Notações,
Este material é um conjunto de notas propositivas, feitas pela equipe educativa da exposição A Maré da Vida, de Ercília Stanciany. Aqui você encontrará atravessamentos, reflexões e propostas que, sem intencionalidade de gerar respostas sobre as obras ou sobre a exposição, se apresentam como um lugar de partilha dos afetos, das impressões e das proposições geradas no contato com elas.
A arte contemporânea possibilitou um leque de dispositivos a serem inseridos como poética artística. Abriu um diálogo mais estreito com “a sociedade e a política, com a biografia do artista, sua época e circunstância”, como afirmou o crítico Frederico de Moraes. Ercília Stanciany ressignificou esses dispositivos e os inseriu em sua vida. Ela reinventa sua relação com a sociedade, ao lutar contra os empecilhos sociais e ingressar na universidade. Discute política de resíduos sólidos, ao buscar nos restos a matéria-prima do seu trabalho. Sua circunstância não deteve seus sonhos, ao contrário, com as pedras que encontrou no caminho, construiu seu castelo. Sua época foi a matriz responsável por fazer da sua vida a sua arte. Como uma música que o autor compõe para a pessoa amada, a artista trouxe à luz, em sua obra, pessoas, objetos e momentos que foram essenciais à sua jornada. Intensamente autobiográfica, sua obra dialoga com sua memória. Sua arte é intrínseca à sua história, separá-las é inviável. Ercília sintetizou, em “A Maré da Vida”, o que Louise Bourgeois assegurou com tanta convicção: “Arte não fala sobre arte. A arte fala sobre a vida”.
“Fico pensando que seria melhor falarmos da vida do que da arte. Pra falar a verdade, a arte em si me interessa muito pouco. Ela só funciona quando me joga para longe ou para perto, para trás ou para frente, às vezes um pouquinho para o lado: quando me enxergo e enxergo o outro do outro lado do espelho; quando a percepção vagueia, percorre caminhos estranhos, transborda; quando os tempos se embaralham e a ansiedade some. Então, o que importa não é a arte, mas o que nos leva a ela, e pra onde ela nos leva.” Marilá Dardot, Correspondências com Cao Guimarães
“Sim, é tudo muito real. [...] É a própria vida! Eu já vi isso, tem a ver comigo” (fragmento do livro Gente Pobre, de Dostoiévski)
A vida e a obra de Ercília são indissociáveis, seja em sua poética, seja em seus materiais. Antigas cabeceiras de cama, recolhidas por ela, foram utilizadas para gravar sua própria história. O material que antes estivera ali, bem ali, guardando os sonhos de pessoas que desconhecemos, agora representam pessoas sem rostos e fragmentos da vida de Ercília, assim como cada passo que a levou à realização de seu sonho de infância: estudar e graduar-se na universidade. Tal realização, por sua vez, ocorreu no seu ingresso à Universidade Federal do Espírito Santo, onde a mineira veio parar após sonhar com o mar e um navio, recolher poucos pertences, muitas memórias, companheiro e filha para tomar um trem rumo a Vitória. O sonho, seja dormindo, seja acordado, como um objetivo ou mesmo uma esperança, o sonho que batalhamos ou apenas esperamos que se realize, o sonho que faz ou fez sentido, o sonho presente ou o sonho adormecido.
Relacionar a palavra sonho com a vida e a obra de Ercília foi uma associação que ocorreu quase que instantaneamente ao se relacionar com sua “Maré da Vida”. Outras palavras surgiram à medida que os laços com a maré se estreitaram, palavras que vieram soltas ou entrelaçadas, que vieram numa maré mansa, numa maré em lua cheia e até em um maremoto. Algumas delas se encontram perdidas pelo papel. Sinta-se à vontade para riscá-las, transformá-las, ligá-las ou desligá-las e, caso não sejam palavras, tudo bem também.
Memória
Maré
Recolher
Sonho
Pertencer
Histórias
Arte
(...) Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos Tenho abundância de ser feliz por isso Meu quintal é maior que o mundo Sou apanhador de desperdícios: Amo os restos Como as boas moscas (...) Manoel de Barros, O Apanhador de Desperdícios
Em A Maré da Vida, cada obra é um monumento dos encontros e, por que não (?), dos desencontros da vida de Ercília. As pessoas que cruzaram o seu caminho estão também ali representadas. Ela, porém, curiosamente, as representou sem seus rostos, substituindo-os por um espaço vazio. Essas fisionomias ocultas estão lá, nas faces originais de quem as carrega e em sua memória. Apenas ela pode ver a imagem completa porque a última peça do quebra-cabeça está sob seus cuidados.
É diante desse pensamento que se desenha esta proposta, uma ação coletiva. Com o grupo sentado e disposto em círculo, escolha uma pessoa a ser vendada. Ajude-a a percorrer o interior do círculo. Ela então tocará, revezadamente, as palmas das mãos das pessoas sentadas, escolhendo uma delas. A pessoa vendada tentará descobrir a identidade de quem escolheu, tocando sua face. Ainda vendada, deve dizer o nome da pessoa e, em seguida, dizer também uma palavra que sintetize a situação ou o momento em que se conheceram. A ação continua com a pessoa anteriormente escolhida, que será agora vendada.
Feche os olhos
Reviva lugares, pessoas e situações importantes na sua vida
Tente elencá-los reconstruindo rostos, paisagens e sensações
Demore o tempo que for necessário
Entalhar a madeira é também escavar o peito, escavar a memória dentro de si. A forma como Ercília constitui seu trabalho trata do constante registro afetivo. Gravar a memória é permitir-se sentir novamente e sentir o novo. À medida que os sujeitos vão sendo constituídos, há também uma abertura no “reservatório de sensações” da artista. Todos possuímos espaços
e
sujeitos
afetivos dentro do nosso próprio reservatório. Propomos que você crie o seu mapa afetivocartográfico baseado em duas instâncias: pensar quais espaços são tidos como lar (baseando-se na indicação de que todo o espaço que consideramos lar é também um lugar afetivo) e criar relações com objetos também afetivos. Inicie a produção plástica desse mapa, recolha e agrupe objetos com os seus lugares afetivos por meio de pintura, bordado e/ou colagem.
Outras notas:
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