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LUISA MICHELET TI CACO CIOCLER
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Nos últimos anos uma palavra nova, ainda sem definição em nosso dicionário, tem ganhado destaque, principalmente nas redes sociais: sororidade. Em latim, o prefixo soror significa irmã. Diante de uma sociedade desigual, cresce entre as mulheres a experiência da escuta, empatia, irmandade e companheirismo como um caminho na busca por direitos, segurança e liberdade. Esse tema tem sido recorrente no fazer teatral contemporâneo, quando artistas colocam-se em cena ocupando lugares de fala antes vazios sobre os palcos, revelando com mais ênfase e volume novas formas de existência desejadas desde sempre, propondo, ao mesmo tempo, uma crítica cotidiana a tudo que se convencionou considerar a normalidade nas relações sociais e culturais entre homens e mulheres.
Quando se propõe a olhar para a mitologia judaico-cristã com os olhos de hoje, partindo ao mesmo tempo de um amplo conhecimento histórico e de uma possível análise das consequências que há ao se tomar narrativas mitológicas apenas como paradigmas de condutas, ao invés de ferramentas para a reflexão, o texto de Luisa Micheletti, encenado pela direção de Caco Ciocler, sugere que a história pode ser sempre outra, a depender de quem narra e de onde o faz. Para o Sesc, a realização de Soror é uma oportunidade de oferecer ao público a reinterpretação de uma antiga história mas principalmente a possibilidade da constante releitura das narrativas que formaram a humanidade, de modo a aperfeiçoar o entendimento sobre o mundo em que vivemos. Sesc São Paulo
Sinopse Lilith, a primeira mulher do mundo segundo interpretações da gênese, criada do pó e da lama, se recusa a ser submissa ao companheiro Adão no Éden recém inaugurado. Surpreso com a natureza imprevisível e rebelde da parceira e incapaz de lidar com sua autonomia, o primeiro homem chama pelo pai e ordena que ele providencie uma outra mulher. Deus, ares de alto executivo, surge em cena numa sequência de palestras estilo TEDx, nas quais discorre sobre cosmologia, física quântica e a possível integração das duas ciências. Refém de sua própria criação, como costumam ser os gênios, acata ao pedido do filho e fabrica Eva: bela, recatada, obediente, acolhedora. No entanto, da mesma maneira que Deus pretende encurtar a distância entre as leis físicas que regem o macro (cosmologia) e o micro (física quântica), Eva e Lilith se aproximam e aos poucos estabelecem inesperadas conexões morais, filosóficas e de humor. As duas mulheres se tornam companheiras, irmãs, parentes de sangue. O encontro desatrela seus eixos da figura masculina e juntas descobrem suas preferências, aptidões, vontades, estímulos. Para que o mundo dê conta de sua união, só resta criar novas regras. Lilith e Eva.
Daqui, o instante que presenciaremos será o da criação de um mundo, moribundo. O parto de um natimorto. Atolado entre os entulhos de seu céu antiquário, o criador está encantado com sua mais nova invenção: uma cópia/filho em 3D. E poderia enfim descansar, isentar-se das pesadas obrigações celestes, se do mesmo pó criasse a mulher para servir ao pedinte e, juntos, os dois é que se encarregassem de povoar de semelhantes aquele tédio.
Para o figurino, pensou vestir a primeira dama com o melhor da geometria. Meterlhe talvez uma saia cone costurada à cintura. Feria brotar do interior uma luz, deixando clara a cona, para que não houvesse chance do filho errar no caminho. Mas o tiro saiu foi pela culatra. A sombra que tomou conta do resto acabou por determinar o exílio da criatura. Na feitura da segunda não cometeria o mesmo erro. Viraria logo a saia ao contrário, iluminando dessa vez o leite, a candura, deixando para a sombra o tal canal encrenca que ligava as fêmeas às suas estranhas, mas úteis, entranhas. E o filho é que se virasse com aquilo tudo escondido. Agora, em sua tão sonhada aposentadoria “shabática”, gasta seu tempo tentando vender seu sistema aos filhos tolos de seus filhos tolos, sem desconfiar que aquelas duas, que ele mesmo separara feito metades invertidas de uma mesma ampulheta, logo perceberiam que unindo-se, fariam correr por entre elas as areias de um novo tempo. A reivindicação não será pelo trono, mas pelo fim de uma lógica responsável por 164 estupros, 606 casos de violência doméstica e 4.473 assassinatos de mulheres por dia, apenas num país de nome Brasil.
