até a outra mesa, arruma as rosas no vaso e se senta. Olha em prece para o quadro de Eva Perón. VOZ OFF – LAURA – “Quando escolhi ser Evita, sei que escolhi o caminho de mi povo... Los otros não veem em mim más do que a Eva Perón.... Eu me apresentei assim para eles.... Seria estranho se os que me chamam de Señora me chamassem de Evita eu acharia talvez tão estranho e fora de lugar como que se un garoto, un operário ou una pessoa humilde me chamasse de Señora. Pero creio que eles próprios achariam ainda más estranho e ineficaz. Agora se me perguntassem o que eu prefiro, minha resposta não demoraria a sair de mim: gosto más do meu nome de povo. Quando un garoto me chama de Evita me
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siento mãe de todos los garotos e de todos los fracos e humildes de mi terra. Quando um operário me chama de Evita me siento com orgulho companheira de todos los homens.” CENA 2 (Humberto agitado mexe constantemente no telefone tentando algum sinal de linha) LAURA – Pronto. Onde estávamos? Ah, si... Foi como les disse: Terremoto. No sentiram o tremor? ... Graças a mi madre Eva, sempre tão gentil. (faz o sinal da cruz) REGINA – (Para Laura) O Sr. Ramón parece que não vem. Será que uma outra pessoa pode nos ajudar? LAURA – (encara Regina. Vai até a janela) Como no? Ramón nunca deixa o Cabaret. HUMBERTO – (frustrado para Regina) Mudo ainda. (sussurrando) Você está dando atenção pra esse louco. Eles podem estar nos roubando. Esse... (irritado para Laura) A senhora, madame seja lá o que for... Acha que sou imbecil? Vocês está nos enrolando. Quero que saia do nosso quarto agora, antes que eu... LAURA –
Ramón! Ramón!...
HUMBERTO –
(sussurando) Deve estar fazendo um limpa no hotel.
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REGINA – (sussurando para Humberto) Acho melhor distraí-lo e não enfrentá-lo... (para ao perceber Laura se aproximando) (Laura parece reconhecer Regina) Humberto – (para Laura) Peço desculpas, eu não quis ofendê-la. (desconversando. silêncio) Não pudemos deixar de perceber que é fã de Eva Perón? É... Ela tinha sua beleza. LAURA – (fervorosa) No sou fã. Sou devota de Santa Evita.... Que agora lá do céu olha por mim e pelo mi Cabaret.... E por Ramón. (encarando Regina) HUMBERTO –
Assim seja!
REGINA – (sem graça) Agora entendo de onde vem seu bom gosto na decoração. Não acha, Humberto? (olha para Humberto que está distraído) HUMBERTO – Não. (Regina o cutuca) Ah, sim, sim... LAURA – (para Regina) Tenho la sensación de que a conheço de algum lugar?
REGINA – (estranhando) Será, madame? Acho que está enganada, eu não me esqueceria de alguém como.... LAURA – (para Regina) Qual o seu nome mesmo? REGINA – Regina, Madame.
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LAURA – “Rechina”... e seu apellido? REGINA – (sem graça) Apelido? Não tenho... HUMBERTO – Silva. Regina Silva. (Regina olha surpresa para Humberto) LAURA – No consigo me lembrar, pero no sou de esquecer una fisionomia... (Vai até o telefone) Regina – (para Humberto) Silva? HUMBERTO – (sussurrando) Ela perguntou seu sobrenome. Não diria a um estranho. LAURA – Ramón terá muito o que me explicar. O telefone no funciona. Logo o Cabaret estará cheio de clientes e preciso me trocar para o show. HUMBERTO – (esperançoso) Clientes? Show? LAURA – Si.... Hoje farei un número musical.... (para Regina) Agora me lembrei.... Você é famosa no Brasil. É una cantora, no? Acho muy lindo, pero no sei cantar bien... (risos) pero si sei enganar... HUMBERTO – (risos). Ela não é cantora, é atriz. REGINA – (desmentindo) É brincadeira dele... (provocando Humberto) Mas isso não seria nada ruim. Não me faltariam dinheiro, joias, festas, roupas, viagens.... LAURA – (risos. Bebe vinho) Eu sou una atriz. Fui... Assim como Eva Duarte... (olha para o quadro de Evita) Es muy fascinante ser outros, no?... Pero no me querem como una atriz... (olha no espelho) Dizem ser demasiada ambição para una pessoa como eu... No podia ficar olhando a vida passar... No! Nasci para brilhar... Eu escolhi la
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liberdad... Experimentei de tudo... Pero nada me impressionou. (silêncio) Bichiomes! .... Como una puta me idolatraram... Como una puta sou brilhante... (olha para suas coisas) E assim consegui tudo... No como una atriz, pero como una prostituta... Hoje pareço velha demais para eles… Bastardos de mierda!.... HUMBERTO – (desconversando) Seria pedir muito para a Madame buscar água para nós? Estamos com sede. Assim poderíamos aproveitar também e dar uma esticada nas pernas... LAURA – (percebendo ter falado demais) No, no vou deixar dois estranhos sozinhos en mi camarim. Esperem por Ramón.... (desconfiada. Cai em si. Pega a garrafa de vinho para se defender) REGINA – (estranhando a atitude de Laura) Tudo bem. Vamos esperar... LAURA – (para Humberto e Regina) Como soy burra... O que vocês fizeram com ele? Donde estás Ramón? Ele está bien? Digam! .... Me deixem falar com ele agora! ... O que vocês querem de mim? Me roubar? Preciso saber se ele está bien.... (coloca a garrafa na mesa, tira pulseira, colar, brincos e joga na cama) Eu lhes dou tudo que quiserem. Falem! (desesperada chora) Ramón! Ramón! Donde estás? Apareça. Necessito vê-lo ahora! No, no.... Ramón, no....
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(Laura chora. Humberto pega o impresso na mesa ao lado) HUMBERTO – (olha rapidamente para o impresso e, aliviado, entrega a Regina) Dê uma olhada nisto! REGINA – (impulsiva, aproveitando a vulnerabilidade de Laura) Acho que está na hora de acabar com o show. Você é um dissimulado... (encara Laura. Silêncio) O ladrão aqui é você.... Vai continuar se fazendo de louco? LAURA – (angustiada) O que é isso? REGINA – (oferece o impresso para Laura , que não pega) Pelo amor de Deus, aqui nunca foi um Cabaret. É um hotel há mais de 60 anos... Quer que eu leia? ... (lê) Hotel Casa La Señora. Desde 1953... Quer que eu continue? (lendo) O requintado casarão da Belle Époque da lendária Madame... Laura Perón... (cai em si) HUMBERTO – (empalidecendo) Santa Evita... LAURA – Dame esto! (agressiva tira o impresso da mão de Regina. Lê incrédula) após incêndio ocorrido en 1952... Que fuego? (para Regina e Humberto) O hotel de vocês se incendió.... Mi cabaret, no! (lendo) foi restaurado e convertido em hotel... No, no, no! Hotel, no.... (lendo) por seu herdeiro Ramón Gonzáles.... Ramón? (tosse) (Som com chiados. Laura confusa vai até a penteadeira e se senta) CENA 3 (Laura levanta desesperada. Regina e Humberto assombrados na cama) LAURA – Ramón! Ramón! .... No pode ser... Por que estão fazendo isso comigo? .... Querem me enlouquecer? .... No, no... (desesperada) Socorro! Socorro! .... Querem me roubar. Alguém, por
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favor! ... (olhando para o quadro de Evita. Chora) Mi madre, ainda visto luto por ti e agora que es imortal. Rogo a ti! .... Mantenha sua promessa e não nos abandone.... Estou sendo dilacerada.... Olhe por mim, madre mia! Querem me tirar tudo.... Não haverá mais nada, nada.... Eu te suplico. Ajuda-me, por favor! ... (silêncio. Cai em si) Si, si... Agora me lembro... Como no? (risos. Rasga o impresso enquanto olha fixamente para Humberto) Ramón, Ramón seu uruguaio de mierda... me traíste... no vale os culhões que carrega.... Siempre soube que soy louca por.... Covarde! Você se aproveitou...se escondeu nas minhas sombras... me sugou como un vampiro... Te dei abrigo, seu verme! (com desdém olha para Regina) Você acha que será fácil assim para ti? Nunca descansa!... Eu reconheci a cobiça no seu olhar... Nada te satisfaz, nada! .... Tinha pena de ti, dei trabalho e comida.... Sua puta ingrata... Mi cabaret, no! .... Vocês acham que eu não sei quando conspiram contra mi? No sabem do que soy capaz.... Armaram tudo, tudo... Vocês são como un câncer me corroendo por dentro.... Querem acabar comigo.... Acham que soy estúpida (ameaçando) Soy
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Laura Perón. Escutaram bem? .... Olhem pra mim! Madame Laura Perón... Laura Perón... (silêncio. Cai em si. Chora como uma criança) No, no.... Mi Cabaret, no! (silêncio. Laura pega o castiçal na mesa e vai até a penteadeira, senta) Quero que vocês saiam do meu camarim. Fuera! Saiam do meu sofá.... Fuera daqui! (sente dor. Tosse) .... Preciso descansar. (grita) Ya! (Humberto e Regina preparam-se para sair da cama. Escuridão) REGINA – O que foi isso? HUMBERTO – Parece que os espíritos do Casarão La Señora estão a meu favor. REGINA – Não brinca com essas coisas, Humberto. Mal chegamos e já faltou luz nesta espelunca. HUMBERTO – (risos) Donde estás mi amor? (Humberto e Laura acendem as velas ao mesmo tempo no meio da escuridão. Penumbra. Foco de luz no quadro de Evita. Humberto e Regina estão ajoelhados sobre a cama vestindo partes de suas roupas. Eles terminam de tirar suas roupas jogando-as no chão. Laura está na penteadeira sentada de costas para a plateia. Da plateia vê-se apenas o rosto dela refletido no espelho. Laura abre sua caixa de música. Música instrumental de fundo – “Don`t Cry For Me Argentina”. Humberto e Regina se beijam. Laura começa a tossir repetidamente – mas não se ouve, e pega um lenço branco. Humberto e Regina se cobrem. Laura desmaia com a cabeça apoiada na penteadeira e o lenço está manchado na mão. Humberto e Regina transam. O volume da música vai baixando ao mesmo tempo que o volume de som de fogo vai aumentando. A luz vai diminuído até sobrarem apenas as luzes das velas. Estalos. Sopro. Escuridão)
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ESCURIDÃO Por Marília Acourtes
Personagens: Lilih, Lucius, Madalena e 3 figurantes Cenário: Um quarto sombrio com uma cama, uma escrivaninha, uma pequena mesa e uma tela para pintura. Na escrivaninha há um porta retrato. (Quarto sombrio com paredes escuras. No quarto há somente uma escrivaninha, uma cama e uma tela. Na escrivaninha há uma foto: uma mulher grávida, um homem e um bebê de, aproximadamente, dois anos. Em cena há uma mulher vestida com um capuz preto. Ela está de costas para a plateia com uma paleta de tintas em uma das mãos e um pincel na outra. Ela pinta sobre a tela) CENA 1 (Entra Madalena com uma bandeja na mão) MADALENA – Trouxe seu café. LILIH – (Ainda pintando) Obrigada Madalena. Você sempre muito gentil e prestativa. MADALENA – Parece bem hoje, senhora Lilih. LILIH – Sim. Estou muito feliz! Acordei maravilhosamente bem! Aliás, como me sinto ótima, vou tomar meu café na mesa com toda a família reunida. Vá chamar as “crianças” e meu marido, por favor. MADALENA – Não será possível Sra. LILIH – Bem... Não podemos ter tudo, não é mesmo?
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Mas também, tinham que marcar o balé e a natação para as 7h da manhã? E o Lucius... aposto que já se enfiou de cabeça naqueles papéis. MADALENA – Precisa de mais alguma coisa? LILIH – Está tudo bem. Obrigada. (Madalena de saída) LILIH – Espera! (Se apoia na escrivaninha com as mãos sobre fronte, aparentando um mau súbito) Aquela dor de cabeça repentina... De novo! Ahhhhh! Dessa vez muito forte! Meu Deus! Acho que vou desmaiar... MADALENA – Vou pegar seu remédio. LILIH – Rápido Madalena! Está doendo muito. Rápido! (Madalena sai. Com muita dor e as mãos sobre a fronte, Lilih se senta a beira da cama) LUCIUS – Querida? Posso entrar? LILIH – (Se levanta rapidamente) Oi querido... (Se cumprimentam com um beijo) LUCIUS O que está fazendo aí? (Olha pra tela, desconcertado) Uau! Diferente... LILIH – Diferente? LUCIUS – Sim. Peculiar. LILIH – Você não gostou. LUCIUS – Claro que gostei meu amor. LILIH – Então exponha sua perspectiva com mais detalhes... LUCIUS – Bem... Adorei as flores, os pássaros, o jardim... As crianças brincando... Transmite paz. Ao mesmo tempo, me faz sentir algo estranho, quando vejo aquelas brasas (aponta) caindo do céu. Acho que não entendi bem. Mas me faz ficar
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muito intrigado e fascinado! E é por isso que é tão peculiar. Do que se trata? LILIH – Ainda não terminei. E um artista não explica sua obra. LUCIUS – Compreendo. Você é mesmo maravilhosa. (Beija-a) (Entra Madalena) MADALENA – Senhora, seu remédio. LUCIUS – Está tudo bem meu amor? LILIH – Foi só uma dor de cabeça repentina. Mas já estou melhor. Acho que não preciso mais dos comprimidos. MADALENA – Acho melhor a Sra. tomar mesmo assim. LUCIUS – Madalena tem razão. Está muito bem hoje Madalena. Uniforme novo? (Um pouco de silêncio no quarto. Madalena age normalmente, permanecendo em silêncio) LILIH – Uniforme adorável. Você está ótima mesmo Madalena. (Leva os comprimidos até a boca) MADALENA – (Ri) Mais tarde volto pra trazer o seu chá. (Madalena sai) LUCIUS – Querida, tem certeza de que está tudo bem? LILIH – Está tudo bem. Já passou. LUCIUS – Preciso ir. Deixei tudo de pernas pro ar lá no escritório só pra te dar um beijo e comer alguma coisa. LILIH – Fica mais um pouco. Vou preparar algo pra nós.
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LUCIUS – Realmente preciso ir. (Dá um beijo na testa de Lilih) Qualquer coisa, não hesite em chamar, Madalena. LILIH – Claro, meu bem. CENA 2 (Entra Madalena com uma bandeja) MADALENA – Seu chá Sra. Lilih. E seus comprimidos. (Lilih se senta na cama, pega o porta retrato e começa a apreciá-lo) LILIH – Amo esta foto. Nós éramos tão jovens. O Martim ainda estava na minha barriga. E a Cloe... era tão pequena... (Madalena coloca a bandeja ao lado da cama e começa a organizar e limpar o quarto enquanto Lilih continua falando) LILIH – É uma pena que você não tenha conhecido essa casa. Amava essa casa, esse jardim... Éramos tão felizes nessa época. Eu tinha um emprego bacana. Depois tive que me dedicar aos meus filhos. Ser mãe de dois não é fácil. O tempo passou, e o mercado de trabalho virou as costas pra mim. Mas não me dei por vencida! Abri meu próprio empreendimento que deu muito certo. E aí começaram as dores... Esses remédios todo dia... De lá pra cá, eu sinto que a minha vida nunca mais foi a mesma. Passo todo esse tempo em casa. Não gosto desta casa. E o Lucius, você sabe... mal tem tempo para a família. Sempre está virando a noite naquele escritório. Hoje foi um dia atípico. Ele aparecer em casa, esta hora... Quem dera fosse sempre assim. Pra quem, às vezes, fica dias sem dar as caras. Eu nunca falei seriamente com ninguém sobre essas fortes dores. Só você sabe Madalena. Aliás, você sabe de tudo sobre mim. Madalena? MADALENA – (Para o que esta fazendo) Desculpe. Estava distraída. Sou toda ouvidos agora. LILIH – Essas dores tem me deixado preocupada.
