uma lei chamada
mulher por Consuelo de direção Lenise
Castro Pinheiro
Marias
As maneiras como nos relacionamos, em larga medida, são frutos de construções socioculturais. Ao mesmo tempo, no processo de estruturação de sociedades, seus valores, como alteridade e solidariedade, assim como crenças e condutas, são orientados por características próprias de cada população. E o convívio entre pessoas de diferentes gêneros não foge à regra. Desde cedo, seja na escola, em família ou em outros relacionamentos, reproduzimos modelos que se estabeleceram no decurso do tempo. É nesse fluxo histórico e cultural que a hierarquização de papéis sociais de homens e mulheres se moldou, incorrendo em relacionamentos abusivos e pautando o presente a partir de distintos matizes de violência, podendo alcançar seu último estágio no feminicídio. A partir da metade do século XX, a intensificação da luta de mulheres demonstrou que tanto as leis como as maneiras de nos relacionarmos e estarmos em sociedade não são - e nem devem - permanecer estanques.
Maria,
A história de Maria da Penha, mulher que viveu um relacionamento abusivo por 23 anos e que a levou à cadeira de rodas, é um caso entre milhares de outros, que ainda marcam a realidade brasileira de violência contra a mulher. Símbolo de determinação, a farmacêutica cearense empresta seu nome à “Lei Maria da Penha”, instituída em 2006 e principal aparato legal que combate a violência doméstica e familiar contra a mulher no país.
A peça “Uma Lei Chamada Mulher”, escrita por Consuelo de Castro e dirigida por Lenise Pinheiro, se inspira na vida e no livro “Sobrevivi... Posso Contar”, de Maria da Penha, o qual retrata um microcosmo violento e opressor, capaz de reverberar outros tantos microcosmos. Em seu programa, o Sesc apresenta manifestações que estão em consonância com seu tempo, ainda que esse tempo exclame por mudanças urgentes. São oportunidades nas quais a arte e o teatro reafirmam suas potências de sensibilizar e mobilizar, tocar e, possivelmente, transformar. Sesc São Paulo
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A violência doméstica sofrida por Maria durante 23 anos pode ser acompanhada em cenas que se sucedem abrindo um panorama amplo, ainda que a partir de um caso específico, da evolução de uma relação abusiva atingindo o ápice da dupla tentativa de feminicídio.
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Conversa sobre como identificar possíveis violências sofridas e as redes de apoio e leis que amparam as vítimas. Com a Profª. Drª. Carla Cristina Garcia (PUCSP e USCS) e o advogado e Prof. Dr. Dimitri Sales (UNIP e CONDEPE/SP). Domingo, 16h | Convivência | Grátis
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Dia 22.3 | Violências e Redes de Apoio
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“Uma Lei Chamada Mulher” é uma das últimas peças escritas por Consuelo de Castro, em 2013. A obra tem como inspiração a história de vida de Maria da Penha e seu livro “Sobrevivi... posso contar”, em uma narrativa que atravessa, do início ao fim, a relação da mulher com seu agressor.
Consuelo de Castro
Lenise
Autora de teatro, roteirista de TV e figura central do movimento estudantil. Seu nome configura em terna constância no Pantheon dos destaques teatrais. Dispensa apresentações entre os iniciados. E captura de imediato novos seguidores. Nada escapa a sua narrativa caprichada. Entrecortada com prosa e verso. Signos e libido. Vísceras, temperamentos e limites ultrapassados.
por
Ela, sempre atual, enche seu caldeirão de bruxa, com vogais e consoantes. Poções de teatro. Aprecio muito seus temperos. Conheci a celebrada autora, numa entrega do Prêmio Moliere 1982, trajes de gala, show da Mireille Mathieu, no Theatro Municipal. Ela em tons de Tarsila, me foi apresentada pelo professor da Faculdade. Foi a primeira vez que segurei sua mão. Macia. Branquinha. Tinha pegada a Consuelo. Suas expressões faciais e a indefectível gargalhada, singularidades linkadas à minha imaginação com frequência.
