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SAO PAULO DAS FÁBRICAS DAS VILAS OPERÁRIAS E FERROVIAS


SÃO PAULO DAS FÁBRICAS, DAS VILAS OPERÁRIAS E FERROVIAS

Chega o século 19 e, com ele, as linhas férreas, as indústrias, as ondas migratórias. A cidade, que era da taipa e do pau-a-pique, é quase toda reconstruída. Desde então, São Paulo cresce e se modifica a uma velocidade tão grande que, de uma geração a outra, os jovens não conhecem mais a cidade onde viveram seu avós nem bisavós.

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“Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina!” Macunaíma chega a São Paulo, uma selva urbana mecanizada, no capítulo 5 de Macunaíma — O Herói sem Caráter, do escritor paulistano Mário de Andrade (1893-1945)


http://www.saopauloantiga.com.br/ vilamariazelia/

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Celosul (ex-Fábrica Matarazzo)

AVENIDA DOUTOR ASSIS RIBEIRO, ALTURA DO NÚMERO 8454

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O palimpsesto era um pergaminho cujos conteúdos escritos ou desenhados haviam sido raspados para que o suporte fosse reaproveitado por outro texto. Nessa raspagem, nem todos os caracteres precedentes desapareciam. Ao longo dos séculos, São Paulo — como nota o arquiteto Benedito Lima de Toledo no livro São Paulo: três cidades em um século — foi se assemelhando a um palimpsesto. De tempos em tempos, tem sua escrita raspada, para que uma nova aconteça, mas sinais daquelas antigas escritas resistem...

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[PALIMPSESTO]

Em 1941, o uso do celofane — aquela película fina e transparente feita a partir da celulose e que serve como envoltório para alimentos e objetos —, inventado quatro décadas antes, se expandia pelo mundo. Foi nesse ano que as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), o maior grupo industrial da América Latina do século 20, inauguraram uma fábrica de celofane em um terreno de 8 mil m², a Celosul, uma das primeiras indústrias da Zona Leste de São Paulo. Integrada ao ramal ferroviário, a Celosul viria a marcar não apenas a paisagem, com suas chaminés recortando o horizonte, mas a própria formação da cidade. As IRFM, que chegaram a ter 30 mil funcionários no Brasil, empregaram ali operários da região de São Miguel Paulista e de outros bairros, além de imigrantes italianos, alemães e ingleses. Gradativamente, todo o entorno foi modificado, por conta de serviços variados e de infraestrutura. Isso favoreceu a formação de vilas e loteamentos, impulsionando o que se tornou o distrito de Ermelino Matarazzo. A Vila Operária Matarazzo, ainda de pé na Avenida Roberto Augusto Collin, com 41 casas térreas, em um conjunto tombado pelo Conpresp em 2004. Testemunho de técnicas construtivas tradicionais e dos primeiros processos produtivos da industrialização paulista, a Celosul viveu seu ápice no início da década de 1970. Alguns anos depois, com a crise no grupo Matarazzo, passou a ser administrada por uma cooperativa, a Coopercel, formada por seus antigos funcionários. Fechou as portas em 2014.


Casa das Caldeiras

As três chaminés esguias que ainda cortam o céu da Água Branca fazem parte de uma construção feita na década de 1920 para abrigar as caldeiras vindas da Europa que produziam energia para o parque industrial do grupo Matarazzo. Essas unidades fabris, que produziam itens como sabonetes, álcool e óleo vegetal, ficavam nas proximidades da linha férrea, integradas ao ramal ferroviário, o que

privilegiava o recebimento de matéria-prima e o escoamento da produção. Desse complexo industrial, a Casa das Caldeiras é uma das poucas construções que sobraram. Construído em alvenaria de tijolos, o prédio foi tombado em 1986, pelo Condephaat e posteriormente pelo Conpresp, e restaurado antes da virada do século para se tornar um espaço de eventos e celebrações. Hoje abriga um centro cultural. AV. FRANCISCO MATARAZZO, 2000, ÁGUA BRANCA


LARGO SENADOR RAUL CARDOSO, 207, VILA MARIANA

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O antigo Matadouro de Humaitá, no Largo da Pólvora, havia se tornado pequeno e incômodo para atender à população paulistana no final do século 19 — que praticamente duplicara. Os resíduos e rejeitos eram despejados no ribeirão Itororó, onde se localiza hoje a Avenida 23 de Maio, que chegava a ficar vermelho por conta do sangue e dos pedaços de animais. Isso sem falar no mau cheiro. A solução foi construir outro abatedouro, afastado do centro. Em 1884, a Câmara Municipal lançou um concurso para selecionar o projeto de um matadouro mais moderno, vencido pelo engenheiro alemão Alberto Kuhlmann. Ao longo de três anos, ele coordenou as obras do novo edifício, no antigo Rincão dos

Sapateiros. Feito em tijolo aparente, o prédio contava com um tendal para abrigo de animais e três galpões paralelos destinados para o abate e esquartejamento das carcaças. Tinha também uma linha férrea para auxiliar no transporte dos animais — essa estação recebeu o nome de Mariana, esposa de Kuhlmann. O matadouro foi desativado após 40 anos de atividade e tombado pelo Condephaat em 1985. Em 1988, foi cedido pelo prefeito Jânio Quadros à Cinemateca Brasileira, quando os galpões foram adaptados para funcionar como salas de cinema. A instituição atua até hoje na preservação e difusão do acervo audiovisual brasileiro e, em 1991, sua sede foi tombada pelo Conpresp.

