Catalogo_Mediacao_TarefasInfinitas_cortado.pdf

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LIVRO E ARTE – INTERPENETRAÇÕES PLURAIS

O LIVRO QUE ATRAVESSOU O OCEANO

O livro é uma tecnologia que resiste ao tempo. Em que pese o estágio de avanço tecnológico atual, em que muitas invenções divisam rapidamente a sombra da obsolescência, o livro permanece como um ente querido e necessário, a indicar seus trunfos e os muitos modos pelos quais sua materialidade se dá aos sentidos. O livro, nesse aspecto, é uma forma de arte. E como tal, adquire um estatuto que amplia os sentidos de sua presença à mão, à visão e à imaginação do leitor. A relação entre livro e arte é plural. Como criações da inventividade humana, ambos são a expressão de uma cultura entendida como forma de aprendizagem da atenção e como atenção para a aprendizagem, principalmente hoje em dia, quando os objetos tecnológicos que nos cercam alimentam a falta de atenção e a distração, expressas no salto constante do olhar de uma coisa a outra, de um objeto a outro, quase incessantemente. Em contraponto, o livro como forma de arte e a arte expressa a partir da materialidade do livro clamam para o rompimento com esse tempo linear e homogêneo da repetição banalizada, que desabastece a vida e faz com que cada um de nós deixe de ser um “leitor” reflexivo de si mesmo, subtraindo-se ao engendramento do próprio destino. Na relação aludida acima, podemos nos questionar sobre como um livro e uma obra de arte, em interpenetração, passam a existir ao serem visados. Como é que são lidos e entendidos? O que podemos fazer deles e com eles? E, primordialmente, partindo do diálogo infindável que se estabelece entre a materialidade do livro e o universo da arte, quais são as experiências estéticas e sinestésicas possíveis? Tendo como ponto de partida tais reflexões, o Sesc, a Fundação Calouste Gulbenkian de Portugal e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin trazem para o Brasil a exposição Tarefas Infinitas. Com início em Lisboa e tendo sido realizada também em Paris, a mostra chega com obras pertencentes ao Museu e à Biblioteca de Arte da referida Fundação. E é ampliada aqui com outra mostra contendo obras históricas do acervo da Biblioteca Brasiliana, pela mão do curador português Paulo Pires do Vale, responsável pela curadoria da exposição portuguesa, em união às pesquisadoras brasileiras Diana Mindlin e Rosely Nakagawa para a seleção feita localmente na Brasiliana. A exposição desses acervos se constitui ainda mediante a intenção de colocar à prova os desafios inerentes às obras de arte, nas quais o livro tem presença decisiva, mirando também, em acréscimo, o que é um livro e do que ele é capaz. Receber a exposição no Sesc implica em reafirmar a vocação institucional para a reflexão e a partilha de saberes, em clara contribuição direcionada ao estatuto da cultura e da educação como bens de direito comum a cada cidadão. Esse é o compromisso estabelecido ao realizar a exposição Tarefas Infinitas: tornar público e amplo o diálogo já infinito que a arte e o livro estabelecem há séculos.

Em 2012 recebi do meu professor e amigo Khaled Ghoubar um livro. Um livro sobre livros; intrigante pelo formato, apresentação, conceito e imagem. Um desses livros que precisam de tempo de convivência, pois nos levam além da simples leitura. Tarefas Infinitas - Quando a Arte e o Livro se Ilimitam foi o propulsor para a retomada de pesquisas sobre impressão, gravura e encadernação que eu havia iniciado ainda na universidade durante a década de 70, época em que o professor Khaled me abriu as portas da biblioteca da FAU-USP e Diana Mindlin me orientou na tese de graduação. Tanto a biblioteca como os laboratórios de Fotografia e Artes Gráficas foram fundamentais na minha formação, mais do que as aulas formais ou de ateliê. Assim, o fascínio pela publicação Tarefas Infinitas foi imediato e natural. Uma paixão que transformou-se, primeiro, em desejo de realizar esta exposição e finalmente realidade, acolhida pelo Sesc São Paulo. Realizado originalmente na Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, o projeto do curador português Paulo Pires do Vale aproxima obras do acervo histórico da Biblioteca de Arte desta fundação, de obras de arte contemporânea, ocupando os espaços contíguos da galeria e da biblioteca. Essa ligação de espaços e a diluição de fronteiras nos sugeriu a proposta de realizar a mostra do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Elaboramos o projeto com novo formato, no qual cursos, exposições e fóruns foram “propondo novos modos de acesso ao livro, que não apenas a leitura linear de vai e vem”. Criamos uma programação de cursos com reflexões sobre a evolução dos suportes, desde a pedra até o papel, a protoescrita e a arte caminhando juntas, até a criação das técnicas de reprodução atuais. Os fóruns que se realizarão ao longo do período da mostra e os encontros programados para acontecer no espaço expositivo promoverão ainda uma leitura contextualizante desta “exposição-ensaio”, com obras do acervo da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Além desta versão do projeto com o CPF/Sesc, Paulo Pires do Vale aceitou o desafio de incluir obras de artistas brasileiros contemporâneos mescladas a publicações selecionadas por Diana Mindlin e pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, permitindo, assim, um circuito de leituras e exposição simultânea nos dois espaços. O projeto conta com o Site-Specific Se atacarem fuja aqui pra casa, de Fabio Morais em parceria com a editora IKREK, encartada nesta peça. Temos também a preciosa participação da artista Fernanda Fragateiro, que apresenta a obra Brazil Builds (2015), e o depoimento do arquiteto Paulo Mendes da Rocha (2018) sobre o projeto da Biblioteca de Alexandria (não) realizado para o concurso da Unesco em 1988. Há um buraco no real (2014) é a obra de Dora García que nos convida a iniciar o percurso no espaço da mostra, onde encontraremos as Footnotes [Notas de rodapé], de Alejandro Cesarco, que passam a habitar as salas de estudo. Essa narrativa não descreve uma experiência individual, mas é um testemunho “sobre esse poder do livro e a sua capacidade de saída em direção ao mundo”. Afinal, Tarefas Infinitas atravessou o oceano para dar em terras brasileiras por causa do exemplar de um livro. Aquele que o professor Khaled um dia me deu. Neste momento, temos que agradecer a todos os que colaboraram para que os cursos, os fóruns e a mostra fossem realizados no Brasil em condições muito especiais e num momento delicado para nossa cultura. Esta realização tem um valor imenso por aproximar a Fundação Gulbenkian, o Sesc e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, contribuindo para o desenvolvimento humano através de projetos e tarefas infinitas.

Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo

Rosely Nakagawa Cocuradora

Trechos retirados do texto “Prólogo - Tarefas Infinitas” de Paulo Pires do Vale desta publicação.


LIVRO E ARTE – INTERPENETRAÇÕES PLURAIS

O LIVRO QUE ATRAVESSOU O OCEANO

O livro é uma tecnologia que resiste ao tempo. Em que pese o estágio de avanço tecnológico atual, em que muitas invenções divisam rapidamente a sombra da obsolescência, o livro permanece como um ente querido e necessário, a indicar seus trunfos e os muitos modos pelos quais sua materialidade se dá aos sentidos. O livro, nesse aspecto, é uma forma de arte. E como tal, adquire um estatuto que amplia os sentidos de sua presença à mão, à visão e à imaginação do leitor. A relação entre livro e arte é plural. Como criações da inventividade humana, ambos são a expressão de uma cultura entendida como forma de aprendizagem da atenção e como atenção para a aprendizagem, principalmente hoje em dia, quando os objetos tecnológicos que nos cercam alimentam a falta de atenção e a distração, expressas no salto constante do olhar de uma coisa a outra, de um objeto a outro, quase incessantemente. Em contraponto, o livro como forma de arte e a arte expressa a partir da materialidade do livro clamam para o rompimento com esse tempo linear e homogêneo da repetição banalizada, que desabastece a vida e faz com que cada um de nós deixe de ser um “leitor” reflexivo de si mesmo, subtraindo-se ao engendramento do próprio destino. Na relação aludida acima, podemos nos questionar sobre como um livro e uma obra de arte, em interpenetração, passam a existir ao serem visados. Como é que são lidos e entendidos? O que podemos fazer deles e com eles? E, primordialmente, partindo do diálogo infindável que se estabelece entre a materialidade do livro e o universo da arte, quais são as experiências estéticas e sinestésicas possíveis? Tendo como ponto de partida tais reflexões, o Sesc, a Fundação Calouste Gulbenkian de Portugal e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin trazem para o Brasil a exposição Tarefas Infinitas. Com início em Lisboa e tendo sido realizada também em Paris, a mostra chega com obras pertencentes ao Museu e à Biblioteca de Arte da referida Fundação. E é ampliada aqui com outra mostra contendo obras históricas do acervo da Biblioteca Brasiliana, pela mão do curador português Paulo Pires do Vale, responsável pela curadoria da exposição portuguesa, em união às pesquisadoras brasileiras Diana Mindlin e Rosely Nakagawa para a seleção feita localmente na Brasiliana. A exposição desses acervos se constitui ainda mediante a intenção de colocar à prova os desafios inerentes às obras de arte, nas quais o livro tem presença decisiva, mirando também, em acréscimo, o que é um livro e do que ele é capaz. Receber a exposição no Sesc implica em reafirmar a vocação institucional para a reflexão e a partilha de saberes, em clara contribuição direcionada ao estatuto da cultura e da educação como bens de direito comum a cada cidadão. Esse é o compromisso estabelecido ao realizar a exposição Tarefas Infinitas: tornar público e amplo o diálogo já infinito que a arte e o livro estabelecem há séculos.