Consuelo
No fatídico 68. Teve sua peça de estreia, proibida. Motivo de frustação mesclada de felicidade: “Lutarei para que meu texto possa ser encenado. De qualquer forma, recebo como primeiro prêmio, esta censura tão radical. Tentei retratar a realidade, mas nunca pensei que o que propus pudesse ser atentatório ao regime e à boa tradição da família brasileira”, disse à repórter Teresa Cristina Rodrigues, em novembro de 1968.
Consuelo foi tomada pela atmosfera plúmblea, na ditadura do regime militar. Viu o “coro cumê” com os olhos ardendo e dedos em riste: “Não me incentiva que eu falo uma bíblia”. Me disse enquanto eu a maquiava para uma sessão de fotos. Num dos primeiros instantes de um ensaio memorável, onde eu trabalhava como assistente de fotografia. A intempestividade, uma de suas marcas. A beleza outra. Encantou a todos no Estúdio da Contato Produções. Nascida sob o signo de capricórnio. Muito trabalhadeira. Nutria profundo desprezo aos rótulos. Seu legado ultrapassa sua obra. Com diálogos precisos e musicais, rompe luz e sombra, subverte lógica e rigor. Ministra cápsulas e doses parcimoniosas de atualidade e magia, através de inúmeras narrativas. O projeto Consuelo segue nas articulações políticas, nos engajamentos e no fluxo dos movimentos. Se integra ao cosmos, renasce em outras dramaturgas. Seu teatro apresenta a complexidade da alma humana. Considerada um choque dramático, por Antônio Cândido. Para ele, “À Flor da Pele”, ficava longe de ser uma sucessão de réplicas: “Uma coragem indiscutível, esta de trazer para um texto moderadamente anticonvencional o punhal suicida dos dramalhões. Mas ele calhava bem, como se fosse a presença imortal do desespero sem remédio, rolando por cima das épocas à guisa de solução
única pra tantas circunstâncias onde a angústia bloqueia o ser. A concatenação feroz das deixas agressivas durante toda a peça, ligada aos problemas da mocidade contemporânea, o desfecho numa solução imemorial. Com isso, Consuelo de Castro parece plantar a peça no subsolo onde fermentam os arquétipos”. Para Mario Schenberg, ela era desesperadoramente lúcida: “Consuelo de Castro surge como uma das personalidades marcantes de sua geração literária. Tornou-se mais conhecida depois do sucesso de sua segunda peça “À Flor da Pele”, sem que a primeira “Prova de Fogo”, tenha sido montada. Foi uma poeta precoce. Seu primeiro livro “A Última Greve”, foi publicado antes de seus vinte anos, antes do desabrochar das intuições”. Os títulos sugestivos e inspirados renderam prêmios, honrarias e distinções. Para citar os textos clássicos, por assim dizer. “Prova de Fogo”, “À Flor da Pele”, “Caminho de Volta” e “O Grande Amor de Nossas Vidas”, “Louco Circo do Desejo”, “Aviso Prévio” e “Marcha a Ré”, “Porco Ensanguentado”, “Implosão”, “A Cidade Impossível de Pedro Santana”, “A Corrente prá frente” e “Ao Sol do Novo Mundo”. Escreveu peças com título em inglês, “Script-Tease” e “Making Off”. E “O Kotô”, performance para reforçar questionamentos e provocar os sentidos, segundo Alberto Guzik, em texto de 1988, sobre montagem no mesmo ano, no Espaço Off: “O trabalho não conta exatamente uma história. Ao contrário, fragmenta-se em episódios, em situações que sugerem sensações e emoções. Caracteriza-se como um monólogo, como uma poesia, composta por imagens fortes, soltas, que reforçam angustia e perplexidade”.
Sua verve cômica aponta para o sim. As parcerias com Antonio Abujamra, Leilah Assumpção, Jandira Martini e Marcos Caruso, foram inspirações confessas. Assim como os críticos Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Yan Michalski, Ilka Zanotto e Jefferson Del Rios; tiveram fundamental importância para o aprimoramento de sua escrita. Na montagem de seu espetáculo “A Corrente” dividiu a autoria com Lauro Cesar Muniz e Jorge Andrade, em 1981. Manufatura a seis mãos, intento que não se tornou a repetir. Mantendo o foco na vida cotidiana, propôs trocas de papéis. Indagado sobre sua obra, Zé Celso Martinez Corrêa, se entusiasma: “Consuelo de Castro transcende os questionamentos políticos, sua visão aberta, capta todas as nuances. As críticas que ela faz são profundas e talvez choquem. Coloca em cena as contradições de pequenos burgueses que despertam para a consciência política através de um processo cultural e por isso atuam romanticamente numa luta que deveria ser mais ampla”. Yan Michalski escreveu: “Se Lorca, tivesse visto Consuelo de Castro, faria dela a protagonista de uma de suas peças”. Lenise Pinheiro [Diretora]
Referências Castro, Consuelo de. Urgência e Ruptura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989. Rodrigues, Teresa Cristina. Reportagem: A prova de fogo que dá medo. São Paulo: Folha da Tarde, 1968.
