finitudes
finitudes
Outubro a Dezembro 2017 Sesc Ipiranga
Sumário 10
Um diálogo sobre a morte
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Libélulas de vidro com Luis Ferron
com Heloisa Seixas
Morte, [a]terra
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de Rubens Oliveira
Obituário em vida ou antes da luz no fim do túnel de Aline Santini
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Finitude infinita Heloisa Seixas
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Carta a D. Leitura cênica de um amor
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Aline Santini
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Fino fio
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Ciclo de filmes
com Maria Eugênia, Flora Poppovic, Alexandre Ribeiro, Matheus Prado e Alencar Martins
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Nelson Sargento: Nelson Cavaquinho e Manoel de Barros
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Leitura comentada de Elizabeth Costello, de J.M. Coetzee
Fino fio - traços semelhantes Maria Eugênia Almeida
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Sarau canto livro
com Lavínia Pannunzio e Jorge Forbes
com Jean e Joana Garfunkel
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Tecendo sonhos com Fabiano Menna
com Cia. Hiato
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Qual o título do seu obituário hoje?
Os corvos com Luis Arrieta e Luis Ferron
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Tem, mas acabou! com Cia As Graças
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Morte. - Exibição do curta e debate
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com José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
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John, George e a moeda de um real Marcus Aurelius Pimenta
O “.” não é “?” nem “...”, é ponto final
Lançamento do livro Edições Sesc
Testamento vital: eu fiz o meu! Elca Rubinstein
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Autonomia no pós-morte: o que você quer ser quando morrer? Camila Appel
Nas sociedades africanas os mortos não estão mortos Acácio S. Almeida Santos
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A morte entre os povos indígenas no Brasil Ailton Krenak
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A metáfora da morte nas artes do corpo no Japão Christine Greiner
Testamento vital Luciana Dadalto
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O direito à morte: agenciamentos sobre o corpo com Luciana Dadalto, Elca Rubinstein, Maria Goretti e Camila Appel
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com Ailton Krenak, Christine Greiner, Acácio S. Almeida Santos e Edgard de Assis Carvalho
Sobre a morte – invariantes culturais e práticas sociais
José Roberto Torero
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A morte em diferentes culturas
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A morte em diferentes culturas Edgard de Assis Carvalho
“É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca [...]; ter apenas esta vida” (André Gorz1)
1.
GORZ, André, Carta a D. Cosac Naify. São Paulo, 2008.
Finitude
A ideia da morte nos coloca diante do desconhecido e intensifica a sensação de desamparo, algo tão inerente à dificuldade humana de aceitar aquilo que parece incompreensível: o nosso próprio fim e o daqueles que nos são mais próximos. Contudo, as possibilidades que se abrem ao nos reconhecermos finitos e a dimensão que isso dá à própria existência podem resultar em momentos de inesperada beleza, de um estreitamento profundo da relação consigo mesmo, com aqueles que ficam ou com os que estão, apenas aparentemente, mais próximos de partir. Mas quão próximos estamos – jovens ou velhos, cada um de nós – do próprio fim? Saber-se finito e abrir-se a este aprofundamento, portanto, diz respeito a todo aquele que se sinta vivo. E é a partir desta certeza que o homem enseja a permanência de seu legado e inaugura a cultura. A motivação em tratar com atenção e sensibilidade do tema, tão delicado quanto fascinante, vem do entendimento de que, em nosso contexto cultural, a morte e a inevitável tristeza do seu entorno foram sendo distanciadas da convivência social, limitando-nas, subtraindo-lhes algo impossível de ser retirado em benefício de uma pretensa e constante obrigação de expressar felicidade. Para o Sesc, o enriquecimento do convívio se dá pela educação e pela cultura em uma perspectiva necessariamente mais complexa, permeada de proposições que invertem o sentido do pensamento, pois pensar a finitude propicia uma expansão da existência. Ao relembrar que é o adiamento da morte que nos leva à velhice, o Trabalho Social com Idosos celebra o tempo presente, pleno de experiências e expectativas. De modo a criar espaços de troca e reflexão sobre este horizonte aberto de possibilidades, foram reunidas diferentes linguagens artísticas para abarcar o assunto, e a elas se somaram abordagens mais diretas, por meio de bate-papos e rodas de reflexão. Ao falar sobre a morte em várias dimensões – poética, metafórica, estética e física –, também repensamos nossa cultura e o modo como escolhemos viver.
Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo
“Conheceu vida e vigor. Por vezes, gozou de um tempo sereno; por outras, como acontece, o sol foi encoberto por algumas nuvens. Por que indagas qual foi a duração de sua vida? Ele vive.” (Sêneca2)
2.
Sêneca. Aprendendo a viver. Porto Alegre, RS, L&PM, 2008.
Finitude e existência: a vida como um fluxo
Sêneca já chamava a atenção, em carta ao amigo Lucílio, do equívoco de preocupar-se com a duração da vida ou com a ânsia em viver mais para, justamente, adverti-lo da importância da vida em si. O medo da morte pode transformar-se em um impedimento para o bem viver, pela angústia que gera. Muito embora saibamos que a morte se trata de acontecimento inevitável, refletir sobre a finitude pode ser algo formidável e aterrador, ao mesmo tempo. Na contemporaneidade emerge uma cultura que valoriza os prazeres. A felicidade perseguida a todo custo, travestida de culto, é compreendida como a ausência de sofrimento, de doença e de dor. Desta forma, o medo da vida e da fragilidade assinala o olhar sobre o envelhecimento, e este, em última instância, nos aproxima cada vez mais da morte. Nas últimas décadas, o aumento da expectativa de vida resultou no crescimento da população de velhos no mundo e, no entanto, ironicamente, a mesma velhice que posterga a morte é aquela que é, também, tão temida. O Ciclo Finitudes integra as ações do Trabalho Social com Idosos (TSI), do Sesc São Paulo. Ao propor diferentes discussões acerca da morte e sobre o percurso da vida, a instituição busca envolver toda a sociedade e contribuir para que temas como esse deixem a invisibilidade. Visto que em nosso contexto cultural a existência da morte foi sendo distanciada da convivência social, pensar a morte do outro e a nossa própria tornam-se desafios. Mas, por outro lado, pensar a finitude não é pensar sobre a existência? Este catálogo apresenta o resultado da programação Finitudes, realizada de outubro a dezembro de 2017 no Sesc Ipiranga. As resenhas descrevem as atividades ocorridas na ocasião e os artigos, escritos pelos convidados, discorrem sobre as perspectivas da finitude.
Gerência de Estudos e Programas Sociais e Sesc Ipiranga
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Um diálogo sobre a morte com Heloisa Seixas
Morte, [a]terra performance de Rubens Oliveira
Para a escritora Heloisa Seixas, conferencista de abertura do Projeto Finitudes e autora dos livros Agora e na hora (Companhia das Letras, 2017), O oitavo selo – quase romance (Cosac & Naify, 2014), e O lugar escuro – uma história de senilidade e loucura (Objetiva, 2007), entre outros, a forma mais produtiva de lidar com a morte está na escrita. “A palavra me salvou”, atesta a autora, que testemunhou de perto o Alzheimer da mãe, as sucessivas doenças quase fatais do marido – o também escritor Ruy Castro – e a morte de um amigo querido, outro escritor. Tudo num curto período, entre 2002 e 2012. “Não sou uma pessoa corajosa, sou uma pessoa covarde. Escrevendo me salvei, por isso acho que a gente tem que encarar a morte na arte, desde um filme e uma peça, até a arte da conversa”, afirmou ela na abertura do Ciclo Finitudes – a morte sob diferentes perspectivas, projeto com atividades multidisciplinares, contando com debates e apresentações em diferentes linguagens artísticas, realizadas no Sesc Ipiranga de outubro a dezembro de 2017.
Ainda na infância, viu surgir duas inquietações que, mais tarde, iriam refazer o percurso de sua poética. Primeiro, a singela descoberta do postulado matemático de que qualquer número potencialmente elevado a zero dá um. Depois, o espanto de que “o Universo, por ser infinito, existe, mas nunca começou”. Foi assim que descobriu seu fascínio pelo desconhecido, “sendo a morte o maior deles”, pulsão da escrita desdobrada nos textos da autora, “cerne de muitas coisas que eu viria a escrever”. Segundo Seixas, escrever é uma forma de “escapar do medo da morte”, já que num texto escrito a autoria “não envelhece”. Tal estratégia, na busca pela própria linguagem, surge como forma de abordar temas difíceis, como o envelhecimento, a demência ou a senilidade. Durante sua fala, a escritora lembrou uma máxima da Antiguidade: “O debate aperfeiçoa a convivência”. E ressaltou como a escrita promove uma deliberação do autor consigo próprio, propiciando o “contato com regiões misteriosas da gente mesmo – e eu respeito muito o imponderável, já que a vida é um mistério tão grande quanto a morte”.
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Surgiram indagações sobre o além da vida – “não descreio de nada, e as religiões explicam parcialmente, cada qual ao seu modo”, respondeu a escritora – e sobre a importância do humor, sobretudo em casos de luto ou de Alzheimer em pessoas próximas ou do luto em si mesmo. Seixas destacou que há várias formas de “escape para se tirar alguma coisa boa do que é tão difícil”. Ela, por exemplo, cantava com a mãe, já bastante debilitada pelo Alzheimer, uma antiga e obscura marchinha de Carmem Miranda, entoada de cor pela matriarca. “Eu começava e era ela quem continuava, ela sabia até o fim, era ela quem terminava.” Após a conferência, o público foi recepcionado à saída do teatro pelo espetáculo Morte, [a] terra, com coreografia de Rubens Oliveira e participação de Fernando Ramos, Rafi Souza e Rafaela Alencar. Reunindo referências pesquisadas em diferentes rituais de matrizes africanas, asiáticas e sul-americanas, o espetáculo apresentou-se como uma ocupação no espaço do hall de entrada da Unidade. Dessa forma,
enquanto no palco havia um duo de performers em movimentos sincronizados, o terceiro dançarino vinha da outra extremidade, num jogo entre simultaneidade e singularidade. Com um instrumento cênico fundamental e único, um bastão amarelo, o trio formava um corpo no qual os gestos reverberavam ora por uma modulação vigorosa e ampla, ora por uma evocação sutil e silenciosa. Em três diferentes densidades – dos performers, do objeto e da audiência –, o público, então distribuído pelo espaço feito cênico, acolheu calorosamente a apresentação, formando uma plateia atenta e intrigada com aqueles passos particulares. Uma dança situada, como indica o próprio título do espetáculo, entre a representação da morte e a morada sepulcral da existência, a terra.
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Finitude infinita Heloisa Seixas
Duas frases que ouvi quando era ainda muito jovem – pouco mais que uma criança – me marcaram para sempre. A primeira delas foi a informação que me foi passada por um professor de matemática, na escola: a de que todo número elevado à potência zero era igual a um (1). Ouvir aquilo foi um choque para mim. Eu, que sempre detestei matemática, tinha, por paradoxal que pareça, um respeito por essa matéria, por considerá-la a forma mais acabada de lógica. Os números eram frios, eu pensava. Com eles, não havia erro. E vinha aquele professor me dizer que qualquer número, ao ser multiplicado por nenhuma vez, dava como resultado um. Era o absurdo invadindo a ciência exata. A outra frase que me marcou foi lida por mim em algum lugar, alguma publicação, já não lembro qual. Eram reflexões sobre o universo infinito. O texto dizia que o universo não acaba nunca, nem no tempo, nem no espaço. É claro que essa frase inquietou minha mente de menina, mas apenas isso – inquietou. Olhar para um céu noturno, cheio de estrelas, e pensar que aquela imensidão se estendia para sempre e sempre era estranho. Mas só isso. A marca
mais profunda veio na frase seguinte: o texto dizia que, sendo infinito, o universo existe – mas nunca começou. Pronto. Aí, sim, houve um abalo definitivo. Aquela menina que eu era cessou de existir, de forma instantânea. Como era possível que tudo à minha volta, as estrelas, o céu, o mar, as árvores e as flores, o mundo e eu sobre ele – como era possível que tudo isso existisse sem nunca ter começado? E por que aquela frase me marcou tanto? Porque ela era uma definição do desconhecido. Sua estranheza era tamanha que, hoje, tenho certeza de que foi ali, naquele instante, que me tornei escritora. Porque eu só escrevo para tirar de dentro de mim a inquietação. Escrevo para ancorar no papel aquilo que me dá medo. E, se aquilo que mais tememos é o desconhecido, nada mais natural que tenhamos tanto medo desse desconhecido maior – que é a morte. Depois daquela frase, a morte e o medo dela nunca mais deixaram de me seguir. Por uma série de razões, venho escrevendo bastante sobre a morte nos últimos anos. Escrevi sobre a quase morte que é a doença
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“Foi como descrevi aquele salto repentino rumo ao lugar escuro: ‘Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã’.”
de Alzheimer. Escrevi sobre os confrontos com a morte que tenho presenciado ao meu redor. Escrevi sobre o medo e até sobre o fascínio provocados pela morte. São quase duas décadas em que vivo assombrada por esse assunto. Primeiro, foi a quase morte. No meu livro O lugar escuro (Objetiva, 2007), eu conto como um dia, em 2002, num sábado de manhã, minha mãe amanheceu diferente e se vestiu pensando que estava hospedada em um hotel. Naquele instante, com uma lucidez imensa, tive a dimensão do que estava acontecendo. A atitude de minha mãe era a prova inequívoca de que algo se rompera em sua mente. Fios microscópicos chicoteavam soltos no misterioso universo de seus neurônios. Foi como descrevi aquele salto repentino rumo ao lugar escuro: "Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã". Lidar com o esfacelamento da mente da minha mãe foi como assistir à sua morte – mas de corpo presente. Mais uma vez, era o desconhecido me perseguindo. Alguns anos depois, meu marido – o escritor Ruy Castro – viveria diversos confrontos com a morte, praticamente em série. Ele, que no passado já tinha enfrentado problema com alcoolismo e drogas, se viu no meio de uma espiral de horrores, incluindo câncer, enfarte, outro câncer, encefalite, convulsões. Esses embates, e a maneira como ele os enfrentou – sempre se
apegando ao seu amor pela palavra escrita – me fizeram escrever O oitavo selo (Cosac & Naify, 2014), um quase romance sobre a morte. E, em 2016, publiquei um terceiro livro, também rondando o mesmo tema: Agora e na hora (Companhia das Letras). Ao contrário dos dois primeiros, que são relatos mais autobiográficos, Agora e na hora é uma ficção. Conta a história de um escritor em estado terminal, que decide escrever um livro de contos sobre a morte – e se matar em cima dos originais. É um livro estranho, que levei muitos anos para terminar. Talvez porque, no fundo, eu temesse ter o mesmo destino do meu personagem: morrer ao botar o ponto final no livro. Porque escrever tem dessas coisas. Às vezes, nós, escritores, temos premonições. Quem escreve acaba por tocar em regiões abissais, misteriosas, sobre as quais não temos controle. Isso é o desconhecido. O mesmo desconhecido que está no cerne do nosso medo da morte. A morte, esse lobo de dentes afiados que nos espreita pela vida afora. A finitude que nos persegue, sempre – um assombro infinito.