Em 2012 recebi do meu professor e amigo Khaled Ghoubar um livro. Um livro sobre livros; intrigante pelo formato, apresentação, conceito e imagem. Um desses livros que precisam de tempo de convivência, pois nos levam além da simples leitura. Tarefas Infinitas - Quando a Arte e o Livro se Ilimitam foi o propulsor para a retomada de pesquisas sobre impressão, gravura e encadernação que eu havia iniciado ainda na universidade durante a década de 70, época em que o professor Khaled me abriu as portas da biblioteca da FAU-USP e Diana Mindlin me orientou na tese de graduação. Tanto a biblioteca como os laboratórios de Fotografia e Artes Gráficas foram fundamentais na minha formação, mais do que as aulas formais ou de ateliê. Assim, o fascínio pela publicação Tarefas Infinitas foi imediato e natural. Uma paixão que transformou-se, primeiro, em desejo de realizar esta exposição e finalmente realidade, acolhida pelo Sesc São Paulo. Realizado originalmente na Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, o projeto do curador português Paulo Pires do Vale aproxima obras do acervo histórico da Biblioteca de Arte desta fundação, de obras de arte contemporânea, ocupando os espaços contíguos da galeria e da biblioteca. Essa ligação de espaços e a diluição de fronteiras nos sugeriu a proposta de realizar a mostra do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Elaboramos o projeto com novo formato, no qual cursos, exposições e fóruns foram “propondo novos modos de acesso ao livro, que não apenas a leitura linear de vai e vem”. Criamos uma programação de cursos com reflexões sobre a evolução dos suportes, desde a pedra até o papel, a protoescrita e a arte caminhando juntas, até a criação das técnicas de reprodução atuais. Os fóruns que se realizarão ao longo do período da mostra e os encontros programados para acontecer no espaço expositivo promoverão ainda uma leitura contextualizante desta “exposição-ensaio”, com obras do acervo da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Além desta versão do projeto com o CPF/Sesc, Paulo Pires do Vale aceitou o desafio de incluir obras de artistas brasileiros contemporâneos mescladas a publicações selecionadas por Diana Mindlin e pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, permitindo, assim, um circuito de leituras e exposição simultânea nos dois espaços. O projeto conta com o Site-Specific Se atacarem fuja aqui pra casa, de Fabio Morais em parceria com a editora IKREK, encartada nesta peça. Temos também a preciosa participação da artista Fernanda Fragateiro, que apresenta a obra Brazil Builds (2015), e o depoimento do arquiteto Paulo Mendes da Rocha (2018) sobre o projeto da Biblioteca de Alexandria (não) realizado para o concurso da Unesco em 1988. Há um buraco no real (2014) é a obra de Dora García que nos convida a iniciar o percurso no espaço da mostra, onde encontraremos as Footnotes [Notas de rodapé], de Alejandro Cesarco, que passam a habitar as salas de estudo. Essa narrativa não descreve uma experiência individual, mas é um testemunho “sobre esse poder do livro e a sua capacidade de saída em direção ao mundo”. Afinal, Tarefas Infinitas atravessou o oceano para dar em terras brasileiras por causa do exemplar de um livro. Aquele que o professor Khaled um dia me deu. Neste momento, temos que agradecer a todos os que colaboraram para que os cursos, os fóruns e a mostra fossem realizados no Brasil em condições muito especiais e num momento delicado para nossa cultura. Esta realização tem um valor imenso por aproximar a Fundação Gulbenkian, o Sesc e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, contribuindo para o desenvolvimento humano através de projetos e tarefas infinitas.

Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo

Rosely Nakagawa Cocuradora

Trechos retirados do texto “Prólogo - Tarefas Infinitas” de Paulo Pires do Vale desta publicação.


FERNANDA FRAGATEIRO (1962) Brazil Builds, 2015 Concreto e livro: Brazil Builds, Architecture New and Old, 1652-1942 (de Philip L. Goodwin, Nova Iorque: MoMA, 1943) 24 x 28,5 x 22,2 cm, Edição 1/1


FERNANDA FRAGATEIRO (1962) Brazil Builds, 2015 Concreto e livro: Brazil Builds, Architecture New and Old, 1652-1942 (de Philip L. Goodwin, Nova Iorque: MoMA, 1943) 24 x 28,5 x 22,2 cm, Edição 1/1


PAULO MENDES DA ROCHA (1928) Maquete para concurso Unesco Biblioteca de Alexandria, Egito, 1988


PAULO MENDES DA ROCHA (1928) Maquete para concurso Unesco Biblioteca de Alexandria, Egito, 1988


TAREFAS INFINITAS. PRÓLOGO

O processo de montagem é a procura de modos de intensificação. Estabelecer afinidades ou contrastes criadores de intensidades. A montagem é um exercício de transplante – escreveu Bresson - porque «uma coisa velha torna-se nova se a separas do que a envolve habitualmente»5. A montagem, por “aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e não pareciam predispostas a sê-lo”6, cria descontinuidades e intervalos. As duas, ou mais, entidades relacionadas numa montagem, não se fundem e unificam. A aproximação não procura a nivelação igualitária de tudo, a homegenização, mas deseja manter a diferença do diferente. A montagem, por isso, não se faz com o igual, mas com o heterogêneo – e Montaigne confessava: «apraz-me a maneira de avançar da poesia, aos saltos e aos pinotes»7.

Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e que não pareciam predispostas a sê-lo. Robert Bresson

Esta exposição é um ensaio. Um ensaio, ensinou-nos Montaigne, é um texto que explora um objecto por tentativas, e que assim se acerca do próprio escritor – sem a pretensão de argumentar uma tese metódica e conclusiva. O ensaio em vez de conclusivo é precisamente declusivo: recusa o desejo de conclusão do tratado e a reclusão das cercas dos gêneros literários. O ensaio é propriamente uma «declusão»1 – assim poderá ser uma exposição. Afastando-se do sistema fechado, o ensaio – e esta exposição como ensaio – assume as contradições e conduz tantas vezes a aporias. Gênero intranquilo, chamou-lhe João Barrento2. Atravessa-o uma impureza que desfaz as fronteiras e mistura os gêneros literários. Pode cruzar tempos históricos, proveniências geográficas, autores ou artistas. Como nesta exposição: nem retrospectiva, nem antológica, nem historicista, sem pretender tudo abarcar ou provar uma teoria certa. O ensaio é manifestação e investigação da experiência. Por isso, necessariamente pessoal, mas desejavelmente partilhável – impessoal, pretenderiam Mallarmé e Blanchot. O mais íntimo é também o mais comum. O ensaio requer rigor onde não há certeza categórica: precisamente pelo seu carácter fluido e impuro é ainda mais exigente. Na expressão que João Barrento recupera de Holderlin – aí sobre a poesia –, o ensaio é «cálculo e asas». Do mesmo modo, nesta exposição procuro uma desequilibrante relação entre cálculo e asas. O (des)equilíbrio rigoroso pode encontrar-se entre a apropriação que se faz da obra num discurso expositivo e a compreensão exata de que essa obra escapa sempre à apropriação absoluta.