dias os todos morre e nasce gente A
Quando nossa mãe escreveu a peça “Uma Lei Chamada Mulher” o Brasil estava na vanguarda do campo progressista e parecia ter atingido sua maturidade democrática. A ideia de transpor para o teatro a história que deu origem à lei foi do Ministério da Justiça, então comandado por José Eduardo Martins Cardoso. A esquerda estava no poder e tinha como adversária uma direita consciente dos limites éticos do jogo político. Não havia no horizonte sinal da tempestade conservadora que viria pela frente. A terra era redonda e ninguém duvidava disso, ministros não usavam discursos nazistas, não havia aparelhamento ideológico na cultura e não se cogitava uma campanha oficial em defesa da abstinência sexual. Foi nesse cenário que o espetáculo foi concebido com propósito de rodar o país. A história de Maria da Penha contada no livro “Sobrevivi... posso contar” ganha no palco a força da narrativa contundente de Consuelo de Castro. Graças a Lenise Pinheiro, parceira de coxia de longa data de Consuelo, a última peça inédita de nossa mãe ganha vida no Sesc, que tem acolhido algumas das melhores iniciativas da dramaturgia dessa geração. Nesses tempos de normatização do absurdo no campo dos direitos humanos e da cultura, “Uma Lei Chamada Mulher” vai contribuir para lembrar até onde chegamos e para onde não podemos voltar. Porque como diria nossa mãe: “A gente nasce e morre todos os dias”. Carolina de Castro e Pedro Venceslau [2020]
Mulher Chamada Lei
Texto inédito, em um ato. Estruturado em dialogação e conflito, princípios constitutivos da dramaturgia de Consuelo de Castro. A montagem aborda o abuso contra a mulher, atrocidades que se infiltram pelas frestas e se instauram no ambiente doméstico. Doses de ficção e vida real. Sedução, encantamento e magia que se transformam em assombros. Virulência e vilania, leitmotiv desse trabalho. Sororidade, fé e esperança, escorrem pelas tábuas do teatro. Diálogos extraídos de fatos destacados do cotidiano de tantas Marias. A cada quatro minutos uma mulher é agredida. Maria da Penha, celebrada mundo afora, é reverenciada por Consuelo de Castro, nesse texto atualizado por números alarmantes. A trama consolida a evolução do romance entre o casal protagonista, suas alegrias e os percalços da vida em comum, transformados em barbárie. A vítima e seu algoz, a premeditação do crime e sua execução. A impunidade vencida, as coligações nacionais e internacionais, o desvelo dos entes queridos, resultaram na promulgação da Lei nº 11.340. A partir de então, a violência doméstica deixa de ser considerada crime de menor potencial ofensivo.
Uma
A Direção de Arte de Simone Mina recria o espaço privado do lar, ringue e cenário de descalabros onde a covardia se impõe. Manchas de sangue, marcas na pele e desamparo judicial. Acredito que esse espetáculo seja uma troca de experiências, cotidianamente abafadas pela covardia. Aqui, com Iris Fatima Cavalcanti, para coroar essa história de vida. Lenise Pinheiro [Diretora] | Dezembro de 2019
Pensamento do Fluxo
O espaço doméstico ou daquilo que pode ser domesticado em nós mesmos, sonhos esquecidos ou até mesmo sedimentados, que espaço é esse que determina um sonho em comum e acaba em pesadelo? Espaço do sonho ou espaço da sujeição. O que pode morrer em nós para virar cinza e retornar como potência? Uma casa ou um quarto podem se transformar numa prisão simbólica, numa cela real e aprisionar sonhos, corpos e potências. Muitas vezes, a saída está muito perto ou à sua frente. O medo não faz enxergar que é só sair. Vidas escravizadas e encarceradas pelo medo. Um amigo me disse uma vez, enquanto conversávamos sobre sermos sobreviventes, no contexto de um esgotamento após momentos de profunda entrega em processos de criação e colaboração: sobrevivente não, supervivente sim, é a única condição possível [enquanto sorria com a secreta suavidade de seu pensamento]. Podemos a partir da cena, esse estranho e familiar espaço de troca artística, ativar a potência das tantas biografias que precisam vir à tona para nos lembrar de ressignificar esses tantos espaços de um cotidiano colonizado que vivemos. Que a potência de comunicação do teatro possa deixar sob alerta os mimetismos entre as biografias da cena e da vida.