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Carta a D. Leitura cênica de um amor com Cia. Hiato
Composição cênica levada ao palco do teatro do Sesc Ipiranga em duas apresentações integradas à programação do projeto Finitudes, em dezembro de 2017, Carta a D. – Leitura cênica de um amor é uma adaptação do livro homônimo do filósofo austro-francês André Gorz e resultado das oficinas Teatro das Horas Vagas. Realizados entre outubro e dezembro daquele ano pela Cia. Hiato, os encontros tiveram à frente as atrizes Aline Filócomo e Fernanda Stefanski, sob supervisão de Leonardo Moreira, com um grupo de seis participantes idosos: Antônio Ferreira, Euza Teixeira, Mirna Fabeni, Neide Pimentel, Rosa Raminelli e Saleti Brugnetti. Costurando o testemunho dos participantes com a leitura de trechos, diante de uma seleta plateia posta no palco frente a frente com os intérpretes, as apresentações comoveram e arrebataram o público pela sua delicadeza poética e bom humor. No livro, publicado originalmente em 2006, com edição brasileira em 2008, André Gorz
faz uma homenagem ao amor numa carta endereçada a sua companheira por quase seis décadas, Dorine, acometida, desde os anos 1980, por uma doença degenerativa, a que se somou um câncer. Os dois – ele aos 84 anos de idade, ela aos 83 – se suicidaram em 2007. Em cena, os participantes apresentaram tanto suas percepções de leitura e descobertas com o texto quanto memórias de suas vidas a partir de episódios ora engraçados, ora ternos e comoventes. Também interpretaram, a capella, músicas do repertório popular brasileiro e da canção folclórica internacional. Além da resenha com a cobertura das atividades do Ciclo Finitudes e de artigos dos artistas e palestrantes convidados, o leitor encontra, a seguir, o depoimento, de intérpretes da peça Carta a D. – Leitura cênica de um amor. Nele, contam como foi participar das oficinas, o impacto do texto, além da emoção e do aprendizado ao subir ao palco. Com a palavra, os intérpretes:
Antônio Ferreira
“Sabe, o mais difícil foi projetar a voz, ter uma dimensão do alcance para aquele espaço onde nos apresentamos. Encarar o público também foi exigente. Já tinha feito algo antes em teatro, mas não com essa proximidade, um contato tão direto. Embora esse mesmo contato tenha sido muito bom, dava pra notar o interesse das pessoas que estavam lá. Além disso, a estrutura também permitia que os improvisos, como quando uma irmã revelou a outra em cena, fossem incorporados com naturalidade à apresentação, enriquecendo-a pela espontaneidade e pela empatia gerada, algo que o público respondeu com alegria e bom humor. Também tiveram momentos engraçados, tornando tudo mais familiar com a própria plateia. Creio que conseguimos formar um todo coeso, um corpo só, plateia e nós, todos no mesmo palco. Não esperava tamanha receptividade, inicialmente pensei que as pessoas estariam pouco interessadas, ou até fugissem, por causa do tema, a morte. Nos anos 1980, trabalhando na São Paulo Previdência, um órgão do governo – minha profissão é bancário – participei de um grupo de teatro na firma. Era a época do We are the world, e a gente fez uma apresentação de Jesus Cristo Superstar. Dublei uma música do Raul Seixas e também We are the world. Contudo, no caso de Carta a D. foi outra coisa, durante as oficinas tivemos exercícios de expressão corporal, com tudo bastante aberto à contribuição que cada um trazia, o que foi muito produtivo. Inclusive porque esse é um texto bastante lírico, poético, o que permite várias abordagens diferentes. Participar desta atividade, para mim, foi importante para perceber como vivia fugindo da própria vida. Aqui pude renascer. O importante da vida é o agora. Da morte, o que acho duro é a dor da perda. Agora, se você encara que a vida é finita, depois você nem pensa mais no assunto, admite a vida, vive. Você simplesmente passa a viver como se tivesse nascido a partir daí. Também tem o aspecto do envelhecimento. Percebo que no futuro, com o respeito que existe hoje em relação à melhor idade, a criança não vai querer fazer 18 anos para ter liberdade. Ela já vai desde cedo começar a focar a melhor idade, e os 18 vão chegar bem rápido, não vai ter aquela ansiedade, a demora em chegar à maioridade, porque desde cedo vai notar o
quanto é importante atingir a melhor idade e estar na segunda parte da vida, que é quando se tem um incremento do aprendizado com relação a como existir e perceber a própria existência e a vida. Hoje, aos 61 anos de idade, sinto-me grato por ter participado deste trabalho incrível proporcionado pelo Sesc e em parceria com a Cia. Hiato, contribuição formidável e de muita qualidade. Foi uma oportunidade e tanto viver uma atividade educativa e sensível a um tema delicado como a morte.” “De tudo, o mais difícil foi ficar frente a frente com o público, assim, tão de perto, como se fosse espelhado, bem próximos, todos no palco, sem o distanciamento tradicional de uma plateia. Foi, no entanto, um desafio de que gostei! Tirou, logo de cara, a timidez. Já tinha feito antes o Mata teu pai [encenada em maio de 2017 no Sesc Ipiranga, a peça contou com a participação de integrantes do curso de teatro para a terceira idade], é verdade, mas lá éramos um coro, enquanto que agora não, era eu e o público. Manter sobre si a atenção dos espectadores foi o desafio, algo que eu nunca tinha experimentado antes. Foi minha primeira vez e, na primeira apresentação, o coração batia forte, eu tremia, mas foi gostoso, interessante. Amei apresentar o Carta a D. O público tá ali, esperando alguma coisa de você, tem o compromisso, eu tinha que dar o meu melhor. Mesmo com as pernas bambas, não podia demonstrar, por isso me conectei com o que havia de mais audacioso para poder participar de algo que jamais imaginei que viveria até então, no caso, estar da melhor forma possível no palco, no lugar de uma atriz. A situação era como a de uma conversa, só que não eram uma ou duas pessoas pra nos assistir, mas diversas. Cada vez que eu dava a minha fala, percebia a expectativa sobre as nossas presenças. Antes disso, sempre quis participar de um curso de “contação de histórias”, e nunca tinha tido a oportunidade. Um dia, já faz dois anos, passando pelo Sesc Ipiranga com a minha filha, vi na programação o anúncio do curso de “Jogos Teatrais para a terceira idade” e, embora não seja exatamente a mesma coisa, decidi participar. Depois veio a oportunidade do Carta a D., já estava decidida a não perder uma, me inscrevi. A peça é o resultado de vários encontros, e as pessoas que conduziram a atividade foram excelentes,
Euza Teixeira
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nota dez. A convivência com o grupo foi o melhor, de uma qualidade muito elevada, muito boa. Além disso, me tirou uma timidez no trato com as pessoas em geral. Hoje não me sinto mais intimidada ao falar em público. Alcancei uma desinibição útil para o contato interpessoal, mais espontânea. Já quanto ao tema do Ciclo Finitudes, entendo que o homem não foi feito para morrer, foi feito para viver. No entanto, o salário do pecado é a morte. É como se tivéssemos uma senha que, a certa altura, será chamada. A sorte é que não sabemos o número dessa senha. Enquanto isso, com alegria, eu, que sou pedagoga e hoje tenho 66 anos de idade, posso me sentir também um pouco no lugar de uma atriz.”
Mirna Fabeni
“Pra mim, o mais difícil foi compreender o livro em toda sua densidade. Eu li quatro vezes! Foquei o relacionamento do André com a Dorine, foi o que me chamou mais a atenção. Procurei comentar em cena o que entendi da história. Ele se apaixonou por tudo o que ela era e ele não conseguia ser, uma pessoa extrovertida, exuberante, que tá em contato com o mundo. Ele tinha outro perfil, era um escritor, ficava mais na dele, era tímido, não era resolvido. Ele era inquieto, sempre queria ser outra pessoa e não conseguia. Ela o fez ver a vida de outra perspectiva, é como se ele tivesse se tornado a Dorine, ele se tornou ela. E ela, por sua vez, enxergou nele o potencial que ele tinha para ser outro. Tanto que ela decidiu renunciar toda sua vida de solteira e ajudá-lo. E ela estava presente em tudo, até financeiramente. Ela entendia, ela falava que ele era um escritor e que, como tal, tinha que escrever. Apesar de uma vida de dificuldades, me parece que o Carta a D., antes de tudo, nada mais foi do que uma reparação dele mediante o arrependimento por não tê-la retratado de forma justa na sua obra pregressa. E o amor deles foi mesmo uma coisa incrível, que não existe hoje em dia. Quando Dorine descobre uma doença grave, ele retribui o companheirismo, abrindo mão de sua própria vida, para cuidar dela. Poder compartilhar essa leitura no palco foi tranquilo, porque se podia falar de uma forma coloquial, gostosa. Gosto do improviso, do jogo, me proporciona uma maior naturalidade na presença no palco, do que se eu tiver que dar conta de uma personagem muito marcada. Além disso, amei essa ideia de cada participante poder trazer episódios
de sua própria história que dialogassem com o enredo do livro. Essa construção da cena foi cuidadosamente feita durante as oficinas, fomos preparados para que conseguíssemos ficar à vontade no palco, com naturalidade para falar e participar. Não foi cansativo, foi dinâmico, com respeito aos ritmos e temporalidades das pessoas idosas. O acolhimento foi importante. O Ciclo Finitudes traz um tema em que eu, particularmente, prefiro nem pensar. Queria que a minha morte fosse uma coisa rápida. Além disso, você não sabe se tem alguma coisa pra lá, ou se você vai morrer e acabou ou, como dizem, que o cérebro funciona enquanto o coração para, sei lá... Eu quero é viver. Sou contadora e trabalhei durante anos como assessora de gabinete no Tribunal de Contas municipal. Aos 71, além da oficina de jogos teatrais, também faço ginástica, tanto a funcional, quanto a de fortalecimento e equilíbrio, e tem ainda o curso de dança. Participar do Carta a D. me fez constatar, outra vez, que o homem precisa tanto da mulher porque ela é mais forte. A mulher amadurece mais rápido. Eles são ótimos, mas ainda são crianças.” “Durante as oficinas, cada participante leu uma parte do livro de que mais gostou. Selecionei a passagem em que eles estão na casa dele, e ele começa a despi-la. Pra mim foi tão marcante, que eu me dei conta de que era algo que não esqueceria pra contar na apresentação. Mesmo que desse uma derrapada, era fácil dar continuidade. A forma que eu falei, o jeito que eu fiz, até minhas colegas e as orientadoras, as atrizes da Cia. Hiato, Fernanda e Aline, acharam bonito, se emocionaram. Com isso, pude adaptar o texto à minha dicção e fala. Então, por exemplo, ele diz que ela tem uma ‘pele nacarada’. Mas se eu disser isso, ‘nacarada’, não é todo mundo que vai saber. Comigo, no palco, virou ‘aquela pele tão branca, alva’. Fui elaborando a sequência toda, desde quando André vai de pouco a pouco despindo Dorine, espanta-se com a beleza dela, e então vão para o sofazinho, e lá eles completam o amor. Minha intenção era dizer de um jeito que cativasse as pessoas, para que todos prestassem atenção, participassem. Então destaquei os aspectos sensoriais, como os cabelos vermelhos, lindos e perfumados dela. E a cada oportunidade, seguindo o texto de Gorz, incrementava os indícios, os sinais,
Neide Pimentel
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porque, com o perdão da palavra, como eu dizia nas oficinas, eu queria era ver os velhos tudo assanhados! Fui experimentando os jeitos de falar. Até então só tinha participado do Mata teu pai. Só que lá, nosso papel era pequeno. Já no Carta a D. tivemos espaço pra cada um apresentar um pouco de sua própria vida, a partir daquilo que se conectasse com o texto. Num segundo momento, comentamos as nossas leituras. A leitura do livro foi muito gostosa, eu ia curtindo, fiquei curiosa em saber no que dava, em duas horas eu o tinha lido. Depois li outra vez, com mais calma. A oficina foi uma novidade na minha vida, gostoso é você meter as caras. Nunca tinha feito teatro. Falava em público, ou até mesmo numa conversa com outra pessoa, de uma forma muito envergonhada. Já desde a oficina anterior, dos jogos teatrais, descobri como falar e também cantar sem tremer, sem chorar, fui pegando jeito. Quando apareceu Carta a D. achei uma oportunidade legal. Um dos exercícios da preparação consistia em cada um cantar uma música. Lembrei que, quando era mais nova, ouvia uma rádio alemã, do Rio Grande do Sul, que apresentava a canção na língua original, e depois traduzida. Era assim, ‘Auf wiedersehen, auf wiedersehen, tu vais partir, adeus...’. É curtinha e ainda caía bem pra peça. Então pediram que a apresentasse como desfecho, o encerramento do espetáculo. As luzes vão se apagando devagarinho, ficou muito bom, eu adorei. Foi tudo muito bem construído, encadeado, feito com muito cuidado. Tenho 82 anos, fui operária, e acho que já vivi mais do que eu esperava. Não que deseje morrer, mas você sabe que o fim é esse. Espero morrer de repente. O que não quero é ficar numa cama, dando trabalho pros outros. O que quero é uma morte serena, pra me libertar. Sabe, o aspecto que achei mais bonito da relação deles, o André e a Dorine, é como se respeitavam. Um amor sem nada exigir. Ele se matou porque não podia viver sem ela.”
“Todas as vezes em que eu lia o Carta a D., sobretudo no começo dessa história, eu só chorava. Uma história tão linda como essa. O que mais me deixou feliz foi poder estar lá em cima do palco, levando essa história maravilhosa pras pessoas que vieram nos assistir. Foi isso que me motivou mais ainda. Não tive nenhuma dificuldade no processo. Podia virar uma temporada, porque é uma peça em que a gente chora muito, viu? Fico muito contente que tenha dado tudo certo nas apresentações. No começo, a gente estava com medo, o público fica em cima, cara a cara, só que isso foi na verdade acolhedor, envolvente e muito bonito. Os encontros da oficina superaram minhas expectativas, já que não ficamos apenas na leitura do livro. Participar da oficina me deu a oportunidade de descobrir que a gente existe e está aqui. Um dos aspectos de que mais gostei, lendo o livro e participando do processo todo, é que o que está lá escrito, como logo na abertura do texto, quando ele fala do envelhecimento e do vazio, parece a história da gente, sabe? É maravilhoso constatar que, mesmo com mais idade, eles continuaram se amando. É alegre, e também é uma história triste. O livro tem uma escrita muito encantadora, você lê e vai vendo os dois em suas vidas, em seu amor. A morte, pra mim, eu lido assim, normal. A gente sabe que da mesma forma que veio ao mundo, um dia vai. A gente não pode esperar a morte sentados, olhando pro céu. Tem que fazer a sua vida, a sua casa, passear, se divertir, sabendo que um dia nós vamos. Não tem jeito, nós vamos. Por isso mesmo gosto de ter uma vida bastante movimentada, aqui no Sesc participo do coral, jogo vôlei, basquete, faço ginástica e alongamento. Minha expectativa era voltar a atuar. Me senti muito bem atuando. O que descobri no teatro foi um ambiente muito cuidadoso, respeitador, com profissionalismo. Essa é uma história tão bonita. Adorei estar nesse lugar em que todo mundo me chamava de atriz! Aos 61 anos de idade, tendo trabalhado com fotografia, vinha aqui no Sesc e logo todo mundo da unidade que me conhece falava, ‘chegou a atriz’! Foi bom experimentar outra vida”.
Rosa Raminelli
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Saleti Brugnetti
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“Pra mim, participar do CARTA A D. só acrescentou, trouxe uma experiência que eu não tinha. Por exemplo, até o fato de ler um livro inteiro, jamais faria, e esse me interessou. Antigamente eu não lia um livro todo porque, se eu estava no meio da leitura, já queria saber o que acontecia lá na frente e, muitas vezes, largava antes.
Nesse caso foi diferente, brotou interesse da minha parte. Só que, neste caso, eu não gostei do livro. Por causa da morte no final, não achei que foi uma boa. O romance também foi uma coisa, assim, muito do lado somente dele... Ela amava ele, mas ele correspondia mais do que ela. Ele queria ser igual a ela, não gostei desse tipo de tratamento. Ele amava tanto ela que acho que ele queria ser ela, tanto que, no final, eles se matam. O que mais me chocou foi isso. Eu queria um final feliz. Mas não teve. Isso me chocou. Agora, participar das oficinas foi muito bom, as orientadoras explicam com muito cuidado, tiraram a gente da timidez, evoluindo a cabeça da gente. Foi como se eu estivesse dormindo e de repente despertasse para uma coisa tão bela que é participar de uma obra de arte, se colocar, falar, expressar o que sente, foi muito rico. Foi um despertar perceptivo pra tudo na vida, o que me possibilitou olhar mais as coisas, perceber mais, ser menos impulsiva, tudo isso. Como desde criança eu canto – hoje estou com 83 anos de idade, durante a minha vida fui tecelã e representante comercial –, estou acostumada ao palco. Cantei muito já, desde os cinco anos. No colégio já enfrentava o palco para duzentas pessoas... Não fico nervosa, nem nada. Não ligo para os erros que possam acontecer na apresentação, errar é humano. Tanto eu posso errar quanto aqueles que estão assistindo. Das atividades no Sesc, gosto muito do teatro e do pilates, essas coisas que são mais frequentada pela mocidade, mas eu me perguntei, ‘por que eu não?’, meu corpo é igual! Ficar sentada o dia inteiro, fazendo crochê, isso não é comigo. Gosto de me movimentar, viajar, passear, conhecer lugares. O que eu puder, eu faço. Quanto a morte, pra mim, é normal. Porque você nasce,
vive, e final, é a morte, são três coisas, não tem como escapar. Eu já estou com idade, numa fase da vida que estou sabendo que não vou viver duzentos anos. Tem também o fato de que sou muito religiosa. A oração faz muito bem pra alma. Até cura. Não que não venha a doença na gente, mas você tem que ter uma fé. Tem que rezar, ter uma fé em Deus. Quando cheguei pra oficina, eu não sabia o que era, a minha expectativa era de aprender coisas melhores para a vida, como de fato aprendi. Não só sobre a leitura, mas sobre a comunicação, a desenvoltura, trazendo mais alegria pra gente, a gente depois passou a viver melhor, até o meu filho me achou diferente, depois da minha participação. Ele veio assistir e disse, ‘mãe, eu estou orgulhoso da senhora’. Pra mim, participar das oficinas, me colocou sempre numa expectativa boa, aguardando o que teria no próximo encontro, uma sensação de descoberta, de ‘o que será que vai ser hoje?’. Foi minha primeira participação em teatro com esta qualidade de envolvimento. Será que essa história que está no livro é verídica mesmo, gostaria de saber, como é que pode, uma pessoa se amar tanto, com este fim trágico... O começo era uma maravilha, o engraçado é que, se eu soubesse o fim antes, eu não lia tudo...”
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Fino fio com Maria Eugênia, Flora Poppovic, Alexandre Ribeiro, Matheus Prado e Alencar Martins
Celebrada, a morte comparece à cena com suas fantasias. Entre elas a de uma refinada bailarina, dotada da estrutura do corpo na dança, acompanhada de músicos e do canto. Tudo arranjado numa cena que mescla elementos de diferentes linguagens das artes do palco, notadamente o arranjo coreográfico e a música, mas também as artes em toda a sua plasticidade, envolvendo a plateia da mesma forma com que a morte surge entrelaçada à vida: assim apresenta-se Fino fio, espetáculo inédito que teve sua estreia durante o Ciclo Finitudes.
Embora hoje seja tratada a portas fechadas, a morte foi vivida das mais diferentes formas ao longo da história do homem e houve uma época em que as exéquias eram também motivos de festas, condecorações e celebrações públicas – como ainda são, em alguns lugares do planeta. Com delicadeza e um sutil jogo de cena híbrido de música e dança, o espetáculo Fino fio reporta-se à tradição de folguedos, festejos e procissões, conferindo à morte um aspecto lúdico, num espetáculo alegre e coeso.