1 Cf. Jean-Luc Nancy, La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée – 2005. Tem o sentido de retirar as vedações: «descercamento», «descerramento». 2 Cf. João Barrento, O Gênero Intranquilo. Anatomia do Ensaio e do Fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

Uma exposição é a configuração de um espaço crítico. É pensamento no espaço. Pensamento propriamente espaçoso, como já o livro é em Mallarmé. Proposta performativa. Um ensaio é uma montagem de materiais diversos: conceitos e imagens. Do mesmo modo, está em obra numa exposição uma dialética entre sensível e inteligível. Revelando a potência inscrita nas obras: juntando-as, cruzando-as ou separando-as; acrescentando, ou não, textos, silêncio e vazios; percursos e deslocações. E sobre o silêncio, ou o branco e vazio numa exposição, podemos dizer o que Mallarmé afirmou sobre o branco do papel: “significativo silêncio que não é menos belo de compor que o verso”3. No conceito de montagem, onde a imaginação e a intuição têm um papel tão ou mais importante que a conceptualização, revela-se a consciência de que uma citação, uma ideia, uma imagem, uma obra, se transforma em contato com outra. E aquilo que liga o que está separado é sempre uma visão – a do ensaísta, a do curador, a do receptor ativo - o leitor plástico. E, neste último, a imprevisibilidade do efeito. «Fazer adivinhar” – diria Bresson sobre a relação com o público: «habituar o público a adivinhar o todo quando lhe damos apenas uma parte»4.

3 Mallarmé, De la lettre au livre. Paris, Le mot et le reste, 2010, p.203 4 Robert Bresson, Notes sur le cinématographe. Paris: Gallimard, 2012, p.107

EXPOR O LIVRO, NÃO EXPOR LIVROS. Como fazer uma exposição em redor do livro? Falhando-a. Uma exposição falhada: com falhas, sem pretensões totalitárias, enciclopédicas, arquivísticas, mas também não de meras afinidades eletivas. Como um ensaio: propondo, aludindo, indicando, apontando. Por entre as falhas deixadas erguem-se outros mundos possíveis. Por vir. Multiplicando-se. A excedência advém sempre do que falta. Do espaço vazio criador. O ensaio é, nesse sentido, abertura. Ou como escrevem Jean-Luc Nancy e Lacoue -Labarthe, sobre o fragmento como gênero literário romântico: “inacabamento incalculável e indomável: o inacabamento inacabável”8. O fragmento, como o ensaio, como o livro, transporta um desequilíbrio interno. Uma necessária pobreza. Fazer uma exposição, à imagem do objeto desta exposição, implica deixar-lhe sempre algo em falta. À imagem do livro, esta exposição é a proposta de um percurso em redor do vazio. Também aí como um ensaio: atravessa-o uma “vontade de silêncio; ele tem “bolsas de silêncio, suspensões de significação, bolhas em que o leitor pode respirar, interrogar, espantar-se, adivinhar”9. Há nos livros algo em ausência: a sua origem, a sua destinação, a sua efetividade. O autor, os leitores que já teve ou terá, as influências que teve e aquelas que exercerá, o ser atualizado (efetivado). O livro é ser em potência, a que falta sempre a deflagração. Ele é explosão por vir. Ou já acontecida. Uma exposição falhada desde o início, por outro motivo: todos conhecemos um livro que aqui podia entrar, que faz falta, que está ausente. É esse livro que lhe falha que o espectador-leitor pode acrescentar. Deixamos a tarefa por concluir. Infinita. Um infinito por fazer. Sempre a refazer. Como os livros de Edmond Jabès: «Eu erigi os meus livros sobre as falhas do livro. As falhas do livro criam, de cada vez, um novo livro. A falha, num livro, é indispensável. Muitas vezes acredita-se que quanto mais coisas colocarmos num livro, mais peso lhe damos. Na verdade, devemos deixar as portas abertas, e é através destas portas, é através destas falhas que o leitor pode entrar e o livro a ser feito …»10. E acrescentou: «As falhas do livro fazem com que um livro nunca termine de se fazer livro»11. Há uma espécie de reserva em cada livro que cria um novo. Assim como a falha no livro gera outros livros, do mesmo modo das falhas desta exposição outras podem surgir. É sempre, e apenas, um prólogo. TAREFAS INFINITAS. O título desta exposição-ensaio retoma uma expressão que Edmond Husserl usa e analisa na conferência A crise da humanidade europeia e a filosofia, feita em Viena no dia 7 e repetida no dia 10 de Maio de 1935 . Num momento em que sentia o desastre europeu a acontecer, Husserl faz uma análise, inédita na sua obra e de profunda auto-crítica, sobre a importância da história,

5 Ibidem, p.59 6 Ibidem, p.52 7 Michel de Montaigne, Ensaios. (Trad. de Rui Romão). Lisboa, Relógio d´Água, 1998, p. 306

8 Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy, L´absolu littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand. Paris: Seuil, 1978, p.181. 9 Ibidem, p.35

10 Edmond Jabès, “Dialogue avec E. Jabès” in Ecrire le livre autour d´Edmond Jabès. Coloque de Cerisy-la-Salle. Seyssale: Ed. Champ Vallon, 1989, p.312 11 Ibidem, p.314


TAREFAS INFINITAS. PRÓLOGO

O processo de montagem é a procura de modos de intensificação. Estabelecer afinidades ou contrastes criadores de intensidades. A montagem é um exercício de transplante – escreveu Bresson - porque «uma coisa velha torna-se nova se a separas do que a envolve habitualmente»5. A montagem, por “aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e não pareciam predispostas a sê-lo”6, cria descontinuidades e intervalos. As duas, ou mais, entidades relacionadas numa montagem, não se fundem e unificam. A aproximação não procura a nivelação igualitária de tudo, a homegenização, mas deseja manter a diferença do diferente. A montagem, por isso, não se faz com o igual, mas com o heterogêneo – e Montaigne confessava: «apraz-me a maneira de avançar da poesia, aos saltos e aos pinotes»7.

Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e que não pareciam predispostas a sê-lo. Robert Bresson

Esta exposição é um ensaio. Um ensaio, ensinou-nos Montaigne, é um texto que explora um objecto por tentativas, e que assim se acerca do próprio escritor – sem a pretensão de argumentar uma tese metódica e conclusiva. O ensaio em vez de conclusivo é precisamente declusivo: recusa o desejo de conclusão do tratado e a reclusão das cercas dos gêneros literários. O ensaio é propriamente uma «declusão»1 – assim poderá ser uma exposição. Afastando-se do sistema fechado, o ensaio – e esta exposição como ensaio – assume as contradições e conduz tantas vezes a aporias. Gênero intranquilo, chamou-lhe João Barrento2. Atravessa-o uma impureza que desfaz as fronteiras e mistura os gêneros literários. Pode cruzar tempos históricos, proveniências geográficas, autores ou artistas. Como nesta exposição: nem retrospectiva, nem antológica, nem historicista, sem pretender tudo abarcar ou provar uma teoria certa. O ensaio é manifestação e investigação da experiência. Por isso, necessariamente pessoal, mas desejavelmente partilhável – impessoal, pretenderiam Mallarmé e Blanchot. O mais íntimo é também o mais comum. O ensaio requer rigor onde não há certeza categórica: precisamente pelo seu carácter fluido e impuro é ainda mais exigente. Na expressão que João Barrento recupera de Holderlin – aí sobre a poesia –, o ensaio é «cálculo e asas». Do mesmo modo, nesta exposição procuro uma desequilibrante relação entre cálculo e asas. O (des)equilíbrio rigoroso pode encontrar-se entre a apropriação que se faz da obra num discurso expositivo e a compreensão exata de que essa obra escapa sempre à apropriação absoluta.