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Cinemateca Brasileira (Antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana)



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Chaminé na USP Leste

Quem desce na estação USP-Leste da CPTM e enxerga uma antiga chaminé no horizonte ao longo da Avenida Dr. Assis Ribeiro, pode se indagar: A qual fábrica pertencia essa estrutura? Mas a resposta não é conhecida. Essa construção foi o único elemento que restou de uma fábrica que teria funcionado entre os anos 1920 e 1940, provavelmente de cerâmicas, dada a demanda por tijolos pelas fábricas do grupo Matarazzo ou outras pela cidade. Nada além da chaminé restou. Mesmo sem dados certeiros sobre sua história, ela é patrimônio da cidade — e faz a imaginação voar. Como se chamaria essa fábrica? O que produzia? Por quanto tempo

funcionou? Os arquivos públicos não guardam registros. Nas artes, ela aparece de forma nostálgica no documentário Folclore de Engenheiro Goulart, do cineasta Gercio Tanjoni (Mistifilmes), que nos anos 1980 ainda encontrou alguns vestígios das paredes da antiga fábrica, em estado adiantado de degradação. Em fotografias aéreas de 1950, feitas para a comemoração dos 400 anos da cidade de São Paulo, ela também aparece. Recentemente, a chaminé desconhecida foi abraçada pelo campus da USP Leste, erguido a partir de 2005. AVENIDA ASSIS RIBEIRO, ALTURA DO NÚMERO 8100, ERMELINO MATARAZZO


Companhia Antarctica Paulista

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um maquinário a vapor, que era ligado diretamente ao rio Tamanduateí. A cerveja com o rótulo dos dois pinguins existe antes de você nascer e era feita em Vale lembrar que ali eram produzidos plena Mooca, quando o bairro ainda era um também a Soda Limonada Antarctica (desde subúrbio do Brás. Estamos falando de 1891, 1912) e o Guaraná Antarctica (desde 1920) — quando a Antarctica foi fundada, primeiro refrigerante que logo virou uma das maiores como fábrica de gelo e cerveja em um referências do imaginário de consumo dos antigo abatedouro de suínos na Água brasileiros. Branca, depois nessa planta histórica. Nos anos 1990, a unidade baixou as portas Quem primeiro se instalou ali foi a — e toda a produção se transferiu para Cervejaria Bavária, em 1892. Foi em 1920 que Jaguariúna, no interior de São Paulo, poucos o prédio passou a abrigar a chamada anos antes da fusão entre a Antarctica e a Companhia Antarctica Paulista, marcando o sua principal concorrente, a Brahma. início da produção cervejeira em larga escaA antiga fábrica está desativada desde la na cidade. 1995. O prédio foi tombado pelo Conpresp em 2016 e está bastante degradado. Existem O complexo, estrategicamente disposto à planos de transformá-la em um espaço margem da antiga estrada de ferro Santos/ Jundiaí, contava com o edifício principal (para cultural, ligado à história da cerveja, da a administração), seis edifícios e um conjunto ferrovia e da indústria. de construções menores. Possuía, também, AVENIDA PRESIDENTE WILSON, 274, MOOCA

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Estação da Luz

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PRAÇA DA LUZ, BOM RETIRO

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A primeira estação ferroviária da São Paulo Railway surge em 1867 no bairro da Luz, como parte da ferrovia que ligava o Porto de Santos a Jundiaí para escoar as mercadorias provenientes da atividade cafeeira. Em poucos anos, no entanto, as linhas e instalações deixaram de comportar o volume de cargas e passageiros. Um projeto de ampliação, conduzido por engenheiros ingleses ao longo de cinco anos, marcou a transformação da pequena cidade numa verdadeira metrópole. Assim, em 1901 foi inaugurada a nova estação, feita em alvenaria de tijolos combinada a estruturas metálicas, com duas grandes plataformas paralelas que se comunicavam através de três passadiços de ferro. Em 1946, o prédio foi parcialmente destruído por um incêndio, e sua reconstrução se estendeu até 1951. Ao ser reinaugurada, a estação contava com mais um pavimento em uma das alas do edifício principal. Ao longo dos anos, a Luz incorporou outras reformas e restaurações. A principal delas ocorreu em 2006, quando passou a abrigar também o Museu da Língua Portuguesa, que sofreu um incêndio devastador em 2015. Atualmente, o prédio sofre nova restauração. O acervo do museu, quase todo digital, poderá ser recuperado. O complexo arquitetônico da Estação da Luz foi tombado pelo Condephaat em 1982, pelo Conpresp em 1991 e pelo Iphan em 1996.