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Fino fio Traços semelhantes Maria Eugênia Almeida
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Falar sobre a morte. Falar sobre a construção de um espetáculo. Livros, teses e conferências se debruçaram sobre esses temas na tentativa de amenizar dores, desordens e instabilidades que provocam ao se aproximarem demasiadamente de nós. É mais provável, no entanto, que esses assuntos nos cheguem primeiro pela vivência do que por estudo. A poesia que carregam nos acaricia no antes ou depois e dificilmente durante a experiência com eles.
A morte e um processo de criação de espetáculo são antes e depois de vividos ondas do mar, tigres na savana, vista de um edifício alto, durante são caldos, instintos, vertigens. É sob forma de poesia distante que vou traduzir a morte e a experiência de criação do espetáculo Fino fio.
A morte sempre chega adiantada, O espetáculo, quase sempre, começa atrasado. Até a chegada da morte somos todos imortais, Até o terceiro sinal do espetáculo somos todos mortais. A morte é vez única, sem bis, sem sessão extra, O espetáculo... almejamos bis, ansiamos sessão extra, aspiramos temporada. A morte nos finca na realidade, Espetáculo é o transporte para nos tirar dela.
A morte é a garantia do fim de dores e incertezas, A criação de um espetáculo é um começo, de dores e incertezas.
A morte quando nos toca, e desiste, nos lembra a potência da vida, O espetáculo que nos toca nos lembra a potência da vida.
A morte é ter a última palavra, Criar um espetáculo é ouvir todos os sons e dar voz aos sussurros.
A morte “é uma verdade vestida de absurdo”2, O espetáculo é uma verdade vestida de absurdo.
Morte é destruição, Espetáculo é revelação de um novo olhar. A morte: “Preocupada com o matar, ela faz o trabalho desajeitada, sem sistematização ou habilidade. Como se cada um de nós fosse a sua primeira morte.”1 A criação do espetáculo: Preocupada com o realizar ela faz seu trabalho meticuloso com sistematização e habilidade como se ali fosse sua última obra. A morte não cuida de ninguém além daquele que veio buscar, No espetáculo todo o cuidado a todos. A morte, se erra, sai de cena, Num espetáculo um erro pode gerar a melhor cena.
Há sempre um fio que une morte e criação, ele nos emaranha e nunca revela sua ponta, seu ponto final é sempre desconhecido. Mortes e criações não são fardos nem privilégios destinados a poucos em situações excepcionais. Nosso cotidiano é feito de pequenas mortes e criações, por vezes um mergulho no mar, o enfrentamento de um animal desconhecido ou o vislumbrar de uma paisagem são disfarces das perdas que nos custam serem reconhecidas ou de novas etapas que com resistência nos entregamos. Bom, nosso Fino fio nos fez viver a criação e pequenas mortes, embora não fosse a primeira ida ao mar tomamos um bocado de caldos, fomos reféns e orientados por nossos instintos.
1.
SZYMBORSKA, Wislawa. Trecho do poema Tomada a morte, sem exagero
2.
BRUN, Eliane. Trecho de O mundo da gente morre antes da gente
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Sarau Canto livro com Jean e Joana Garfunkel
Num diálogo entre música e literatura, o Sarau Canto Livro, feito de canções e récitas de obras literárias brasileiras, aborda as diferentes percepções da passagem do tempo como traço da finitude. De forma lírica e bem-humorada, foram executadas canções como Oração ao tempo, de Caetano Veloso, Se eu quiser falar com Deus e Preciso aprender a ser só, de Gilberto Gil, e o samba Juízo final, de Paulo Vanzolini, além de
poemas de Henriqueta Lisboa, como O tempo é um fio, e também Quando eu morrer, de Mário de Andrade, e Belo belo, de Manuel Bandeira. Ao longo da apresentação, que tocou o público com a delicadeza do repertório e dos músicos, diferentes aspectos da finitude foram levantados, tais como a morte, o sentido da vida, a inexorabilidade do tempo e a impermanência do ser.
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Os corvos
Diálogos alados: colóquios sobre a morte
com Luis Arrieta e Luis Ferron
Partindo de um áudio com uma narração impregnada do clima hospitalar, o atmosférico espetáculo Os corvos mergulha a plateia num limiar, o do testemunho da morte do outro, da perda de quem mais se ama, das despedidas fatais em momentos que legam irrevogáveis renovações da vida. Feito por dois duos – basicamente um de músicos, outro de bailarinos –, o espetáculo, cena de uma penumbra, traz também ao palco o tema do duplo, tematizado pelo som e o silêncio, o movimento e a pausa, a escuridão e a luz, o corpo e o espírito, elementos mobilizados pelos corpos que dançam.
Tensão dos contrários, morte como o desenlace tantas vezes temido, o espetáculo proporciona uma ampliação da consciência sobre a vulnerabilidade e o desamparo, sintetizada no pequeno acordeom. O instrumento, tocado em cena por um dos dançarinos, é a fole expressando a derradeira morada de um sopro vital capaz de verter música, repondo som na vida.
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Libélulas de vidro Diálogos alados: colóquios sobre a morte
com Luis Ferron
Irrequieta, a libélula é um bicho que personifica importantes aspectos atrelados à finitude, no caso, a efemeridade e também a mutação. Com o frenético movimento de suas asas, extravasa toda sua energia experimentada na circulação célere vivida no frenesi do próprio corpo. Tais características – vigor e agitação –, no caso recolhidas da vida selvagem, foram estilisticamente incorporadas ao espetáculo Libélulas de vidro. Composto de quatro dançarinos, apresentado no jardim do Sesc Ipiranga, o trabalho percorre diferentes estados de presença, inclusive provisoriamente transformando a própria feição do local.
Assim, são acrescidos diferentes adereços de cena, como, por exemplo, sacas de folhas secas esparramadas pelos performers por todo o ambiente. O espetáculo traduz a voracidade com que se vive antes do derradeiro golpe, numa forma frenética, vibrante e alegre. A coreografia contemporânea acontece aos olhos do público, numa partitura extenuante, um enérgico empenho de asas que, sem cessar, ainda batem.
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Obituário em vida ou antes da luz no fim do túnel de Aline Santini
Estampada nos jornais de grande circulação, a morte rende também obituários, pelos quais se recontam feitos e fatos marcantes da vida do morto. Gênero de escrita singular, normalmente cunhado por eufemismos, passa em revista o legado para a comunidade de quem faleceu naquela data, como forma de marcar o tempo, a história, e também como memória final de uma existência. Recolhendo
vários desses exemplares retirados de periódico em circulação na capital, a light designer Aline Santini os apresentou no formato de um happening, durante o Ciclo Finitudes. No ambiente, o público podia ler os recortes instalados como um skyline nas paredes do local. Mediado pela artista, o público também foi convidado a deixar anotado qual seria o título do seu próprio Obituário em vida.
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Qual o título do seu obituário hoje? Aline Santini
Acordo, coloco o café para ser feito na cafeteira italiana, abro a porta de casa, avalio o céu e as condições meteorológicas (vou precisar de guarda-chuva, casaco?), sigo até o portão da vila onde moro (que, diga-se de passagem, não fosse o colégio que a ladeia, seria um silêncio sepulcral em plena Vila Mariana, São Paulo); no portão, recolho o jornal depositado diariamente, que eu assino há alguns pares de anos, e volto para casa. Coloco o café na xícara, abro o jornal, dou meu primeiro gole e folheio as primeiras páginas, notícias às vezes vencidas – devido à concorrência desleal da velocidade da internet. Adoro! Leio tudo o que o tempo me permite. Às vezes preciso selecionar para valer o que irei ler, passar os olhos, penso no dia longo, considero e organizo a agenda do dia mentalmente. Nos dias em que tenho o privilégio de usar o meu tempo como quero, a leitura do jornal é cuidadosa, vagarosa e deleitosa.
a todo resto, fazendo vizinhança às notas de falecimento, avisos de missas e exéquias de um modo geral; porém, estes são pagos, os famosos “tijolinhos” que familiares, amigos ou empresas solicitam ao jornal para homenagear o ou a falecida querida. Mas o obituário não é pago. Não é encomendado. É sugerido. Trata-se de um gênero jornalístico literário, uma espécie de short story de não ficção, que é a pura vida, ou melhor, um belo resumo em menos de ¼ de página de jornal. Leva um título, os feitos relevantes em vida e ainda possui autoria. Um jornalista é designado a escrevê-lo e assim o faz, como uma espécie de investigador, entrevistando parentes próximos, amigos, colegas de trabalho. É esta investigação que gera material para colocar em destaque aquele(a) que fez a diferença em vida e cuja história merece ser conhecida por aqueles que não tiveram o privilégio do convívio em vida.
Foi num dia desses que me envolvi com o obituário: localizado no caderno Cotidiano, onde notícias da cidade, dos bairros, das pessoas, peripécias da municipalidade são compartilhadas. Está ali, meio diluído em meio
Um obituário é uma homenagem, um texto curto que se vale de técnica para ser escrito, utilizando, por exemplo, eufemismos para “suavizar” alguma característica menos nobre do homenageado. O que me chamou a atenção
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num primeiro momento foram os títulos, sempre honoríficos. Eu os lia com certa indignação, colocando-me no lugar do finado homenageado e considerando se aquele determinismo fazia jus à vida vivida até ali. “Educadora devota, tirava os estudantes da roça”, “Falava através de pliés e canções”, “Fugiu de casa para não sofrer de amor”. Os títulos, às vezes um tanto reducionistas, me saltavam aos olhos, fazendo-me pensar: e quem agora poderá dizer que não foi assim? Com o tempo, fui me afeiçoando às histórias de vidas ali impressas diariamente e, certo dia, concluí que aquele material era muito rico em informações, poesia, delicadezas, grandiosidades, generosidades e tantas outras qualidades, que resolvi colecioná-lo e há quase três anos tenho este ritual de lê-los e recortálos diariamente, guardando para mim aquela história que não vai virar embrulho para peixe.
A coleção está se estendendo e eu não sei dizer se algum dia irei parar; por enquanto não sei parar de recortar e guardar com o respeito que aquelas histórias merecem e, neste ato, me percebo compreendendo e “lutando” contra o meu fim, como o cavaleiro descrente do filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman. Minha negociação com a morte é, em parte, colecionar estas histórias, assim como tentar ter bons hábitos e ser uma pessoa melhor. O fim é inexorável, o que está em questão neste momento é como chegar lá. As histórias das vidas me fazem pensar muito nisso, me aproximam do assunto “a morte” quase sem que eu percebesse. Fui sendo levada e introduzida de uma maneira bela, sutil, poética e, muitas vezes, bem-humorada ao tema caro por nós – o fim. A coleção dos obituários publicados diariamente no jornal me levou à ideia de expô-la, e compartilhar um sentimento de VIVER, bem e plenamente, e jamais se trair. Na instalação/ performance-atendimento Obituário em vida ou antes da luz no fim do túnel, ambientei uma sala preta com algumas centenas dos meus recortes, e convidava o visitante a escrever o título do seu obituário hoje, ou seja, um convite à vida, a pensar como foi a vida vivida até então, olhando para sua própria história,
seus feitos até ali, até me encontrar em uma sala com um monte de histórias de vida. Um público diverso circulou pela instalação, muitos frequentadores assíduos e ativos do Sesc Ipiranga, sobretudo a terceira idade. Coisas lindas aconteceram; uma delas foi o caso de uma senhora que ficou parada em frente a uma das histórias por um longo tempo e, ao me aproximar, ela me contou que aquela história tratava de seu primeiro professor de literatura. Falou o quanto ele havia sido importante, por ter lhe dado o primeiro livro para ler e lhe mostrado um caminho. Ela me contou outras tantas histórias sobre ele e acredito que tenha ficado feliz em vê-lo homenageado ali. A vida compartilhada ali nos aproximou e aquele recorte de jornal passou a ter outra importância para nós duas. Minha vida profissional é voltada a criar luz, desenhar luz para obras teatrais, de dança, shows, exposições e performances. Faço da luz, comunicação, linguagem. Ter tido a chance de me aproximar e realizar tantas belas obras clássicas e contemporâneas da literatura e da dramaturgia com meu desenho de luz fez-me conhecer histórias de muitas vidas. De Hamlet e Ofélia a Serginho de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues. Histórias e trajetórias de vida com seus cursos heroicos, dramáticos ou, simplesmente, aquele personagem que tem seu destino traçado pelos deuses. Nossas heranças ocidentais de formação de pensamento e de coletividade, para o bem e para o mal. Gostar das histórias e contá-las é o cerne do meu trabalho de criação em iluminação, e é o que também fez com que eu me apaixonasse pelas histórias de vida contadas nos obituários; porque obituários falam, sobretudo, da vida! E eu te convido a pensar, agora, como seria o título do seu obituário hoje.
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Tecendo sonhos com Fabiano Menna
A partir da trama dos fios, em pequenos retalhos de tecidos, os participantes desta oficina foram convidados a costurar vontades, sonhos, expectativas ou pequenas notas biográficas. Durante duas tardes, reportando-se também ao legado de outros artistas plásticos que trabalharam com a forma têxtil, como, por exemplo, Leonilson e Arthur Bispo do Rosário, no Brasil, ou Louise Bourgeois, no
exterior, o figurinista Fabiano Menna propôs a construção de um grande mosaico. O resultado, um manto e uma mortalha, reuniu transformações individualmente entretecidas na oficina. Cartografia feita do presente, costura à mostra, cada tecido compôs outra fenda, fronteira do desejo na vida.
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Ciclo de filmes Escuridão e luz, o cinema acontece como amálgama montado sobre o sucedido, imagem capturada do que se vê. A tela exibe a projeção de outros mundos possíveis. Com sete títulos selecionados entre as cinematografias brasileira, europeia e canadense, o ciclo semanal tocou em diferentes aspectos relacionados à morte e à finitude, como a eutanásia, a doença, a separação, as despedidas, o amor e a perda.
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Sinopses
Morte.
Hanami - cerejeiras em flor
Casal prepara-se para a “grande viagem” não esquecendo as flores, a música, a bagagem: tudo nos mínimos detalhes. Dir. José Roberto Torero. Elenco: Laura Cardoso e Paulo José. 2002. Brasil. 15 min.
Quando Trudi (Hannelore Elsner) descobre que seu marido Rudi (Elma Wepper) tem uma doença grave, ela sugere que ambos visitem os filhos em Berlim, sem contar a eles sobre o estado de saúde do pai. Como Franzi (Nadja Uhl) e Karl (Maximilian Brückner) não dão muita atenção aos pais, eles resolvem partir para o mar Báltico. É quando, subitamente, Trudi morre. Dir. Doris Domie. 2009. Alemanha. 127 min.
E se vivêssemos todos juntos Annie (Geraldine Chaplin), Jean (Guy Bedos), Claude (Claude Rich), Albert (Pierre Richard) e Jeanne (Jane Fonda) estão ligados por uma forte amizade que já dura mais de 40 anos. Assim, quando a memória falha, a velhice mostra sua força e o fantasma da casa de repouso vem assombrá-los, eles decidem viver juntos. O projeto parece loucura, mas a convivência traz velhas lembranças, novas perspectivas e um novo desafio: viver em república com mais de 75 anos. Dir. Stéphane Robelin. 2011. Alemanha/França. 96 min.
Amor Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) são um casal de aposentados apaixonados por música. Eles têm uma filha musicista que vive em outro país. Certo dia Anne sofre um derrame e fica com um lado do corpo paralisado. O casal de idosos passa por graves obstáculos que colocarão o seu amor em teste. Dir. Michael Haneke. 2012. Áustria. 127 min.
A festa de despedida Um grupo de amigos em uma casa de repouso em Jerusalém constrói uma máquina de autoeutanásia, a fim de ajudar um amigo em estado terminal. Quando os rumores sobre a máquina começam a se espalhar, mais e mais pessoas começam a se interessar pela ideia de partir dessa para uma melhor, e o grupo de amigos se questiona se o que estão fazendo é a coisa certa. Dir. Tal Granit e Shayron Maymon. 2014. Alemanha. 95 min.
A despedida Baseado em fatos reais, o filme conta a história de Almirante, senhor de 92 anos, casado, que vive sua última noite com a amante de apenas 37. Ele não pode mais viver sozinho e tem consciência de sua extrema fragilidade física. Sabe que seus dias chegaram ao fim. Sente um estranhamento de se ver no limite ínfimo da vida, impossibilitado de fazer planos e viver esse amor que ignora regras, tradições e a diferença extrema de idade. Em apenas um dia, Almirante vai tentar atar todos os nós que deixou soltos pela vida. Dir. Marcelo Galvão. 2014. Brasil. 90 min.
As invasões bárbaras À beira da morte e com dificuldades em aceitar seu passado, Rémy (Rémy Girard) busca encontrar a paz. Para tanto recebe a ajuda de Sébastien (Stéphane Rousseau), seu filho ausente, sua ex-mulher e velhos amigos. Dir. Denys Arcand. 2004. França/ Canadá. 100 min.
Infantil Festa no céu Conta a jornada de Manolo, um jovem que está dividido entre cumprir as expectativas da sua família ou seguir seu coração. Antes de escolher qual o caminho a seguir, ele embarca numa incrível aventura, que se estende por três mundos fantásticos: o dos Vivos, o dos Esquecidos e o dos Lembrados. Dir. Jorge R. Gutierrez. 2014. Estados Unidos. 94 min.