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Cada dia mais fortes. Mas eu não quero partilhar essa preocupação com ninguém. Não conte ao Lucius. MADALENA – (Ri discretamente) Guardo seus segredos há alguns anos. Por que contaria agora? Fique tranquila. Eu não contarei. LILIH – Ótimo. Que permaneça assim. Também não quero me preocupar com isso agora. O que quero hoje é usar todo meu tempo livre para a arte. (Traz a tela para o lado do palco, pega o pincel e a paleta de tintas e começa a pintar enquanto fala). É uma terapia. Se não fosse meus quadros não sei o que seria de mim. Pintar a alma humana em toda sua complexidade; harmonia e caos. Beleza e destruição. Compaixão e ternura, mas também crueldade e indiferença. O sol que nos aquece é o mesmo que pode nos matar. Assim somos. MADALENA – (Pega a bandeja) Ainda não tomou os comprimidos que trouxe. LILIH – Obrigada Madalena. Mas não pretendo viver de remédios. MADALENA – Sabe que precisa deles... LILIH – Não. Não quero viver assim. Leve-os daqui. Aliás, as “crianças” já chegaram do colégio? Ahhhhh!!! (Cai no chão com as mãos na fronte) Minha cabeça!!! Tá doendo muito!!! MADALENA – Os comprimidos!!! Precisa tomar agora!! LILIH – (Gritando de dor) Não quero. Eu não quero isso! MADALENA – A Sra. precisa tomar só assim a dor irá passar. LILIH – (Ainda gritando de dor) Não!!! Tira isso daqui!!! (Madalena tira uma seringa do bolso e dá uma injeção em Lilih. Lilih se acalma aos poucos. Madalena ajuda
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Lilih a levantar do chão e deitar-se na cama) MADALENA – Precisa descansar. Mais tarde volto com seu jantar. (Madalena sai de cena. Deitada em sua cama, Lilih começa a chorar muito. Pega no sono) CENA 3 (Madalena entra em cena com a bandeja na mão. Coloca a bandeja com um copo d’água ao lado da cama) LILIH – (Acordando aos poucos) Cadê o Lucius? (Os olhares se cruzam) Já entendi! Ele não voltou pra casa. Mais uma noite naquele escritório. MADALENA – Daqui a pouco trago seu desjejum. Antes, tome seus comprimidos. (Madalena pega o copo com água e o comprimido e dá a Lilih) LILIH – O que aconteceu ontem? MADALENA – A Sra. pegou no sono. Estava com muita dor. (Lilih pega os comprimidos e o copo com água da mão de Madalena e leva até a boca. Madalena sai. Lilih tira os comprimidos da boca. Olha o porta retrato da família. Se levanta da cama e imediatamente sente fortes dores. Em prantos e muito nervosa com o copo na mão) LILIH – Vai passar. Eu não preciso disso. (Com as mãos na fronte) Não preciso! Não preciso! (Grita) Droga!!! Eu não vou mais tomar essa porcaria. (Joga o copo no chão) Se eu tiver que morrer, então que eu morra. (Lilih se senta nos cacos com a cabeça sobre os joelhos. Pega um dos cacos do chão e aperta. Entra Lucius) LUCIUS – Lilih? O que houve? Que bagunça é essa? (Ajuda a levantar-se)
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LILIH – Você só chega agora e se acha no direito de já ir me entrevistando? LUCIUS – Você sabe que estou com muito trabalho no escritório. LILIH – Será que você estava esse tempo todo no escritório mesmo? Será? LUCIUS – Suas mãos estão sangrando. Droga! Vou pedir pra Madalena chamar o doutor. LILIH – Eu não preciso de médico nenhum. LUCIUS – Lilih por favor. Deixa eu te ajudar. LILIH – Onde você estava ontem? LUCIUS – O que isso importa agora, você está machucada. LILIH – Fala... Aonde você estava? LUCIUS – Deixa eu ver sua mão. LILIH – FALA! LUCIUS – Eu estava no escritório. LILIH – Mentira! LUCIUS – O que deu em você? LILIH – Porque você não fala a verdade uma vez na vida? LUCIUS – Lilih, você está nervosa. Eu entendo que não tem sido fácil pra você todas essas mudanças e tudo que a gente passou até aqui. LILIH – Você acha que eu sou idiota? Que vou cair nessa outra vez? LUCIUS – Eu vou pedir pra Madalena trazer seu comprimido e a dor vai passar. Você não tomou ontem. LILIH – Não tomei droga nenhuma e nem vou tomar.
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Espera aí... Como você sabe? A Madalena!!! Ela te contou! LUCIUS – Você não tinha como esconder isso de mim. LILIH – Claro que ela te contaria! Ela é sua confidente não é mesmo? Já elogiou o uniforme dela hoje? Era com ela que você estava ontem enquanto eu padecia nesse quarto? LUCIUS – Você está misturando as coisas querida. LILIH – Você não vale nada. NADA!!!! (Lilih descontrolada se aproxima e desfere vários tapas sobre Lucius. Lucius a empurra bruscamente no chão) LUCIUS – MALUCAAA! Você quer mesmo saber? Eu estava com outra. É isso mesmo. Eu estava fodendo com outra. Eu fiquei a noite toda fodendo com outra. Uma gostosa. Porque você está acabada. Está paranoica!!!! LILIH – (Grita) Você não presta!!! Desgraçado!!! LUCIUS – Você é quem nunca prestou, NEM COMO MULHER E NEM COMO MÃE!!! LILIH – (Chorando muito) Eu sempre fiz o melhor que pude. Sempre amei meus filhos. Você não tem direito de jogar isso na minha cara . LUCIUS – Amou mesmo? Você tem certeza disso? LILIH – Cala a boca. Cala a boca. CALA A BOCA! (Parte com o caco de vidro pra cima de Lucius. Lucius, enfurecido, a segura fortemente pelos cabelos, a joga no chão e sai) CENA 4 (Lilih está no quarto, no chão, em meio aos cacos de vidro. Se levanta, senta em sua cama com as mãos ensanguentadas e olha o porta-retrato da família. Entra Madalena)
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MADALENA – Sra. Lilih, eu ouvi gritos! A senhora está sangrando! Meu Deus! Foi negligência minha! Eu vou pegar um pano! (Madalena sai rapidamente. Lilih continua olhando pra foto e Madalena entra às pressas, com uma pano e uma gaze na mão, se ajoelha próximo a cama e começa a enrolar a mão de Lilih com a gaze enquanto fala) MADALENA – O que eu fiz!!! Não devia ter trazido esse copo e muito menos ter deixado aqui. LILIH – Se está preocupada em perder o emprego, pode ficar tranquila. MADALENA – Poderia ter acontecido algo muito pior. Onde eu estava com a cabeça! LILIH – Pra quem sempre é monossilábica, até que você está falando demasiadamente hoje. MADALENA – Sra. Lilih... Nunca a vi assim em todos esses anos. Sempre foi calma apesar das dores. LILIH – Madalena me responda: o que você acha de mim? MADALENA – O que importa agora é tratar desse ferimento. LILIH – Por favor responda. MADALENA – (Se compadece) Bom... A Sra. é uma mulher muito inteligente. É uma pessoa muito generosa e gentil... e... me lembra uma pessoa que foi muito querida pra mim. LILIH – Eu sou uma mãe ruim? MADALENA – (Desconcertada) Apenas está passando por dificuldades e precisa de ajuda. Todo mundo tem problemas. LILIH – E por que o Lucius não enxerga isso? Por que ele me faz me sentir esse fardo inútil?
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MADALENA – Talvez, precise deixar o passado de lado. Esquecer o que te faz mal. Se alguém te faz mal, deve descartar. Se concentre na sua recuperação. LILIH – Quando eu era mais jovem, como você, tinha tantos sonhos... Jamais imaginei viver esse pesadelo. MADALENA – Ainda é jovem. Sinto muito por tudo. Estou aqui para te ajudar a se recuperar. LILIH – Mas o que eu faço Madalena? O que eu faço para o Lucius me amar? O que eu faço para reconstruir minha família? MADALENA – Tem coisas na vida que não tem volta Sra. Lilih. Só a Sra. pode achar a resposta. LILIH – Madalena, eu preciso de uma opinião. Me diz o que você pensa. Me diz com todas as letras. MADALENA – Eu já falei demais. Estou sendo antiética. LILIH – Você sempre tão profissional e tão ética... Pena que a vida não é assim, não é Madalena? Nem sempre somos éticos. MADALENA – Sinto muito senhora. Apenas sigo ordens. LILIH – Sei... o Lucius... e pensar que o dinheiro que ele tem é da empresa que EU fundei! (Silêncio) LILIH – Mesmo assim, apesar de tudo, é você quem me levanta quando estou no chão mergulhada em minhas dores. Obrigada! (Lilih, repentinamente dá um abraço em Madalena apoiando a cabeça em seu ombro. Madalena fica paralisada, mas cede lentamente colocando uma de suas mãos nas costas de Lilih. Ficam uns instantes assim, como estivessem paradas no tempo. De repente, Madalena se levanta rapidamente, como se estivesse voltando ao tempo real e começa a catar os cacos
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do chão e os enrola no pano sujo de sangue. Lilih a observa. Ao terminar, Madalena se levanta e aparenta está sentindo um mal estar se apoiando na parede) LILIH – Tudo bem Madalena? MADALENA – Foi só uma tontura. LILIH – ... MADALENA – Seus comprimidos! (Entrega os comprimidos para Lilih e um copo descartável com água) LILIH – Copo descartável? MADALENA – Sim. Por precaução. LILIH – Que decadência, meu Deus!! Eu, Lilih Hoffman, tomando água em copo descartável! (Coloca os comprimidos na boca e toma a água) MADALENA – O corte foi superficial. Vai ficar bem. (Madalena se vira para sair e, nesse momento, Lilih tira os comprimidos da boca e os esconde) LILIH – Fica mais um pouco Madalena. Me faz companhia.. MADALENA Eu realmente preciso ir. Mas eu volto mais tarde. Tudo bem? LILIH – (Triste) Tudo bem. (Madalena se levanta e sai, mas quando ainda se encaminha em direção a porta, Lilih a chama) LILIH – Madalena!!! (Madalena, da porta, se vira para Lilih) MADALENA – ... LILIH – Como estão meus filhos? MADALENA – (Pausa) Eles estão bem. Tenha certeza. (Os olhares de Lilih e Madalena se cruzam. Madalena
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sai) CENA 5 (Lilih está no quarto sozinha) LILIH – Deus, por favor, se você existe, me ajude! (Lilih, em sua profunda tristeza, pega sua paleta de tintas e começa a pintar. Ao mesmo tempo, ela começa a cantarolar uma canção)
LILIH – “Nearer, My God to Thee, Nearer to Thee, Even though it be a cross, That raiseth me . . . Still, all my song shall be, Nearer, My God to Thee, Nearer, My God to Thee, Nearer to Thee . . .(...)” Sarah Flower Adams (Entra Lucius) LUCIUS – Querida? Posso entrar? LILIH – ... (Lucius olha pra tela) LUCIUS – Lua cheia, céu estrelado e... uma tempestade! LILIH – ... LUCIUS – Um artista não explica sua obra, não é mesmo? LILIH – ...
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LUCIUS – Querida, eu sei que errei. Fui agressivo. Eu te amo. Você sabe. Mas não tem sido fácil pra mim também. LILIH – Me ama e se deita com outra? LUCIUS – Eu só queria te ferir. Sempre fui fiel a você. LILIH – (Continua pintando) (Lucius se aproxima de Lilih, coloca as mãos sobre seu ombro e começa a beijar seu pescoço, até chegar em sua boca. Lilih tomada por imenso desejo, se vira de frente e corresponde ao beijo. Eles se beijam ardentemente. Caindo em si, Lilih se vira de costas) LILIH – Se aproveita do meu amor Lucius... LUCIUS – Por favor Lilih, me perdoe. LILIH – O que aconteceu com a gente, o que aconteceu com nossa família? LUCIUS – ... LILIH – Talvez tudo isso tenha um propósito. LUCIUS – Lilih não começa. LILIH – Estou falando sério. Talvez tenha um propósito. LUCIUS – (Ri) Um propósito? LILIH – Sei que divergimos em nossas opiniões. Mas talvez, devêssemos tentar nos aproximar mais de Deus. Buscar a orientação d’Ele. Eu e você. Juntos!!! LUCIUS – Lilih por favor... LILIH – Lucius me ouça, ainda a pouco, eu senti a presença de Deus. LUCIUS – Presença de deus? HAHAHAHAHA esses remédios estão mexendo mesmo com sua cabeça. LILIH – Lucius, pelo bem da nossa família, nós podíamos tentar nos aproximar do Senhor e...
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LUCIUS – Para! Você sabe que não existe deus nenhum. Isso é uma criação infantil da mente humana. LILIH – Eu tenho fé e isso não me faz inferior a você. LUCIUS – As crianças acreditam em papai Noel e os adultos em deus. LILIH – Pois é... Mas quando eu estava sozinha nesse quarto, o Deus da minha “mente infantil”, me ajudou a não bater minha cabeça na parede até morrer. LUCIUS – Claro! (Irônico) Deus pulou sua listinha de pendências e veio atender Lilih Hoffman, como ele poderia ignorar? Você já o agradeceu hoje Lilih, por ele te amar mais do que as criancinhas que padecem de fome lá na África? LILIH – Para com isso Lucius! Não use a desgraça alheia a seu favor. Essas coisas não são culpa de Deus. São culpa do homem. LUCIUS – Culpa do homem... eu pensei que deus fosse o cara que tudo pode. Mas ele prefere assistir a desgraça da humanidade de camarote, enquanto degusta o seu vinho francês. E, de vez em quando, ele desce do seu trono de ouro para fazer companhia pra a ilustre Lilih Hoffman. Você e deus, realmente, tem muito em comum. LILIH – Tudo isso está acontecendo porque somos pecadores. A natureza do homem é pecaminosa. LUCIUS – Nem tudo é culpa do homem Lilih. A porra de um asteroide que cai na terra é culpa do homem? Bactérias do mal, que querem nos matar o tempo todo, é culpa do homem? Anomalias cromossômicas são culpa do homem? LILIH – Deus sabe de todas as coisas. LUCIUS – (Irritado) Já que é assim, ele poderia ter optado em não fazer porra de humanidade nenhuma, já que sabia que iria dar merda!!!! LILIH – Você não tem respeito. Deveria se ajoelhar e
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pedir perdão. LUCIUS – Me ajoelhar? A era da escravidão já passou! LILIH – Você não conhece o plano de Deus. LUCIUS – Claro... Eu não conheço o plano. O fim justifica os meios não é Lilih? Não é assim que você conduz sua vida? Estamos aqui vivendo esse “plano divino maravilhoso”, porque o fim justifica os meios. Realmente é um ótimo plano! (Bate palmas) Mas que maravilha de plano! LILIH – Você é terrível Lucius. Saia daqui! LUCIUS – Eu sou realista Lilih. Você que é egocêntrica, mimada e, ao mesmo tempo, cheia de melindres. Levante-se dessa merda de cama e resolva você mesmo os seus problemas. Sabe quando você vai sair dessa? Quando parar de achar que é o centro do universo. Quando parar de superestimar seu sobrenome. Quando admitir seus erros e parar de ficar ME ENCHENDO O SACO COM ESSA BABAQUICE DE PROPÓSITO DE DEUS!!!! LILIH – Você diz isso porque é um fracassado. Tem inveja de mim. Ganhou a vida em cima da empresa que EU fundei. Sabe por quê? Você não consegue fazer nada sozinho! É UM MERDA! LUCIUS – Fracassado? Ora, veja quem está a mendigar a atenção de todos. Fui eu que fiz essa empresa decolar. Foi com o meu trabalho. O MEU SUOR! LILIH – Bem que a Madalena falou. Eu preciso me afastar de você. VOCÊ É TÓXICO! LUCIUS – Madalena... Madalena... Não se deve subestimar a ambição de uma jovem vaidosa, não é mesmo? LILIH – Ela está aqui quando você não está! LUCIUS – Pra te entupir de remédios! Já se perguntou se esses remédios estão te fazendo bem
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mesmo? LILIH – Onde você quer chegar Lucius? LUCIUS – Agora você e ela estão de complô contra mim. Só o que me faltava. Acho que devo tirá-la de nossas vidas. É isso que você quer, não é Lilih? LILIH – Tá com medo que eu descubra alguma coisa? LUCIUS – Vai começar a me encher o saco com essa história outra vez? Será que toda vez que você se deparar com uma moça bonita vai ser a mesma coisa? LILIH – Que bom... Ao menos admite que a acha bonita! Você pensa que eu sou idiota? Eu vejo como você a cobiça! Tá com medo que eu descubra que você se encontra com ela pelas minhas costas? Talvez até aqui, nessa casa... LUCIUS – Você está paranóica. LILIH – Poderia ao menos disfarçar seu desejo por ela. Mas não! Você deixa bem evidente. Você esfrega na minha cara! Me diz: vocês estão transando, não estão? Você bate uma pra ela quando está no escritório? Você a chupa? Conte-me os detalhes! LUCIUS – Uau! Lilih Hoffman perdendo a compostura! LILIH – Você não respeita nem as “crianças”. Já pensou como eu me sinto? Sim. Porque elas já devem ter percebido que você fica babando toda vez que a Madalena passa. LUCIUS – Não ouse colocar os meus filhos no meio dessa sua perseguição doentia. Não jogue baixo. LILIH – E por que não? Eu estou falando mentira? O que acha que o Martim e a Cloe vão pensar? LUCIUS – (Dá um tapa na cara de Lilih) VOCÊ É SUJA! É DESPREZÍVEL!