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Simone Mina [Diretora de Arte]
Texto Consuelo de Castro Direção Lenise Pinheiro Co Direção e Direção de Produção Iris Fatima Cavalcanti Atores Isabella Lemos, Iuri Saraiva, Lucia Bronstein e Natália Moço Direção de Arte Simone Mina Iluminação e Operação de Luz Tiê Fabiano Sonoplastia Aline Meyer Operação de Som Maria Carolina Ito Direção de Palco Domingos Varela Cenotécnicos Domingos Varela e João Carvalho Fotografia Lenise Pinheiro [pág. 6] e Luísa Bonin Conteúdo e Mídias Sociais Luísa Bonin [Platea Comunicação e Arte] Colorista Claus Borges [Maison Jacques Janine] Acordeon Wilson Feitosa [Adaptação musical “Cajuína” de Caetano Veloso] Coach de Dança Alexandre Nascimento Voz Off Marco Ricca Assessoria Jurídica Andrea Francez Produção Executiva Nathalia Gouvêa
Existem redes de apoio e proteção à mulher. Disque 180 (Central de Atendimento à mulher) Disque 100 (Mulher, Família e Direitos Humanos)
Técnica
Violência contra mulher: Denuncie!
Ficha
Coletivo Takamakina de Teatro
Agradecimentos Alexandre Simão, Alvaro Machado, Angelica Di Paula, Bianca Costa, Basquiat, Caetano O´Maihlan, Camila dos Anjos, Carla Zanini, Chico Ribas, Clayton Lemos da Silva, Clayton Mariano, Dalva Macedo, Daniela D´Eon, Duarte Mariano, Eivy Cristina, Ernani Sanches, Felipe Carvalho, Fernando Oliveira, Fernanda Signorini, Felipe Scalzaretto, Galpão Folias, Hugo Rodas, Ines Bogéa, Jair Gabriel, Jefferson Pedace, Jennifer Glass, Jessica Lemos, Jô Santana, João Junior, João Lemos, Joel Monteiro, José Mauro do Nascimento, Kleber Montanheiro, Leandro Knopfholz, Lucia Helena Cavalcanti De Laurentis, Lívia Guerra, Marcela Coelho, Marcelo Drummond, Maria de Fátima Moço Nascimento, Maria Elvira, Maria Regina de Aguiar, Miwa Yanagizawa, Mariana Marinho, Mario Gouvêa, Monica Machado, Monica Carnieto, Nadir Floriano, Otto Barros, Paula De Paoli, Paulo Junior, Renata Kallas, Renata Kaiser, Rey Otero, Rosângela Gouvêa, Sérgio Luís Oliveira, Silvia Czeresnia Bronstein, Silvia Suzy, Tatiana Bronstein, Titina Medeiros, Victor Lei, Wagner Antônio, Wagner Pacheco e Yaci-tatá Lott. Agradecimentos Especiais Camila Appel, Carolina de Castro, Pedro Venceslau, Valdir Rivaben, Conceição de Maria do Instituto Maria da Penha e Maria do Socorro Rodrigues (in memoriam).
De 28.2 a 22.3.2020 Quinta a sábado, 21h Domingo, 18h | Sessão no dia 14.3 Teatro | Duração: 120 min
Sesc Ipiranga Rua Bom Pastor, 822 CEP 04203-000 | São Paulo/SP /sescipiranga sescsp.org.br/ipiranga