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Nelson Sargento: Nelson Cavaquinho e Manoel de Barros
As raízes ancestrais da música veneradas na forma do samba, cercado por telúrica poesia, num encontro de anciãos dotados de sua primordial expressão e arte. Assim foi a apresentação do sambista carioca Nelson Sargento, no teatro do Sesc Ipiranga, em homenagem póstuma a outros dois mestres, o poeta Manoel de Barros (1916-2014) e o também sambista Nelson Cavaquinho (1911-1986), com quem Sargento aprendeu a tocar violão. Com direção musical do multi-instrumentista Arismar do Espírito Santo, o espetáculo trouxe
ao palco a força poética de Barros, marcada pelo tema das transformações, além de canções imortais do legado de Cavaquinho, antigas conhecidas do público, como Folhas secas (parceria com Guilherme de Brito, gravada por Elis Regina, em 1973) e A flor e o espinho (esta, com o acréscimo de Alcides Caminha, gravada, entre outros, por Jards Macalé, em 1987). Carismático, Nelson Sargento envolveu o público relembrando composições próprias, caso de Agoniza, mas não morre, além de contar causos da sua convivência com músicos como Cartola e Paulinho da Viola.
Leitura comentada de Elizabeth Costello, de J.M. Coetzee
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com LavĂnia Pannunzio e Jorge Forbes
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“um minuto é tempo o suficiente para morrer”
Para alguns, a morte adquire a forma de uma “grande viagem”. Tal pressuposto carrega consigo a ideia de uma “passagem”, do mundo dos vivos para o reino dos mortos. Nessa transição, segundo algumas mitologias e crenças, existe ora um rio, ora um purgatório, num estado de limbo ou num julgamento final, momento no qual será decidida a morada definitiva do espírito, da alma. Também pode existir apenas uma interdição ou, ainda, nada. É o que enfrenta a escritora australiana Elizabeth Costello, mulher idosa que envelhece. Ela é protagonista do romance que leva seu nome, criação do autor sul-africano J. M. Coetzee, prêmio Nobel de 2003. A personagem, levada ao palco pela atriz e diretora de teatro Lavínia Pannunzio, deve convencer uma junta de juízes, em duas ocasiões, de que é merecedora da transição para um deserto entrevisto, localizado do outro lado de uma fronteira, separada por aquilo que dá nome ao capítulo final do livro de Coetzee, No portão. Costello se situa num plano alegórico e incerto, algo onírico, lacunar e simples. Nunca fica claro se trata-se de sonho, fantasia ou morte. A personagem, que está descobrindo – ou aprendendo – o que há depois, conta apenas com suas próprias palavras. No tribunal, ela é instada a declarar suas crenças, inicialmente por escrito, e depois deve transformar sua escrita em fala, persuadindo os juízes de que, do outro lado do portão está, para todos os efeitos e por direito, se não a sua derradeira morada, o seu destino – ou o que quer que reste ainda dele.
Contudo, ela é convencida de que suas crenças são, por bem, provisórias. “Crenças fixas me atrapalhariam. Mudo de crença como mudo de casa ou de roupas, de acordo com minhas necessidades”, a escritora questiona-se. “Será que vou virar uma instituição?” Após a leitura cênica do texto de Cotzee, fez-se um debate, com a participação do psicanalista Jorge Forbes. O convidado ressaltou que mais importante do que interpretar o texto é deixar “que ele nos interprete”, percebendo como repercute sua construção fabular. Lembrada como “a principal angústia humana”, a morte está no limiar da vida, já que, conforme afirma, “um minuto é tempo o suficiente para morrer”. Um integrante da plateia comentou que as crenças, como a de Costello, podem confortar no luto, mas também “se tornam um terror ao pensar no que de incerto pode haver do outro lado”. Confinada no incerto, querendo descobrir o que há do lado de lá, questionando o que foi durante toda a vida – uma ficcionista, uma escritora –, Costello conta com apenas um lado: o da sua própria escrita vivida.
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Tem, mas acabou! com Cia As Graças
Com uma linguagem lúdica, a peça de teatro Tem, mas acabou! aborda a finitude para crianças. Delicada, recorrendo a diferentes linguagens e recursos de cena, como o teatro de sombras, de bonecos, a mágica, as parlendas e também os jogos de palavras, notadamente com o uso de metáforas ligadas à morte, a peça recupera tanto passagens do imaginário popular quanto trechos do livro Contos de enganar a morte, do escritor Ricardo Azevedo. A partir da negociação com a morte, em situações cotidianas, a peça trata da compreensão do tempo, em seus ciclos
sucessivos, abordando ainda a saudade e o desaparecimento. Além disso, discutem-se em cena outros aspectos ligados à finitude, à existência e à vida, como o legado do que se herda e a transformação cíclica da natureza. No final, público e elenco celebram no saguão da unidade, fora do teatro, quando é revelada a memória totêmica dos mortos, a partir de objetos recolhidos, como arquivos. As crianças, de diferentes idades, comparecem atentas e interessadas, descobrindo e inventando desde cedo a alegria participativa do teatro.
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Morte.
Exibição do curta e debate
com José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
O artesanato do tempo vazio, enquanto a morte não vem, está no centro do curta homônimo dirigido e roteirizado por José Roberto Torero. Nele, um casal interpretado por Paulo José e Laura Cardoso prepara detalhadamente as exéquias, cuidando de tudo o que envolve a própria morte, desde o funeral, o caixão, a lápide, até as divisões e eventos sucessórios ligados à herança patrimonial e os bens materiais. Tudo ensaiado, autores da despedida. No entanto, falta apenas aquela que não vem: a morte. A sensação é que, quando o filme termina, o cinema começa, entrelaçado com a vida que se faz presente. Após a exibição, o público participou de um animado bate-papo com o diretor e com Marcus Aurelius Pimenta, escritor e jornalista, autor de diversos livros em parceria com Torero.
Na plateia, o testemunho de quem “não se acostuma nunca com a ideia da perda e de morrer”. A efemeridade, a impermanência e a reposição constante da presença da morte em sua perene lembrança foram alguns dos aspectos levantados pelo público em sua participação. Já Torero lembrou a repercussão de obras de arte que ensinam a morrer, encontrando o sucesso exatamente ao depositar sua voz narrativa nos que voltam do mundo dos mortos, caso, por exemplo, de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Pimenta, por sua vez, ressaltou o quanto as perspectivas e abordagens sobre a morte mudaram ao longo do tempo, de tal forma que se tornaram até tema de um colóquio como o daquela tarde. “Porque pensar na morte pode dar outros sentidos à vida”, reiterou Torero, destacando que “o dia em que você morre é, na verdade, o dia em que você acaba de morrer”.
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John, George e a moeda de um real Marcus Aurelius Pimenta
“Nasci numa família de presbiterianos. Entre outras coisas isso significa que eu era eterno. O espectro da morte não me assustou, portanto, na primeira infância e início da mocidade. Autoridades adultas nas quais eu tinha confiança me garantiam: Marcus, você não tem fim. E eu acreditei. Como a maioria dos fieis, me lembro de ter sonhado muitas vezes com a vida no alémtúmulo. Reencontrar pessoas queridas nas nuvens, não ter problemas de sobrevivência, apostar corrida com os anjos. Por que a morte seria um problema? Sentia até um ar de superioridade em relação aos amigos, sempre tão apavorados diante da finitude. Não entedia a consternação e muito menos o luto. Morte? Não se preocupem, é só uma passagem do vale de aflições para a eternidade despreocupada e feliz. Por que vocês continuam chorando? Devo admitir que no fundo eu tinha desconfianças. Há uma inclinação natural da mente para aceitar determinados fatos e rejeitar outros. A minha, sabe-se lá porque, sempre teve dificuldade em lidar com o absoluto. De todo modo não foi difícil sufocar as suspeitas. Eu havia nascido num meio, sido criado nele e queria me sentir aceito. Ponto final. Isso funcionou por alguns anos. Mas um dia, para bem e para mal, essa crença veio a óbito. As bases confortáveis da certeza se foram e abriu-se uma perspectiva de ignorância e temor. Como assim: não sou um eleito? Com que direito me tomam a coroa da glória? Volta e meia, secretamente, até mesmo o terror do Inferno me assombrava. Não foi a melhor fase da minha vida. Mas também não foi a pior.
A fé faz nascer no coração dos crentes um misto de insignificância, perante a ira de Deus, e prepotência, por ter sido um dos escolhidos. Talvez eu tenha tido a sorte de a semente da insignificância ter frutificado com mais força (os prepotentes sofrem mais). No final das contas não foi tão difícil entender que não somos mais do que um passageiro punhado de átomos. Devo um agradecimento aos Beatles. A dois deles, pelo menos - aos que, por coincidência, já morreram. A canção God, de John Lennon, sacudiu os alicerces do que restava da minha autoimportância. A canção Be here now, de George Harrison, inspirou um novo movimento da mente, menos lacrimoso em relação ao passado e menos ansioso em relação ao futuro. O humor também fez sua parte. A leitura de autores que lançam sobre a vida um olhar menos lisonjeiro me fez rir das nossas grandes preocupações. Swift, Sterne, Machado de Assis e o seriado Mary Tyler Moore, entre outros, ensinaram-me a desprezar a infatuação e a me contentar com miudezas. Passei a me sentir abençoado quando encontrava uma moeda na rua, mais ainda se fosse de um real. Sei que o instinto de sobrevivência me fará lutar por cada minuto, mas, tirando isso, tenho conseguido lidar com a desimportância. No processo venho ganhando leveza, descontração e o sentimento de estar sendo honesto com minhas impressões. Não trocaria a finitude de hoje por aquela vida eterna de antes. Agora, se houver outra...”
O “.” não é “?” nem “...”, é ponto final 48
José Roberto Torero
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“Ela seria o fim. E as religiões eram coisas que a gente inventava para diminuir nosso medo da morte.”
No fundo, no fundo, acho que tudo o que a gente faz quando adulto é para esquecer que vamos morrer. Podemos nos enganar com religiões que prometem a vida eterna, com o sucesso, com a riqueza, lendo a página de esportes e pensando que isso é que importa (aliás, tomara que o Santos vença seu próximo jogo), lendo a página de economia e pensando que isso é que importa, lendo a página de política e pensando que isso é que importa, ou lendo os classificados sexuais e pensando que isso é que importa. Mas, no fundo, no fundo mesmo, a gente só quer se distrair para não pensar na morte. Durante algum tempo eu escolhi um jeito bem burro de fazer isso, que foi escrevendo e dirigindo o curta Morte. (com um discreto ponto final no título). Na verdade, ele era parte de um longa-metragem. Como não conseguia fazer o filme, decidi esquartejar o projeto e fazê-lo em pedaços. O primeiro foi este curta, que já tem uns quinze anos de vida. Não saberia o que falar sobre ele, então roubei um resumo que encontrei na internet, de autoria de Ally Cenourinha: “Morte. desenvolve com muito humor a relação de um casal que se prepara para a morte. Eles preparam tudo: a escolha da lápide no cemitério, as flores, os caixões, a música do velório, a divisão e organização dos bens e até o ensaio de como seus amigos vão se comportar. Porém o mais difícil parece ser esperar a própria morte chegar”. Eu só mudaria a última frase, trocando umas duas palavras. Ficaria assim: “Porém, o mais difícil parece ser escolher o que fazer até a própria morte chegar”.
Saindo do curta e indo para a dita cuja, comecei a pensar nela com 12 anos, quando morreu meu avô. Achei aquilo muito injusto e burro. Daí me interessei pelo assunto e fui ler o que as religiões pensavam sobre a morte. Descobri que todas acreditam que a morte não era o fim. Mas pensavam em diferentes pós-fins. Metade dizia que haveria uma reencarnação da alma e a outra metade acreditava na ressurreição. Obviamente, só uma delas poderia estar certa. Ou seja, metade da humanidade estava errada sobre o que haveria depois da morte. Pois bem, com o tempo comecei a pensar que as duas metades poderiam estar erradas, e que não haveria nada. Ela seria o fim. E as religiões eram coisas que a gente inventava para diminuir nosso medo da morte. Então desisti das religiões e fui para os filósofos. As respostas eram bem melhores, mais inteligentes, mais pensadas. Simpatizei com uns alemães corajosos que diziam que uma das obrigações do homem era aceitar sua finitude e decidir o que fazer enquanto ela chegasse. Mas esta turma era muito séria e eu nunca conseguia entender tudo o que eles diziam. Então acabei trocando os filósofos pelos humoristas, como Woody Allen, que disse: “Morte? Sou contra”; e como Luís Fernando Verissimo, que disse uma verdade incontestável: “Morte? É o fim...”.
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O direito Ă morte: agenciamentos sobre o corpo com Luciana Dadalto, Elca Rubinstein, Maria Goretti e Camila Appel
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A invenção da civilidade, tal qual vivida hoje no Ocidente, terá sido uma forma de afastar ou de administrar a morte? Mediada por instâncias jurídicas e médicas, a morte também determina consequências no cotidiano individual e da coletividade. Para pensar em temas como os cuidados médicos paliativos, o direito à morte e o testamento vital, o debate O direito à morte - agenciamentos sobre o corpo contou com a presença de Maria Goretti, médica e coordenadora do programa de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (HSPE-SP), Luciana Dadalto, advogada, doutora em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, e Elca Rubinstein, economista sênior do Banco Mundial, especialista em gerontologia e envelhecimento, além de mentora do Death Café Sampa, espaço de discussão sobre a morte. A mediação ficou a cargo da jornalista Camila Appel, mestre em Antropologia e Desenvolvimento, autora do blog Morte Sem Tabu, da Folha de S.Paulo.
Inseridos no derradeiro capítulo da biografia pessoal, os cuidados paliativos têm por premissa proteger a pessoa do sofrimento e da vulnerabilidade, restituindo-lhe a dignidade, emancipando-a para a autonomia e as escolhas pessoais diante do fim iminente. O acompanhamento é feito por uma equipe multidisciplinar, formada tanto por médicos e enfermeiros quanto por terapeutas ocupacionais e psicólogos. A ideia, segundo Maria Goretti, é, “mais do que olhar para a doença, reconhecer a vida. A questão da boa morte passa pela boa vida”. Para isso, mais do que ser submetido a uma junta médica, o paciente deve se perceber “reunido com ela”, numa perspectiva de acolhimento e hospitalidade, explicou a médica. No entanto, a vida biológica é distinta da vida biográfica, feita das vontades, escolhas e renúncias. Nem sempre quem enfrenta a morte está em plenas condições de determinar ou decidir o passo seguinte. “O testamento vital dirime conflitos entre pacientes e seus familiares e a equipe de tratamento”, afirmou Luciana Dadalto.
O chamado testamento vital é construído a partir de uma deliberação entre a pessoa e um médico de sua confiança. No documento constam a resolução de pedidos específicos – por exemplo, sobre o velório e o sepultamento, entre outras considerações –, úteis na medida em que ainda não há uma legislação específica no país. “É a oportunidade de dar ao paciente o direito de decidir mesmo quando ele não puder manifestar a sua vontade”, enfatizou a advogada. Mas, e na prática, como funciona? “Fazer o testamento vital foi transformador porque aceitei a minha finitude, quem eu era”, testemunhou a economista Elca Rubinstein. A decisão, segundo conta, surgiu após participar de um curso sobre o envelhecimento, no qual descobriu novas formas de viver a vida. “Foi quando revelei os meus cabelos brancos. Passei por uma descoberta do meu futuro.” Após um debate interno e um diálogo franco e aberto com os filhos, Elca contou que resolveu antecipadamente esse capítulo e pode, “entre agora e a minha morte, fazer o que eu quiser para mim”. Já a mediadora Camila Appel comentou como é possível transformar os restos mortais. As cinzas provenientes da cremação podem virar, por exemplo, diamantes, fogos de artifício ou discos de vinil sob encomenda. Tudo depende do que foi designado no testamento vital ou em decisões de pessoas próximas ao morto.
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Testamento vital: eu fiz o meu! Elca Rubinstein
Testamento vital está entrando na moda! Até alguns anos atrás, ninguém pensaria em fazer um testamento vital: não se fazia necessário. As pessoas ficavam doentes e morriam, e, portanto, não precisavam de intérpretes que tomassem decisões importantes quando o doente não estivesse mais em condições de comunicar suas diretivas às equipes de cuidados médicos. Isso era antes. Hoje, com o desenvolvimento da medicina e da tecnologia, pessoas doentes permanecem vivas por muito mais tempo, muitas vezes em condições bastante fragilizadas, e frequentemente com dificuldades de comunicação, seja por terem perdido a
consciência da realidade, seja por problemas de audição, visão ou fala. Numa situação como essa, sem ter preparado o seu texto vital, você ficará à mercê das decisões dos seus herdeiros e dos seus médicos, sem a possibilidade de fazer escolhas mais condizentes com o que você gostaria que acontecesse. Foi pensando nisso que decidi fazer meu testamento vital. Fiz, e estou muito satisfeita com o resultado. E decidi compartilhar o meu processo, explicando as razões por trás da minha decisão e elaborando sobre as rodas de conversas que se abriram ao longo do caminho.
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As razões Eu identifico quatro razões principais: 1. Razões físicas Para poder fazer meu testamento vital, eu fiz uma análise cuidadosa de vários cenários, classificados em diferentes tipos de doença que podem surgir, e identifiquei critérios sobre o que eu quero e o que eu não quero que façam comigo. Se a doença não alterar minha lucidez e consciência, essa análise tornará mais fácil minha tomada de decisão num momento difícil entre a vida e a morte. E, caso eu não esteja lúcida e consciente, já deixo tudo por escrito para que meus filhos e meus médicos possam nortear suas decisões.
2. Razões filosóficas Muitas pessoas não querem tomar contato com assuntos difíceis, relacionados com a morte. Preferem deixar para resolver depois, quando for a hora, enfrentando o risco de acabar não dando tempo para fazer nada na hora H. Outros alegam que não vale sequer a pena pensar no assunto com antecedência porque, quando chegar a hora, tanto faz o que vai acontecer. Minha filosofia é outra. Eu acho que vale a pena estar preparada para situações difíceis que possam estar à minha espera. E quero poupar-me de um fim de vida sem dignidade. Estou empenhada em quebrar um tabu, em mudar o paradigma, de forma a poder falar da minha morte sem medo.