A grande pergunta que deveria habitar você, que lê essas palavras à espera de começar a peça é: Ok, mas por que diabos um homem para dirigir SOROR? Isso nem passou pela sua cabeça? Um mal sinal, sinto dizer. Mas talvez um bom começo! Deparei-me na pele com inúmeros desses mal sinais durante o processo, vendo brotar, para meu constrangedor desespero, horrendos furúnculos que denunciavam um sangue ainda infectado. É preciso que vocês, homens, implodam o machismo por dentro, me respondiam as mulheres daqui. Dirigir SOROR foi portanto um exercício exigente de atenção e expurgo. Era preciso retirar-me. Implodir-me, Sumir da cena. Pensar uma linguagem que servisse apenas (como se fosse pouco) à amplificação da dor e da denúncia que gritava entre as linhas e entrelinhas do texto. Nada poderia se sobrepor ao discurso. Nada. O trabalho portanto foi de escuta, de aprendizado, na tentativa de esculpir marcações que potencializassem simbolicamente a escuta (agora do público), para o que de fato interessa a elas dizer, para o que de fato está em jogo. Mas isso só seria mesmo possível se ele, o discurso, se tornasse também, meu. Caco Ciocler Diretor
Pertencer ou não pertencer? Talvez seja esta a questão. Talvez ainda, antes desta, nasçam outras perguntas: pertencer a que? Em nome de que? Criamos o Éden como metáfora de um mundo vencido. Vencido no sentido de datado, mas também, de bem sucedido (embora decadente). “Soror” (do latim, sosore - irmã) nasceu da busca pela gênese. Onde começa a lógica capaz de nos dividir tanto? Vadia ou santa, tesuda ou mãe, vulgar ou nobre, amorosa ou indomável, recatada ou brilhante, confiável ou imprevisível... Antíteses e mais antíteses desagregadoras nos empurram rumo às tristes bifurcações psíquicas que em vez de nos tornarem mais fortes, nos mantém dependentes da metade que falta. Na natureza selvagem as fêmeas são tudo isso ao mesmo tempo. Na humanidade não. É raro. Em geral exilamos um lado em detrimento de outro. A mando de quem? Quem merece tanta reverência? Um sistema complexo, sedutor e violento é apresentado sob a alcunha de “Deus”. E se, em vez da oscilação, encontrássemos a síntese, que é maior que a soma? E se criássemos uma amálgama capaz de unir os arquétipos aparentemente inconciliáveis que vivem dentro de nós? E se as primeiras mulheres partilhassem a consciência e detectassem a origem de seus comportamentos para juntas, se libertarem do Éden opressor? Lado a lado estão as figuras femininas polarizadas da
gênese judaico-cristã: Eva, a oficial, e Lilith, a oculta. Mas antes da irmandade se consumar é preciso saber que Deus é este e como derrubá-lo. Para que Eva & Lilith possam estabelecer conexões morais, filosóficas e de humor a partir de suas vontades e seus vazios, foi necessário, como autora, desatarrachálas do eixo da figura masculina. Foi preciso autoaplicar o teste de Bechdel (teste que questiona se uma obra de ficção possui pelo menos duas mulheres que conversam entre si sobre algo que não seja o homem. É necessário que as duas mulheres tenham nomes próprios. A maioria das obras contemporâneas não passa no teste). Foi necessário fazer justiça a estas mulheres por tantos séculos tão secundárias e entregar-lhes falas clássicas do teatro de Shakespeare e Beckett. Foi preciso comparar sua causa à causa Jedi e entregar à Deus, a função de corromper sua própria criação, como fez Darth Vader com a força. Da mesma maneira que Deus palestrante encurta a distância entre as leis físicas que regem a cosmologia e a física quântica - o macro e o micro - é preciso que Eva & Lilith se aproximem. Se aceitem. Ao se reconhecerem parte da mesma parte, todo do mesmo todo, a criação de uma consciência partilhada instantaneamente apodrece as estruturas do velho mundo e fertiliza o terreno para a criação de um novo universo. Luisa Micheletti Autora
Ficha Técnica De LUISA MICHELETTI Direção CACO CIOCLER Elenco DANIEL INFANTINI, FERNANDA NOBRE, GERALDO RODRIGUES e LUISA MICHELETTI Cenário e figurino CÁSSIO BRASIL Iluminação ALINE SANTINI Trilha sonora FELIPE GRITZ Assistente de direção EDUARDO ESTRELA Colaboração de dramaturgia EME BARBASSA Assessoria de cenografia BOSCO BESECHI Assistente de iluminação PAJEÚ DE OLIVEIRA Designer LUCIANO ANGELOTTI Fotografia EDSON KUMASAKA Assessoria de comunicação MORENTE FORTE Operação de luz IGOR SULLY Operação de som MONIQUE CARVALHO Contrarregra UMBERTO ALVES DAVID Direção de produção DANI ANGELOTTI Produção CUBO PRODUÇÕES
Duração do espetáculo 80 MINUTOS Classificação indicativa 18 ANOS Agradecimentos Alejandro Huerta, Camila Biondan, Camila Scheffer, Carolina Alckmin, Celia Forte, Consuelo de Castro Pena, Daniel Warren, Elisa Gargiulo, Felipe Rocha, José Roberto Jardim, Luciana Esposito, Manoela Miklos, Otilha dos Santos, Pati Bertucci, Regina Togeiro, Ricardo Monastero, Selma Morente, Vinicius Calderoni e Yoram Blaschkauer. Agradecimento especial para Cutucada Cultural (Adriano Paixão, Lia Antunes e Diva Santos) pelo apoio e parceria.
De 5 de abril a 5 de maio de 2019 Sexta e sábado, às 21h Domingo e feriados, às 18h Exceto dia 19 de abril.
Sesc Ipiranga Rua Bom Pastor, 822 Tel.: +55 11 3340.2000 /sescipiranga sescsp.org.br/ipiranga