1 Cf. Jean-Luc Nancy, La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée – 2005. Tem o sentido de retirar as vedações: «descercamento», «descerramento». 2 Cf. João Barrento, O Gênero Intranquilo. Anatomia do Ensaio e do Fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

Uma exposição é a configuração de um espaço crítico. É pensamento no espaço. Pensamento propriamente espaçoso, como já o livro é em Mallarmé. Proposta performativa. Um ensaio é uma montagem de materiais diversos: conceitos e imagens. Do mesmo modo, está em obra numa exposição uma dialética entre sensível e inteligível. Revelando a potência inscrita nas obras: juntando-as, cruzando-as ou separando-as; acrescentando, ou não, textos, silêncio e vazios; percursos e deslocações. E sobre o silêncio, ou o branco e vazio numa exposição, podemos dizer o que Mallarmé afirmou sobre o branco do papel: “significativo silêncio que não é menos belo de compor que o verso”3. No conceito de montagem, onde a imaginação e a intuição têm um papel tão ou mais importante que a conceptualização, revela-se a consciência de que uma citação, uma ideia, uma imagem, uma obra, se transforma em contato com outra. E aquilo que liga o que está separado é sempre uma visão – a do ensaísta, a do curador, a do receptor ativo - o leitor plástico. E, neste último, a imprevisibilidade do efeito. «Fazer adivinhar” – diria Bresson sobre a relação com o público: «habituar o público a adivinhar o todo quando lhe damos apenas uma parte»4.

3 Mallarmé, De la lettre au livre. Paris, Le mot et le reste, 2010, p.203 4 Robert Bresson, Notes sur le cinématographe. Paris: Gallimard, 2012, p.107

EXPOR O LIVRO, NÃO EXPOR LIVROS. Como fazer uma exposição em redor do livro? Falhando-a. Uma exposição falhada: com falhas, sem pretensões totalitárias, enciclopédicas, arquivísticas, mas também não de meras afinidades eletivas. Como um ensaio: propondo, aludindo, indicando, apontando. Por entre as falhas deixadas erguem-se outros mundos possíveis. Por vir. Multiplicando-se. A excedência advém sempre do que falta. Do espaço vazio criador. O ensaio é, nesse sentido, abertura. Ou como escrevem Jean-Luc Nancy e Lacoue -Labarthe, sobre o fragmento como gênero literário romântico: “inacabamento incalculável e indomável: o inacabamento inacabável”8. O fragmento, como o ensaio, como o livro, transporta um desequilíbrio interno. Uma necessária pobreza. Fazer uma exposição, à imagem do objeto desta exposição, implica deixar-lhe sempre algo em falta. À imagem do livro, esta exposição é a proposta de um percurso em redor do vazio. Também aí como um ensaio: atravessa-o uma “vontade de silêncio; ele tem “bolsas de silêncio, suspensões de significação, bolhas em que o leitor pode respirar, interrogar, espantar-se, adivinhar”9. Há nos livros algo em ausência: a sua origem, a sua destinação, a sua efetividade. O autor, os leitores que já teve ou terá, as influências que teve e aquelas que exercerá, o ser atualizado (efetivado). O livro é ser em potência, a que falta sempre a deflagração. Ele é explosão por vir. Ou já acontecida. Uma exposição falhada desde o início, por outro motivo: todos conhecemos um livro que aqui podia entrar, que faz falta, que está ausente. É esse livro que lhe falha que o espectador-leitor pode acrescentar. Deixamos a tarefa por concluir. Infinita. Um infinito por fazer. Sempre a refazer. Como os livros de Edmond Jabès: «Eu erigi os meus livros sobre as falhas do livro. As falhas do livro criam, de cada vez, um novo livro. A falha, num livro, é indispensável. Muitas vezes acredita-se que quanto mais coisas colocarmos num livro, mais peso lhe damos. Na verdade, devemos deixar as portas abertas, e é através destas portas, é através destas falhas que o leitor pode entrar e o livro a ser feito …»10. E acrescentou: «As falhas do livro fazem com que um livro nunca termine de se fazer livro»11. Há uma espécie de reserva em cada livro que cria um novo. Assim como a falha no livro gera outros livros, do mesmo modo das falhas desta exposição outras podem surgir. É sempre, e apenas, um prólogo. TAREFAS INFINITAS. O título desta exposição-ensaio retoma uma expressão que Edmond Husserl usa e analisa na conferência A crise da humanidade europeia e a filosofia, feita em Viena no dia 7 e repetida no dia 10 de Maio de 1935 . Num momento em que sentia o desastre europeu a acontecer, Husserl faz uma análise, inédita na sua obra e de profunda auto-crítica, sobre a importância da história,

5 Ibidem, p.59 6 Ibidem, p.52 7 Michel de Montaigne, Ensaios. (Trad. de Rui Romão). Lisboa, Relógio d´Água, 1998, p. 306

8 Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy, L´absolu littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand. Paris: Seuil, 1978, p.181. 9 Ibidem, p.35

10 Edmond Jabès, “Dialogue avec E. Jabès” in Ecrire le livre autour d´Edmond Jabès. Coloque de Cerisy-la-Salle. Seyssale: Ed. Champ Vallon, 1989, p.312 11 Ibidem, p.314


e lembrou os seus auditores que a unidade da vida espiritual e a atividade criativa europeia têm as suas raízes no sentido teleológico que marca a história europeia - e que a define como um lugar espiritual mais do que geográfico. E esse sentido teleológico tem a sua fundação no aparecimento da filosofia grega. No século VI a.C. surge na Grécia o homem com “tarefas infinitas”. Antes da filosofia, a cultura e o homem são tarefas completadas na finitude. Não está ainda disponível “o horizonte sem fim” aberto em redor do homem. Com o aparecimento da filosofia, o horizonte fechado e finito é substituído por um de possibilidade sem fim, sempre em reformulação. Não apenas no âmbito da filosofia, da ciência ou do conhecimento teórico, mas em todos os campos culturais: a infinitude estende-se e contamina o todo da existência humana. Revoluciona o homem criador de cultura. Este novo horizonte aberto ao homem revoluciona a historicidade: desaparece a humanidade finita, começa a história da humanidade com tarefas infinitas. Outros povos tiveram conhecimento, pensamento, deuses – mas uma atitude de interesse puramente teórico e vital pelo conhecimento universal, surgiu pela primeira vez com os gregos, segundo Husserl. E estes distinguem-se também pela especificidade do caráter comunitário desse empreendimento. Os filósofos, astrônomos, matemáticos (cientistas) trabalham entre si e uns para os outros, no sentido do desenvolvimento teórico. É nessa atitude que radica a “forma espiritual da Europa”: com ideais orientadores para o homem singular e para as nações. A “tarefa da teoria” é a “tarefa infinita”, que orienta todas as outras tarefas in infinitum. A existência humana, segundo este modelo, passa a ser vivida “sub specie aeternitatis”, indica Husserl. E, por isso mesmo, não permite a arrogância da absolutização de um pensamento único: só em permanente reflexão se pode atingir o objectivo, sempre em ultrapassagem. Nesta conferência de Viena, o termo alemão Aufgaben – tarefas – surge, no plural e no singular, 27 vezes, quase sempre em articulação direta com a palavra unendliches – infinitas. Essa repetição, feita por um filósofo rigoroso, num texto relativamente breve, demonstra a importância do conceito: o trabalho e esforço humanos não o deixam de ser, mas passam a ter um horizonte novo. A tarefa abre-se ao que a antecede e a ultrapassa. Ao que foi e ao que virá. É por esse esforço atento sempre renovado que a história se apresenta como “teleologia imanente”. O horizonte de cada momento, de cada gesto, cada procura, cada investigação, cada obra de arte, cada livro, ainda que situados historicamente, é um horizonte infinito. O trabalho verdadeiramente humano e a história são, agora, um processo sem fim, com uma finalidade sempre inalcançada. A palavra Aufgabe tem no seu interior a palavra dom – gabe. A tarefa é a resposta ao dom, a uma dádiva. É um sobre-dom. Construção sobre algo que recebemos, que nos foi dado. Que vem de trás e que comunicamos, alterado por nós, aos que nos sucedem. Não criamos a partir do nada, ex-nihilo. Nessa linhagem, que Husserl remonta aos gregos e ao amor à sabedoria, o livro e a arte encontram-se inscritos num horizonte que os ultrapassa. Numa contínua prova mútua, apresentam-se como “tarefas infinitas”. Resultado de um amor que envolve e ultrapassa os indivíduos: uma paixão pelo que vem.