3. Razões logísticas Existe hoje no Brasil um instrumento e uma legislação que permitem a qualquer pessoa deixar por escrito as diretrizes sobre os últimos momentos de sua vida. Na Europa e nos Estados Unidos, onde a conversa sobre morte está
mais avançada, existem vários instrumentos para a elaboração de um testamento vital. No Brasil, o assunto é recente e o instrumento disponível é relativamente vago e desarticulado. O testamento vital brasileiro é uma descrição do que o paciente quer ou não quer, que pode ser escrita por ele ou pelos seus médicos, e que fica arquivada no prontuário do paciente. Eu optei por um instrumento diferente, disponível nos Estados Unidos, muito mais detalhado, e que fica em poder do paciente e daqueles que ele nomeia como seus interlocutores, incluindo seus médicos. Esse documento chama-se Five Wishes e tem valor legal na maior parte daquele país. Por ser um documento com muitas perguntas bem claras e específicas, pareceu-me mais fácil usá-lo para articular minhas ideias do que se eu tivesse que partir de uma página em branco.
4. Razões motivadas pelo impulso Talvez a razão mais importante que me levou a preparar meu testamento vital tenha sido o fato de essa tarefa ter sido lição de casa obrigatória no curso de Gerontologia que fiz nos Estados Unidos três anos atrás. No início, fiquei bloqueada. Eu não tinha respostas para o que era perguntado no documento. O tempo passava e eu não me animava a completar a tarefa. Mas, pouco a pouco, fui criando coragem de enfrentar o monstro imaginário e, diligentemente, ganhei a batalha.
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As conversas À medida que me dedicava a responder às perguntas difíceis que estavam no documento dos Five Wishes, fui derrubando barreiras, abrindo portas e estabelecendo rodas de conversa. A primeira conversa foi comigo mesma. Precisei enfrentar o tabu de que falar da minha morte poderia me trazer um mau agouro. Toda vez em que eu tentava falar desse assunto com outras pessoas, a resposta era um sonoro “Deus que me livre”. Foi só no diálogo comigo mesma que comecei a visualizar os cenários e pude definir o que queria, o que não queria e o que não precisava ser definido antecipadamente. Percebi que, assim como faço seguro do meu carro, tomando todas as providências para o caso de um acidente, assim vou identificar as providências para o caso de um acidente com a minha saúde ou a minha vida. A segunda roda de conversa que se estabeleceu foi com meus filhos, nomeados meus interlocutores caso eu não tenha consciência, lucidez ou meios para expressar minhas vontades. Tenho uma filha e dois filhos e tive que fazer as conversas separadamente, já que as reações dos três foram bastante diferentes. Um deles se abriu para essa discussão e achou tudo muito interessante; outro resistiu muito até conseguir estabelecer o diálogo; e o terceiro aceitou minhas decisões sem achar necessário entabular uma conversação sobre o assunto. Ao cabo de alguns meses, todos se disponibilizaram e assinaram o documento e, para minha surpresa, continuaram a conversa, levando a discussão para tópicos não explicitados no testamento vital. Paralelamente às conversas comigo e com os filhos, estabeleci um diálogo com alguns de meus médicos. Eu precisava entender melhor os cenários e saber quais seriam as situações em que valeria a pena estabelecer minhas diretivas antecipadas. Fui aprender sobre doenças e tratamentos e sobre ética
médica para identificar as situações que mereceriam ser incluídas no testamento vital. E, finalmente, iniciei recentemente minha última roda de conversas, com minha advogada, que contratei para me ajudar a obter uma autorização judicial para fazer valer as diretivas que compõem meu testamento vital. Ela conseguiu isso para o seu testamento e estamos confiantes de que vai conseguir para o meu também. O processo, iniciado em 2012, não foi fácil nem foi rápido; mas valeu a pena! Pus tudo por escrito e sinto-me com o dever cumprido de ter tomado as devidas providências: entreguei uma cópia do documento a cada um dos meus filhos, coloquei uma cópia no meu prontuário no consultório de cada um dos médicos que me ajudaram no processo, e guardei o original no meu congelador, num saquinho plástico lacrado, caso a empregada tenha que chamar uma ambulância de urgência. Aproveitei o embalo para fazer um rol de dos and donts sobre outras questões relacionadas com os momentos finais da minha vida, assim como uma lista com as informações mais importantes, com o intuito de facilitar as coisas para meus filhos quando chegar a minha vez. E agora posso viver minha vida, dormir sossegada e construir o futuro que tenho pela frente. Aleluia!
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Testamento vital Luciana Dadalto
O testamento vital é um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitada de manifestar livremente sua vontade. Tratase de uma espécie de diretiva antecipada de vontade, gênero de documentos sobre manifestações de vontade para fins de saúde. Surgiu nos EUA na década de 1960, sendo denominado living will. No Brasil, assim como em outros países de língua latina, a expressão inglesa foi traduzida para testamento vital em vez de desejos/vontades em vida, termo considerado mais adequado, razão pela qual é muito comum a confusão do testamento vital com o testamento patrimonial, apesar de serem institutos díspares. Enquanto o primeiro é tema afeto aos direitos de personalidade, o segundo é afeto ao direito sucessório.
É comum a confusão do testamento vital com outros conceitos atinentes à temática da morte digna. A eutanásia é a abreviação da vida do paciente a pedido deste, por compaixão em virtude do seu estado de saúde. Já a ortotanásia é utilização de cuidados paliativos com o objetivo de aliviar o sofrimento do paciente, sem interferir no curso natural da doença. A distanásia, por sua vez, é o prolongamento da vida biológica do paciente com a utilização de aparato artificial. No Brasil, a eutanásia é entendida como crime – apesar de não haver tipo penal específico – e também como infração ética na Medicina (artigo 41 do Código de Ética Médica), portanto, caso haja disposição sobre eutanásia no testamento vital, ela será tida por não escrita. A ortotanásia, apesar de não ser tratada em nenhuma norma federal brasileira, é entendida como prática lícita, reconhecida pelo Poder
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Judiciário brasileiro no julgamento da Ação Civil Pública n. 2007.34.00.014809-3, proposta contra a resolução do Conselho Federal de Medicina 1805/06, decisão está que já transitou em julgado.
do paciente, que permitirá dizer se o desejo do paciente é lícito ou não. Por essa razão, recomenda-se que seja redigido de forma detalhada, evidenciando a quais contextos clínicos as decisões tomadas de referem.
A distanásia também não é tratada em nenhuma norma federal brasileira, mas é entendida como infração ética na Medicina (artigo 41 do Código de Ética Médica). Contudo, é prática socialmente aceita, pois é amparada na nobre tentativa de salvar a vida do paciente
Recomenda-se ainda que seja redigido antes de a pessoa ter qualquer diagnóstico, ou seja, antes de estar doente, afim de que não haja possibilidade de contestação da validade de sua vontade. Não há obrigação de lavrar escritura pública no Cartório de Notas, mas essa lavratura é recomendada, pois dá mais segurança jurídica ao documento.
O testamento vital é um documento de manifestação de vontade e seu conteúdo deverá amoldar-se ao ordenamento jurídico do país em que for aplicado. Para tanto, deve-se ter em mente que não é o fato de o paciente pedir para manter ou suspender um tratamento que define se isso é eutanásia, ortotanásia ou distanásia, mas, sim, a análise diante do caso concreto da importância desse tratamento para o quadro clínico
Enfim, sabe-se que o testamento vital é uma conquista civilizacional, um direito de todo cidadão que precisa ser garantido e respeitado por todos, profissionais de saúde, familiares e amigos, pois é preciso lembrar que mesmo no fim da vida ainda há vida e esta pertence exclusivamente ao paciente.
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Autonomia no pós-morte: o que você quer ser quando morrer? Camila Appel
A autonomia sobre o próprio corpo é uma discussão que permeia diversas esferas. No contexto da morte, a possibilidade de escolhermos o que será feito com nossos restos mortais está relacionada ao crescente movimento da quebra de um tabu. A religião não se coloca mais como algo pré-determinado e de conceitos inquestionáveis, mas abre possibilidade para certa autonomia. Assim, quem sabe, podemos personalizar nossa ideia de morte, recortando informações de várias fontes, misturando dogmas, religião com filosofia e ciência, e permitindo a expressão de desejos pessoais, sem o rótulo de profano ou desrespeito que existia antigamente.
Nesse cenário, cabe a pergunta: o que você quer ser quando morrer? Essa é uma brincadeira para introduzir as diversas opções de destino dos restos mortais. A leveza é importante para falar sobre morte. Não precisamos de um clima mórbido, ou nos deixarmos levar pela cultura latina do “mau agouro”, como se falar sobre morte pudesse, de certa forma, atraí-la.
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“Quando morrer, você pode virar: joia rara, astronauta, fogos de artifícios, árvore, vinil, obras de arte, peças de museu, legado acadêmico e outras coisas mais.” Confira abaixo: Joia rara
Fogos de artifícios
Uma técnica relativamente simples transforma cinzas, que têm carbono na composição, em cristais e diamantes. Uma empresa brasileira, Brilho Infinito, realiza com cabelos também, sugerindo como presente de batizado, por exemplo. A Algordanza, na Suíça, já se especializou em diamantes com cinzas. Os valores começam em R$1.800 (0,05 pontos, cor champanhe) até R$14.000 (0,70 pontos, cor champanhe). O Crematório Vaticano, no Paraná, faz pingentes e esculturas de cristais coloridos. Mylena Cooper, sua diretora, conta que já fez um sapo verde para um cliente que tinha o apelido de sapo.
Heavenly Stars Fireworks é uma empresa inglesa especializada em fazer fogos de artifícios com cinzas. Os fogos podem desenhar figuras no céu, de acordo com os desejos da família, e fazem parte de um tributo, de um ritual, ao morto. Ou seja, são inseridos dentro de um contexto de despedida.
Astronauta Já imaginou virar astronauta depois da morte? A Nasa oferece um serviço de envio de cinzas ao espaço. A empresa especializada, que intermedeia esse serviço, é a norte-americana Celetis. Já fizeram 13 lançamentos, cada um levando várias urnas. Um deles, em 2009, levou as cinzas do criador de Star Trek Gene Roddenberry e sua esposa. Os custos partem de US$1.000 e dependem do tipo de lançamento: no mais barato, as cinzas passeiam ao redor da Terra e voltam para a família; nos mais caros, partindo de US$12.500, as cinzas são lançadas na órbita da Terra, na órbita ou superfície da Lua ou, então, no espaço profundo.
Estrela do mar Alguns crematórios brasileiros, como o Crematório Vaticano e empresas de aluguel de lanchas, como Náutica Mar Azul, levam cinzas para o mar. Você vai na lancha com seus familiares e dispersa as cinzas em uma urna biodegradável, de preferência. Não é recomendado jogar os restos diretamente no mar, porque o vento pode trazê-las de volta para o barco ou para o rosto das pessoas, o que não parece nada agradável.
Árvore Essa é uma tendência. As cinzas podem ser misturadas à semente de sua árvore predileta e plantada em um cemitério ou na sua própria casa. Muitos cemitérios no Brasil começaram e divulgar essa ideia, com bosques plantados por seus clientes, como o Horto da Paz.
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Peças de museu
A artista plástica brasileira Claudia Eleutério inventou uma técnica única no mundo, batizada de arte picto-crematória. Claudia mistura cinzas à tinta e pó de ouro e pinta um quadro da preferência da família. É mais comum ela receber pedidos de autorretratos, mas pode fazer qualquer réplica, como por exemplo, O beijo, de Gustav Klimt. Claudia diz: “Eu transformo a arte em uma urna cronológica, preservando a memória do ente querido em um local seguro e ao mesmo tempo em uma linda obra de arte”.
Outra maneira de preservar o corpo é a plastificação. Ela foi criada por Gunther Von Hagens, e é possível doar o corpo por meio de seu site, para ser plastificado e usado em escolas de anatomia ou em exposições como a Corpo Humano: Real e Fascinante. No Brasil, a exposição foi polêmica e muitos se surpreendiam em ver o corpo humano do avesso, de forma tão real. Ainda existe uma técnica chamada mumificação, criada pelos egípcios. A Summum (EUA), uma ONG americana, apresenta-se como a única instituição especializada em mumificação moderna no mundo. A mumificação de pessoas custa US$67.000 e a de um gato de 4kg, por exemplo, US$4.000. Algumas agências funerárias americanas já oferecem essa opção, em parceria com a Summum.
Vinil Uma possibilidade pouco explorada para o destino das cinzas da cremação é prensá-las em um disco de vinil – também conhecido como Long Play em inglês, por isso a sigla LP. A empresa inglesa And Vinyly é a mais conhecida do ramo, se não a única. O pacote básico conta com a produção de 30 discos e sai por £3.000 libras. Cada disco dura 24 minutos, 12 de cada lado. Extras incluem ilustrações feitas sob encomenda, templates musicais criados para acompanhar uma gravação de voz e músicas originais desenvolvidas especialmente para o cliente. A empresa também aceita animais. E o que se grava no LP? Você pode escolher uma playlist de músicas, gravar um depoimento seu sobre a história da família, casos engraçados, um testamento falado ou escolher não gravar nada – para apenas escutarem o som produzido pelas cinzas do vinil passando pela agulha da vitrola. A empresa And Vinyly aceita encomendas internacionais e pode enviar para o Brasil. É possível fazer o pedido pelo e-mail indicado no site da empresa.
Legado acadêmico Essa é uma opção nobre e necessária. Você pode doar seu corpo para ciência. Na cidade de São Paulo, há um programa oficial de doação voluntária de corpos para estudos de anatomia, do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que habilita os estudantes da área da saúde da USP em anatomia humana. Mesmo com a solicitação formalizada, a família deve notificar o falecimento. Se não houver esse aviso familiar, a doação não ocorrerá. O corpo será estudado por alunos das áreas de saúde da USP. Será dissecado para mostrar aos estudantes sua composição, formas, texturas, a localização de cada tecido, órgãos, e os tamanhos e as variações entre corpos. Ele poderá ser cortado, mas não desmembrado. Um corpo chega a ser estudado de 50 a 70 anos. Não há remuneração envolvida.
61 Sobre a doação de órgãos O tabu e a falta de informação prejudicam os números, e a quantidade de doações de órgãos realizadas acaba sendo inferior às necessidades brasileiras. Segundo a ABTO, Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, hoje, no país, existem mais de 30 mil pessoas na fila à espera de um transplante. A lei brasileira previa a doação presumida (automática) até 2001. A partir de março de 2001, com a lei nº 10.211, ela passou a depender da autorização da família. A mudança teve como pano de fundo o dilema enfrentado pelos médicos, que ficavam em uma situação delicada no trato com a família. Além de um impasse jurídico, já que aconteceram casos de processos por familiares descontentes com a doação realizada com fundamento na lei da doação automática. No caso da doação automática, chamada de presumida, se a pessoa atende às condições necessárias à doação, ela será automaticamente uma doadora. E deverá deixar por escrito o desejo de não o ser. Já a não presumida, como é hoje, só permite a doação caso ela seja explicitamente autorizada pela família. Para poder doar órgãos, a pessoa deve ter tido uma morte encefálica, que é a definição legal de morte e refere-se à total e irreversível parada de todas as funções do cérebro. A decisão sobre o destino de nossos restos mortais será feita, em última instância, pela família. Mas, se for importante para você ter o direito a essa autonomia, vale a pena conversar com o familiar e incluir seus desejos em um testamento patrimonial ou testamento vital. Mesmo se preferir deixar para os familiares decidirem, essa discussão me parece um bom ponto de partida para falarmos sobre um assunto tão delicado. Ela é, no fundo, uma oportunidade para refletir sobre a vida.
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A morte em diferentes culturas
com Ailton Krenak, Christine Greiner, Acácio S. Almeida Santos e Edgard de Assis Carvalho
Variações culturais em torno da morte e suas adjacências, como o luto, a iminência do fim e as representações sociais foram algum dos temas abordados durante o debate que reuniu o escritor, ambientalista, professor Doutor Honoris Causa e líder indígena Ailton Krenak, a professora livre-docente do departamento de Linguagens do Corpo da PUC – SP Christine Greiner e Acácio Almeida, professor da Universidade Federal do ABC e coordenador do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros da UFABC. Na ocasião ocorreu também o lançamento do livro Sobre a morte – invariantes culturais e práticas sociais, pela Edições Sesc, organização de Maurice Godolier e tradução de Edgard de Assis Carvalho, professor titular de Antropologia da PUC-SP e coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade – que versou a obra em parceria com Mariza Perassi Bosco.
Durante o debate, apresentou-se a morte não como uma condição oposta à vida, mas ao nascimento. Os ritos funerários podem, dessa maneira, ser tomados como laboratórios para o entendimento da organização social da vida. Assim, é possível questionar qual o lugar que a morte ocupa a partir das referências locais de uma dada comunidade, inscrita em sua própria tradição. Se os ancestrais são aqueles que estipulam os princípios reguladores de uma dada sociedade, é preservando-se o sentido mítico – ou aurático, isto é, impregnante desde as memórias – que se estabelece a forma com que será vivida e assimilada a sua morte. Tanto assim que, “quando o velho morre, entre os Agni Morofoé, da Costa do Marfim, oeste da África, é como se uma biblioteca se queimasse”, destacou Acácio Almeida.