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LILIH – Você não tem o direito de me bater DESGRAÇADO! Eu não vou apanhar de homem nenhum. VOCÊ VAI PAGAR CARO! LUCIUS – Como ousa citar o nome do Martim e da Cloe? Você que sempre desprezou o Martim porque ele não era perfeitinho como você queria! Depois de tantos abortos, ele não estava nos padrões de Lilih Hoffmann. Você o deixou doente, sozinho no berço o dia todo enquanto eu me matava naquele escritório!! Você nunca o amou! LILIH – Quantas fraldas você trocou? Eu sempre amei meus filhos! LUCIUS – Amou? Você tá esquecendo que sempre tratou a Cloe como uma serviçal!!! Sabe o que eu acho? Que você tinha inveja dela. Você tinha inveja da beleza e da juventude da Cloe. E é por isso que você fez da vida dela um inferno. Não é isso? FALA. LILIH – Eu queria protegê-la de você. Desgraçado! Quando ela começou a namorar você surtou! Você não olhava pra ela como um pai olha pra uma filha!!! LUCIUS – Protegê-la de mim? Você é quem tinha ciúmes porque ela era mais apegada ao pai. Como ousa dizer uma coisa dessas? Maldita! Sua DESGRAÇADA! (Agarra o pescoço de Lilih) Eu devia te matar! Devia te matar como você fez com o Martim e com a Cloe. (Solta o pescoço de Lilih, Lilih cai no chão com o impulso) LILIH – (No chão) Do que você está falando? LUCIUS – Foi você, não foi? Foi você que provocou o incêndio. Não foi acidental. FOI VOCÊ!!! Você queria tirar a Cloe do caminho. Tinha inveja até do feto que estava em seu ventre. Não queria lembrar do pequeno Martim que você deixou sozinho pra morrer quando ainda era um bebê! SUA MALDITA! Sabe o que eu devia fazer? Eu devia te mandar pro inferno! Mas não será necessário! (Sai)
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CENA 6 (Lilih está caída no chão. Se levanta e começa a perambular lentamente pelo quarto num misto de desespero e confusão mental) LILIH – Não. Não... NÃO! Não é verdade! Não é! Ah! (Grita). (Lilih cai de joelhos e, aos poucos, vai abaixando a cabeça até encostar seu rosto no chão. Seu choro revela uma dor profunda. De fundo, ouvese sons ecoando com a voz de um bebê chorando. Posteriormente, escutam-se os gritos de uma menina. Ouve-se o barulho das chamas tomando a casa. Ouvese uma voz de criança sorrindo. Ouve-se uma criança a chamar pela mãe e dizer que a ama. Os sons ecoam simultaneamente e de maneira confusa, enquanto Lilih está prostrada no chão) CENA 7 (Entra Madalena) MADALENA – Sra. Lilih? (Lilih continua no chão) MADALENA – Venha, vou te ajudar. (Madalena coloca Lilih na cama. Lilih começa a ficar trêmula. De repente, Lilih olha para o teto) LILIH – Está pegando fogo. Está tudo queimando Madalena! (Lilih, ainda trêmula, sua muito e seus dedos das mãos começam a entortar) MADALENA – Acalme-se Sra. Lilih. É uma crise. (Madalena tira a seringa do bolso e dá um sedativo para Lilih. Os olhos de Lilih vão se fechando devagar, até que cai no sono) CENA 8 (Enquanto Lilih dorme, Madalena se levanta e a
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observa. Leva as mãos até o cabelo de Lilih e começa a acariciá-los. Percorre os dedos até o rosto de Lilih e vai deslizando a mão, delicadamente, por todo seu corpo até chegar em seus pés. Então, Madalena se ajoelha a beira da cama e vai se aproximando do rosto de Lilih, até que começa a beijar sua boca suavemente. Entra Lucius) LUCIUS – Madalena? O que está fazendo? Está louca? MADALENA – Não se preocupe. Ela dorme profundamente. Como é linda. Meu Deus! (Madalena continua na mesma posição, deslizando os dedos no rosto de Lilih e admirando sua beleza. Lucius vai se aproximando de Madalena por trás, até que a agarra e sussurra em seus ouvidos) LUCIUS – Não mais do que você. (Lucius começa a beijar o pescoço de Madalena como se estivesse em estado de êxtase com o cheio da bela mulher; com uma das mãos ele segura seus cabelos e, com a outra, toca em um de seus seios, enquanto Madalena permanece de joelhos sobre o corpo de Lilih. Ainda nessa posição, Madalena e Lucius começam a se beijar, enquanto Lucius toca em uma de suas coxas e, lentamente, começa a levantar a saia de seu uniforme. Madalena se vira de frente pra Lucius, que a pega no colo e a coloca no chão. Lucius tira o cinto, e desabotoa a calça. Lucius se deita sobre Madalena e começa a beija-la. Madalena o afasta olhando fixamente em seu olho) MADALENA – Deite–se você. LUCIUS – Rebelde... Gosto! (Madalena o empurra no chão e começa a tirar a roupa, peça por peça. Lucius a olha compenetrado, hipnotizado com a beleza de seu corpo. As luzes do palco começam a piscar lentamente e ficam baixas de modo que o corpo de Madalena não fica totalmente exposto. Madalena então senta–se sobre Lucius, ele segura seus seios, cobrindo-os enquanto consumam
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o ato. As luzes continuam piscando devagar até o blackout) CENA 9 (Lilih está sentada no chão de frente para o palco. Há uma pequena poça de água no chão em sua frente. Ela desliza os dedos na água e observa. Com um copo descartável em uma das mãos, ela vai jogando cada vez mais água no chão e repetindo o ato. Entra Madalena) MADALENA – Como esta Sra. Lilih? (Lilih continua deslizando os dedos na água) MADALENA – Sra. Lilih? Deixe-me te ajudar. (Madalena a levanta do chão) MADALENA – Vejo que não está bem hoje. O que acha de ir até o jardim? (Lilih nota que Madalena está usando um colar. Ela leva as mãos até o pescoço de Madalena e toca o colar) LILIH – Que lindo colar Madalena. MADALENA – (Constrangida, segura seu colar e se vira) Sim. Pertenceu a uma pessoa importante. LILIH – É uma bela joia. (Lilih dá passos ao encontro de Madalena até ficar bem próxima. Ela corre os dedos no cabelo e depois no rosto de Madalena até chegar ao colar) LILIH – É uma pena que uma joia dessas não fica bem no pescoço de uma SERVIÇAL! (Arranca o colar do pescoço de Madalena) MADALENA – (Assustada dá passos rápidos pra trás) Sra. Lilih... O que é isso? Está descontrolada. Não se aproxime! LILIH – Achou que tinha me dopado não é? Eu estava lúcida o suficiente pra ver a traidora que você é.
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MADALENA – Não sei do que está falando. Está confundindo as coisas. LILIH – Eu estou confundindo? Você ainda tem coragem de negar? Quer me fazer passar por louca? Tudo isso por ambição. EU CONFIEI EM VOCÊ! (Dá um tapa na cara de Madalena) (Madalena corre em direção a porta, Lilih a puxa por trás pelo cabelo e a joga no chão) LILIH – Você não vai sair daqui sua VADIA MISERÁVEL! (Madalena começa a passar mal no chão) MADALENA – Por favor. Deixe-me sair. Eu não estou me sentindo bem... LILIH – CÍNICA!!!! (Lilih vira de costas para Madalena) LILIH – Querida me perdoe. Por favor me perdoe! Eu não queria. Sei que te magoei. Mas me dê uma chance. (Madalena tira uma seringa do bolso e, sutilmente, vai se levantando e se aproximando de Lilih com a seringa enquanto Lilih fala) LILIH – Estava com a cabeça cheia de problemas por causa do escritório. Foi ela! Ela planejou tudo isso! Você quer me colocar contra ela, não é? Quer colocar uma contra a outra! Não, meu amor! Preste atenção... Ela se aproveitou da nossa situação. Ela é quem quer te colocar contra mim pra destruir a nossa relação. É gananciosa! (Se vira pra Madalena) GANANCIOSA!!! (Pega a seringa joga no chão, pega Madalena pelos cabelos e vai andando com ela pelo quarto enquanto fala) LILIH – Você foi longe demais Madalena! Agora vai sofrer um pouquinho do que eu sofri. (Lilih a empurra no chão. Madalena cai de quatro no chão de frente para o palco. Lilih chega por trás e segura fortemente em seus cabelos)
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LILIH – Madalena... minha putinha desajustada. Uma pena... (Ri). Sabe que eu gostava de você nessa posição? Como uma cadelinha... Minha posição predileta! Viu quem dá as ordens? Você me provocou... Quis dar um golpe... Me afastar da minha mulher... E agora tenho que tomar uma atitude. Tenho que dar uma basta nessa situação. Vai fazer falta. Mas igual a você tem tantas... Na verdade... seria interessante te ver sendo apedrejada em praça pública! Mas o fim justifica os meios. (Lilih começa a apertar o pescoço de Madalena até que Madalena desfalece e cai desacordada no chão. Há sangue em suas pernas. Lilih começa a tocar o sangue que escorre nas pernas de Madalena, com ar de satisfação. De repente, Lilih olha pra Madalena assustada) LILIH – Madalena? Acorda! Meu Deus. O que você fez? (Lilih, dá passos pra traz olhando, o corpo no chão. Lilih tira o capuz preto. Por baixo há uma roupa branca. Ela agacha no chão e joga o capuz preto em sua frente e fica olhando fixamente pra ele. Começa a tocar um alarme e as luzes começam a piscar no mesmo intervalo em que toca o alarme. Lilih pega o capuz do chão e o coloca novamente. Entram três homens de branco e seguram Lilih por trás. As luzes se apagam e o alarme continua tocando) CENA 10 (Foco de luz em Lilih. Lilih está de costas para a plateia com seu capuz preto. Em uma das mãos está sua paleta de tintas. Na outra há um pincel. Ela pinta sobre a tela. Entra Madalena com uma bandeja na mão) MADALENA – Trouxe seu café. LILIH – (Ainda pintando) Obrigada Madalena. Você sempre muito gentil e prestativa. MADALENA – Parece bem hoje, senhora Lilih.
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LILIH – Sim... Estou muito feliz. Acordei maravilhosamente bem! Aliás... Como me sinto ótima, vou tomar meu café na mesa com toda a família reunida. Vá chamar as “crianças” e meu marido, por favor. MADALENA – Não será possível Sra. (Lilih solta a paleta de tintas e o pincel no chão, enquanto caminha, lentamente, até a frente do palco. Em seus lábios há um sorriso discreto, mas seu olhar é vazio) BLACKOUT
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BARBIE VAI A LONDRES Por Ceci Vilela
CENA 1
(Som de tiro. Segundos depois, Paco e Pedro correm para dentro do palco. Igor entra logo em seguida. Paco veste pijama) PEDRO – Seis tão bem? (Todos se olham, procurando por feridas um no outro) IGOR – Paco, cadê a arma? PEDRO – Vai buscar a porra da arma! (Paco sai do palco) IGOR – A gente passa pelo trabalho de sobreviver pra ele esquecer a porra da arma. (Os meninos dão risada enquanto saem do palco. Paco volta alguns segundos depois com a arma na mão e uma aliança de ouro no dedo, em um estado de choque ainda maior. Sua mão treme enquanto segura a arma. Lentamente levanta a mão e mira o público, quase em prantos. Então ele começa a rir) (A luz apaga. Um alarme toca. Uma caixa de papelão e dois colchões são colocados no palco. Em um dorme Marcela, no outro Igor e no chão dorme Paco. Esses elementos se concentram em um espaço pequeno em um lado no palco) CENA 2
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(A luz acende. Paco acorda em um susto do seu pesadelo. Os três levantam, empilham os colchões e começam a se arrumar para sair. Paco olha para o público fixamente, Marcela percebe algo errado) MARCELA – Paco, você precisa falar disso com o Seu João. PACO – Jogou a razão no forno da patroa? MARCELA – Não vê que eu quero te ajudar? Não dá mais isso, toda a noite! Quero ver quando dormir com a Morena e isso acontecer. Vai falar o quê? Morena, eu ando acordando assim assustado toda a noite, mas é porque Deus me mostrou o apocalipse e isso me deixou perturbado. PACO – Cala a boca Marcela. (Paco começa e se vestir) MARCELA – Para, meu. Sua explicação tem que fazer sentido. (Pausa) Você fala que no seu apocalipse todos os crentes foram arrebatados, inclusive ela. (Tom dramático) Tudo é agora muito melhor pra nós aqui na terra, mas a vida se tornou insuportável pra você. PACO – (risada debochada) Vai tomar no cú, querida. (Mãe grita de outro cômodo) TIA – Marcela, você viu que horas são? MARCELA – Sim, mãe! (Marcela vai para o outro lado do palco, onde sua mãe e seus dois primos comem, olhando para a plateia como se fosse uma televisão) TIA – E você Paco, vai fazer o que hoje? PACO – Vou encontrar o Seu João. (Todos se entreolham enquanto Paco mantém os olhos fixos na televisão)
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TIA – Sabe Paco, não é tão difícil assim entrar na federal. Você ganha uma grana, qual é, já vi o seu relógio. Tira uns 3 meses e tenta o ENEM. Ainda tem cota e... Olha a Marcela, ela ganha auxílio do governo ainda por cima. Ou você pode fazer igual o Igor e trabalhar na oficina da Marcelino Pires! (Igor dá uma risada debochada e silenciosa olhando rapidamente para Paco, que revira os olhos) MARCELA – Ai meu Deus, olha mãe! Mataram o Vereador ontem. TIA – Caralho, é o Roberto Dias. Aumenta a TV! (Um foco de luz é colocado sobre Marcela e sua mãe. Paco e Igor congelam no palco. As duas olham chocadas para a televisão) OFF – (...) era o vereador de Dourados. Dono das fazendas Pico Dourado e Sol do Porã, é filho do prefeito e vereador há 4 mandatos. (luz apaga novamente). O clima de investigações aqui na delegacia é intenso. Voltaremos com mais notícias do caso em breve! CENA 3 (A luz acende) (Paco está em um banco de praça com um boneco Ken na mão, que por sua vez usa um anel de ouro no pescoço. Uma Barbie está jogada no chão sob o banco) PACO – Sabe aquela brincadeira da tia que compara o sobrinho com os próprios filhos? Criaram pra ela. Aquela mulher me queria na rua, isso sim. Mal sabia que a oficina da Marcelino era onde a gente decidia como ia resolver as coisas mais... sabe... complicadas. Não deveria ter orgulho do filho não. Se a Morena não achasse ruim a gente fugir assim, antes de casar, eu contava pra todo mundo. (suspiro) Ai eu amo a Morena. É por isso que peguei o trabalho, pra ter dinheiro pra cuidar dos nossos filhos, pra dormir respirando o ar dela.
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Daí, quando eu for rico e casado, só quero ver a cara das mulher da igreja, vendo a gente fazendo tudo certinho. (Pausa) Mas olha, ela não é nenhuma santa, vive fazendo umas coisas erradas. Tipo quando saiu aquele filme do Freddie Mercury, ela quis ir escondido porque a mãe disse que não era pra assistir. Ele era viado, sabe... mas Bohemian Rhapsody era a música preferida da Morena. (Paco respira fundo, nostálgico. Acaricia o boneco Ken quando Bohemian Rhapsody começa a tocar) PACO – Is this the real life? Is this just fantasy? (Luz apaga) Caught in a landslide No escape from reality Open your eyes
CENA 4 (Luz acende. O boneco Ken não está mais em sua mão. A blusa é outra) PACO – Look up to the skies and see I’m just a poor boy I need no sympathy (Igor entra em cena. Paco continua cantando, agora com uma expressão ainda mais apaixonada) IGOR – Nossa, tá tão apaixonado que até ouve música em inglês. Essa não é aquela que ele conta pra mãe que matou um cara? (Risada) PACO – Você tem inveja porque vai morrer sozinho. IGOR – Claro que não, vou morrer rico e com 5 filhos. (Pausa) Falando em morrer, Seu João já deu o seu dinheiro? PACO – Deu.
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IGOR – E o que você fez com a carteira e com a aliança? PACO – A aliança ele deu pra mim pelo primeiro serviço de verdade. IGOR – Porraaa! Deixa eu ver... Tá ai? PACO – Não. IGOR – Ah... Bom, eu vou levar a Lucinda naquela sorveteria cara da Vicente Ferreira. (Encara Paco) Porque eu sou rico. (Paco responde enquanto Igor sai do palco) PACO – Você é rico o caralho. (Paco tira a aliança do bolso. Murmura a música Bohemian Rhapsody. Pedro entra correndo. Paco esconde a aliança dentro da mão) PEDRO – Mano, mano. Você tá sabendo? Tá tendo tiroteio em Ponta Porã. PACO – De novo? PEDRO – A Morena não foi visitar o pai? PACO – Nossa mano relaxa, a cidade é imensa. (Luz apaga. Som de tiro. Silêncio. Pouco depois Paco grita) PACO – Nãoo!
CENA 5 (Luz acende. Paco está novamente sentado no banco de praça com o Ken na mão. A Barbie está no chão.) PACO – Daí eu conheci o Roberto Dias. (Aponta para o boneco) Ia pedir a Morena em casamento, mas já que ela tá em Ponta Porã, emprestei o anel pra ele. Ficou ótimo, você não acha? (Paco vira o boneco para o público) O Roberto é diferente, ele usa o anel
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como um colar. Olha pra essa roupa! Ele tá pronto pra ir pra praia. Igual a Morena, que tá lá em Santos agora visitando a amiga dela. VOZ EM OFF – O coco 3 reais! Picolé, 2 reais! Tem de coco, leite condensado, morango e abacaxi. (luz apaga) O coco, também tem sabor coco. Bem gostoso, bem cremoso, geladinho e refrescante! O picolé 2 reais. O coco 3 reais. (O banco sai de palco e os bonecos também) CENA 6 (Acende a luz. Paco, Pedro e Igor saem correndo de um lado do palco até o outro.) PEDRO – Peraí, moçooo! (Pedro sai brevemente de cena enquanto Paco e Igor estão ofegantes quase fora do palco. Igor volta com dois cocos na mão) PACO – Dois cocos, mano? Qual é a sua? Eu não vou dividir não! Quero um inteiro! PEDRO – Quem disse que eu comprei pensando em dividir com você? Você que ganhou mais que todo mundo. Vai comprar seu próprio coco, playboy. (Igor olha para Pedro com um olhar de reprovação) PEDRO – Hahaha. Brincadeira. Aqui, olha! PACO – Se você quer tanto o dinheiro, pede a porra do serviço da próxima vez. (Paco pega o coco agressivamente) Mas quero ver você ter sangue frio e agilidade pra fazer. É trabalho de profissional, não de adolescente recém desmamado. IGOR – Calma, cara. Tudo certo, só um coco. (pausa) E cara, deixa eu te falar. Você não deveria andar por aí com a aliança. Você viu que a imprensa e os federais tão em cima, não mete o louco. PACO – Relaxa, mano. Eu vou pedir a Morena em casamento assim que ela voltar de Natal.