Como expor o livro? Como não falhar, se um livro não é apenas uma imagem ou um objeto no espaço, mas também tempo – e não serão os livros, com as suas narrativas, a forma humana de conquistar o tempo, de o dominar? Como expor uma experiência, a da leitura? Um acontecimento pessoal, subjetivo, insubstituível, mutante? E a surpresa

do que se esconde do outro lado da página que não posso folhear? Como mostrar um «instrumento» na sua «operância» espiritual? Como mostrar as explosões, e não o engenho explosivo? E onde opera ele, no exterior ou dentro do processo de leitura? E se um livro não existir sem o leitor? – Como afirmava Jabès, «a realidade do livro está na leitura»12. Ou como perguntava Blanchot: “O que é um livro que não lemos? Algo que não foi ainda escrito. Ler é, então, não escrever de novo o livro, mas fazer que o livro se escreva ou seja escrito - desta vez sem o intermediário do escritor, sem a pessoa que o escreve”13 Há livros-objetos, que são da família da escultura ou da pintura: expõem-se, revelam-se. Mas como mostrar o que não é da ordem do espetáculo, do fenômeno, da luz? Porque um livro é também um reduto de obscuridade, de segredo, de encontro solitário e secreto – de percurso insubstituível por entre as trevas – viagem ao fim da noite. Dispositivos de subjetivação, os livros são matéria e movimento. Espaço e tempo. Se o primeiro é deles, e intromete-se no nosso espaço e relaciona-se com o nosso corpo, o segundo é do leitor. Não podemos expor a experiência, mas podemos facultar, dar à experiência. Tendo no centro da sua atenção o livro – sempre numa dimensão múltipla – interessa-me dar a pensar e a experimentar o que é e o que pode um livro, num confronto permanente com o gesto artístico. E nesse confronto perceber: de que modo a arte ilimita o livro, e o livro ilimita a arte? Como se reconfiguram novos limites mútuos nesse encontro? Limiares sempre precários e reconstituídos. Mostrar, então, o livro enquanto laboratório de experiências estéticas, ou como a elas os livros conduzem. Um medium que abre um horizonte infinito de possíveis à arte, possibilidades que não existiam antes desse confronto, interrogando e alargando também as nossas concepções «seguras» e tradicionais de livro e de obra: será isto ainda um livro? Será isto ainda uma obra-de-arte? Encontramos aqui filmes, esculturas, instalações, pintura, fotografia, livros únicos e outros de produção industrial, artistas consagrados e outros desconhecidos (mesmo anônimos). Partimos de uma questão dupla: de que modo a arte põe à prova o livro, e como o livro põe à prova a arte? A arte e a literatura, propõem-se, a um tempo, usar e criticar esse dispositivo: o codex. Abrindo-os, fechando-os, negando-os ou desviando-os do seu modo habitual de existir para outras funções – ou conduzindo-os à inutilidade. Tornando-os infinitos, ilegíveis, inquietos, inesperados, desconcertantes, explosivos, fogo-cinzas, circulares... Propondo novos modos de acesso ao livro, que não apenas a leitura linear de vai e vem. Os livros e as obras aqui expostas revelam que ler é mais do que “ler as palavras de um livro”. Não se pode reduzir a experiência do livro à leitura ligada ao conhecimento. Ler é experimentar o mundo de outro modo – e não apenas um estar fora do mundo: é modo de sentir, é experiência estética e erótica, e não apenas gnoseológica, lógica ou ética. Nesta exposição fica claro que os livros não instituem-constituem apenas o sentido, mas também a sua destruição - destituem mesmo a possibilidade desse sentido ser descoberto, ou sequer existir. Remetem-nos para a obscuridade essencial ou para a possibilidade de uma nova luz. Como acolher a ilegibilidade, a cegueira do sentido evidente. Experimentar outros modos de acesso ao livro que não a leitura-interpretação do entendimento. Substituir a hermenêutica, por uma erótica, indicou Susan Sontag. Na dobra das folhas está a estratégia de infinitude do livro. A indicação de que o limite da página é sempre um início, não o fim. Passagem. Que o limite é ainda indicação de um outro que o limita, et sic in infinitum. E para lá do fim deste livro, ao seu lado, antes e depois, uma biblioteca interminável. O espaço infinito será o livro?

12 Ibidem, p.312 13 Blanchot. L´espace littéraire, p.254


e lembrou os seus auditores que a unidade da vida espiritual e a atividade criativa europeia têm as suas raízes no sentido teleológico que marca a história europeia - e que a define como um lugar espiritual mais do que geográfico. E esse sentido teleológico tem a sua fundação no aparecimento da filosofia grega. No século VI a.C. surge na Grécia o homem com “tarefas infinitas”. Antes da filosofia, a cultura e o homem são tarefas completadas na finitude. Não está ainda disponível “o horizonte sem fim” aberto em redor do homem. Com o aparecimento da filosofia, o horizonte fechado e finito é substituído por um de possibilidade sem fim, sempre em reformulação. Não apenas no âmbito da filosofia, da ciência ou do conhecimento teórico, mas em todos os campos culturais: a infinitude estende-se e contamina o todo da existência humana. Revoluciona o homem criador de cultura. Este novo horizonte aberto ao homem revoluciona a historicidade: desaparece a humanidade finita, começa a história da humanidade com tarefas infinitas. Outros povos tiveram conhecimento, pensamento, deuses – mas uma atitude de interesse puramente teórico e vital pelo conhecimento universal, surgiu pela primeira vez com os gregos, segundo Husserl. E estes distinguem-se também pela especificidade do caráter comunitário desse empreendimento. Os filósofos, astrônomos, matemáticos (cientistas) trabalham entre si e uns para os outros, no sentido do desenvolvimento teórico. É nessa atitude que radica a “forma espiritual da Europa”: com ideais orientadores para o homem singular e para as nações. A “tarefa da teoria” é a “tarefa infinita”, que orienta todas as outras tarefas in infinitum. A existência humana, segundo este modelo, passa a ser vivida “sub specie aeternitatis”, indica Husserl. E, por isso mesmo, não permite a arrogância da absolutização de um pensamento único: só em permanente reflexão se pode atingir o objectivo, sempre em ultrapassagem. Nesta conferência de Viena, o termo alemão Aufgaben – tarefas – surge, no plural e no singular, 27 vezes, quase sempre em articulação direta com a palavra unendliches – infinitas. Essa repetição, feita por um filósofo rigoroso, num texto relativamente breve, demonstra a importância do conceito: o trabalho e esforço humanos não o deixam de ser, mas passam a ter um horizonte novo. A tarefa abre-se ao que a antecede e a ultrapassa. Ao que foi e ao que virá. É por esse esforço atento sempre renovado que a história se apresenta como “teleologia imanente”. O horizonte de cada momento, de cada gesto, cada procura, cada investigação, cada obra de arte, cada livro, ainda que situados historicamente, é um horizonte infinito. O trabalho verdadeiramente humano e a história são, agora, um processo sem fim, com uma finalidade sempre inalcançada. A palavra Aufgabe tem no seu interior a palavra dom – gabe. A tarefa é a resposta ao dom, a uma dádiva. É um sobre-dom. Construção sobre algo que recebemos, que nos foi dado. Que vem de trás e que comunicamos, alterado por nós, aos que nos sucedem. Não criamos a partir do nada, ex-nihilo. Nessa linhagem, que Husserl remonta aos gregos e ao amor à sabedoria, o livro e a arte encontram-se inscritos num horizonte que os ultrapassa. Numa contínua prova mútua, apresentam-se como “tarefas infinitas”. Resultado de um amor que envolve e ultrapassa os indivíduos: uma paixão pelo que vem.