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Sobre a morte – invariantes culturais e práticas sociais Lançamento do livro – Edições Sesc
Sobre a morte – invariantes culturais e práticas sociais, livro lançado no evento, pela Edições Sesc, reúne diferentes perspectivas sociais e geográficas sobre a morte e seus ritos funerários. Composto de artigos independentes, conta com um olhar multidisciplinar sobre o fenômeno, apontando para diferentes abordagens sobre a espiritualidade e o ingresso no espaço dos mortos. Numa sociedade poliforme como a brasileira, é preciso levar em conta nossas distinções culturais e de costumes. Durante o debate, Ailton Krenak ressaltou a importância de se considerar aspectos como o direito a organizar a vida a sua maneira. Também destacou a necessidade de se preservar cultos e ritos das diferentes etnias indígenas do país, sem que percam suas características ao entrarem em contato com a cultura ocidental.
Daí a importância de estar conectado aos ancestrais, garantindo a continuidade das memórias coletivas em suas tradições, compartilhando a existência dos diversos povos. “Qual o valor civilizatório da morte num mundo que quer sempre viver mais, inserido no contexto regulado pelos modos do mercado?”. Com essa proposição, a professora Christine Greiner recorreu a artistas nipônicos que responderam aos horrores da Segunda Guerra e seus desdobramentos na sociedade japonesa nas décadas seguintes. Durante o debate, também discutiu-se a necrofilia, a violação do cadáver ou seu uso como objeto sexual, um fenômeno que pode ter influências da exploração midiática e espetaculizaração da morte.
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Nas sociedades africanas os mortos não estão mortos Acácio S. Almeida Santos
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Muito embora a morte permeie todas as etapas da existência, raramente ela é aceita como um evento natural nas sociedades africanas. A explicação para sua ocorrência está ligada à intervenção de forças capazes de desorganizar os elementos vitais constitutivos da pessoa. Ela não é a destruição de tudo, já que a pessoa comporta elementos imperecíveis, mas implica a destruição do todo, separação e novo destino de cada elemento constitutivo.
Preste atenção Mais às coisas que aos Seres À voz do Fogo, fique atento, Ouça a voz das Águas. Ouça através do Vento A Savana a soluçar É o Sopro dos ancestrais Os que morreram jamais se foram Eles estão na Sombra que se ilumina E na sombra que se enegrece. Os Mortos não estão sob a Terra Eles estão na Árvore que balança, Estão na Madeira que geme, Estão na Água que dorme, Estão na casa, estão na multidão Os mortos não estão mortos.
Sendo a desorganização um dos traços primordiais da morte, e dada a necessidade de se reestabalecer a organização, sem a qual estaria comprometida a própria existência da sociedade, cabe à consciência subjetiva, por meio de aparatos culturais reveladores da dimensão histórica do ser humano, esta árdua e quase impossível tarefa: superar a desordem. Por isso o funeral, conceito que se articula em torno de certas cerimônias que ocorrem antes e depois do sepultamento, reveste-se de uma grande complexidade e importância. Para os Agni Morofoé, da Costa do Marfim (África do Oeste), ele constitui um meio não somente de honrar o morto, mas também de revelar à sociedade a riqueza que ele construiu e preservar a honra da família. Com o funeral, a comunidade, além de confirmar socialmente a morte biológica, inaugura o status ontológico espiritual do morto, ensinando e lembrando a todos os membros da sociedade o seu projeto de ancestralidade. Os mortos nos ensinam que o segredo da morte está em apreender o mistério da vida e, muito especialmente, da pessoa.
1.
Sopro, poema de Birago Diop. Diop nasceu no Senegal em 1906. Foi escritor, poeta e manteve estreita relação com o movimento da Negritude, apresentando importantes contribuições no universo dos contos da literatura oral africana.
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A morte entre os povos indígenas no Brasil Ailton Krenak
São mais de 300 povos indígenas vivendo suas diversas culturas no Brasil, desde o Sul onde vivem os Kaingang e Nordeste com dezenas de povos de tradição tupi, passando por Mato Grosso, Goiás e seguindo para a Amazônia, com muitas culturas distintas entre si, todos têm sua própria maneira de tratar a vida e seu fim. Alguns têm nos ritos funerários uma das maiores expressões de sua tradição. Para os povos indígenas que vivem hoje no Brasil, aqueles que ainda não foram impedidos de manter algumas de suas tradições, por imposição religiosa dos colonizadores, com adoção dos ritos cristãos, um dos funerais ou ritos funerários mais conhecido é o Kuarup realizado no Xingú, pelos Kamaiurá, de onde vem o pajé Sapaím, que faleceu em 2017, depois de ter feito a relação do mundo das tradições indígenas com a medicina ocidental ou ciência médica. Pela
tradição de seu povo Kamiurá, no próximo ano será feito o seu Kuarup de acordo com decisão de sua família e clã a que pertenceu. Foi esse pajé Sapaím que ficou mundialmente conhecido depois de intervir na cura do cientista Augusto Ruschi, um naturalista que acabou sendo envenenado por um sapinho muito raro quando pesquisava a floresta na Amazônia. No Xingú tanto os Kamaiurá, Yualapiti ou Kuikuro, Kalapalo, Mehinako fazem o Kuarup para seus mortos a cada ano, transformando-se no evento mais celebrado pelos vários povos que compartilham a vida em um mesmo território, mas com diferentes tradições. Têm em comum esse ritual, no qual celebram a vida de seus membros que deixaram o mundo dos viventes entre os seus iguais para se tornarem espíritos na natureza. Uma morte natural entre os seus é costume dos índios. Evitam o hospital e, mesmo quando precisam de atendimento médico, fazem de tudo para retor-
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nar para casa, a aldeia onde podem ser assistidos por seus curadores, rezadores ou pajé. Muitos vivem até a avançada idade, e na velhice já preparam a si e seus familiares para a despedida que deve ser bem acolhida, pois sabem do ciclo de vida e morte que partilham com todos os seres naturais. Sabem que nos primórdios, quando os humanos e espíritos tinham a vida sem fim, a morte foi introduzida no mundo dos vivos por descuido de um homem que quebrou o resguardo imposto pelo Criador Mavutsinim quando celebrou pela primeira vez um Kuarup com o propósito de dar vida a seis troncos representando seis mortos. Sua tentativa frustrada de ressuscitar os mortos tornou-se o rito funerário onde são despedidos os que morrem a cada ciclo entre uma festa e outra a cada ano. Desde então, os índios acreditam que através do Kuarup as almas dos mortos vão se libertar e viver em outro mundo. Os Guarani acreditam que, para morrer bem, a criatura de Nhanderú deve seguir o nhanderekó, o caminho verdadeiro ou virtuoso. Sabem que vivemos em um mundo imperfeito e buscam, nessa passagem aqui na Terra, avistar o caminho para a Terra sem Males ou IvyPiterã. Buscam as visões da Terra sem Males nos seus rituais e cantos sagrados, invocando a coragem, simplicidade e devoção ao Criador. Morrer é transcender desta existência cheia de percalços e alcançar a vitória em direção ao lugar onde os jardins da criação perfeita ainda recebem os filhos de Nhanderú. A morte é uma passagem entre mundos, viver é manter-se integro e em estado de atenção do guerreiro. Ser saudável é um estado de equilíbrio físico e espiritual, sem ansiedade ou expectativas exageradas sobre ter posses, os Nhandeva preferem viver sem bens materiais, nada acumulam. Vivem de maneira coletiva e solidária, celebrando a natureza como manifestação do criador. Todos os povos originários (ou indígenas) têm aceitação simples da finitude ou ciclo de nascer e morrer. Sabem que as sementes precisam ser lançadas na terra para germinar, ser vida outra vez. Sabem da corrente de energia que é mantida pelos ancestrais que vieram antes de nós que aqui estamos. Morrer é uma grande esperança de celebrar o encontro com os Encantados, para os Pankararú, por exemplo. Pois são espíritos que se fazem presente no
ritual do Prayá, onde buscam visões e inspiram seus cantos de cura e bem-estar aqui na Terra. Assim é também para o Krenak, que recebem de seus ancestrais os cantos e ensinamentos para seguir vivendo aqui na Terra dos homens até poder habitar as paisagens dos Marét, seres benéficos que transitam entre o mundo dos que vivem com seus espíritos ancestrais.
O Funeral Bororo Segundo Novaes (citado por Carvalho, 1994, p. 46), o Ritual Funerário Bororo é o único que permite o encontro da sociedade Bororo como um todo. Nele estão presentes todos os vivos e todos os mortos que tenham parentes vivos. Nesse tempo todos os membros da aldeia tomam parte nos inúmeros ritos que compõem o funeral: a confecção de ornamentos como arco e flechas, do cesto funerário, preparação dos trajes cerimoniais, caças e danças, entre outros. Também é o tempo em que os mais velhos (os anciãos Bororo) transmitem seus conhecimentos para os mais jovens, ensinando os cantos, as ornamentações e as coreografias dos ritos. É importante notar que na cultura Bororo a morte não é tida como um fim, mas apenas como passagem para uma nova vida. Dessa forma, é um prenúncio de um renascimento, é uma garantia de sobrevivência em um novo mundo que se inicia na aldeia dos mortos, com Itubore ou Bokororo. O ritual fúnebre Bororo configura-se, fundamentalmente, como “a encenação da viagem em que o aroe/cadáver, transformado ritualisticamente e culturalmente em aroe/alma, parte do mundo terreno, passa pelo estágio transformador e purificador até chegar a sua morada definitiva: a aldeia dos mortos” (CARVALHO, 1994, p.14). Hoje temos muita literatura sobre esse assunto, e mesmo os escritores indígenas começam a trazer visões próprias de suas diferentes tradições sobre o tema da vida como uma passagem entre mundos. Os mundos dos vivos e os mundos daqueles que findaram a sua viagem terrena em busca de um lugar que sempre almejaram em vida.
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A metáfora da morte nas artes do corpo no Japão Christine Greiner
Esta foi uma das primeiras observações que o viajante e escritor Francesco Carletti anotou em seu diário de viagem quando chegou ao Japão, no final do século XVI. Três séculos depois, o jornalista Lafcadio Hearn – conhecido também como Koizumi Yakumo – confirmou que se tratava de um lugar peculiar e que para se aproximar dele, além de conhecer os vivos, era preciso consultar os seus fantasmas. Há inúmeras histórias a esse respeito. Não apenas na literatura e na poesia, mas nas artes visuais e nas artes do corpo, onde a presença da morte e seus fantasmas é reincidente e, muitas vezes, fundamental. No teatro nô, por exemplo, conhecido como o teatro clássico japonês, a presença daqueles que já morreram, e que voltam para resolver assuntos pendentes, é quase sempre o
coração da dramaturgia. Em muitas peças concebidas pelos precursores Kan’ami e Zeami, entre os séculos XIV e XV, o personagem principal conhecido como shite apresenta-se inicialmente para o coadjuvante waki (quase sempre um monge ou pescador) como um espectro “disfarçado” de ser vivente. Em um dos momentos mais importantes da performance, este personagem revela a sua verdadeira identidade, mudando de máscara e trajes para dançar e cantar a sua história. No bunraku, que é uma modalidade de teatro de bonecos, os protagonistas são os bonecos e o movimento nasce da conexão entre os três manipuladores (corpos vivos) e o corpo do boneco (corpo morto). Não se trata de uma relação convencional entre sujeitos e objeto, mas de um atravessamento que faz do vivo ficcionalmente morto e do morto um ator em movimento.
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“Os japoneses são diferentes de todos os outros povos porque não temem a morte.”
Outro exemplo que traz a morte como ponto de partida dos processos de criação é a dança butô, concebida por Tatsumi Hijikata no final da década de 1950. Neste caso, Hijikata chegou a afirmar que o corpo que dança butô é um corpo morto que se constitui a partir de um estado de exaustão, desprovido de seus dispositivos de controle – sejam estes dispositivos a imagem do Imperador, as instituições de arte, o cérebro ou a noção de um eu autossuficiente. Alguns estudiosos atribuem esses entendimentos, que valorizam a impermanência e os estados de metamorfose, como uma consequência evidente do budismo. De fato, a concepção de corpo no Japão nasceu de dois sistemas de pensamento importados da China e da Índia, respectivamente a Medicina Chinesa e o Budismo Mahayana. Assim, muitas qualidades identificadas nas concepções de tempo, presença e nas ambivalências entre as noções de vida e morte emergiram desses modos específicos de conceber os processos vivos. No entanto, seria imprudente dizer que há uma relação direta entre a religião, a ciência e as experiências artísticas. Não se trata de um efeito ou resultado, mas de reverberações da percepção do corpo como sistema aberto e complexo. O que me parece instigante em algumas experiências artísticas no Japão são os procedimentos singulares para constituir
o corpo - os modos descontinuados, inacabados, impermanentes e transubjetivos que fizeram da noção de mesmo (ou eu), movimentos e não substâncias. Ao aproximar tais ideias de autores como William James, Charles Peirce, Gilbert Simondon, Francisco Varela, Henry Atlan e tantos outros, percebe-se que há em todos eles um modo de questionar algumas certezas usualmente chamadas de paradigmas ocidentais. Neste sentido, alguns artistas japoneses colaboraram com o debate explicitando possibilidades para tornar irrelevantes as dicotomias entre natureza e cultura, vida e morte, ser humano e Universo. A implicação política dessa discussão, presente particularmente nas experiências radicais dos anos 1960 e 70, tornou-se evidente no questionamento das políticas identitárias. Por meio de suas performances, os artistas mais subversivos reafirmaram o caráter processual do corpo em vez de defender modelos nacionalistas e práticas neoliberais que foram se tornando cada vez mais presentes, sobretudo a partir da década de 1980. Nestes casos, a morte e os estados de crise profunda emergiram como metáforas da vida e, algumas vezes, como a possibilidade de transformação da vulnerabilidade em ação.
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A morte em diferentes culturas Edgard de Assis Carvalho
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“Como a morte é concebida e vivida em outras sociedades que não a nossa, ou foi em outras épocas que não a nossa?”
A razão dessa pergunta seria uma situação comum, sobretudo nas sociedades ocidentais: nelas as pessoas têm vivido por um tempo cada vez mais longo e muitos morrem não de “velhice”, mas de uma série de enfermidades consequentes à idade avançada. Acrescenta-se a isso o fato de que, no decorrer da velhice, as pessoas idosas se encontram solitárias ou muito isoladas e terminam suas vidas em casas de repouso ou em ambiente hospitalar. Cuidadores, parentes próximos, amigos se incumbem de prevenções, cuidados corporais, zelos, à espera do desfecho irreversível. Nenhum historiador, nenhum antropólogo tem respostas definitivas para perguntas tão atuais como essas. Daí surgiu a ideia de Maurice Godelier de examinar materiais de diversas sociedades – 14 ao todo – para que os saberes sobre as representações da morte fossem sistematizados e analisados. Trata-se de um amplo conjunto de representações da morte e dos mortos. Cinco narrativas tratam da Grécia e da Roma antigas, do Judaísmo, do Islã e da Idade Média Cristã e são, de fato, contribuições de historiadores. Duas se referem à Índia e à China, dois continentes que oferecem aos antropólogos a imensa riqueza de tradições escritas, acumuladas durante dezenas de séculos e sobre as quais eles fundamentaram seus dados de campo. As outras sete foram escritas por antropólogos, cujas análises baseiam-se quase exclusivamente em pesquisas de campo,
frutos de uma prolongada imersão no seio da sociedade que escolheram estudar. Duas dentre elas referem-se à Ásia: os uzbeques de Samarcanda, na Ásia Central e o povo tai budista do Sudoeste Asiático. A primeira enriquece nosso conhecimento sobre as transformações do Islã contemporâneo em uma sociedade pós-soviética, a outra analisa uma sociedade na qual o budismo ao mesmo tempo se opõe e se combina ao taoísmo, ou seja, ao confucionismo. As cinco últimas sociedades estudadas referem-se ao povo Ngaatjatjarra da Austrália, aos povos Baruya e Sulka da Melanésia, aos Tikuna e Miraña da Amazônia. Esse é o conteúdo básico de Além da morte: invariantes culturais e práticas sociais, publicado pelas Edições Sesc. Em primeiro lugar, como o próprio organizador reconhece, 14 sociedades é um número muito pequeno em relação às milhares de sociedades que se sucederam no decorrer da história e das quais um grande número ainda coexiste nos dias de hoje nos cinco continentes. O livro, enfatiza o organizador, não é uma enciclopédia e não pretende eclipsar nenhuma das múltiplas obras sobre a morte e sobre os ritos funerários publicadas no Ocidente. Os relatos deixam entrever a existência de alguns invariantes comuns a todas elas. Esses invariantes parecem constituir uma base comum de representações e práticas a partir das quais foram elaboradas múltiplas variações, cujas
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razões seria necessário investigar, em princípio no contexto sociológico e histórico onde nasceram.
Nas análises, os especialistas adotaram uma grade de perguntas comuns, invariantes, mesmo para a sociedade mundializada e líquida em que vivemos: Como as sociedades explicam a si próprias que a Humanidade seja mortal? Ela era mortal na origem dos tempos? Ela se tornou mortal um dia, mas por que razão? Em consequência de quê? Como elas representam o próprio ato de morrer, de “exalar o último suspiro? ” Quais são as condutas socialmente prescritas diante de um indivíduo que agoniza? As circunstâncias nas quais a morte sobrevém afetam o status do morto aos olhos dos vivos e, com isso, as relações, as condutas dos vivos diante desse morto? Como se trata um morto se esse morto é um parente, um amigo, um inimigo ou um estrangeiro? De que modo essas sociedades se desfazem do cadáver? Por sepultamento, cremação, exposição aos animais, mumificação? O que se faz com as cinzas e/ou os ossos etc.? Em que lugares os mortos são sepultados, incinerados, expostos e eventualmente abandonados? Quais os ritos que conduzem à separação (definitiva ou temporária) dos vivos e dos mortos? Os funerais são seguidos de um período de luto necessário para que os vivos que perderam um dos seus retornem lentamente à vida que levavam antes? Quem fica de luto? E se toda forma de luto implicar a conservação da memória do morto (ou da morte), sob quais formas e por quanto tempo essa memória é guardada?