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(Igor e Pedro se olham assustados) PEDRO – É... Tá tudo bem? PACO – Para de me perguntar isso, caralho. Toma aqui a porra do seu coco. (Paco sai do palco murmurando enraivecido) PEDRO – Mano, ele vai colocar a gente na prisão desse jeito. Não dá nem pra gente internar! Vai que ele conta pros médicos? (pausa) Vai que a minha mãe fica sabendo? Cara, o povo da rua me acha o cidadão do bem. Eu gosto de ser cidadão do bem... IGOR – Wowww, relaxa o cu que você tá me deixando nervoso. (pausa) A Marcela, a Marcela com certeza já tá com alguma ideia. (Luz apaga) PEDRO E IGOR – Marcelaaa! Marcelaa. Ô Marcela. (Silêncio.) CENA 7 (Luz acende) (Os três estão sentados no colchão em silêncio) MARCELA – Mano, eu não tenho a mínima ideia do que fazer. (pausa) Duas mulher na igreja da mãe disseram que tão orando por ele. A mãe quer falar com ele! Isso não pode acontecer, cara! É como eu me mantenho na faculdade, caralho. Se ele decidir falar de outros fantasmas aí fudeu. É como a gente tá pagando as reformas na casa! Ela até hoje acha que o governo tá pagando auxílio. Meu auxílio... (pausa. Ela olha para o outro lado do palco. Responde sussurando) ...meu auxílio é a maconha paraguaia que paga, caralho. (Silêncio) IGOR – Eu não to entendendo de onde veio a ordem pro trabalho do vereador se você não ficou
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sabendo. PEDRO – Vai ver o Seu João tá trabalhando pro coronel. (Marcela e Igor olham para Pedro) IGOR – Mano, cala a boca! MARCELA – Geralmente não interessa pra gente saber dessas coisas. A gente passa a mercadoria e manda pros caras. É só burocracia e maleta. Arma não tem nada a ver com a gente não. Arma é só com vocês da Marcelino. Agora, o vereador era a porra da burocracia! A gente não manda nada pra São Paulo nem pro Rio há 10 dias. Vamo começar a perder negócio. PEDRO – Ai, cara, a reforma... IGOR – Que reforma o quê, mano? Tá bom que desde que pegaram o Rafaat, Ponta Porã vive tendo tiroteio, mas esse aí? Foi um aviso, cara. Certeza que pegaram a Morena porque o Paco pegou o vereador. Daqui a pouco é a gente no cemitério, ou pior, é o jornal e a polícia descobrindo. Caguei pra porra da reforma. MARCELA – Cagou o caralho porque se acabar dinheiro pra reforma não demora muito pra acabar o dinheiro pra comida. PEDRO – Gente, volta pro Paco. (pausa) E se o Seu João decidir, sabe, dar um fim. MARCELA – Gente, ele não tá tão mal assim, calma. (O palco se divide em duas cenas. De um lado Pedro, Marcela e Igor conversam; do outro, Paco se senta no banco da praça com um coco na mão. Um boneco Ken está sobre o banco. Ele olha curioso, e fala:) PACO – Gostei da sua blusa, mano. IGOR – Tá, mas e se ele ficar? Porque pode ser que chegue um ponto em que é Paco e a gente na cadeia ou o Paco morto. E se tirarem o Paco, quem vai
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matar ele? PACO – Como assim esse anel é seu? Seu João que me deu. PEDRO – Por que só nós dois? MARCELA – Porque eu estudo na federal, dou aula de inglês pra neta do prefeito e tenho amigos. PEDRO – Eu também tenho amigos! (Marcela e Igor reviram os olhos) PACO – Ah, cara, eu ia pedir minha namorada em casamento com ele. Mas vamos fazer assim então, até ela voltar eu deixo com você, pode ser? (Paco olha para a mão do boneco e para o anel) PACO – Tem certeza que esse anel é seu, mano? IGOR – Tá, presta atenção. Vamo ficar esperto pra tirar o anel do Paco. Acho que esse é o maior problema agora. E Marcela, seria uma boa se você fosse no Seu João conversar. (Paco olha para os dois lados e pega o boneco) PACO – Pera, qual é o seu nome? (Pausa). Porra, cara, você é famoso aqui no bairro. Prazer, sou o Paco. (Coloca o anel no pescoço do Ken. Um alarme toca. Luzes apagam) CENA 8 (Luzes acendem. Paco está deitado no chão. Marcela e Igor estão gesticulando tentando entender o que aconteceu com o anel. Paco acorda. Igor e Marcela fingem naturalidade) PACO – Bom dia! MARCELA – Bom dia! IGOR – Bom dia.
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(Mãe grita do outro cômodo) MÃE – Marcela, já viu que horas são? MARCELA – Sim, mãe! (Os três terminam de se arrumar e vão para a sala/ cozinha. Começam a assistir TV enquanto comem) MÃE – Paco, que porra é esse boneco Ken com uma aliança no pescoço? IGOR – Esse é o Roberto Dias. Ele vai ficar com a aliança até a Morena voltar de Curitiba. (Marcela e Igor esboçam expressão de profundo choque.) IGOR – Meu Deus do céu, mãe, olha... O Renato ganhou o The Voice! MÃE – Nãaao, mas a Fernanda era muito melhor! Aumenta o volume! VOZES EM OFF REPÓRTER – Como você se sente? (Paco está comendo a banana. Igor e Marcela discutem em silêncio no fundo) RENATO – Era o sonho da minha vida, meu Deus, não consigo nem acreditar. (luzes apagam) Devo tudo aos meus pais, minha esposa e ao Queen por terem inspirado a minha jornada. CENA 9 (Luzes acendem. Paco está sozinho, sentado no banco da praça com o Ken na mão) PACO – Sabe, moça... quando eu era pequeno a gente tinha um piano na sala e vários cavalos... minha mãe tocava piano o dia todo. De vez em quando meu pai sentava a mão nela, se a comida tava ruim ou os cavalos passavam a noite soltos. Na verdade eu tenho quase certeza de que ele
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sumiu com ela. (Pausa melancólica) Ah, mas não era tudo ruim. Todo ano a gente ia pra Assunção no Carnaval. É lindo, tem todas aquelas cores e danças... e as comidas, ai caramba. No Paraguai só tem boi, maconha e soja de brasileiro, mas o Carnaval de Assunção era tão diferente... um diferente bom, sabe? Não um diferente tipo os olhares quando a gente entra na sorveteria da Vicente Ferreira. Um diferente tipo quando eu beijo a Morena ou tipo o cheiro daquelas barraquinhas de chipa (suspiro). Comer chipa me dá uma mistura de alegria e tristeza igual estar com a Morena. Cada mordida que você dá é uma mordida a menos que sobra. (pausa longa). Eu fui vereador um tempão, sabia? Mas Seu João decidiu que não ia mais, e logo assim (estala o dedo) acabou. (se aproxima do público sussurrando). Eu ganhava uma grana gigante liberando mercadoria, ia visitar a Morena em Buenos Aires todo fim de semana (empolgado). Inclusive vou visitar ela essa semana... pedir ela em casamento com esse anel. Meu pai que me deu (sorri olhando pra o Ken). (Da primeira fileira se levanta uma jornalista com um gravador na mão) JORNALISTA – Posso olhar o seu anel? PACO (hesitante) – Ah, claro. Com licença, Roberto (fala para o boneco). (A jornalista abre a câmera de seu celular e tira fotos do anel e do nome gravado dentro dele) PACO – Pra que foto? Você não vai mandar isso pra Morena, não né? É surpresa pra quando ela voltar de Londres! Ela foi ver o show do Freddie Mercury! JORNALISTA – Obrigada! (A jornalista devolve o anel, faz uma ligação e se retira do espaço visível com o celular no ouvido. Paco coloca o anel no dedo enquanto percebe que, em uma lenta ascensão, Bohemian Rhapsody começa a tocar. Então se levanta com um olhar maravilhado. Percebe, finalmente, a Barbie de baixo do banco e grita:
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PACO – MORENA! (Pega a boneca e começa a chorar de emoção) PACO – Morena, que saudade! (Silêncio) PACO – Vamo casar, vamo sair daqui! (Silêncio) PACO – Não, por favor! (Desestabilizado, tira uma arma das costas e aponta para a Barbie, depois para a plateia) (Tremendo, abaixa a mão, olhando para ela. Paco leva, então, a arma ao queixo. Fecha os olhos e sorri como o faria reencontrando seu primeiro amor ou sentindo pela última vez o cheiro das chipas que sua mãe vendia) Blackout.
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DESERTO Por Beatriz de Lana
CENA I (Num bar, sentados na mesa dois amigos bebem e jogam conversa fora, enquanto um casal dança no meio da multidão.) HORÁCIO – Cansei de ver esse casal dançando. Vamos, está na hora. JOÃO – Relaxa, vamos beber e conversar mais um pouco. HORÁCIO – Olha, eles estão juntos, mas ela me olha como se quisesse me comer. JOÃO – (rindo-se sarcasticamente) É normal, você se isolou por muito tempo. Parece que está esquecido dos bons e velhos costumes. HORÁCIO – (pensativo) Será?... E se ela veio atrás de mim? JOÃO – Por que você não espera ele sair e vai atrás dela? HORÁCIO – Não, e se ela foi paga para me perseguir? E se eles descobriram que fui eu? JOÃO – Foi você o quê? HORÁCIO – Eu que matei a Eleanor. JOÃO – Como você poderia tê-la matado? Ela teve um derrame. E depois, quem poderia vir atrás de você por causa disso?
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HORÁCIO – Os pais dela. Eles sofrem até hoje. Eles devem ter descoberto. Porque vai saber lá o que acontece quando alguém tão jovem tem um derrame? E se foi meu toque, uma palavra, um gesto? JOÃO – Relaxa, cara. As pessoas não morrem assim. Vamos falar de coisas mais leves, faz tempo que não nos vemos. Não tem escrito poesia? HORÁCIO – Eu evito escrever agora, tenho medo. JOÃO – Por quê? HORÁCIO – Mergulhei muito fundo, e as águas ficaram escuras demais. JOÃO – Vamos lá, alguns versos não machucam. HORÁCIO – (olhando em volta) Hmm... Veja-os, por exemplo. (silêncio) JOÃO – Quem? HORÁCIO – Esses corpos ao mar, nesse altar divisório. Uma estranha reunião de rotas se comove. Atrás de mim, milhões de mênades me rasgam. E nas fugas do azul eles arderam mesmo... E nas noites do jazz te sufocaram tanto! JOÃO – Eles? HORÁCIO – (apontando o casal) São vazios. JOÃO – Um adeus?... HORÁCIO – Uma visão de morte. JOÃO – (receoso) Você não tem pensado em fazer nada, não é? HORÁCIO – (irritado) É uma sensação, apenas. (Silêncio) Eu penso muito nos mortos, no entanto. Eu os vejo destruindo tudo, rompendo todas as nossas relações, como que atraídos por um desejo superior, não acha?
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JOÃO – Parece que a morte se tornou uma obsessão sua. Para viver bem, você tem que a esquecer. HORÁCIO – (enfaticamente) Como, se vejo a morte o tempo todo, se ela está em toda parte? Ouça, João. Ela surge para mim como um céu azul de nuvens, dançando ante as luzes noturnas e cansadas da cidade. Ela surge como um rasgo de raio, uma miragem elétrica sobre a superfície do sonho. (Silêncio) Ah! meu pano de visões... JOÃO – (incomodado) Isso não é a morte, é um sintoma de algo bem diferente. Quem sabe não são assuntos mal resolvidos com a morte da Eleanor? Talvez você devesse procurar o que te angustia, o que está reprimido. HORÁCIO – Eu sei... Mas olha, essa mulher... JOÃO – O quê? HORÁCIO – Ela esconde alguma coisa. Eu vou aproveitar agora que ela está só e vou descobrir o que é. (Horácio se levanta e vai em direção à mulher) HORÁCIO – Olá, tudo bem? Por acaso, eu te conheço? MULHER – (rindo-se) Oi! Não, acho que não. HORÁCIO – Eu te vi dançando, e algo em você me soou familiar. Você é muito bonita. (Silêncio) Há quanto tempo vocês estão juntos? (Deixando implícito o homem com quem ela dançava) MULHER – É recente, mas não é nada muito sério. Por quê? HORÁCIO – Eu gostei de você, poderíamos nos encontrar depois. Quem sabe... MULHER – (tocando-o gentilmente) Bom... Esse é o meu número, me liga. Quem sabe... (sorri e o olha nos
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olhos) Desculpa, mas agora tenho que ir (indica a razão), até mais. (Horácio volta para mesa) JOÃO – (ironicamente) Essa foi rápida. E então? Ela veio mesmo vingar a morte da Eleanor? HORÁCIO – (alegremente) Por que há sempre pobres loucos vagando perdidos pelos desertos do amor? Não é difícil encontrar alguém, nestes lugares. JOÃO – O amor só produz desesperados, realmente. HORÁCIO – Eu me sinto como uma cadela com a língua estirada. JOÃO – (rindo-se) Cara, você é uma peça rara no mundo. HORÁCIO – (distraído, observando a mulher sair) É verdade. (Longo silêncio) Bom, acho que é isso. Eu... Eu acho que agora estou mesmo de saída. Foi ótimo te ver hoje, João, falamos de coisas interessantes. JOÃO – Tudo bem, cara, se cuida! E tenta focar mais na vida. Não se evita a morte caindo em desespero. HORÁCIO – Eu sei, João, eu sei. (Escuridão)
CENA II (Em seu apartamento, no dia seguinte, Horácio desperta com muita dor e se levanta da cama.) HORÁCIO – (levando as mãos à cabeça) O que está acontecendo comigo, que dor é esta? Será, será que estou morrendo? Será que estou alucinando? Aquela mulher, o que tinha em suas mãos quando ela me tocou? Será que ela enfiou algo em mim sem que eu percebesse? Ai! (Prolongado) Que dor terrível. (Põe as mãos na região genital) Tem algo errado, tem algo de muito errado nessa história toda. É melhor eu ligar
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para o João, ele é médico, ele saberá o que fazer, não é, Eleanor? (Horácio liga para João) João, vem aqui em casa. Eu estou passando muito mal, eu acho que estou morrendo. (Desliga, e se joga no chão) É isso, é o fim, é o fim, Eleanor. (Grita de dor) (Ele se ergue e vai até o espelho no banheiro, e se observa, checando seu rosto) HORÁCIO – E só se eu não soubesse, e só se eu não soubesse Não ficaria à tua espera dia e noite. (João bate na porta, e Horácio corre para abri-la. João entra) JOÃO – O que foi, Horácio? O que aconteceu? Como você está? Vim o mais rápido que pude. HORÁCIO – (chorando) É essa dor insuportável. Eu acordei hoje cedo, e ela estava aqui. Eu não sei o que fazer, e não posso ir ao hospital. Lá as pessoas são abandonadas para morrer, você sabe. Eu não tenho mais ninguém, João, por favor, não me deixa morrer só. (João olha para Horácio com pena, vai até a janela e a abre. Horácio vê o sol, e se vira) HORÁCIO – João, João, olha! Está tudo roxo, agora azul, amarelo. Há cores dançando em tudo! (Grita bem alto) JOÃO – Cara, você usou alguma coisa? Você não está morrendo, calma! Se você estivesse, eu já te encontraria morto quando chegasse aqui. Acho que sair ontem foi muito para você. HORÁCIO – E a dor, João? É constrangedora, eu nunca senti isso antes. Você é médico, somos amigos de infância, me ajuda, por favor. Eu nunca cheguei a um nível assim tão baixo. JOÃO – Você precisaria fazer exames, Horácio, mas pelo o que eu conheço do seu histórico... Eu vou ser franco, parece que você se encaixa num quadro de surto psicótico. (Silêncio) O silêncio da dor deixou de
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ser suportável. HORÁCIO – O quê? Você está louco, eu estou morrendo! Eu estou... JOÃO – E o que você quer que eu faça? Você não está morrendo, pelo menos não agora. HORÁCIO – Então, esta dor é uma alucinação? JOÃO – Eu tenho certeza de que você sente algo, só diria que o que você sente é um sintoma psicossomático. HORÁCIO – (com olhos arregalados e fixos no chão) É assim?... JOÃO – Essa autocrítica pode te salvar. HORÁCIO – (chorando) Não... É vergonhoso, João, olha para mim. Eu já nem sei mais o que é me importar com alguém, e nem sequer posso esperar qualquer coisa além da dor! Pois o que eu esperaria? Por acaso pode a lagarta sentir suas asas, a agitação da borboleta entre as folhagens? Eu me lembro, eu via cores se estendendo sobre tudo antes também, e me sentia bem. JOÃO – É o fim de um ato para uma alma vazia. HORÁCIO – (abaixando a voz) É verdade. (Silêncio) Eu cansei meu corpo, minha alma inteira, para entrar tranquilamente nesta noite silenciosa e sem estrelas, iluminada apenas por holofotes distantes. É bom enlouquecer, para que morramos sem sentir, para que haja um mínimo de prazer nesse último instante. (Titubeando) Como estar pronto para deixar este lugar, para deixar tudo isso? JOÃO – Você esteve doente há muito tempo. HORÁCIO – João, você se lembra do rei pescador? JOÃO – O rei que se tornou impotente, levando junto seu reino, por causa da arrogância? HORÁCIO – Eu fui ferido como ele, João. Aquela
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mulher... JOÃO – (pensativo) Aquela mulher... HORÁCIO – O meu rosto estava líquido esta manhã, minha pele derramava por sobre toda terra desolada. JOÃO – Será que você ainda não reparou que não existe mais terra desolada para você, Horácio? Ou você escolhe se apegar a alguma coisa, ou a vida vai te abandonar. O amor, o amor vai te curar, pessoas vão te curar, o real. Aquela mulher não fez nada com você. HORÁCIO – Como continuar, como fazer algo na vida, se a morte me espreita de cada canto em que eu olho? JOÃO – Tudo isso depende de você, esse é o preço a se pagar. Mesmo que o mundo continue escondido para sua descoberta por crianças perdidas, sem você, ele não vai existir. Morrer é só mais uma primeira experiência. Você pode passar uma vida a temendo, ou você pode sair e dançar com tudo que está a sua volta, trazendo para este mundo o que antes não estava aqui. Nós não sabemos, mas nos encontramos e nos conhecemos, e um dia deixaremos este lugar e todas as nossas memórias. É inevitável, é um rito de passagem, a jornada através do véu, para além do sonho, lembra? Não tenha medo, porque o medo é uma ilusão, assim como a dor. Pense-os num passado, e você perceberá que eles não estavam realmente lá. HORÁCIO – (falando de si para si) Ilusões conectadas ao meu batimento cardíaco, ouço batuques em salas de terror... JOÃO – O quê? HORÁCIO – (encantado) São fantasmas. JOÃO – Sim. HORÁCIO – João...