Como expor o livro? Como não falhar, se um livro não é apenas uma imagem ou um objeto no espaço, mas também tempo – e não serão os livros, com as suas narrativas, a forma humana de conquistar o tempo, de o dominar? Como expor uma experiência, a da leitura? Um acontecimento pessoal, subjetivo, insubstituível, mutante? E a surpresa

do que se esconde do outro lado da página que não posso folhear? Como mostrar um «instrumento» na sua «operância» espiritual? Como mostrar as explosões, e não o engenho explosivo? E onde opera ele, no exterior ou dentro do processo de leitura? E se um livro não existir sem o leitor? – Como afirmava Jabès, «a realidade do livro está na leitura»12. Ou como perguntava Blanchot: “O que é um livro que não lemos? Algo que não foi ainda escrito. Ler é, então, não escrever de novo o livro, mas fazer que o livro se escreva ou seja escrito - desta vez sem o intermediário do escritor, sem a pessoa que o escreve”13 Há livros-objetos, que são da família da escultura ou da pintura: expõem-se, revelam-se. Mas como mostrar o que não é da ordem do espetáculo, do fenômeno, da luz? Porque um livro é também um reduto de obscuridade, de segredo, de encontro solitário e secreto – de percurso insubstituível por entre as trevas – viagem ao fim da noite. Dispositivos de subjetivação, os livros são matéria e movimento. Espaço e tempo. Se o primeiro é deles, e intromete-se no nosso espaço e relaciona-se com o nosso corpo, o segundo é do leitor. Não podemos expor a experiência, mas podemos facultar, dar à experiência. Tendo no centro da sua atenção o livro – sempre numa dimensão múltipla – interessa-me dar a pensar e a experimentar o que é e o que pode um livro, num confronto permanente com o gesto artístico. E nesse confronto perceber: de que modo a arte ilimita o livro, e o livro ilimita a arte? Como se reconfiguram novos limites mútuos nesse encontro? Limiares sempre precários e reconstituídos. Mostrar, então, o livro enquanto laboratório de experiências estéticas, ou como a elas os livros conduzem. Um medium que abre um horizonte infinito de possíveis à arte, possibilidades que não existiam antes desse confronto, interrogando e alargando também as nossas concepções «seguras» e tradicionais de livro e de obra: será isto ainda um livro? Será isto ainda uma obra-de-arte? Encontramos aqui filmes, esculturas, instalações, pintura, fotografia, livros únicos e outros de produção industrial, artistas consagrados e outros desconhecidos (mesmo anônimos). Partimos de uma questão dupla: de que modo a arte põe à prova o livro, e como o livro põe à prova a arte? A arte e a literatura, propõem-se, a um tempo, usar e criticar esse dispositivo: o codex. Abrindo-os, fechando-os, negando-os ou desviando-os do seu modo habitual de existir para outras funções – ou conduzindo-os à inutilidade. Tornando-os infinitos, ilegíveis, inquietos, inesperados, desconcertantes, explosivos, fogo-cinzas, circulares... Propondo novos modos de acesso ao livro, que não apenas a leitura linear de vai e vem. Os livros e as obras aqui expostas revelam que ler é mais do que “ler as palavras de um livro”. Não se pode reduzir a experiência do livro à leitura ligada ao conhecimento. Ler é experimentar o mundo de outro modo – e não apenas um estar fora do mundo: é modo de sentir, é experiência estética e erótica, e não apenas gnoseológica, lógica ou ética. Nesta exposição fica claro que os livros não instituem-constituem apenas o sentido, mas também a sua destruição - destituem mesmo a possibilidade desse sentido ser descoberto, ou sequer existir. Remetem-nos para a obscuridade essencial ou para a possibilidade de uma nova luz. Como acolher a ilegibilidade, a cegueira do sentido evidente. Experimentar outros modos de acesso ao livro que não a leitura-interpretação do entendimento. Substituir a hermenêutica, por uma erótica, indicou Susan Sontag. Na dobra das folhas está a estratégia de infinitude do livro. A indicação de que o limite da página é sempre um início, não o fim. Passagem. Que o limite é ainda indicação de um outro que o limita, et sic in infinitum. E para lá do fim deste livro, ao seu lado, antes e depois, uma biblioteca interminável. O espaço infinito será o livro?

12 Ibidem, p.312 13 Blanchot. L´espace littéraire, p.254


LAWRENCE WEINER (1942) Deep blue sky light blue sky [Profundo céu azul, claro céu azul], [Finalmente a sós com você] 2007 Livro impresso 23 x 14,1 cm

UMA FENDA NO MUNDO Ao abrir o livro, a noite cerca-nos. A sós com ele, entre as mãos surge uma inesperada fenda. Uma porta que permite entrar noutro espaço e noutro tempo. Ele oferece um mapa inacabado, uma proposta de viagem insegura. Abrem-se estradas nunca percorridas, os sentidos bifurcam-se. Dentro do livro, o leitor pode descobrir uma casa – um modo de hospitalidade. Ele sabe, no entanto, que não tem aí morada permanente.


LAWRENCE WEINER (1942) Deep blue sky light blue sky [Profundo céu azul, claro céu azul], [Finalmente a sós com você] 2007 Livro impresso 23 x 14,1 cm

UMA FENDA NO MUNDO Ao abrir o livro, a noite cerca-nos. A sós com ele, entre as mãos surge uma inesperada fenda. Uma porta que permite entrar noutro espaço e noutro tempo. Ele oferece um mapa inacabado, uma proposta de viagem insegura. Abrem-se estradas nunca percorridas, os sentidos bifurcam-se. Dentro do livro, o leitor pode descobrir uma casa – um modo de hospitalidade. Ele sabe, no entanto, que não tem aí morada permanente.


UMA FENDA NO MUNDO

Todo o leitor já terá experimentado, alguma vez na sua vida, a urgência de se ver a sós com o livro que quer ou está a ler. Mesmo que no meio da multidão, no instante em que abre o livro, como para os amantes nas ruas de uma cidade agitada, só o amado existe. A leitura, tal como o amor segundo Hannah Arendt, coloca-nos fora do mundo. A relação com o livro implica em uma saída e uma intimidade. E como o enamorado, aquele que se perde na leitura, que se entrega a ela como numa espécie de abandono, ausenta-se. Está e não está ali. Como escreveu Michel de Certeau, “Experiência inicial, até mesmo iniciática: ler é estar noutro lugar, lá onde não estão, num outro mundo; é constituir uma cena secreta, um lugar onde se entra e se sai à vontade; é criar cantos de sombra e noite numa existência sujeita à transparência tecnocrática e a essa luz implacável que, em Genet, materializa o inferno da alienação social. Marguerite Duras observou: “Talvez uma pessoa sempre leia no escuro... ler é a escuridão da noite. Mesmo se lermos em plena luz do dia, lá fora, a noite faz-se em redor do livro”14. A leitura cria uma cápsula noturna de solidão em redor do leitor, e é, assim, uma forma de desterritorialização, de criação de novos territórios, de libertação do tempo e lugar imediato. Possibilidade de um encontro a dois. Uma cena de leitura, em que o corpo do leitor e o do livro se fundem, são um mesmo corpo. A mão é o livro e o livro a mão. O corpo do leitor dobrase sobre o do livro, e são um. Durante muito tempo, a leitura foi uma ação de exteriorização, de dar voz ao texto, a leitura era feita em voz alta. Hoje, de modo mais comum, a leitura é ato íntimo. Numa cena de leitura, a abertura do livro pelo leitor, tem algo de desvelamento, de desnudamento - mas de nudez mútua. Dupla exposição: do leitor iluminado pelo texto ou imagens do livro, e do livro que se oferece ao olhar copioso e expectante do leitor. Leitor e livro abrem-se. Os dois podem dizer: Alone at last with you - frase que surge como sinal de um desejo ou promessa cumprida nas páginas do livro Deep blue sky de Lawrence Weiner.

Na noite que rodeia o leitor, entre as suas mãos, abre-se uma fenda. Não para espreitar por ela, como voyers afastados do acontecimento, mas para entrar por ela, ser atraídos e sugados para dentro dela - mesmo sendo apenas obscuridade o que promete. É essa falha, esse entre-deux15, que permite que entremos dentro do livro. Não o que o livro tem, mas o que lhe

falta. Não a sua perfeição ou completude, mas a incompletude. Precisamos dessa imperfeição do mediador. Sem espaço vazio, não preenchido, não haveria lugar para o leitor. Ficaríamos de fora. Entramos dentro do livro pelas fissuras que ele tem. É esse o lugar do leitor ativo, onde projeta o sentido, onde adivinha o que não está lá. Onde se adivinha a si mesmo. Entrar no livro, implica dar esse salto. Avançar por essa fenda, como Alice atrás do coelho. E cair. Saltar em direção ao vazio. Ler implica uma forma de confiança - mesmo que o autor ou o texto nos convide à desconfiança. Precisamos de, retomando a tese de Coleridge, suspender a descrença. Um Abismo (Lucia Loeb). Uma “fenda de mistério”, chamou Mallarmé à dobra, ao entre-folhas que permite intuir um outro lado imprevisto. Dessa fenda chega-nos por vezes uma luz, noutros momentos a obscuridade. A indicação de uma passagem. E a possibilidade do virar da página, de desvelar o segredo que do outro lado se esconde, espaço desconhecido. Noite.