Se a morte não é o fim da vida, para onde vão os mortos depois de sua morte? Que formas de existência eles passam a levar? Essas são as principais perguntas dirigidas ao vasto material utilizado na pesquisa. A intenção fundamental era descobrir se, no meio de todas as diferenças entre essas concepções da morte e dos mortos, oriundas de sociedades tão diversas, umas sem casta, sem classes e sem Estado, outras, ao contrário, divididas em classes ou castas hierarquizadas e submetidas a um poder de Estado, era possível encontrar invariantes comuns. Invariantes são esquemas de pensamento aos quais se encontram associadas normas de conduta, práticas e instituições que prolongam esses esquemas e extraem deles seu sentido. Existia, sim, uma base comum a todas as concepções da morte, para além de suas diferenças ou por meio delas. Segue abaixo a lista e a natureza desses invariantes: A morte não parece estar ligada aos começos da Humanidade. Para os gregos, a morte, a velhice, as doenças permaneciam encerradas na caixa que Pandora havia trazido consigo quando veio habitar entre os seres humanos. A caixa continha os males que Zeus desejava infligir à Humanidade para se vingar do roubo do fogo praticado por Prometeu. Apesar das recomendações de Prometeu, seu irmão Epimeteu, apaixonado pela bela Pandora, empenhou-se em abrir a caixa. A partir de então, os homens foram condenados a trabalhar, a morrer, a se unirem às mulheres, a se casarem para se reproduzir. Na narrativa do Gênesis, Adão e Eva foram expulsos do Paraíso por haverem tentado se apropriar do fruto da Árvore do Conhecimento, que os teria feito iguais a Deus. Eles também foram condenados a trabalhar, a morrer e a se casarem para se reproduzir. Para o povo Tikuna, tribo indígena que vive na Amazônia, em sua origem, os seres humanos eram imortais. Viviam em um estado de não mortalidade denominado ü-une. Um dia, porém, uma jovem que participava dos rituais da puberdade respondeu à voz e às palavras de um estranho, apesar de ter sido proibida de fazê-lo. Esse estranho era um espírito, o espírito da Velhice, que propôs que a jovem e ele trocassem suas peles. Ela aceitou e, desde então, os seres humanos perderam seu
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estado de ü-une, de não mortalidade, e passaram para o estado de yunatu, o estado mortal.
As religiões, ou o que se designa assim no Ocidente, combinam uma visão do Universo – uma cosmologia – com as normas morais e sociais de conduta diante dos outros, de si e do mundo. É preciso explicar por que, há milênios, os povos que conheciam a natureza ao seu redor, que nela encontravam os meios materiais de continuar a existir e que também viam as plantas, os animais e os humanos nascerem e morrerem constantemente em torno deles. Sem serem deuses, os humanos viviam uma vida paralela e quase semelhante à dos deuses ou dos espíritos da natureza a quem se atribui o dom de jamais morrerem verdadeiramente. Em nenhum dos 14 sistemas cosmo-religiosos comparados a morte se opõe verdadeiramente à vida. Ela se opõe ao nascimento. A morte é o que disjunta, separa de maneira irreversível o que estava unido e que havia feito nascer um ser vivo. No decorrer dessa disjunção, “alguma coisa” deixa o corpo e logo o corpo começa a apodrecer, enquanto essa “coisa” parte e começa a levar uma outra forma de existência. O que então é essa “coisa” que se separa definitivamente do corpo e continua a existir, mas sob outra forma? Em geral, ela é invisível aos humanos, mas pode se manifestar sob a forma de um espectro, de uma voz, pode aparecer nos sonhos, ou mesmo tomar emprestado o corpo de um ser não humano, um animal, por exemplo. Essa coisa é o que se denomina “alma”. O que é a alma? É o que faz o corpo viver e o deixa na hora da morte. A alma é ao mesmo tempo uma realidade habitualmente invisível e intocável e um princípio, um princípio “vital”. A alma não é necessariamente única e exclusiva no corpo, como afirmam as religiões monoteístas. Um corpo pode ser habitado por dez almas como acreditam os chineses, por 32, na crença dos tai budistas. Para os chineses, um ser humano é composto de um corpo e de dez almas. Três são almas sutis e luminosas e dependem do Yang, sete são densas e sombrias e dependem do Yin. Na hora da morte, as almas se separam. As almas sutis e luminosas irão habitar a placa votiva,
representativa do morto que será enterrado, e serão conservadas por seus descendentes no altar doméstico ou da linhagem familiar até que reencarnem em um deles. As almas sombrias e densas irão acompanhar o corpo no túmulo. Quanto ao destino das almas sutis que sobrevivem à morte, elas podem se transformar em espectros, mortos maléficos dos quais se tem medo e que é preciso enxotar, ou mortos benéficos, ancestrais a quem se deve cultuar por devoção e para atrair sua proteção. Alguns deles poderiam até mesmo se tornar deuses. Vamos escolher uma outra sociedade, o povo Ngaatjatjarra do Grande Deserto Australiano, para novamente demonstrar, desta vez nos caçadores-coletores, que a morte não se opõe à vida, mas ao nascimento. Para esse povo, o nascimento de um ser humano insere-se no processo de reprodução do cosmo. Esse processo foi modelado no tempo das origens por entidades míticas, cujos vestígios constituem os sítios totêmicos pelos quais apenas os homens são responsáveis após sua iniciação. Essas entidades míticas estão associadas a espécies naturais, animais ou vegetais, bem como a espíritos-crianças que eles produzem e que vivem ao redor dos sítios totêmicos marcados por pedras sagradas. Para que as crianças nasçam do ventre de suas esposas, os homens devem celebrar um rito no sítio totêmico pelo qual são responsáveis. Isso tem por efeito atrair um dos espíritos-crianças que habitam esse sítio e de reproduzir as espécies naturais associadas ao herói mítico. Após ter se passado por uma dessas espécies, o espírito-criança penetra na mulher e a dá vida a um feto gerado de seu sangue menstrual. De certa forma, a criança reproduz o ancestral totêmico, pois é a encarnação de um espírito-criança e de uma espécie natural produzidos por esse ancestral. Esse princípio não é o único a produzir um ser humano. É necessário ainda que um segundo rito se complete, ele consiste na transmissão, imediatamente após o nascimento da criança, do nome e da personalidade de um ou de uma de seus ascendentes (dentre seus avós), que se ocupam do bebê em seu retorno à comunidade e lhe insuflam o sopro da vida. Consequentemente, o ser humano é produto da combinação de dois componentes, um princípio vital, representado por seu totem de concepção, e que o conecta a
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um ancestral mítico, e o espírito que um de seus ascendentes lhe transmitiu.
O que significa morrer para o povo Ngaatjatjarra? Trata-se da dissociação do princípio vital e da personalidade do indivíduo. Após sua separação do corpo, o princípio vital, ou seja, o espírito totêmico proveniente do ancestral mítico, retorna para o estoque disponível de espíritos-crianças. O espírito pessoal herdado de um outro ser humano desaparece se o defunto ou a defunta não o tiver transmitido ritualmente a um recémnascido. Nesse caso, morrer é a consequência de uma dissociação, de uma separação irreversível, mas se isso explica como se morre, não explica por que se morre. Para o povo Ngaatjatjarra, nenhuma morte é natural. A morte é necessária, mas sempre tem uma causa humana. São os espíritos canibais que a provocam, toda vez que são solicitados pelos seres humanos. O corpo cristão nasce da união sexual de um homem e de uma mulher que juntos apenas geraram um feto que cresce no ventre da mulher. Um feto, contudo, ainda não é uma criança. Para que o feto se torne uma criança é preciso que uma alma seja introduzida nele. Essa alma é criada por Deus e inserida no corpo do feto quando for vontade de Deus, pela ação do Espírito Santo (pois o Deus dos cristãos é um deus em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que são um só). Uma vez encarnada, a alma será manchada pelo pecado original cometido por Adão e Eva e transmitido à criança por seus pais em seus relacionamentos sexuais. De modo geral, em todas as religiões a morte não é o fim da vida, isso porque alguma coisa do morto subsiste após sua morte, o destino daquele que sobrevive a ele (uma ou diversas “almas” ou princípios vitais) não é o mesmo se a morte for concebida ou vivida em uma religião tribal, como as do povo Tikuna ou do povo Sulka, ou a partir de uma religião de Libertação, que livra o homem do sofrimento e da impermanência das coisas e dos seres, como o budismo (que de filosofia se transformou em uma religião da salvação, como são o cristianismo e o islamismo).
Em qualquer sociedade, as condutas sociais apropriadas diante de um moribundo são prescritas. Seja quando se trata de proibir que os parentes próximos e amigos manifestem sua dor e sua aflição na presença do agonizante, como é o caso na China, na Índia, ou entre os adeptos do budismo tai na Birmânia, seja, ao contrário, quando todos têm o dever de manifestar sua dor e de suplicar ao moribundo que permaneça entre os seus (Baruya). Quando a pessoa morria, as sociedades se confrontavam com uma dupla necessidade, a de se livrar do cadáver e a de separar o morto do mundo dos vivos, pois sua alma, ou almas, subsistiam após seu falecimento. Esse duplo objetivo era realizado por meio dos ritos denominados funerários. Eles precediam, acompanhavam e sucediam os funerais, momento em que os vivos se separavam (e separavam a sociedade como um todo) de seus mortos. Existem mortos bons e maléficos. Os bons são aqueles que não voltam para assombrar os vivos e prejudicá-los. Os maléficos incumbem-se disso. Há diversas maneiras de se livrar do cadáver. Na Índia, por exemplo, as cinzas são dispersadas nos rios sagrados, principalmente no Rio Ganges. É possível também, como ocorre em inúmeras sociedades, a realização de segundos funerais. Quando as carnes do falecido já estão decompostas, os ossos que restam são recolhidos e depositados no forcado de uma árvore da floresta pertencente ao clã do morto, como acontece entre o povo Baruya. Pode-se também juntá-los para colocá-los no ossuário de um cemitério. Na Índia, em razão da prática generalizada da cremação, não existem cemitérios, apenas alguns mausoléus destinados a mortos importantes. Na Europa medieval e cristã, os mortos eram enterrados em um cemitério, geralmente adjunto à Igreja Paroquial. Na China os mortos também eram enterrados, mas seus túmulos ficavam dispersos entre as terras da família etc. Na Mongólia, ainda hoje, os mortos são enterrados em um cemitério, mas sem qualquer marca no terreno que permita localizá-los. Existem por toda parte relatos das relações de correspondência socialmente definidas e codificadas entre condutas de luto e de parentesco. Na China, essa codificação
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manifestava igualmente, e de forma direta, a relação entre parentesco e poder político por meio da instituição imperial dos cinco graus de luto, literalmente, os “cinco tipos de vestimenta”, wufu. Diversos códigos imperiais, dentre os quais os primeiros remontam a obras rituais antigas, como os Li, redigidos na segunda metade do primeiro milênio antes de nossa era, estabeleciam a exata duração do tempo no qual o luto devia ser observado e o tipo de vestimenta que era aconselhável usar. Na Índia, os enlutados têm a cabeça raspada e devem tomar banhos rituais para se livrarem lentamente das impurezas do cadáver. Durante a primeira fase do luto, a família do morto é proibida de preparar os próprios alimentos. Vizinhos a alimentam e um Brâmane lhe prepara pratos especiais. Os negócios pessoais do morto são banidos da cidade, e durante o ano que se segue nenhum casamento e nenhuma festa podem ser celebrados ali. No aniversário da morte, a família oferece uma ceia aos Brâmanes, o que encerra seu luto e demonstra que esses Brâmanes são obrigatoriamente os intermediários entre os vivos, os ancestrais e os deuses. Entre os gregos ortodoxos, no terceiro e no nono dias após o sepultamento, a família do morto leva um prato de trigo cozido e o coloca sobre o túmulo. A cada vez, o prato utilizado para transportar o alimento é quebrado. No 40º dia, reza-se uma missa e uma oferenda bem mais rica é preparada e levada. O luto prolonga-se por três missas, a primeira celebrada um mês após o falecimento, a segunda após um ano e a última três anos depois. O fato invariante é que a morte de um ser humano próximo por laços de parentesco, ou por outros tipos de laços, obriga um certo número de pessoas a ficar de luto durante um certo tempo, ao fim do qual podem voltar a viver como os outros membros de sua sociedade, mas não necessariamente como viviam antes do falecimento dessa pessoa. Em resumo, quer os cadáveres sejam reduzidos a cinzas, conservados ou dispersados, quer sejam sepultados ou expostos, a alma ou as almas que os animavam sempre os abandonam e devem partir para começar uma nova forma de existência. Entre o povo Baruya, os falecidos
vão para a morada dos mortos. Para alguns clãs, esse lugar é imaginado como uma cidade situada no interior da Terra, para outros, como uma morada nas estrelas. Nos dois casos os mortos vivem ali uma vida semelhante à que levavam quando estavam vivos, mas dessa vez sem doenças, sem morte, em resumo, uma vida em uma espécie de paraíso sem fim. Para o cristianismo, a morte assume contornos mais complexos. Isso porque o próprio Deus, personificado por seu filho Jesus, morreu em uma Cruz para redimir a Humanidade de seus pecados, permitindo assim que os que têm fé nele, e que quando vivos obedeceram aos seus mandamentos, um dia possam se encontrar no Paraíso, sentados à direita do Pai. Às ideias de Ressurreição dos corpos e de Julgamento Final, comuns às três religiões do Livro, associa-se a do sacrifício de um Deus pela salvação da Humanidade. Comparemos agora as diferenças entre os destinos pós-morte de um Baruya. Segundo as leis da tribo, o morto Baruya chega à morada dos mortos e, tenha ele cometido crimes ou tenha se conduzido bem durante sua vida, irá viver dias felizes na cidade dos mortos e nunca mais irá passar por doença ou sofrimento. Se não pagou por seus crimes enquanto estava vivo, não os pagará após sua morte. Em sua existência após a morte ele não será julgado e não ressuscitará em seu corpo. O que as religiões da libertação e as da salvação têm em comum é a ideia de que o fim dos sofrimentos e/ou a justiça não pertencem a este mundo e que se existirem será apenas além desta vida, após a morte. Depois que cada um de nós tiver sido julgado por seus atos, a Humanidade poderá usufruir desse estado. A ideia da existência de um Deus único, que julgará os vivos e os mortos, iria ser retomada por Maomé, que se declarou o último dos profetas depois de Jesus. Ele rejeitou a ideia de que Jesus era Deus e filho de Deus. Rejeitou também a ideia de um Deus único, imanente em três pessoas. Assim como os cristãos, ele afirmava que a palavra de Deus se dirigia a toda a Humanidade e que o caminho da salvação estava aberto a todos aqueles que se convertessem à verdadeira religião, a do islã.
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Uma série de invariantes pode esclarecer melhor essa problemática:
O primeiro invariante é o postulado de que a morte não é o fim da vida, que a morte não se opõe à vida, mas ao nascimento e que, ao se oporem, nascimento e morte estão ligados um ao outro, formam um sistema ou fazem parte de um sistema. O segundo invariante é o de que o nascimento seria a conjunção de diversos componentes do indivíduo e que a morte consistiria na disjunção desses elementos. O terceiro invariante entre os elementos unidos no nascimento e separados na morte existe sempre um ou vários que sobrevivem e que irão começar uma nova forma de existência. O elemento que resta é normalmente invisível e é o que se designa por termos como alma, espírito etc. Esse componente, que pode ser singular ou plural, tal como as 32 “almas” dos tai budistas, e que se separa do corpo após a morte, precede o nascimento do indivíduo e é inserido a partir do exterior no feto que se desenvolve no corpo de uma mulher. Por essa razão, em todas as sociedades as relações sexuais entre um homem e uma mulher não bastam para gerar uma criança. É necessário que agentes externos, ancestrais, deuses, ou Deus intervenham para “animar” o corpo do feto e transformá-lo em um corpo humano completo e que respira. A alma ou as almas, porém, não são o sopro da vida. O sopro da vida é interrompido com a morte. A alma ou as almas continuam a viver, mas sob outra forma. A alma revela-se como um princípio de vida, um princípio vital. Pelo fato de a morte não ser concebida como o fim definitivo da existência de um indivíduo, no decorrer de seus derradeiros momentos de vida, seus parentes próximos devem ter diante dele uma conduta socialmente prescrita. Uma vez confirmado o falecimento, após um tempo (mais ou menos longo) é preciso se desfazer do cadáver e separá-lo definitivamente do mundo dos vivos. O modo de se desvencilhar do cadáver, qualquer que seja ele, obedece a condutas individuais e coletivas ritualizadas.
São os ritos funerários que precedem, acompanham e sucedem os funerais. Depois que o cadáver foi tratado segundo os costumes, um certo número de pessoas, que tinham relações de parentesco ou outros tipos de laços com o morto e que os tornavam próximos dele, irão guardar luto, ou seja, irão deixar de viver como viviam antes do falecimento, irão se isolar do resto de sua sociedade por um tempo mais ou menos longo e manifestar aos olhos de todos o que significou para eles esse desaparecimento. Todas as sociedades imaginam que os mortos, após sua morte e após um tempo mais ou menos longo, no qual continuam a não querer deixar seu antigo lar, sua família, sua cidade, se dirigem para um lugar que é a morada habitual dos mortos, no qual irão prosseguir sua existência sob uma outra forma. Mas se os vivos não cumpriram corretamente os ritos funerários e os rituais do luto, o destino pós-morte do defunto pode ficar comprometido. Por isso, o cumprimento rigoroso dos ritos é duplamente necessário para os vivos e para os mortos. Se os ritos não são respeitados, corre-se o risco de transformar os mortos em mortos “maléficos” que voltarão para assombrar e prejudicar os vivos. Esses invariantes poderiam ser o esboço de um inventário de representações compartilhadas da morte e das ações que os vivos devem realizar em resposta à morte de um dos seus. Constituem uma espécie de base comum para as diversas elaborações culturais em face da morte. Quais são as variações mais importantes a serem consideradas? O morto irá ressuscitar ou não após a morte? 1.