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JOÃO – (interrompendo-o) Sabe, eu acho que você está certo. Você se entregou completamente a uma forma de poesia negra que não é sã. Tudo o que você faz se encaminha para a morte, como se fosse o fim único de sua obra. HORÁCIO – É a única coisa que eu ainda amo. JOÃO – Só há morte em suas palavras, nos seus gestos. HORÁCIO – Depois de tantos mortos, o que você esperava? A Eleanor... JOÃO – Não. HORÁCIO – Não o quê? JOÃO – Como isso, se você só ama a poesia? HORÁCIO – O que você quer dizer? JOÃO – Não são os outros mortos, nem mesmo a Eleanor. O luto que você sente é pela sua morte, Horácio. Você morreu com eles. É estéril, impotente. Afinal, você é o rei pescador, não é? Ou já se esqueceu da dor? HORÁCIO – João... JOÃO – A pergunta sempre foi esta, não? Por que você prolonga o luto, por que você sofre? HORÁCIO – (irritado) Então, já que é assim, o que eu devo fazer? Por que eles não vão embora? Simplesmente por que eu não quero? JOÃO – E por que deveria ser complicado? HORÁCIO – (olhando para o chão) Como, se eu espero todos os dias me esquecer do sol, da aragem fresca ao raiar do dia de quando os encontrei? JOÃO – Você atravessou o deserto, Horácio, e por isso já não pode mais ser o mesmo. É você quem
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decide se o medo e a culpa vão, ou ficam. HORÁCIO – Como? JOÃO – Lutando contra essa voz superior que você criou para se proteger da realidade. Ela te leva para lugares devastados que podem ser fatais, você sabe disso. Não deixa ela te comandar. HORÁCIO – Eu acho que sei o que devo fazer. JOÃO – Sabe? HORÁCIO – Eu preciso me encontrar com aquela mulher de ontem. É como se eu tivesse depositado nela essa voz, como se a voz e ela tivessem se associado numa coisa só. JOÃO – Cara, eu não tenho certeza de que isso é uma boa ideia... HORÁCIO – Mas, João, você mesmo disse... Eu vou me libertar através dela. JOÃO – E o que você pretende fazer? HORÁCIO – (rindo-se) Relaxa, João. Alguns encontros são necessários, só isso. (Horácio pega o celular e liga para a mulher, enquanto olha nos olhos de João) Oi, sou eu, você se lembra de mim de ontem à noite? Eu quero te encontrar qualquer hora, para conversarmos e nos conhecermos melhor, porque gostei muito de você. (Silêncio) Pode ser hoje? É perfeito. Então, até daqui a pouco. Sim, sem dúvida, será ótimo te ver novamente. (Desliga) JOÃO – Horácio... HORÁCIO – Eu preciso ir, João. Você me ajudou muito a perceber o que estava se passando, mas agora eu preciso ir atrás da minha cura. Confia em mim, eu preciso disso. JOÃO – Eu não posso te impedir. (Escuridão)
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CENA III (Num bar vagamente vazio, ao entardecer. Horácio chega. A mulher o espera sentada numa mesa) MULHER – Finalmente, você chegou. HORÁCIO – Eu precisava muito falar com você. MULHER – (estranhando) Por quê? HORÁCIO – Eu depositei algo em você ontem à noite. MULHER – O quê? HORÁCIO – O amor. MULHER – (achando-o engraçado) Tão rápido? HORÁCIO – É assim. MULHER – Eu pensei que fôssemos nos conhecer um pouco melhor. HORÁCIO – (olhando para a mulher com leve desespero) Eu posso te mostrar meu mundo, se você quiser. MULHER – Claro. HORÁCIO – (tocando-a gentilmente no rosto) Enquanto eu esperava um movimento de asas Das borboletas, caindo em meio às rosas rubras... Eu te quis certa vez, nesse fulgor dos bosques. Grave, sombrio, azul, o que os teus olhos viram Num riacho de metais verdes ao meio-dia? MULHER – Um poema? HORÁCIO – Você sabe o que é isso? MULHER – São palavras vazias para mim, lamento. HORÁCIO – Nada? MULHER – Um filme de terror.
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HORÁCIO – (em tom de aprovação) Então, você sente alguma coisa. MULHER – É isso? HORÁCIO – É mais agradável do que isso. MULHER – Então, é bom? HORÁCIO – É maravilhoso. MULHER – (enrubescendo) Explica. HORÁCIO – Sabe, alguns organismos têm um mecanismo de defesa contra a morte, depois de a verem frente a frente. MULHER – Como assim? HORÁCIO – A loucura. Aconteceu ontem. MULHER – Com você? HORÁCIO – Sim, e foi você quem me salvou. MULHER – Como isso aconteceu? Você fala de um jeito estranho. HORÁCIO – Ontem, toda a minha vida estava sendo tragada por aquele instante no bar. Até que... MULHER – Você me viu. HORÁCIO – Eu te quis. (Horácio se aproxima da mulher, e sussurra em seu ouvido) HORÁCIO – Olhando para ti, Eu contorço as paisagens Desse negro, e depois deste plano sem som. Fim elástico e anil de todas as molduras, Nossa louca visão: Nos sóis, nas vias lácteas Mergulhando, queimando, E até nós termos caído. (silêncio) Eu te amei, ó mulher, e agora não há mais...
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MULHER – O quê? HORÁCIO – Amor. MULHER – O quê? Como assim? (A face de Horácio vai a partir de agora progressivamente se deformando) HORÁCIO – (com raiva) Eu lamento, não posso mais. Eu não suportaria mais amar alguém, essas palavras são um encantamento para te deixar. MULHER – Isso é loucura. HORÁCIO – Eu te disse. MULHER – O que você está fazendo? HORÁCIO – Eu não posso amar, não vê!? MULHER – E por que me chamou aqui? HORÁCIO – Para te tirar de mim! MULHER - Eu vou embora, você é louco! HORÁCIO – Você não é diferente. MULHER – Doente. HOMEM – Puta. MULHER – Eu espero de verdade que você morra só, e que ao seu redor haja apenas restos de móveis velhos e poeira. HORÁCIO – (calmamente) E uma fresta de luz... (A mulher se levanta e sai, completamente ofendida. Horácio permanece sentado e logo em seguida suspende seus braços e sua cabeça. Em seguida se levanta e fala para todos que estão no bar) HORÁCIO – Está feito, o ímpeto desanimou. Nós somos os homens ocos agora, de íris negras, bocas estofadas com palha. Impossível se reconectar com o amor, impossível preencher qualquer máscara, a
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casca frágil de cada canto, pulverizada pelo vento. É estranho pensar que vou deixar todos vocês, nestes lugares. (Escuridão)
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OS AMANTES Por Leandro Dativa
Cenário: o cenário se dá por um cômodo simples utilizado para estar, jantar e dormir. Uma mesinha com três cadeiras, um notebook em cima. Uma cama de casal, um criado mudo com alguns livros. Uma saída leva para cozinha e banheiro e a outra para rua. (Jeniffer está terminando de arrumar a casa enquanto cantarola ‘’Águas de março’’ de Tom Jobim, que toca do notebook. Usa avental e cabelos amarrados. Talles entra de social, camisa aberta e gravata na mão, segura também uma pasta. Observa a esposa distraída, expressa grande enfado, se senta à mesa e desliga a música) JENNIFER (surpresa) - Por que você desligou? TALLES - Preciso procurar emprego e essa música me tira a concentração. JENNIFER - Você chegou tão rápido. Não conseguiu nada? TALLES - Me concentrar significa não ouvir a sua voz também. JENNIFER - Essa maldita crise. As notícias dizem que tudo vai melhorar, mas os meses passam e tudo contínua do mesmo jeito. Acho que... TALLES - Dá para calar a boca? JENNIFER - Como? TALLES - Mandei calar a boca. (Pausa) JENNIFER - Você não tem esse direito. Chega estressado e desconta na única pessoa que não tem
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culpa nenhuma dos seus problemas. TALLES - (grita) Cala a boca! (Jeniffer se senta na cama, Talles a observa por um momento, reina um grande silêncio, ele se levanta e vai até a cozinha e quebra a louça. Jeniffer se assusta e começa a cantar a mesma música que estava ouvindo anteriormente). Talles (grita da cozinha). Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! (Jeniffer continua cantando e ele quebrando a louça, até soltar um gemido de dor. Talles silencia, Jeniffer também. Ele entra com a mão sangrando. Trazendo alguns cacos de vidro consigo. Joga-os no chão. Jeniffer pega uma vassoura e pá para limpar a bagunça que ele fez. Primeiro na cozinha. Talles se senta na cama com um olhar transtornado). TALLES - A última parcela do seguro acabou mês passado. Não sei mais o que fazer. (Pausa) Talvez vender coisas como esses marreteiros dos trens, ou uma barraca de camelô. (Pausa) Posso roubar também. Já que nos roubam, posso roubar também. Quem sabe assim saio dessa miséria de vida. (Delira) Já pensou um apartamento de frente para a praia, é bem melhor que essa espelunca barata. (Gargalha) Um jatinho para ir e vir. (Pausa) Para onde você gostaria de ir, Jeniffer? (Pausa) Anda, responde. (Jennifer sussurra algo não inteligível) Fala mais alto. Para onde você gostaria de ir? JENIFFER - Para casa da minha mãe (surge na sala terminando de varrer os cacos de vidro). TALLES - Acho que o jatinho não vai conseguir pousar no quintal da sua mãe. JENIFFER - Tudo bem. Eu teria que ter vinte anos novamente (Jeniffer termina a limpeza. Volta pra cozinha e pega um pano de prato para enrolar na mão de Talles). TALLES - (dor). Ai...ai... JENIFFER - Você devia tomar cuidado para não se machucar.
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TALLES - Foi superficial. JENIFFER - É... quase não dá para perceber. TALLES - Melhor assim. JENIFFER - Toma cuidado. TALLES - Da próxima vez eu tomo. JENIFFER - Que próxima? (Pausa). Não sobrou nenhuma louça para você quebrar mais. Agora quando voltar sem emprego não vai ter nada para quebrar (Talles olha para o notebook). JENIFFER - Não! Você ouviu! Não, Talles, já não temos louça, a televisão era velha, de tubo, mas ainda dava para ver a novela. TALLES - Culpa daquela empresa de merda que não me contratou, e eu odeio novela. JENIFFER - Promete que você não vai quebrar o notebook. TALLES - Eu prometo. JENIFFER - Ok. TALLES - Ok (se olham). JENIFFER - Vou fazer faxinas. TALLES - Não mesmo. JENIFFER - Talles, a diária é boa, vai... TALLES - (grita). Não vai! Eu não vou ser sustentado por mulher. Isso eu não posso permitir. JENIFFER - Talles, estamos em uma emergência. TALLES - Vamos dar um jeito. JENIFFER - Que jeito? Você está ficando louco? O aluguel está atrasado, não temos comida, não temos nenhuma conta paga! A internet roubamos do vizinho...
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TALLES - Cala a boca! JENIFFER - Mas... TALLES - Já falei para calar. Quando você começa a falar sem parar eu não consigo pensar. Não consigo encontrar uma saída. Eu tenho um plano. Entendeu? (Pausa) Entendeu? JENIFFER - Sim. TALLES - Você acha que eu não teria um plano? Jennifer, eu sempre te dei tudo. Uma boa casa, viagens, você tinha a vida que pediu a Deus. JENIFFER - Sim. Verdade. TALLES - Acontece que a gente quebrou. Tudo o que eu tinha construído desabou. (Grita) Maldita crise! Me tirou tudo (delira). Estilhaçado. São tantos pedaços. JENIFFER - Mas você vai conseguir se reerguer. E se eu te ajudar... TALLES - Não. Não vai ajudar em nada. Vai continuar fazendo o que você sempre amou fazer, cuidar da casa e um dia das crianças. JENIFFER - Qual o seu plano? TALLES - Meu plano você vai ver. Daqui a pouco chega. JENIFFER - Como assim? TALLES - Convidei um amigo para vir aqui hoje. Tentarei uma parceria com ele. JENIFFER - Que amigo? Você não tem ninguém, os seus amigos te viraram as costas. TALLES - Esse não. Ele não estava aqui para fazer isso. O Jorge estava muito longe. Ele ficou todos esses anos depois da faculdade do lado de fora. (Pausa). Eu conheço o Jorge desde a época da escola e sempre soube que ele ia se dar bem na vida.
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JENIFFER - Fora? Ele conseguiu sair daqui? TALLES - Exato. JENIFFER - Jorge? (Pausa) Eu não me lembro dele... Ah! O Jorginho, eu lembro sim da faculdade e também no nosso casamento... (pausa) ele foi nosso padrinho! Nos presenteou com um jogo de louça lindo. TALLES - Esse mesmo... JENIFFER - Que você acabou de quebrar. TALLES - Detalhes inúteis. JENIFFER - E o que te faz acreditar que ele vai aceitar a sua proposta? TALLES - Eu tenho ótimas ideias. Ele sempre me achou inteligente. Deixa comigo. Apenas faça o jantar e eu faço os negócios. (Jeniffer corre para cozinha. Talles apaga a luz da sala. Luz da cozinha acessa. Talles leva o notebook para a cama. Jennifer de lá grita). JENIFFER - Ainda sobrou três pratos e três copos, que sorte! TALLES - Sorte, muita sorte. JENIFFER - Temos arroz e frango, acho que vou fazer um strogonoff. TALLES - Você que manda. JENIFFER - E tem algumas maçãs, vou fazer um suco. (Talles começa a ver pornografia escondido. Jeniffer liga o liquidificador de modo que os sons se misturem, quando Jeniffer desliga o liquidificador o som do notebook é desligado) JENIFFER - Para que essa luz apagada? (acende a luz)
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TALLES - Economia. JENIFFER - O que você está fazendo? Procurando emprego? TALLES - Isso mesmo, o Jorge acabou de mandar uma mensagem. Está chegando. JENIFFER - Que bom. Faz tanto tempo que não vemos o Jorge. Como ele está? TALLES - Bem melhor que nós. JENIFFER - Eu não lembro de quase nada daquela época. Mas da formatura... nossa, tinha muita gente, eu estava muito feliz comemorando com a minha família. TALLES - Comemorando o quê? JENIFFER - Nada (pausa). E no casamento eu... quer dizer... eu estava chateada com você... bêbado. Aquele dia era para ser perfeito, eu tinha tantos planos... que nem lembro mais (pausa). Não lembro de nada. Era como se eu fosse outra pessoa. TALLES - Vê se não fala muito. JENIFFER - Como? TALLES - Eu vou trabalhar, não atrapalha. JENIFFER - Tudo bem. TALLES - Que bom (Jeniffer se senta à mesa). TALLES - A comida vai queimar. JENIFFER - Eu sei a hora de desligar o fogo. TALLES - Quê? JENIFFER - Fogo, não tem mais fogo. TALLES - Mas o bujão de gás é novo. JENIFFER - Novíssimo, mas não esquenta mais.
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TALLES - Do que você está falando? JENIFFER - A nossa relação está fria. TALLES - Tem uma visita chegando, não começa. JENIFFER - O começo era bom demais, você me deixava sem fôlego com seus beijos. Faz tempo que não me beija. Muito tempo. TALLES - Você está de onda. JENIFFER - Estou? TALLES - Eu estou quebrado, Jennifer. JENIFFER - Eu também. Eu quebrei. TALLES - Hoje é o dia decisivo. Tudo vai mudar, vai voltar a ser como era antes. JENIFFER - Quando se remonta os pedaços, nada fica como era antes. TALLES - Ninguém vai notar a diferença. JENIFFER - Vai me escolher no lugar das pornografias? TALLES - O que você está falando? JENIFFER - Você não me toca mais, mas está bem satisfeito. TALLES - Você está exagerando. JENIFFER - Quanto tempo? TALLES - O quê? JENIFFER - Que você não me fode. TALLES - Desde que... JENIFFER - Para com essa desculpa, se existir amor tudo resiste. Talles, você me ama? TALLES - Você fala muito....