JÉROME VALLET Description succinte de la colonne historiée de Constantinople: Dressée à l’ honneur de l’Empereur Theodose le jeune/expliqué par le reverend pere Claude-François Menestrier de la Compagnie de Jesus; e gravée par Jérome Vallet [Descrição sucinta da coluna histórica de Constantinopla: erguida em honra do Imperador Theodósio o jovem/ explicada pelo reverendo padre Claude-François Menestrier, 1702 54 x 42,5 x 2 cm

Edmond Jabès, que tanto refletiu sobre o livro, deixar-nos-ia dizer que a “fenda mais luminosa”16 podemos encontrá-la num livro? Somos o fio e a agulha, a leitura e o livro. Nesse sentido, a luz que por essa “abertura feliz ou sangrenta” nos chega, conduz-nos à noite – mas noite que não é exterior, que somos nós próprios. E, no entanto, é ela o mais fora, o mais desconhecido. O fora que essa noite é – Blanchot escreveu-o – é também o

mais íntimo: temos esse outro em nós. Essa fenda. Esse livro. De outro modo não a poderíamos encontrar-reconhecer no livro que lemos. Como Proust desejava, o livro torna-se numa lente com que o leitor se encontra: “o trabalho do escritor não é senão uma espécie de instrumento ótico que ele oferece ao leitor para que isso lhe permita discernir aquilo que sem o livro ele talvez não tivesse visto em si mesmo”17. Os leitores tornam-se, assim, “leitores de si mesmo” – eles não lêem o autor ou o livro, lêem-se a si mesmo. É a leitura que dá o impulso necessário, criativo, aos espíritos preguiçosos que somos, ensinou Proust: no ato de leitura, um impulso surge dentro de nós, mas que de algum modo vem do exterior - uma exterioridade interiorizada e motriz, indutora de mudança18. Não de simples reconhecimento de quem se é, mas de descoberta de possibilidades insuspeitas de si mesmo. Outros modos de orientação no horizonte que é o mundo. Proposta de um novo modo de habitação. De uma outra cena aberta à sua frente, tão comum quanto misteriosa e mágica - como na cena de leitura que Burne-Jones desenha para a obra de Chaucer, Canterbury Tales, e considerado o expoente máximo do design de William Morris, editado na sua Kelmscott Press, em 1896. A entrada no livro implica uma saída do mundo, mas só se completará com a reentrada no mundo. Como percebeu Paul Ricoeur, quanto mais radical for a saída do habitual, maior capacidade esse movimento tem de reconfigurar o horizonte de possibilidades do leitor. Mas podemos afirmar o mesmo do escritor: o livro, a escrita, constrói o autor – e dá-lhe a sua identidade (ser escritor). E como escreveu Jabès: “Pouco a pouco o livro completar-me- á”. O escritor é, assim, mestre e discípulo do livro. E acrescentou o poeta: “Fazendo e desfazendo o livro, eu sou feito e desfeito por ele; foi por isso que pude escrever: Eu não escrevo, eu sou escrito”19.

Um livro pode oferecer um mapa em branco – como o mapa do mar da Caça ao Snark de Carrol. Um mapa de navegação sem referências fixas (e por isso o mais democrático, porque todos o conseguem ler). Uma aventura por fazer: um mapa por desenhar. Como um livro por vir (Blanchot). Um bom livro oferece-se sempre como mapa impossível. Sem segurança. Desconhecido. Sempre diferente para cada um.

16 E. Jabès, Le livre des questions. Paris: Gallimard – 2010, p.47: “On entre dans la nuit/ comme le fil dans l´aiguille,/ par une ouverture heureuse/ ou sanglante,/ par la fente la plus lumineuse./ Étan fil e aiguille/ on entre dans la nuit/ comme en soi-même.”

14 Michel de Certeau, L´invention du quotidien. 1. arts de faire. Paris, Gallimard, 1990, p.250

17 Marcel Proust, Le temps retrouvé. Paris, Gallimard, 1989, p.218

15 É assim que o autor da Description sucinte de la colonne historiée de Constantinople…, de 1702, descreve a falha que encontra na coluna quebrada que grava

18 Marcel Proust, O prazer da leitura. (Trad. Magda Figueiredo). Lisboa, Teorema, 2003, p.40

minuciosamente: ali falta um grande entre-deux. E ao gravar essa fenda na coluna, permite que ela se abra agora, já não na coluna, mas à nossa frente no livro.

19 E. Jabès, “Dialogue avec E. Jabès” in Ecrire le livre autour d´Edmond Jabès. Coloque de Cerisy-la-Salle. Seyssele: Ed. Champon Vallon, 1989, p.313


UMA FENDA NO MUNDO

Todo o leitor já terá experimentado, alguma vez na sua vida, a urgência de se ver a sós com o livro que quer ou está a ler. Mesmo que no meio da multidão, no instante em que abre o livro, como para os amantes nas ruas de uma cidade agitada, só o amado existe. A leitura, tal como o amor segundo Hannah Arendt, coloca-nos fora do mundo. A relação com o livro implica em uma saída e uma intimidade. E como o enamorado, aquele que se perde na leitura, que se entrega a ela como numa espécie de abandono, ausenta-se. Está e não está ali. Como escreveu Michel de Certeau, “Experiência inicial, até mesmo iniciática: ler é estar noutro lugar, lá onde não estão, num outro mundo; é constituir uma cena secreta, um lugar onde se entra e se sai à vontade; é criar cantos de sombra e noite numa existência sujeita à transparência tecnocrática e a essa luz implacável que, em Genet, materializa o inferno da alienação social. Marguerite Duras observou: “Talvez uma pessoa sempre leia no escuro... ler é a escuridão da noite. Mesmo se lermos em plena luz do dia, lá fora, a noite faz-se em redor do livro”14. A leitura cria uma cápsula noturna de solidão em redor do leitor, e é, assim, uma forma de desterritorialização, de criação de novos territórios, de libertação do tempo e lugar imediato. Possibilidade de um encontro a dois. Uma cena de leitura, em que o corpo do leitor e o do livro se fundem, são um mesmo corpo. A mão é o livro e o livro a mão. O corpo do leitor dobrase sobre o do livro, e são um. Durante muito tempo, a leitura foi uma ação de exteriorização, de dar voz ao texto, a leitura era feita em voz alta. Hoje, de modo mais comum, a leitura é ato íntimo. Numa cena de leitura, a abertura do livro pelo leitor, tem algo de desvelamento, de desnudamento - mas de nudez mútua. Dupla exposição: do leitor iluminado pelo texto ou imagens do livro, e do livro que se oferece ao olhar copioso e expectante do leitor. Leitor e livro abrem-se. Os dois podem dizer: Alone at last with you - frase que surge como sinal de um desejo ou promessa cumprida nas páginas do livro Deep blue sky de Lawrence Weiner.

Na noite que rodeia o leitor, entre as suas mãos, abre-se uma fenda. Não para espreitar por ela, como voyers afastados do acontecimento, mas para entrar por ela, ser atraídos e sugados para dentro dela - mesmo sendo apenas obscuridade o que promete. É essa falha, esse entre-deux15, que permite que entremos dentro do livro. Não o que o livro tem, mas o que lhe

falta. Não a sua perfeição ou completude, mas a incompletude. Precisamos dessa imperfeição do mediador. Sem espaço vazio, não preenchido, não haveria lugar para o leitor. Ficaríamos de fora. Entramos dentro do livro pelas fissuras que ele tem. É esse o lugar do leitor ativo, onde projeta o sentido, onde adivinha o que não está lá. Onde se adivinha a si mesmo. Entrar no livro, implica dar esse salto. Avançar por essa fenda, como Alice atrás do coelho. E cair. Saltar em direção ao vazio. Ler implica uma forma de confiança - mesmo que o autor ou o texto nos convide à desconfiança. Precisamos de, retomando a tese de Coleridge, suspender a descrença. Um Abismo (Lucia Loeb). Uma “fenda de mistério”, chamou Mallarmé à dobra, ao entre-folhas que permite intuir um outro lado imprevisto. Dessa fenda chega-nos por vezes uma luz, noutros momentos a obscuridade. A indicação de uma passagem. E a possibilidade do virar da página, de desvelar o segredo que do outro lado se esconde, espaço desconhecido. Noite.