Se o morto ressuscitar, será no mesmo corpo, no corpo de um (uma) de seus descendentes, contribuindo com isso para fazê-lo nascer, ou reencarnará em outros seres humanos ou outras formas de existência (hinduísmo, budismo)?
2.
O morto será julgado após sua morte pelos seus atos, cometidos enquanto estava vivo, e mesmo por aqueles que teria cometido em uma vida precedente? É um Deus que o julga?
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3.
Ao sair de seu julgamento e segundo o peso de seus méritos e deméritos, de suas boas ações e de seus pecados, o morto estará destinado a viver eternamente no Inferno ou no Paraíso ou deve recomeçar uma vida nova para aumentar seus méritos até o momento em que, finalmente, poderá alcançar o mundo dos deuses e participar de Bramam (hinduísmo) ou desaparecer no Nirvana (budismo).
Tudo se passa como se, desde que a Humanidade existe, ela tivesse inconsciente e conscientemente negado a morte, tivesse feito com que a morte fosse mais aceitável, menos temida se não fosse o fim definitivo da vida, mas, sim, o início de uma outra vida, de uma outra forma de existência para os seres humanos. A afirmação invariante de que a morte não se opõe à vida, mas ao nascimento, encontrada em todas as sociedades e todas as culturas, constitui sempre um elemento-chave do que denominamos religiões. Trata-se da expressão consciente, da formulação pelo pensamento na consciência e por meio da consciência, da negação da morte como fim definitivo de uma vida. Por sua própria universalidade, essa negação não pode ter sua fonte senão nas profundezas inconscientes da alma humana. Como a morte é inevitável, essa negação e sua aceitação ambivalente manifestam a capacidade humana de imaginar mundos que ultrapassam o mundo em que os homens vivem cotidianamente, conferindo sentido a ele. Ninguém jamais viu realmente uma alma sair de um corpo, nem dois anjos puxarem a alma do corpo pela ponta dos dedos (islamismo), no entanto, na Índia, a labareda azul que sai do crânio do defunto quando o principal membro da família de luto lhe aplica um golpe de bambu, não pode ser para o hindu senão a alma que deixou o corpo em meio às chamas que envolvem o cadáver. É preciso acreditar nisso para poder ver além da aparência das coisas. Os mundos imaginários das religiões não são produtos de uma Humanidade ainda na infância. Eles não se dissiparão automaticamente com o progresso das “luzes” do conhecimento e os benefícios da educação. Eles são testemunhas do esforço permanente dos homens para
enfrentar seus limites, conjurar seu medo diante da morte e esperar por um mundo melhor, no qual a injustiça e o sofrimento terão sido vencidos. Utopias certamente, mas que obrigaram os homens a se inventarem. Não há, entretanto, nenhuma necessidade de se afirmar, como Kant, que a imortalidade da alma “é um postulado da pura razão prática, o que eu entendo como proposição teórica que, como tal, não pode ser comprovada”, mas que é necessária se a Humanidade deseja avançar rumo a um “bem soberano”1. A Humanidade pode se esforçar para melhorar sua existência e a existência de todos seus membros, não apenas a dos grupos humanos sempre minoritários, sem por isso ir ao encalço de um bem soberano e ser obrigada a conferir a cada um dos seus uma alma imortal e uma outra vida após a morte. Ao entrelaçar transdisciplinarmente história, religião, filosofia e antropologia, Maurice Godelier nos leva a entender, desvendar, problematizar esse acontecimento-limite para humanos de todos os tempos. Como afirmou Jean-Pierre Vernant, a morte é objeto incessante de produção de mundos imaginários com seus ritos e práticas institucionalizados, trabalho simbólico e imaginário que o pensamento humano elaborou sobre o real com o intuito de recuperar o tempo perdido e repensar a finitude de seu próprio destino. O enunciado de Heráclito – “Viver de morte, morrer de vida” – revela-se um operador simbólico de suma importância nesses tempos sombrios de hipermodernidade comandados por tentativas criogênicas e prolongamentos inúteis de sofrimento e dilaceramento.
1.
KANT, Immanuel, in Critique de la raison pratique. [1788]. PUF: Quadrige, 1993, p.132, Livre II, chap. 2, § 4, tradução de François Picavet. [Edição Brasileira: Crítica da razão prática, edição bilíngue: tradução Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003].
Fichas técnicas Os corvos
Morte, [a]terra
Direção Luis Arrieta e Luis Ferron Intérpretes Luis Arrieta e Luis Ferron Projeto de luz e operação Mauro Martorelli Edição de trilha eletrônica e operação de som Teo Ponciano Arranjo para piano e violoncelo Pedro Assad Músicos Pedro Assad (piano), Thiago Vilela (violoncelo) Tambores Almir Jesus de Almeida (Tata Ybadan), Danilo Luango de Almeida (Tata Dassazume) e Ricardo Souza. Todos do Templo de Cultura Bantu Redandá. Figurino Fause Haten Voz em off Fátima Silva Registro Fotográfico Clarissa Lambert Produção Núcleo Corpo Rastreado
Coreografia Rubens Oliveira Elenco Fernando Ramos, Rafi Souza e Rafaela Alencar
Fino fio Idealização Maria Eugênia Almeida e Flora Poppovic Elenco Maria Eugênia, Flora Poppovic, Alexandre Ribeiro, Matheus Prado e Alencar Martins Direção Cristiano Meirelles Direção musical Alexandre Ribeiro Criação musical Alexandre Ribeiro, Alencar Martins, Cristiano Meirelles Desenho de Luz Marisa Bentivegna Cenário e figurino Eliseu Weide Gerenciamento executivo Joca Paciello Produção Fernanda Vilela
Libélulas de vidro Direção e composição Luis Ferron Elenco Andreia Yonashiro, Daniela Dini, Daniel Fagundes e Luis Ferron Composição de som e luz Hedra Rockenbach Produção executiva Núcleo Corpo Rastreado
Nelson Sargento Direção, arranjos, guitarra e contrabaixo Arismar do Espírito Santo Elenco Nelson Sargento (voz), Bia Goes (voz), Edson Montenegro (voz/performance/poesias), Agenor Oliveira (violão/voz), Alexandre Ribeiro (clarinete), Henrique Araújo (cavaquinho), Ronaldo Mattos (percussão), Samba Sam (percussão)
Sarau musical canto livro Jean Garfunkel (violão e voz), Joana Garfunkel (voz), Pratinha Saraiva (flautas e bandolim) e Pichu Borrelli (teclado e contrabaixo)
Tem, mas acabou! Direção Cris Lozano Assistente de direção Carol Leiderfarb Elenco Daniela Schitini, Eliana Bolanho, Juliana Gontijo e Vera Abbud (As Graças) Argumento e adaptação dos contos de Ricardo Azevedo Juliana Gontijo Textos As Graças Direção de arte Renato Bolelli Rebouças e Beto Guilger Direção Musical Lincoln Antonio e Juçara Marçal Criação boneco caveira Marco Lima Execução boneco caveira Beto Souza
Notas biográficas Acácio S. Almeida Santos Professor da Universidade Federal do ABC e coordenador do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros da UFABC. Pesquisador associado ao Grupo de Antropologia da Comunicação da Université Félix Houphouet-Boigni, desde 1999 desenvolve pesquisas sobre saúde, noção de pessoa e ritos funerários junto aos Akan-Agni Morofoé da Costa do Marfim.
Ailton Krenak Ativista indígena dos direitos humanos, pertence à etnia Krenak. Em 1987, liderou a luta pelos princípios inscritos na Constituição Federal do Brasil. Fundou e dirige o Núcleo de Cultura Indígena; criador do Festival de Danças e Culturas Indígenas, na Serra do Cipó (MG). Jornalista, apresentador da série de TV-Educativa Índios no Brasil e da série para TV-Canal Futura Tarú Andé. Em Janeiro de 2016, foi distinguido com o diploma de Professor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.
Aline Santini Graduada em Artes Visuais e Pós Graduada em Lighting Design na Faculdade Belas Artes, trabalha com iluminação há 17 anos, tendo realizado trabalhos com grandes diretores, companhias, artistas de teatro, dança e performance em São Paulo. Também faz projetos de iluminação para exposições e executa projetos de iluminação arquitetural. Indicada ao Prêmio APCA em dança pela iluminação do espetáculo Shine, da Cia Perversos Polimorfos.
Camila Appel Jornalista e Mestre em Antropologia e Desenvolvimento pela London School of Economics. Estudou dramaturgia na New York University, tem o blog Morte Sem Tabu na Folha de S.Paulo (mortesemtabu.blogfolha.uol.br).
Christine Greiner Professora livre-docente do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP, onde ensina no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica e no curso de Artes do corpo. Entre os livros mais recentes, destacam-se a pesquisa editada em dois volumes Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas e Fabulações do corpo japonês e seus microativismos, ambos publicados pela editora n-1, respectivamente em 2015 e 2017.
Cia As Graças Formada em 1995 por atrizes da escola de Arte Dramática de SP. Nesses anos produziram mais de 16 espetáculos. Há 12 anos têm o projeto Circular teatro, um ônibus que se transforma em teatro e que leva o repertório da Cia As Graças a ruas, praças, parques do Brasil.
Cia. Hiato Em uma trajetória de dez anos, o projeto artístico da Cia. Hiato associa memória e invenção, em uma investigação de novas dramaturgias. Entre suas produções estão os espetáculos Cachorro morto, Escuro, O jardim e ficção.
Edgard de Assis Carvalho Doutorado em Ciências Sociais, pós-doutorado pela École des hautes études en Sciences Sociales. Professor titular de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais. Coordenador do núcleo de estudos da complexidade, Complexus, PUC-SP. Correpresentante brasileiro da cátedra itinerante Unesco Edgar Morin, CIUEM. Professor visitante da Fiocruz, UFRN, UFAM. Autor de vários ensaios e livros sobre o contemporâneo, integra diversos comitês científicos nacionais e internacionais vinculados às Humanidades e à superação da dicotomia cultura científica/cultura humanística.
Elca Rubinstein Economista sênior do Banco Mundial por 18 anos, especialista em gerontologia e envelhecimento. Criadora do Death Café Sampa, um grupo de discussão sobre morte sem comprometimento com ideias pré-concebidas.
Fabiano Menna Produtor e jornalista de moda e decoração, figurinista, ator, arte-educador, psicopedagogo e professor universitário.
Heloisa Seixas Autora de mais de vinte livros, entre romances e volumes de contos e crônicas, tendo sido quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti e uma vez finalista do Prêmio São Paulo. É também autora do livro O lugar escuro, sobre a doença de Alzheimer. Seu livro mais recente é Agora e na hora (2016), pela Companhia das Letras.
Jean Garfunkel Poeta, escritor e compositor da MPB, gravado por intérpretes como Elis Regina, Zizi Possi, Rosa Maria, Edson Cordeiro, Margareth Menezes, Maria Rita, Pena Branca e Xavantinho. Fundou em 2006, ao lado da filha, Joana Garfunkel, o duo musical Canto Livro.
Joana Garfunkel
Luis Ferron
Cantora e contadora de história, trabalha desde 2005 com música e literatura. Grande conhecedora da obra de Guimarães Rosa, fundou em 2006, ao lado do pai, Jean Garfunkel, o duo musical Canto Livro, em que apresentam shows calcados em obras de grandes autores nacionais e estrangeiros para a sensibilização e incentivo à leitura.
Artista da dança cênica paulistana desde 1983, mantém sua linha de pesquisa focada em abordagens e técnicas direcionadas para as singularidades culturais e corporais como mote para as suas criações. Atualmente, além de parcerias com outros artistas, é diretor do Núcleo Luis Ferron, que se define como uma plataforma para as suas criações.
Jorge Forbes Psicanalista e Médico Psiquiatra, Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Doutor em Neurologia (USP). Mestre em Psicanálise pela Universidade Paris VIII. Criador do Programa TerraDois da TV Cultura. Autor de vários artigos e livros, foi vencedor do Prêmio Jabuti.
José Roberto Torero Formado em Letras e Jornalismo pela USP. Cursou cinema na ECA-USP e pós-graduação em roteiro. Foi cronista de esportes na Folha de S.Paulo de 1998 a 2012, e de cultura no Jornal da Tarde de 1994 a 1998. Como roteirista, escreveu o programa Retrato falado (2000 - 2008, Globo), a série FDP (2012, HBO) e dez roteiros de longas-metragens, entre eles Pequeno dicionário amoroso e Memórias póstumas. Dirige ainda o programa Super libris para o SescTV (79 episódios de 26’ sobre literatura).
Lavínia Pannunzio Atriz e diretora, com trabalhos em teatro, cinema e televisão. Recebeu os prêmios Shell de Melhor Atriz (2012), APCA de Melhor Atriz (2011), APCA de Melhor Espetáculo (2006), Coca-Cola Femsa de Melhor Espetáculo, melhor direção e melhor cenário (2006) e Prêmio Estímulo Flávio Rangel 2005.
Luciana Dadalto Doutora em Ciências da Saúde pela faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Sócia da Dadalto & Carvalho Sociedade de Advogados. Professora Universitária. Administradora do portal testamentovital.com.br.
Luis Arrieta Natural de Buenos Aires, Argentina, inicia seus estudos de dança na Escuela del Ballet Contemporáneo de la Ciudad de Buenos Aires e de cenografia na Universidad de El Salvador, em 1972. Em mais de 150 criações coreográficas, tem trabalhado com temas e gêneros musicais variados, junto a diversas companhias internacionais e as mais importantes do Brasil.
Marcus Aurelius Pimenta Jornalista, autor de 23 obras literárias, sendo a maioria delas em parceria com o também escritor José Roberto Torero. Escreveu trabalhos na área de teatro e colabora como editor junto a instituições como o Sesc e o Museu da Pessoa. Sua passagem para o setor audiovisual se deu em 2000, na Rede Globo de Televisão, quando escreveu episódios para o quadro Retrato falado, dirigido por Luiz Villaça. Escreve roteiros para cinema e atualmente desenvolve uma série humorística para o canal Multishow entre outras.
Maria Eugênia Almeida Bailarina. A convite da curadoria de dança do Centro Cultural Banco do Brasil criou o espetáculo solo Casa das miudezas; fundou ao lado de Marina Abib a Companhia Soma; compõe a equipe pedagógica do Instituto Brincante.
Maria Goretti Médica com formação em Medicina da Família e da Comunidade, diretora do Instituto Paliar e coordenadora do programa de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (HSPE-SP).
Nelson Sargento Sambista carioca, autor de sambas-enredo premiados da Mangueira, foi parceiro de Cartola, Darcy da Mangueira e Dona Ivone Lara. Reconhecido internacionalmente, teve canções gravadas por Paulinho da Viola e Nara Leão.
Rubens Oliveira Bailarino e coreógrafo, dedica-se profissionalmente à dança há mais de 15 anos. Formado pelo método Reeducação do Movimento Ivaldo Bertazzo, dançou nos espetáculos Samwaad, Milágrimas, Mar de gente e Noé Noé! Deu a louca no convés, dirigidos por Bertazzo. Dançou também no espetáculo Húmus, dirigido por António Nobrega. Atua em diversas frentes e entre os seus projetos está a criação, direção e coreografia dos grupos: Núcleo de Dança Pélagos, Projeto Chega de Saudade e a Cia Gumboot Dance Brasil.
SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo
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PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES Técnico-social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sergio José Battistelli GERENTES Estudos e Programas Sociais Cristina Madi Ação Cultural Rosana Paulo da Cunha Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga de Mattos Estudos e Desenvolvimento Marta Raquel Colabone Artes Gráficas Hélcio Magalhães Sesc Ipiranga Antonio Carlos Martinelli Jr. EQUIPE SESC Affonso Lobo Chaves, Ana Paula Fraay, Andrea Oliveira, Celina Dias Azevedo, Diana Gama Santos, Érica Dias, Fabíola Larissa Tavares Milan, Fernando Ribeiro, Gean Carlo Seno, Gustavo Nogueira de Paula, Igor Cardoso Cruz, João Evandro Biazotto, Maria Cristina Vilas Bôas, Maria José Leandro Tavares, Priscila Machado Nunes, Rafaela Queiroz, Rogério Ianelli, Rosangela Barbalacco, Salete dos Anjos, Soraia Iola Galves, Tatiane Vieira de Almeida, Thaís Heinisch, Vanusa Soares Souza e Wendell Vieira. Design Gráfico Mateus Acioli Fotos Ricardo Ferreira e Daniel Ducci (pág. 25 e 40) Edição de texto Flávio Aquistapace Revisão textual Malu Barsanelli
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Este catálogo foi composto em Maison Neue. Capa serigrafada em Kraft e miolo impresso em Pólen Bold 90g/m2, em Setembro de 2019.
Finitudes / Flávio Aquistapace; Sesc - Serviço Social do Comércio. Administração Regional no Estado de São Paulo. – São Paulo: Sesc São Paulo, 2019. – 84 p. il. Relatório do Ciclo Finitudes. São Paulo, Out. a Dez. 2017. ISBN 978-85-7995-227-2 1. Morte. 2. Cultura. 3. Tempo. 4. Finitude. 5. Finitudes. 6. Catálogo. I. Título. II. Serviço Social do Comércio. Administração Regional no Estado de São Paulo. III. Aquistapace, Flávio. CDD 128