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JENIFFER - Não me manda calar a boca antes de me responder. TALLES - Chegou outra mensagem. JENIFFER (sensualiza) - Do Jorge. TALLES - É. JENIFFER - Como ele está fisicamente? Envelheceu muito? TALLES - Está do mesmo jeito... forte, jovem, bemhumorado. JENIFFER - Um homem. TALLES - Quê? JENIFFER - Acho que você não é mais homem. TALLES - Está ficando louca? JENIFFER - Sua masculinidade se quebrou com sua empresa, com o país, com o mundo. TALLES - Cala a boca! JENIFFER - Você não é mais homem sem o seu trabalho. TALLES - Você enlouqueceu! JENIFFER - Quebrar a louça ok, rasgar a roupa... queimar a casa. Acho que só isso que falta para a lista da destruição ficar completa. TALLES - Quê? JENIFFER - Não se precisa de muita coisa quando se está infeliz. (Jennifer vai para cozinha. Talles fica pensativo. A campainha toca. Talles abre a porta e recebe Jorge). TALLES - Amigão! Quanto tempo! (Se abraçam) JORGE - Você continua do mesmo jeito.
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TALLES - Que é isso? Você que não mudou nada. JORGE - Trouxe um vinho. TALLES - Cara, não precisava. (Jennifer entra) TALLES - E essa é a minha esposa. Lembra? JORGE - Sim. Claro! Eu me lembro. (Cumprimenta Jeniffer com um beijo no rosto) TALLES - Se sente. (Talles puxa uma cadeira) JORGE - Grato. TALLES - Traz um suco, amor. (Jennifer estranha e sai) JORGE - Ela não fala muito? TALLES - Sim, essa é das boas. JORGE - Como? TALLES - Você sabe, as mulheres atrapalham os negócios. JORGE - Acho elas inspiradoras. JENIFFER (entra com o suco e três copos. Servindo dois copos) - Nossa, acredita que eu não estava me lembrando de você? JORGE - Não acredito. Você fazia os meus trabalhos e do Talles. Inclusive fez meu TCC. JENIFFER - Exatamente. JORGE - Tirei a melhor nota. Vocês devem estar muito bem hoje. TALLES - Abri uma empresa. JORGE - Ótimo! Jennifer administra?
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TALLES - Não. JENIFFER - Por isso que faliu. TALLES - A comida, Jennifer. JENIFFER - Não está pronta. (Jorge toma o suco de maçã e quando Talles vai tomar o seu Jennifer o toma no seu lugar. Talles se serve e bebe). JORGE - Vamos tomar o vinho. JENIFFER - Não temos abridor. Amor, vai buscar na vizinha. TALLES - Eu? Melhor, né? Assim a comida não queima. Eu já volto, amigo. (Talles sai. Jorge olha Jennifer dos pés a cabeça. Jennifer tira o avental e joga no chão) JORGE - Cansada? JENIFFER - Muito. JORGE - Nunca imaginei que você ia se tornar uma dona de casa. Já era para ser uma rica empresária. JENIFFER - Nem eu imaginei. Simplesmente aconteceu. JORGE - Filhos? JENIFFER - Nunca. Não quero ser mãe. JORGE - Muito bem. (Pausa) Lembro exatamente do seu projeto. JENIFFER - Aquilo não era nada. JORGE - Nada? Jennifer, eu me baseei nele para criar a minha empresa. O meu sucesso é graças a você. JENIFFER - (pensativa) Não sei o que dizer. JORGE - Vem trabalhar comigo.
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JENIFFER - Mas o Talles... JORGE - Nunca teve visão. Como você mesma disse. Faliu. (Jennifer fica pensativa) JORGE - Preciso que diga sim. JENIFFER - Sim! Claro que sim, mas o Talles? Ele não pode saber. Terei que ser uma funcionária fantasma. Deixe ele achar que está comandando. JORGE - Para que isso? Jennifer - Você não o conhece. Ele não suportaria ser um fracassado. Morreria. Mas antes me deixaria louca. JORGE - Eu compreendo. (Jennifer vai para cozinha) JENIFFER - (grita da cozinha) A comida queimou. (Talles entra com o abridor na mão). TALLES - A vizinha não estava. Fui até o bar da esquina, mas estava tendo uma briga. Algo sobre o proprietário mudar de canal, do jogo de futebol para o jornal. Um bêbado quebrou uma garrafa em sua cabeça. A TV foi para o chão. Não terá mais jogo, nem jornal e novela. Mas no bar vai continuar tendo cerveja. Falta café, leite, feijão... estão vendendo tudo para pagar a dívida. Plantamos, colhemos e vendemos. Jorge, tudo bem? JORGE - Estou sim. TALLES - E vai ficar melhor ainda, meu grande amigo. (Jorge acena com a cabeça) TALLES - Que cheiro é esse? Jennifer? A comida queimou!?!? JORGE - Não tem problema.
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JENIFFER - (da cozinha) Não cozinho mais. Nunca mais. TALLES - Mas eu estou faminto. Comeria um país inteiro. Quero devorar cada canto, praça, asfalto e terra. Estou faminto. Morrendo de fome. JENIFFER - (da cozinha) Vamos contratar uma cozinheira. TALLES - (sorri olhando para Jorge que consente) Eu sempre soube que você ia se dar bem na vida, meu amigo. JORGE - Vamos beber. (Jorge vai até a mesa, pega o abridor e abre a garrafa. Enche os três copos) TALLES - Vamos beber (pega um copo). JORGE - Espere a sua mulher. TALLES - Quem? JORGE - A sua mulher. (Jeniffer entra bem vestida, de cabelos soltos. Jorge lhe dá uma taça). JENIFFER - Obrigada. JORGE - De nada. JORGE - Aos novos negócios. TALLES - Aos novos negócios? (Jorge olha para Jennifer em cumplicidade) JORGE - Tenho uma ótima proposta. Quero que você dirija a minha empresa. TALLES - Do lado de fora? JORGE - Aqui. Vamos reconstruir esse lugar e vamos expandir os negócios para o mundo inteiro. Vamos devorar o mundo.
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TALLES - Estou faminto. JORGE - O que acha, Jennifer? TALLES - Ela não entende nada disso... JENIFFER - Há tanto tempo eu espero que a poeira dos dias se dissipe, que a secura se desfaça. Há tanto tempo sou terra. Me sinto úmida agora, mas quero ficar encharcada. O oceano dos dias agora é outro. JORGE - Então beberemos o mundo. JENIFFER - Estou sedenta. (Brindam e bebem)
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SÃO TIAGO Por Natália Cavalcante
Personagens: Maria, Aristom, Glória e cinco pessoas para o coro. Cenário: uma mesa grande retangular com oito cadeiras, sob a mesa um revisteiro com poucos livros finos e duas Bíblias.
CENA 1
(Pessoas sentadas à mesa com suas respectivas bíblias a sua frente. Cantam alto, fervorosos, acompanhando o ritmo com palmas. Aristom, ao centro, reza de olhos fechados com a mão direita no peito e a mão esquerda apontando para o alto, coisas que não são possíveis entender por causa do cântico alto) Eu era prego e o Inimigo me bateu, Agora sou martelo quem bate nele sou eu (repete 3x) ARISTOM (levanta e o cântico se encerra) - Povo de Deus aqui reunido, essas reunião semanal na minha casa são muito importantes para que a gente fique forte para lutar contra o Inimigo que cerca de todo o lado, pra planejar como trazer mais alma perdida pro único Grande. Nós precisamo ser exemplo dentro da nossa comunidade porque aqui tá o povo escolhido de Deus! Amém? TODOS - Amém! ARISTOM - Agora eu passo a palavra pra abençoada irmã Glória, pra acabar nossa reunião de hoje (senta
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e olha fixamente Glória levantar e falar). GLÓRIA - A paz do Senhor! TODOS - A paz do Senhor! (Maria aparece tímida na porta vestindo um avental e um pano de prato no ombro) GlÓRIA (sorri) - Vem se reunir com a gente, irmã Maria. Vou ler uma passagem e fazer a oração final. (Maria acena afirmativamente com a cabeça e senta-se a mesa com os outros) GLÓRIA - Hoje a palavra é pro irmão ou pra irmã que se sente cansado das lutas da vida, que se sente injustiçado e fraco. Separei esse versículo porque sei que mesmo uma pessoa que está no caminho da luz pode se sentir assim nesse mundo cheio de pecadores. Não vou me demorar porque sei que todos estão sentindo esse cheiro do alimento abençoado que a irmã Maria sempre faz questão de preparar quando a gente se reúne aqui na casa dela. Uma mulher muito virtuosa! Enfim... levantem e abram suas bíblias no livro de Salmos, capítulo 37, versículo 5. (todos abrem a Bíblia. Glória respira fundo e lê) Entregue o seu caminho ao Senhor; confie nele, e ele agirá. (estende os braços para pegar nas mãos de quem está ao seu lado. Todos fazem o mesmo e fecham os olhos) Amado Pai, abençoe a todos aqui, Senhor, que estão reunidos nessa casa abençoada por Sua presença, Oh Pai! Abençoe esse alimento preparado com tanto carinho, Jesus! Amém! TODOS - Amém! GLÓRIA - Agora vamos apertar as maõs dos nossos irmãos e irmãs! (Enquanto todos se cumprimentam com apertos de mão e conversam entre si, Aristom se senta encarando Maria e acena com a cabeça em direção à porta, com olhar
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de reprovação. Maria engole o sorriso e sai de cena. Rapidamente volta com um bolo e um bule e os coloca na mesa. Sai de cena novamente e volta rapidamente com uma bandeja com copos, pacote de guardanapos e uma faca. Glória olha Maria com ternura e serve-se com uma fatia de bolo apoiada no guardanapo, morde um pedaço e sorri ainda mais para Maria que retribui com outro sorriso. Logo após Glória se servir, todos vão se servindo de café e bolo enquanto a luz vai se apagando. Escuridão.) CENA 2 (Mesa ainda posta com o restante do bolo ou o prato vazio e o bule, os copos sujos, alguns ainda com restos de café. Aristom sentado bebendo café, com sua Bíblia ainda na mesa. Maria entra em cena com uma bandeja e vai recolhendo os copos, arrumando a mesa) ARISTOM - Mais uma vez você perdeu quase toda nossa reunião, por isso vive sempre perturbada desse jeito, olhando sempre pro chão. Tanto tempo pra trazer um bolo seco e que tava muito quente e um café quase frio. Passa o dia enfiada em casa e deixa pra fazer o bolo bem na hora que o meu rebanho tava reunido na minha casa. É sempre a mesma coisa! Pega muito mal pra um homem na minha posição ter uma mulher que não sabe cuidar direito de uma casa. Onde já se viu! Que Deus tenha misericórdia de mim! Eu não posso contar com você pra nada! Dirijo o dia inteiro pra te dar uma boa vida e o que recebo é passar vergonha na frente da congregação. Nunca precisei e não posso precisar de você pra nada! (Maria para a arrumação, olha para Aristom por alguns segundos, abaixa a cabeça com um olhar triste, pega a bandeja com os copos e o restante dos guardanapos e na outra mão o prato de bolo.) ARISTOM - Pelo amor de Jeová, melhora essa cara! Passo até mal quando você fica com essa cara triste, quase chorando. Só falo essas coisa pra ver se você vira uma pessoa melhor, é isso que uma pessoa de bem faz. Agora vá terminar seu trabalho antes que encha de formiga nessa mesa, e você sabe que eu
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detesto formiga! (Maria acena afirmativamente com a cabeça e sai de cena. Luzes se apagam. Escuridão.) CENA 3 (Maria em cena varrendo debaixo da mesa. Toca o celular, Maria apoia a vassoura na mesa para atender.) MARIA - Alô? ...Sim, é aqui mesmo. Sou Maria, a esposa dele. (nervosa) O quê? Como isso aconteceu? Quão grave? Meu Deus! (tremendo) Onde ele está? Certo. Vou imediatamente. (Desliga o telefone e caminha em direção à mesa onde deixou a vassoura apoiada. Tremendo, tira o avental e coloca em cima da mesa, próximo à vassoura. Pega a Bíblia no livreiro no centro da mesa e senta. Abre a Bíblia e lê em voz alta.) Entregue o seu caminho ao Senhor; confie nele, e ele agirá. (Maria fecha a Bíblia. Escuridão.) CENA 4 (Maria sentada sozinha na mesa, desolada, quase catatônica com um copo de café à sua frente. Batidas na porta. Maria desperta e olha em direção à porta.) GLÓRIA (começa a falar antes de aparecer em cena carregando um pote nos braços) - Sou eu, irmã Maria, já vou entrando. (Maria se levanta) Vim fazer uma visitinha. Incomodo? MARIA - Não, irmã, é sempre um prazer te receber. (Se cumprimentam com um abraço longo e apertado) MARIA (segura docemente uma das mãos de Glória e a encaminha pra mesa e ambas se sentam) - Poxa, irmã, se tivesse avisado teria feito um bolinho pra gente. Vou na cozinha ver o que posso preparar (se levanta apressada).
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GlÓRIA (segura a mão de Maria) - Não vou me demorar, irmã, além do mais, trouxe um bolo pra você e pro irmão Aristom. Faz tempo que não vejo vocês! Vim saber como vocês tem passado e matar a saudade da senhora. Que tribulação na vida de vocês... MARIA (senta) - Verdade, irmã Glória, que tribulação! (triste) Estamos indo conforme a vontade do Altíssimo. Aristom tá descansando agora, anda pra baixo que só vendo... Sabe, irmã, nunca imaginei passar por uma coisa dessas... Graças a Deus a empresa pagou os direitos e a indenização tudo direitinho e tem a pensão do governo que também ajuda porque senão nem saberia o que fazer da minha vida. Tem sido tempos difíceis, mal tive tempo de ir na igreja ouvir uma palavra da irmã, ouvir uma palavra do Senhor. (quase chorando) GLÓRIA - Eu sei, minha querida irmã, eu imagino. Mas a senhora sabe que Ele nunca dá um fardo que não possa ser carregado, que pra Deus tudo tem um propósito. A senhora sempre foi forte e agora precisa ser ainda mais, precisa ter pulso firme pra enfrentar as adversidades! Quero também que saiba que tem em mim uma amiga e não hesite em me chamar caso precise de alguma coisa, tá certo? (Maria acena afirmativamente com a cabeça. Sorri.) GLÓRIA - Mas agora preciso ir, irmã, que preciso terminar de escrever o sermão de hoje. Por que você e o irmão Aristom não tentam aparecer na igreja hoje? Ficaremos felizes em ver vocês de novo louvando com a gente! Mas antes de ir, quero ler uma passagem pra tentar confortar seu coração aflito. Posso? (apontando para a Bíblia) MARIA - Claro! Aqui a casa também é sua. GLÓRIA (alcança a Bíblia, abre e procura o trecho com o dedo) - Aqui... achei! (lê)
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Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem que falte a vocês coisa alguma. (para de ler e deixa a Bíblia aberta em cima da mesa) Viu, irmã? Logo as coisas se ajeitam e as provações são para que possamos nos redimir dos nossos pecados, para nos tornar pessoas melhores. MARIA (sorri) - Ô, irmã, a senhora é uma mulher mesmo muito abençoada, suas palavras valem ouro. GLÓRIA (tímida) - Que isso, irmã Maria, é sempre muito bom estar na sua presença e, além do mais, pra que serve um amigo senão para essas coisas? (levanta da cadeira) Agora preciso mesmo ir mas espero te ver hoje lá na pregação, viu? (anda em direção à saída) MARIA - Tá certo, irmã Glória, vou fazer uma forcinha. Obrigada mais uma vez. (Maria levanta da mesa e se dirige em direção à Glória. Se despedem com um longo e apertado abraço) GLÓRIA - Não precisa me levar na porta. A paz do Senhor, irmã. Tchau! (sai de cena) (Maria dá tchau com a mão. Fica parada e pensativa por alguns segundos. Senta-se na mesa em frente à Bíblia aberta, olha-a por alguns segundos. Levanta lentamente a cabeça olhando para a plateia, com uma expressão de descoberta.) ARISTOM (fora de cena, grita) - Ô Maria, esqueceu de mim aqui? Tô azul de fome! (Maria desperta e levanta rapidamente, sai de cena e volta em seguida carregando Aristom sentado em uma cadeira de rodas. Maria posiciona Aristom no centro da mesa.) ARISTOM - Vá buscar meu lanche que eu tô morrendo de fome. Se pudesse iria eu mesmo, você é sempre
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muito lerda! (Maria respira profundamente e sai de cena, voltando em seguida com um copo de café, um prato e um garfo. Coloca tudo na mesa, em frente à Aristom. Abre o pote que Glória deixou em cima da mesa) MARIA (animada) - A irmã Glória fez uma visitinha agora há pouco e trouxe esse bolo pra gente. ARISTOM - Glória a Deus! Finalmente alguma coisa boa pra se comê nessa casa! (pausa) E tá esperando o que pra me servir? Ou é tão avoada que já esqueceu que eu tô tetlaplégico? MARIA - É te-tra-plé-gi-co! ARISTOM - O quê? MARIA - O acidente não afetou a sua audição, pelo que saiba. ARISTOM (surpreso) - Mas que modos são esses, Maria? Eu ainda sou o seu marido e você me deve obediência diante de Deus! MARIA - Pois saiba, Aristom, que Deus me mostrou pela Sua palavra o caminho, Ele me colocou na sua vida para te trazer à luz! Seu acidente foi um aviso divino para que se torne uma pessoa feliz, abençoada e mais humilde. ARISTOM (interrompe) - Vou fingir que não tô ouvindo esse monte de baboseira de uma mulher tola que nem você. (Maria bate com a mão no copo de café e o derruba no colo de Aristom que grita) ARISTOM (grita) - Você me queimou, sua endemoniada! O sangue de Jesus tem poder! Tô perdido com você, mulher ímpia! (Maria furiosa tira o pano de prato do ombro, o enrola e amordaça Aristom. Amarra bem o pano atrás da cabeça de Aristom que fica extremamente assustado. Tenta falar mas é impossível entender o que fala.)