Estações do Brás

O bairro do Brás guarda três importantes edificações, remanescentes dos sistemas de transporte público utilizados a partir do final do século 19 e das primeiras décadas do século 20, quando os bondes eletrificados substituíram os bondes movidos a tração animal e as ferrovias ganhavam impulso com o aporte de capital inglês. Na antiga Rua do Norte (atual Domingos Paiva) funciona, desde 1867, a Estação Braz, uma das paradas da São Paulo Railway, primeira ferrovia construída em solo paulista e que interligava o litoral ao interior do estado. Transportava passageiros, além de café e mercadorias. Em 1897 um novo edifício para essa parada foi construído e é o remanescente preservado, com estrutura de tijolos aparentes em arcadas e cobertura metálica. Hoje encontra-se integrado ao conjunto de estações da CPTM e Metrô. Em 1875 inaugurou-se outra estação ferroviária no Brás, vizinha daquela da São Paulo Railway: era a chamada Estação do

Norte, posteriormente batizada de Estação Roosevelt, ponto inicial da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil, que fazia a ligação com o Rio de Janeiro. À sua frente foi aberta a praça Agente Cícero e, em meados do século 20, o edifício passou por modificações adquirindo a feição art déco que ainda mantém. Compõe, também, o grande e movimentado complexo de estações do Brás. Na altura do número 158 da Avenida Celso Garcia funcionava a Estação de Bondes do Brás, o último remanescente dessa rede de transporte na cidade e de grande importância para seu processo de urbanização. Foi utilizada, posteriormente e durante muitos anos, como garagem de trólebus. Construída entre 1900 e 1906 pela empresa canadense The São Paulo Tramway, Light e Power Company Limited, a “Light”, a estação, inspirada na arquitetura inglesa, foi tombada pelo Condephaat em 2008, pelo Conpresp em 2014; atualmente encontra-se bastante degradada.


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Fábrica de Tecidos Labor

A importância da Mooca como epicentro da imigração sobretudo italiana no começo do século passado se mistura ao seu valor como um dos primeiros bairros industriais de São Paulo. Foi na Mooca que a cidade ganhou um de seus sotaques mais típicos, e foi da Mooca que se originou o impulso para grande parte do crescimento econômico da cidade. A Fábrica de Tecidos Labor é um exemplo dessas duas contribuições. Inaugurada em 1910 pela firma Assumpção, Toledo & Companhia em sociedade com o empresário Giovanni Crespi, ela empregou muitos italianos, habituados aos maquinários usados na fiação e tecelagem de lã e algodão, e marcou a paisagem fabril de uma cidade que iniciava seus passos na produção interna. A Labor fechou suas portas em 1987. Desde então, o prédio vem se desgastando, mas foi tombado pelo Condephaat em 2014 e pelo Conpresp em 2017. Hoje a grande maioria das fábricas da Mooca está fechada e ameaçada pela especulação imobiliária. RUA DA MOOCA, 815, MOOCA


Vila Maria Zélia

RUA DOS PRAZERES, 326, BRÁS

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Projetada pelo arquiteto francês Paul Pedaurrieux, a Vila Maria Zélia começou a ser construída em 1912 para servir de residência a 2.500 funcionários que trabalhavam na filial do Belenzinho da Companhia Nacional de Tecidos da Juta. Em 1917, foi inaugurada aquela que seria a primeira vila operária no país. A iniciativa de criar uma pequena cidade europeia para os trabalhadores da tecelagem foi do seu proprietário, o médico e industrial Jorge Street (1863-1939). Entre seus feitos, Street também abriu a primeira creche para filhos dos operários e defendeu direitos significativos dos trabalhadores, como o direito à greve. Além de 198 casas — de seis modelos diferentes, cada um para um tipo de conformação de família —, havia na Vila Maria Zélia uma capela, dois armazéns, duas

escolas (uma para meninos e outra para meninas), uma praça, um campo de prática esportiva, salão de festas, ambulatórios e consultórios médicos. A relação entre a fábrica e a vila durou até a década de 1930, quando ela baixou as portas e foi transformada em presídio pelo Estado Novo. Em 1939 a Goodyear comprou as edificações, mas cortou o vínculo com a vila. Até os anos 1970, a maior parte das casas mantinha a planta original. Mas aos poucos os imóveis foram sendo comprados e vendidos — e perdendo suas características. Todos os prédios funcionais hoje pertencem ao INSS. O conjunto foi tombado em 1985 pelo Condephaat e em 1992 pelo Conpresp. Desde 2004, o Grupo XIX de Teatro realiza residência artística em um dos armazéns. A capela ainda funciona normalmente.

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