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MARIA - Cala a boca que agora é você vai me ouvir! Todos esses anos lavando, passando, cozinhando pra você, vivendo pra essa casa e tentando tornar isso um lar! Mas você nunca reconheceu, sempre me tratando como inferior, como uma empregada! Mas eu entendo todo o seu desdém: é inveja por eu ser mais inteligente que você que não passa de um ignorante que se esforça pra falar bonito, mas só demonstra ainda mais a sua incapacidade. Eu acreditei que esse acidente fosse nos aproximar, que tornaria você uma pessoa mais amável por meio de todos os cuidados que eu tenho contigo. Mas não! Continua um homenzinho baixo e arrogante, um falso profeta. Mas Ele (apontando para o céu) me colocou no seu caminho porque sabe que eu sou capaz de ensinar você a ser um homem melhor, uma pessoa melhor e é isso que farei. Deus está me guiando e, a partir de hoje, tudo será diferente nessa casa. Nunca mais irei abaixar minha cabeça para você, só me prostro diante de Deus, e você vai aprender a ser um manso, ser grato e educado. Um homem sábio! Deus está comigo e não me abandonará nessa árdua tarefa de guiar sua ovelha perdida. Pra começar, um jejum lhe fará muito bem. Deixarei que fique sozinho pensando em seus pecados, orando e rogando perdão por seus pecados. (se aproxima de Aristom e diz sorrindo, cínica) Vou à pregação da irmã Glória que preparou um sermão pensando em mim! E eu necessito das palavras dela, coisa que só ela pode me dar. Não me espere para jantar. (Vai até o som e coloca uma música instrumental, aumenta a ponto de abafar os gritos de Aristom. Vai até a saída e volta, abaixa o som, pega a Bíblia sob a mesa, abre e se aproxima de Aristom) MARIA - Antes, quero deixar uma palavra de Provérbios pra você. (lê na Bíblia) Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio!
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A paz do Senhor, meu marido. (Aristom olha para o prato e o copo em cima da mesa, Ă sua frente, arregala os olhos e grita. Maria aumenta o som e sai de cena. Luzes se apagando. EscuridĂŁo)
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O TREM Por José Felipe
Arthur: cineasta, 81 anos. João: ator, 18 anos. Cena 1 VOZ OFF ARTHUR - O trem; o vagão; os trilhos. No Sol a pino do meio-dia, o ferro quente tremula o ar, a realidade; como em uma miragem desértica, os trilhos se encontram, num ponto de fuga distante no horizonte. O ferro que compõe os trilhos, corre nas minhas veias. (Arthur olha no relógio e entra no vagão) (João se levanta e cede o lugar) JOÃO (gentilmente) - Pode sentar, senhor! ARTHUR - Não, fique tranquilo! JOÃO - Senhor, pode sentar! ARTHUR - Não se preocupe, jovem, ainda posso ficar de pé! JOÃO - Senhor, o lugar é seu, deve estar cansado já! ARTHUR - Já disse que não quero! JOÃO - Olha, o assento é preferencial, por favor, senta! (pausa) ARTHUR (irado) - Mas que merda! Já me bastam os olhares de pena que me cercam, ainda tenho que ser humilhado por um muleque?
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(João encara Arthur) (João senta no banco) (João fica em silêncio) (Pausa) VOZ OFF ARTHUR: O trem percorre, trilho a trilho. A cada giro de engrenagem as rodas giram, giram e giram; nessa distribuição de energias, a distância até a próxima parada diminui, e o tempo passa. (Pausa) VOZOFF ARTHUR: Os passageiros do trem, como uma massa homogênea, se entreolham e com seus olhares julgam o que é devido a cada um, o velho precisa ser dócil, a ira e a revolta é devida aos jovens, apenas eles devem ter paixões. ARTHUR - Ai de mim! Se dependesse desses que me olham, seria jogado aos cães por certo, e da minha carne se alimentariam, purificar-se-iam do asco mais vil da humanidade, a injustiça! (ri, irado) Ladrem! Sentem! Abanem as cabeças! Cães! Estou aqui, exercendo o último fio de vida que ainda me resta! (Silêncio) (João levanta e cede o lugar) (Arthur senta) (Silêncio) JOÃO - O senhor vai querer uma água? (abre a mochila contendo uma bolsa térmica) ARTHUR - Quanto custa? JOÃO - 2 reais, senhor! ARTHUR - Vai à porra com esse senhor! Quero duas! JOÃO - Aqui está... Qual teu nome?
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ARTHUR (gole na água) - Me chamo Arthur! JOÃO - Prazer, Arthur! Me chamo João, mas todo mundo me chama de Jão! Artur, tu tem que relaxar mais, uma hora dessas nesse estresse, pode ter um treco! Principalmente nessa idad... (Arthur levanta a cabeça e encara João) Quero dizer... Uma vida mais tranquila é uma vida mais vivida, né? ARTHUR - E o que você sabe da vida, garoto? (novamente encontra os olhos de João). Está ainda cheirando a leite! Quantos anos você tem? JOÃO (sorrindo) - Dezoito anos muito bem vividos! (Arthur sorri) ARTHUR - Tenho oitenta e um anos! Vividos sim, bem não sempre, mal começastes a viver a vida, ouçame bem, jovem! (Silêncio) O mundo é um moinho, vai destruir teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir suas ilusões ao pó! (ri) Cartola ao escrever essa música dedicou-a a uma jovem prostituta que começava a desbaratinar pela vida! O que diabos é a vida? (ri) JOÃO (sorrindo) - Tu é engraçado, Arthur! (Pausa) tá aí a pergunta que ninguém tem resposta, né? Eu procuro não me aborrecer com essas perguntas, sabe, pra quê? Me preocupo com mais com o agora, gosto da simplicidade, sei que para comer pão, aquele pão quentinho na chapa com manteiga, ai papai! Com pingado então... É preciso dindin! Ele só vem com trabalho, ele só vem do bolso dos outro... (ri) ARTHUR - Pois é! (Arthur e João sorriem) VOZ OFF ARTHUR - O trem segue os trilhos. Ao lado dos trilhos tem uma avenida. Na avenida um caminhão transporta carne; gado ainda vivo. A vaca espremida entre as irmãs se sente confortável em estar reunida, como é bom ter a família reunida! Mesmo com pais distintos elas se entendem como parte de um todo, elas se veem.
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A vaca olha pelas frestas do caminhão e vê o trem, paralelamente o trem vê o caminhão. A vaca diz “Muu” para as irmãs... AUTOFALANTE - Próxima Estação: Guilherme Esperança! Desembarque pelo lado esquerdo do trem! (Pausa) Senhores passageiros, por favor não colaborem com o comércio ambulante dentro do vagão, a CPTM agradece! (Abrem-se as portas do vagão, pessoas entram e saem) (João anda até a porta e olha para fora) (As portas se fecham) JOÃO (euforicamente) - Atenção! Atenção! Vamos agradecer que as porta fechô e os gambé não entrô! O Serviço de Quarto do Vagão vai começar! Temos aqui batata frita, guaraná, coca geladinha, salgadinho, chocolate suflair, paga três leva cinco! Vamo que é só até a próxima estação! JOÃO - Aqui, minha senhora, vai querer também, chapa? CORO: QUERO TRÊS CHOCOLATE! QUERO UMA COCA E DUAS ÁGUA! MÃE, QUERO SALGADINHO! COMPRA PRA MIM TAMBEM! VOZ OFF ARTHUR: Em meio à euforia da consumação mais primal, comer. João dança entre os passageiros, atendendo as solicitações, como uma moça de bordel. ARTHUR (olha maliciosamente) - Bravo! Bravo! Bravíssimo! (encontra os olhos de João) (pausa) (sedutoramente) Que corpo! Que desenvoltura! Você dança entre os pedidos, um jeito de corpo, um balé! Me diga! De onde vem esse desabrochar em meio a esse caos errante?
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(João senta ao lado de Arthur) JOÃO (sorrindo) - Essa ginga é minha, própria de nascença! (Pausa) Entre os trilhos e a estação, seu Arthur, ainda há vida! Quando não trabalho, atuo. Tento andar nessa corda bamba entre pagar boletos e me alimentar de Arte! ARTHUR - Maravilhoso! JOÃO - Não é tão maravilhoso assim! (ri) Mas para mim, a cada estação é como se fosse a primeira vez em um palco, a agitação e o medo, os gambé! Tudo parece teatro, a cada momento vivo, a arte do presente! ARTHUR - Jovem João, me encanta tamanha vitalidade com tão pouca idade, lembro de tempos imemoriais, em que eu era o jovem, pulsava de vida e inocência em relação ao mundo! JOÃO - Por que você insiste em criar uma distância entre a gente? ARTHUR - Como assim? JOÃO - Toda hora você fala que é mais velho e que o mundo é uma merda! ARTHUR - Mas é! JOÃO - Não, não é! Há muita coisa bonita e idade é apenas um número! ARTHUR - Respeite meus brancos, João! Você é muito novo para entender, cheio de ideais e sonhos! Com o tempo se percebe que não há jeito para a humanidade, ninguém irá nos salvar! JOÃO - Velho ranzinza! ARTHUR - Jovem bobo! A vida é sua, estrague-a como quiser! AUTOFALANTE - Próxima estação: Arthur Alvim!
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Desembarque pelo lado esquerdo do trem! (João se levanta e sai em direção à porta) (progressivamente o som do sinal do cruzamento vai aumentando) (progressivamente o som do caminhão acelerando vai aumentando) (som de buzina de trem) (som do freio do trem) (blackout) (João grita) (mugir de vaca) Cena 2 (Arthur tira as mãos da cabeça e as olha ensanguentadas) ARTHUR - Há sangue em minhas mãos! Sai, mancha amaldiçoada! Sai! Estou mandando, um, dois. Sim, já é tempo de fazê-lo; o inferno é sombrio... Ora! Um jovem ter modos? (Pausa) É pura fantasia imaginar que podemos morrer de extrema velhice, tachando a duração da vida, sendo essa a morte mais rara de todas! É isso que chamamos morte natural? (ri) Como se fosse contrário à natureza do homem quebrar a cabeça numa queda, afogar-se em algum mar, morrer de câncer ou de caxumba! Como se na vida comum não esbarrássemos a todo momento com acidentes! (Pausa) Não nos iludamos com belas palavras! Não chamem natural o que é apenas exceção! Morrer de velhice é que é extraordinário e incomum (Pausa). É a morte que nos espera ao fim da existência, e, quanto mais longe de nós, menos direito temos de a esperar. (ri) (Pausa) Mas quem poderia imaginar que um velho tivesse tanto sangue no corpo? (Pausa) Esse sangue contém o ferro, e o ferro é os trilhos. (Pausa) O ferro que compõe os trilhos corre nas minhas veias, veias, veias...
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(Silêncio) AUTOFALANTE: Senhores passageiros, por favor não colaborem com o comércio ambulante dentro do vagão, a CPTM agradece!
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O DESEJO Por Marli Pinheiro
Personagens: Nina, Suzi, Jadine, Richard, Marido e Clarinha. Cenário: mesinhas dispostas em um ambiente informal.
CENA I NINA (radiante) - O meu sucesso com os Jetson’s não foi só com a assinatura do novo contrato: eu também conheci um homem transformador! SUZI (surpresa e confusa) - Oi? NINA (extasiada) - Sim! Richard é o nome dele, um homem incrível! Muito inteligente e atencioso. SUZI (em estado de admiração) - Realmente você é surpreendente! NINA - Surpreendente foi a forma que nos conhecemos! Estou em êxtase até agora! SUZI - Estou percebendo ... NINA (extasiada) - Ele me fez sentir a minha alma fora do corpo! Vivi sensações desconhecidas, parecia mágica! SUZI - Uau! NINA - Eu o busquei fora de mim – é uma certeza que tenho – mas ao mesmo tempo, sinto-me confusa... SUZI - Confusa? Você acaba de relatar que sentiu novas sensações, que encontrou um homem incrível,
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como assim, confusa? NINA - É, confusa! Eu não consigo explicar... SUZI (levantando da cadeira) - Nina, me desculpe mas eu não consigo mais ficar aqui, preciso retornar agora. NINA - Vá, amiga, vá tranquila que estou bem. (As duas se despedem e Nina ainda permanece no café, ela pega o celular e liga para o Richard) NINA (sorrindo) - Alô, Richard? (A luz vai caindo)
CENA II (a luz se acende e Nina fala à plateia) NINA - Levantei da cama, tomei um banho, me arrumei e antes de sair tomei um café preto e segui caminhando até o metrô. No caminho eu senti que estava sendo observada. Pensei logo em Marcos, talvez eu estivesse pensando demais nele, sobre os seus últimas dias de vida. Continuei caminhando e antes de entrar na estação, eu senti mais uma vez que estava sendo observada. Então eu parei e olhei para trás, mas eu não vi nada além das pessoas com seus passos apressados entrando na estação. (Deslocamento de cena) JADINE (autoritária) - Nina, a reunião foi antecipada para às 14h em ponto. Não esqueça dos relatórios que você ficou de entregar ontem! NINA (irônica) - Bom dia para você também, Jadine! (Nina volta a falar com a plateia – foco de luz) NINA - À noite, depois de um dia intenso e burocrático, com uma reunião interminável e com a Jadine me perseguindo com o seu mau humor o
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tempo inteiro no escritório, quando eu caminhava até a casa do Richard, eu senti novamente que estava sendo observada! (Blackout) RICHARD (feliz) - Boa noite, meu amor! NINA (apavorada) - Socorro, Richard, estou com medo, me deixa entrar rápido! (De imediato, Richard puxa Nina pelo braço para dentro da casa) RICHARD (surpreso) - O que está acontecendo? NINA (ansiosa) - Eu não sei ao certo, mas acho que estou sendo seguida! RICHARD - Como assim? NINA - É uma sensação forte de que estou sendo observada! Sabe quando sentimos a presença de uma pessoa que está atrás de nós, prestes a nos tocar? Então, é isso! RICHARD (calmo) - Veja, você acaba de sair do escritório, ainda está com a cabeça cheia. NINA (ansiosa) - Não, Richard! Aconteceu a mesma coisa hoje pela manhã enquanto eu caminhava para o metrô. RICHARD (consolador) - Você precisa de férias! E também da minha companhia... (Os dois se beijam e blackout)
CENA III (Em uma mesa no café, Suzi e Nina conversam) SUZI - Você esteve com o Richard? NINA - Sim, ontem mesmo.
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SUZI - Se controlaram direitinho? (sorriso) NINA (responde com ironia) - Não encontrei nenhum hematoma até agora ... Mas, Suzi, eu não estou legal... SUZI - Você está mesmo estranha, o que está pegando? NINA (ansiosa) - Eu não sei ao certo, mas toda vez que estou andando sozinha pela rua, sinto que estou sendo observada! SUZI - Nossa! Pára com isso! É sério mesmo? NINA - É sério, Suzi, eu não estou brincando! SUZI - Que coisa mais desagradável, Nina! Você conversou com outras pessoas? NINA - A única pessoa que contei foi para o Richard... Me sinto paralisada, sabe? Nem eu consigo entender esta minha reação... SUZI (exclamando de forma pausada) - Nina, Nina, Nina! (Centrada) Mulher, você precisa parar para refletir um pouco! Você mudou desde quando começou o seu relacionamento com o Richard. Penso que a energia dele não é boa para você ... NINA (estressada) - Lá vem você com este papo de energia! Eu aqui, preocupada por quem pode estar me seguindo e você vem me falar da energia do Richard? O cara que trouxe um novo sabor para a minha vida depois que começamos a nos encontrar! SUZI - É, mas que você não está bem, isto é fato! NINA (estressada) - É por conta desta sensação de que estou sendo observada quando estou andando sozinha! É horrível, eu não estou conseguindo dormir direito! SUZI (sem paciência) - Nina, o que é que está acontecendo com você? Você começou com estas pirações depois que conheceu este cara! Presta atenção nisso! Pára para analisar as coisas, você
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não está legal. Se olha no espelho, mulher! Faça isso por você, amiga. (Blackout)
CENA IV (Solilóquio) NINA - Naquela noite decidi não ir ao encontro de Richard, fui direto para a minha casa e fiz o que a minha amiga disse que eu deveria fazer: parei na frente do espelho do meu quarto e fiquei me observando... Sim, eu estava diferente! Sim, eu não era mais a mesma mulher... (Entram dois novos personagens em cena, um homem de mãos dadas com uma menina, que caminham atrás de Nina) HOMEM - Você está mais linda do que nunca, meu amor! (ele dá um beijo no ombro da Nina e um passo para trás enquanto segura a mão da menina) HOMEM - Não é verdade, Clarinha? CLARINHA - É! A mamãe é a mulher mais linda do mundo! (Blackout) FIM
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ESTRANHO AMAR Por Léo Almeida
Personagens: Carlos, 23 anos Jonas, 31 anos Vitor, 21 anos
CENA I (Sala da casa de Carlos e Vitor, à noite, Carlos sentado no sofá mexendo no celular) CARLOS – Cara, essa noite tá pedindo uma boa relaxada. Deixe ver o que há de bom por perto. Essa tem cara de virgem, que quer casar virgem, busca um lindo romance com seu príncipe encantado (pisca os olhos ao falar). Esse parece mais uma almofada, todo fofinho, não rola. Essa aqui parece mais larga que túnel de metrô, tô fora. Esse ou essa, porra, nem dá pra saber o que é, difícil decidir assim. Caralho, meu, é tão difícil encontrar alguém bacana para uma simples foda? Pegou, trepou, gozou, pronto. Simples, as pessoas gostam de complicar pra sair da punheta. Pensei que com homem ia ser sexo todo dia, via aqueles gay passando pra cá e pra lá, um rabo que nossa senhora, achei que era só chegar e pá! - comer ou por pra mamar, modéstia à parte, essa é melhor parte. Puta que pariu, os cara pagam um boquete da hora, só de pensar já fico todo
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animadinho (risada). Mas tá foda, o povo tá na onda de namoro, pra que isso, véio? Tão bom ser livre, deu vontade de uma, pega o app de fast foda, acha um, vai lá, pá, aí termina, vai, pega mais um, vai pra balada, pega geral, isso quando não é casa de swing, suruba só pode ser coisa dos deuses, é bom pra caralho. (Entra Vitor na sala) VITOR – E ae, tá falando com quem? CARLOS – Ninguém. VITOR – Tá louco então? CARLOS – Não é nada disso, tava pensando alto, cheio de tesão aqui, louco pra fuder, não acho ninguém aqui no app. VITOR – A Monica não dormiu aqui essa noite? CARLOS – E daí? VITOR – Pensei que estavam juntos. CARLOS – Mano, não viaja, é só pegada. VITOR – Chama ela e pega de novo, qual a dificuldade? CARLOS – Se chamar ela pra transar de novo ela vai achar que é algo sério. VITOR – Qual o problema ter algo sério com ela? Vai ter alguém pra transar todo dia (faz gesto de vibração com as mãos). CARLOS – Não quero alguém para transar todo dia, quero só transar todo dia, e outra, a Monica sendo mulher tem os dias vermelhos. VITOR – Desde quando mulher é problema pra você se pega os dois? CARLOS – Cara, na boa, qual a dificuldade de vocês? Porra, é tão difícil assim viver uma vida sexual
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ativa sem ter alguém? Mano, o bom é sair transando pegando o que vier. Eu só quero G.O.Z.A.R. (soletra a palavra gozar). Entende? VITOR – Você ser um ninfomaníaco? É... Não. CARLOS – Vai cuidar da sua vida e deixa a minha, porra cara chato. VITOR – Cara, tô tentando ajudar, você não vê quão vazia é sua vida? Não vê que só prazer não te agrega mais nada, sai com um, com outra, uma hora pode acontecer algo, um filho ou até mesmo uma doença, já parou pra pensar nisso? CARLOS – (dando risada) Existe preservativo pra isso, e tenho uma gaveta deles. VITOR – Já que você não entende, vou para o quarto tomar uma ducha, mais tarde vou encontrar o Lucas. CARLOS – Hum... O papo de sexo fez ele ir vê o namoradinho (faz símbolo de coração olhando para Vitor). VITOR – Vamos ao cinema, babaca, namoro não é só sexo. CARLOS – Por isso eu não namoro (risada). (Vitor sai em direção ao quarto, Carlos continua sentando no sofá mexendo no celular) CARLOS – Fica de nhém nhém nhém ao invés de viver a vida (olhando o celular). Olha isso: moreno, corpo definido, olhos claros, puta que pariu, olha esse rabo. Caralho, o cara deu match, só esquematizar uma noite gostosa com essa delícia. (Digitando no celular e fala) – E ae, delícia? Vê o que ele vai responder. Disse “e ae, gostoso?”. Mano, é hoje! Vô logo mandar a real pra vê se rola, se não já vou partir para outro, sem saco pra ficar adulando alguém só pra uma gozada. (digitando no celular e fala) – A fim hoje?
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Ele deu sinal verde. (Digitando no celular e fala) – Na minha ou na sua? Putz, véio, moiô, tava tão bem, o cara me vem com onda de barzinho, corta essa, né. (Digitando no celular e fala) - Cara, tô a fim de sexo, de gozar, não tô a fim de bar. Pronto, quem sabe assim ele decide logo (pausa). Disse para nos encontramos no bar, vai que rola com mais alguém um sexo a três. Porra, mano, esse cara que precisava, pensei só no rabo dele, mas o safado quer mais um com ele, quanto mais melhor. (Digitando no celular e fala) - Fechou, te encontro às 22h lá. Bora me arrumar que é hoje. (Carlos sai de cena, ao som de música dançante enquanto cai a luz até o blackout). CENA II (Música dançante ao fundo, abre a luz, uma mesa em um bar, Jonas sentado chama o garçom). JONAS - Traz uma cerveja, por favor. Valeu! Cadê esse cara, disse que já tava vindo e nada, já são 22h15, levar outro bolo em dois dias, ele só pode ter lido todo o perfil do app e desistiu. (Jonas vê Carlos de longe e acena para ele. Carlos chega, abraça Jonas e senta de frente para ele). CARLOS - E ae, man, tudo tranquilo? JONAS - Bem, e você? CARLOS (tocando a mão de Jonas sobre a mesa) Espero ficar melhor. JONAS (desconcertado) - Pedi uma cerveja, me acompanha? CARLOS - Opa, só se for agora. (Jonas olha com olhar profundo para Carlos, que o corresponde, e ambos param um momento neste olhar).
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JONAS - Fiquei feliz e surpreso em ter aceitado o convite. CARLOS - Não tô louco pra negar um cara lindo e gostoso como você. JONAS - Obrigado! (Carlos fica olhando Jonas com olhos fixos nos dele e sorri). CARLOS - Mano, você tem um brilho no olhar que nunca vi em ninguém, porra, nem sei o que dizer, fico sem ação. JONAS (com os olhos fixos em Carlos) - Não precisa de ação, basta deixar que a sua luz te guie. CARLOS (perplexo) - Que luz? JONAS - Do seu olhar. CARLOS - Cara, que papo mais louco, nunca parei e vi luz de nenhum olhar, porra, existe isso? JONAS - Isso não se vê, se sente. CARLOS (dando risada) - Como? JONAS (com sorriso) - Com olhar. (Carlos toma um gole de cerveja e fala). CARLOS - Que papo doido, nunca tive um assim antes de uma foda, que brisa. JONAS - Uma foda? CARLOS - Pra isso que estamos aqui, não é? JONAS - Sim, é para isso. CARLOS - Então bora? JONAS - Bora. (Jonas e Carlos se levantam e caminham em direção à casa de Jonas, a luz diminui conforme o passo deles até
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o blackout). CENA III (Sala da casa de Jonas, os dois estão sentados no sofá). JONAS - Fique à vontade, a casa é simples. Quer algo? CARLOS (rindo) - Quero você aqui daquele jeito... JONAS (com sorriso tímido) - Não é disso que falo, digo água, suco, essas coisas. CARLOS - Vem cá logo. (Jonas e Carlos se beijam enquanto tiram a roupa, luzes do palco diminuem ao som de música sensual, a música toca por um momento, a luz vai aumentando enquanto eles colocam a roupa). CARLOS - Caralho, que foda foi essa, fazia tempo que eu não dava uma dessas, cara, tu é foda. JONAS - Foi bom mesmo. CARLOS - Bom é modéstia sua, pow. JONAS (rindo) - Tivemos uma boa conexão. CARLOS - Que porra é isso? JONAS - Te explico: quando dois corpos se unem em um ato sexual existe uma conexão entre eles, a qual envolve o prazer, quanto maior a conexão, maior o prazer. CARLOS - Cara, pra mim isso é tesão, que eu já tô com ele de novo (dá risada). JONAS - O tesão faz parte desta conexão também, o que quero lhe dizer que sem ela o sexo não flui, é como se você tivesse sozinho. CARLOS - Então ou eu transo muito sozinho, ou minha conexão pluga geral. (Jonas pega a mão de Carlos e olha nos olhos dele).
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JONAS - Você realmente não sente? (Carlos puxa sua mão). CARLOS - Que papo estranho é esse? JONAS - Nunca amou alguém, ou se apaixonou por alguém? CARLOS - Cara, você tá confundindo as coisas, o sexo com romance, um não tem nada a ver com outro. JONAS - Onde acha que o romance se fortalece e une um casal? CARLOS - Cara, não vim aqui pra saber, vim pra fuder gostoso, já dei uma e tô a fim de outra, se quiser beleza, se não vou vazar. JONAS - E se fizermos e te provar que isso existe, o que você faria? CARLOS - Vamos fuder, sem frescuras, vai. JONAS - Vamos, mas vai ver que será diferente. (Jonas vai em direção a Carlos com olhar fixo nele, o beija, inicia musica romântica, luzes se apagam lentamente ao som da música por cerca de 5 segundos, luzes se acendem, Jonas e Carlos estão deitados apenas de cueca, Jonas se levanta e Carlos levanta em seguida). JONAS (olhando no celular) - Nossa, já é tudo isso? CARLOS (se levanta bocejando) - Que horas são? JONAS - Já são 9h30 e estou atrasado. CARLOS - Caralho, já tinha que estar na aula. (Se arrumam rapidamente e vão em direção à porta). JONAS - Valeu pela noite maravilhosa, espero que ela se repita. CARLOS - Cara, foi muito bom, uma noite boa pra
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caralho, acho que nunca tive noite assim nem com mina. JONAS (rindo timidamente) - Posso te mandar mensagem depois? CARLOS (olhando fixamente para Jonas) - Deve mandar. (Jonas e Carlos parados na porta se despedem e Carlos beija Jonas). JONAS - Tchau, até logo. CARLOS - Até. (Jonas e Carlos saem à direita do palco, luzes se apagam). CENA IV (Luzes se acendem, Carlos está sentado no sofá de sua casa ao lado esquerdo do palco, com celular na mão, lendo a mensagem que Jonas lhe enviou). CARLOS - Não tenho palavras para lhe agradecer a noite incrível que tivemos, uma das melhores da minha vida sem dúvidas, tudo em você é perfeito, seu toque, seu beijo, seu olhar, seus movimentos, tudo colaborou para um momento perfeito. Sei que você diz ser apenas sexo, mas senti muito mais que isso, senti seu coração vibrar junto ao meu no momento do nosso êxtase. Parece que você tem medo de se doar a alguém mas quero lhe proporcionar muito mais que prazer. Beijos, Jonas. (Olhando para plateia emocionado). Mano, isso não pode tá acontecendo comigo! Foi só uma foda, só uma foda, só uma foda. (Vitor entra na sala e ouve Carlos falando). VITOR - Pelo visto a foda foi boa né, nem foi pra aula hoje. CARLOS - Cara, tu tem que me ajudar, tô
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desesperado. VITOR - O que? Monica está grávida ou teste de HIV deu positivo? CARLOS - Deixa de ser babaca, olha essa mensagem. (Vitor lê a mensagem e faz cara de espanto). VITOR - Ele viu e sentiu tudo isso em você? CARLOS - Você leu essa porra? VITOR - Li. CARLOS - Então não tira onda, né. VITOR - Qual o problema, Carlos? Garanto que você já recebeu várias mensagens de pessoas que se apaixonaram após a “foda”, como você fala, e nunca ficou assim desesperado. CARLOS - Cara, é diferente, eu dormi com ele abraçados após uma noite de sexo. VITOR - Desde quando foda virou sexo pra você? Daqui a pouco vai dizer que fez amor. CARLOS - Porra, presta atenção. VITOR - Como você nunca dormiu com alguém se vi a Monica sair de manhã esses dias? CARLOS - Nunca dormi com alguém sóbrio, meu, toda vez eu tô chapado e acabo pegando no sono após a foda mas nem ligo pra pessoa. Desta vez eu tava sóbrio e dormi abraçado com ele, entende? VITOR - Vindo de você fica difícil entender tudo isso, você nunca se importou com sentimento, só com prazer, agora tá com esse discurso todo. Como foi a noite pra você? CARLOS - Uma das noites mais incríveis da minha vida. VITOR - Sério isso?
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CARLOS - Porra, meu, claro que é. É tão difícil assim acreditar em mim? VITOR - Óbvio, tudo isso está sendo o oposto do que você é e de como descreve as coisas, parece até que você foi abduzido e mandaram outro. Você tá apaixonado por ele? CARLOS - Claro que não, pow. VITOR - Bom, dizem por aí que o primeiro sinal da paixão é a negação. CARLOS - Mano, você não tá ajudando. VITOR - E o que você quer? CARLOS - Ver ele de novo, né. VITOR - E? CARLOS - Não sei, pow. VITOR (dá risada) - Na boa, manda uma mensagem pra ele, expressa tudo que você tá sentindo de verdade e o que você quer com ele, deixa essa sua obsessão por prazer de lado e põe seu coração a frente pelo menos uma vez na vida. Permita-se amar e ser amado, experimenta, você não tem nada a perder, pegue esse celular e manda uma mensagem para ele. CARLOS - É... VITOR - Vou pra cozinha preparar algo para comer. (Vitor sai em direção à cozinha, enquanto Carlos pega o celular e começa a escrever falando com a plateia). CARLOS - “Cara, nossa noite foi demais, tu fez o que ninguém tinha feito, me deixou balançado, cabeça tá uma pilha de pensamentos mas todos associados a você. Porra, que tu fez comigo? Quero te ver hoje à noite, rola?” Esperar o que ele vai dizer, porra, coração tá a mil já.
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(Celular de Carlos começa a tocar) E ae, tranquilo? Hoje às 20h no mesmo lugar de ontem, beleza, te vejo lá, um beijo. Mano, eu vou vê ele de novo, não acredito, que coisa doida tô sentindo mas só quero repetir. (Luz se apaga lentamente enquanto Carlos vai em direção ao seu quarto) CENA V (Mesa de bar, Jonas sentado, chega Carlos, os dois se abraçam e sentam) JONAS - Que bom que chegou, você está bem? CARLOS - Cara, tô bem, meio estranho, não sei o que tá acontecendo, só sei que eu queria estar aqui, apenas isso. JONAS - É bom ouvir isso. CARLOS - O que aconteceu ontem? JONAS - Nós ficamos. CARLOS - Quis dizer comigo, por que tô assim? JONAS (dando um sorriso) - Assim como? CARLOS - Não sei, tô estranho, sinto algo em mim diferente como se faltasse algo, mas quando penso em você parece que esse algo se completa, porra, é confuso, é novo, é estranho, são mil coisas na minha cabeça. Entende? JONAS (pega a mão de Carlos, segura e o olha nos olhos) - Claro que sim, isso é paixão, pelo visto você nunca se sentiu assim antes? (Carlos acena com a cabeça de forma positiva) Percebi quando comecei a falar com você ontem, você estava sempre se esquivando mas seu olhar dizia o contrário, ele pede algo, alguém que pudesse tomar ele. CARLOS (rindo) - Viu tudo isso em um olhar? Caralho,
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que tenso. JONAS - Você nunca ouviu que os olhos são as janelas do coração? CARLOS - Não. JONAS - Mas são, você não é capaz de imaginar o poder de um olhar e onde ele pode chegar quando estão conectados um com outro, ele vai além da superfície, ele penetra a penumbra da pupila e vai ao fundo do coração e lá encontra o maior pedido de socorro que pode precisar. CARLOS - Isso tem algo com aquela luz? JONAS - Sim, essa luz é o algo que brilha no fundo sombrio do coração em busca de socorro. CARLOS - Cara, você viu tudo isso ontem? JONAS - Vi e senti. CARLOS - Como? JONAS (rindo) - Não sentiu nada diferente na nossa foda? CARLOS - Senti, pow, foi muito diferente. JONAS - O quê? CARLOS - Cara, não sei explicar, é confuso, pow, nunca vivi isso, é como se tivesse algo em mim que faltava, depois de ficar e dormir com você isso parece que me fez mais, mais, mais... JONAS - Completo? CARLOS - Porra, isso mesmo. JONAS - E o que você quer de mim agora? CARLOS - Cara, é algo complicado, foge de mim, de quem sou. JONAS - E o que você é?
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CARLOS - Não sei. JONAS - Como algo foge de você se não sabe o que é? CARLOS - Caralho, cara, nunca amei alguém, pra mim era sexo, fuder e gozar e agora é algo diferente. Entende? JONAS - Isso é bom ou ruim? CARLOS - Me faz bem, mas sei lá, pow, não sei, o que pode ser? JONAS - Você sabe o que a vida será? CARLOS - Acho que ninguém sabe, né. JONAS - Viver é um eterno arriscar-se, não sabemos o que será amanhã, mas sabemos que o hoje é ponto de partida, e o ponto de chegada vamos descobrindo no dia a dia. CARLOS - Tenho que me arriscar, né? JONAS - Isso é você quem vai decidir, eu só posso lhe dizer que estou ao seu lado. CARLOS - Cara, tem certeza que você quer isso? JONAS - Não tenho dúvida alguma. CARLOS - Não vai ser fácil, sou difícil para caralho. JONAS - Impossível não será (aperta a mão de Carlos olhando para ele), quero você, só isso é o que eu sei. CARLOS - Porra, tá com você é tudo que quero, fodase o futuro. (Carlos beija Jonas, ao fundo o refrão da música Strani Amore. A luz vai caindo até o blackout)
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