JÉROME VALLET Description succinte de la colonne historiée de Constantinople: Dressée à l’ honneur de l’Empereur Theodose le jeune/expliqué par le reverend pere Claude-François Menestrier de la Compagnie de Jesus; e gravée par Jérome Vallet [Descrição sucinta da coluna histórica de Constantinopla: erguida em honra do Imperador Theodósio o jovem/ explicada pelo reverendo padre Claude-François Menestrier, 1702 54 x 42,5 x 2 cm

Edmond Jabès, que tanto refletiu sobre o livro, deixar-nos-ia dizer que a “fenda mais luminosa”16 podemos encontrá-la num livro? Somos o fio e a agulha, a leitura e o livro. Nesse sentido, a luz que por essa “abertura feliz ou sangrenta” nos chega, conduz-nos à noite – mas noite que não é exterior, que somos nós próprios. E, no entanto, é ela o mais fora, o mais desconhecido. O fora que essa noite é – Blanchot escreveu-o – é também o

mais íntimo: temos esse outro em nós. Essa fenda. Esse livro. De outro modo não a poderíamos encontrar-reconhecer no livro que lemos. Como Proust desejava, o livro torna-se numa lente com que o leitor se encontra: “o trabalho do escritor não é senão uma espécie de instrumento ótico que ele oferece ao leitor para que isso lhe permita discernir aquilo que sem o livro ele talvez não tivesse visto em si mesmo”17. Os leitores tornam-se, assim, “leitores de si mesmo” – eles não lêem o autor ou o livro, lêem-se a si mesmo. É a leitura que dá o impulso necessário, criativo, aos espíritos preguiçosos que somos, ensinou Proust: no ato de leitura, um impulso surge dentro de nós, mas que de algum modo vem do exterior - uma exterioridade interiorizada e motriz, indutora de mudança18. Não de simples reconhecimento de quem se é, mas de descoberta de possibilidades insuspeitas de si mesmo. Outros modos de orientação no horizonte que é o mundo. Proposta de um novo modo de habitação. De uma outra cena aberta à sua frente, tão comum quanto misteriosa e mágica - como na cena de leitura que Burne-Jones desenha para a obra de Chaucer, Canterbury Tales, e considerado o expoente máximo do design de William Morris, editado na sua Kelmscott Press, em 1896. A entrada no livro implica uma saída do mundo, mas só se completará com a reentrada no mundo. Como percebeu Paul Ricoeur, quanto mais radical for a saída do habitual, maior capacidade esse movimento tem de reconfigurar o horizonte de possibilidades do leitor. Mas podemos afirmar o mesmo do escritor: o livro, a escrita, constrói o autor – e dá-lhe a sua identidade (ser escritor). E como escreveu Jabès: “Pouco a pouco o livro completar-me- á”. O escritor é, assim, mestre e discípulo do livro. E acrescentou o poeta: “Fazendo e desfazendo o livro, eu sou feito e desfeito por ele; foi por isso que pude escrever: Eu não escrevo, eu sou escrito”19.

Um livro pode oferecer um mapa em branco – como o mapa do mar da Caça ao Snark de Carrol. Um mapa de navegação sem referências fixas (e por isso o mais democrático, porque todos o conseguem ler). Uma aventura por fazer: um mapa por desenhar. Como um livro por vir (Blanchot). Um bom livro oferece-se sempre como mapa impossível. Sem segurança. Desconhecido. Sempre diferente para cada um.

16 E. Jabès, Le livre des questions. Paris: Gallimard – 2010, p.47: “On entre dans la nuit/ comme le fil dans l´aiguille,/ par une ouverture heureuse/ ou sanglante,/ par la fente la plus lumineuse./ Étan fil e aiguille/ on entre dans la nuit/ comme en soi-même.”

14 Michel de Certeau, L´invention du quotidien. 1. arts de faire. Paris, Gallimard, 1990, p.250

17 Marcel Proust, Le temps retrouvé. Paris, Gallimard, 1989, p.218

15 É assim que o autor da Description sucinte de la colonne historiée de Constantinople…, de 1702, descreve a falha que encontra na coluna quebrada que grava

18 Marcel Proust, O prazer da leitura. (Trad. Magda Figueiredo). Lisboa, Teorema, 2003, p.40

minuciosamente: ali falta um grande entre-deux. E ao gravar essa fenda na coluna, permite que ela se abra agora, já não na coluna, mas à nossa frente no livro.

19 E. Jabès, “Dialogue avec E. Jabès” in Ecrire le livre autour d´Edmond Jabès. Coloque de Cerisy-la-Salle. Seyssele: Ed. Champon Vallon, 1989, p.313


LUCIA LOEB (1973) Abismo, 2012 Offset, encadernação e corte manuais Edição 5 exemplares 24 x 21,5 x 22 cm

UMA FENDA NO MUNDO


LUCIA LOEB (1973) Abismo, 2012 Offset, encadernação e corte manuais Edição 5 exemplares 24 x 21,5 x 22 cm

UMA FENDA NO MUNDO


UMA FENDA NO MUNDO

Estrada aberta, em bifurcação, múltiplos caminhos - como no pequeno-grande livro de Richard Long, Labirinth. Em cada página uma estrada, sem que se saiba ainda o que está no fim dessa, depois da curva que vemos. A dobra fica assim entre estradas. Um caminho antes, atrás, e outro diante de nós. A fazer. Com os livros pode-se visitar Veneza guiados por Mann, um museu de Viena pela mão de Bernhard ou a lua com Verne. Ou o ciúme com Shakespeare, o desejo com Lispector, a amizade com Montaigne. O livro, como indica o título do livro de Richard Long, pode abrir labirintos, exteriores e interiores. Com o perigo e o jogo, a incerteza e a surpresa de um labirinto. Infinito.

Com o infinito nas mãos. O artista italiano Giovanni Anselmo dá-nos a possibilidade de termos na mão o Infinito: 116 detalhes visíveis e mensuráveis de infinito. Uma sequência de páginas pretas ou brancas, ou com as duas cores divididas geometricamente, sem um sentido aparente. Perceberemos depois que são os 116 detalhes da palavra “INFINITO” recortada, de que não vemos senão uma parte das letras em cada página, que não conseguimos reconhecer devido à fragmentação e ampliação exagerada - mas estando lá. Um jogo com a palavra (matéria visível e mensurável) e o seu sentido (indeterminável). Mas não poderá indicar, também, que na finitude mensurável de um livro, de uma obra, podemos ter o infinito? Ou, que mesmo que não reconhecível, enigmático, o infinito está já presente, e cada coisa é apenas o seu detalhe? Ou que o infinito tem sempre particularidades matéricas, visíveis e mensuráveis, como a experiência distinta das páginas a branco e preto? Que o infinito – o livro –é Volume? O livro é, afinal, um objeto. Mas é aí onde o infinito se pode revelar: à mão – num corpo a corpo. A infinitude de possibilidades só se abre à nossa frente por esse meio. Muitos livros nesta exposição revelam imediatamente esse caráter sensível, erótico: apelam aos olhos, ao toque, à relação com o nosso corpo que os tem de rodear, ver de vários ângulos no espaço. Podemos votar-lhes um “amor tátil”, como cantou Caetano Veloso. Mas, sendo coisas, negam-se sempre a ser coisificados, manipulados – ainda que exijam ser manuseados. Sem dominação possível. Pelo contrário, eles é que tantas vezes nos dominam: há livros que nos podem tornar reféns,

outros onde entramos como numa casa assombrada ou labirinto de onde nunca mais saímos. Alejandro Cesarco, na série Footnotes (iniciada em 2006), chama a atenção para um espaço esquecido, a que não damos atenção e desvalorizamos. Apagando todo o resto, a nota ganha força de texto principal. Uma forma de chamar também a atenção à hierarquização convencionada da página do livro - e da sua leitura - que fica tantas vezes inconsciente ou irrefletida. Uma atenção aos espaços inconscientes do livro e à sua função. Em particular aos espaços menos valorizados: “Eu pareço ser atraído por formas fragmentárias, marginais ou menores de escrita, como listas, índices, diários, cadernos e letras.”20 E vem-nos à ideia o extraordinário livro de Enrique Villa-Matas21 escrito com notas de rodapé: Bartleby & Co - um livro sobre os escritores do não, os que se recusaram a escrever mais ou que nunca chegaram a escrever nenhum livro. Uma forma de não chegar a escrever um livro sobre esse assunto, foi escrever apenas as notas de rodapé a um livro por escrever. O que nos recorda também as obras da série Índices, onde Alejandro Cesarco apresenta o Índice de livros que gostaria de escrever e que provavelmente nunca chegará a fazer22 - “Os índices fazem parte de um projeto em processo em que mapeio assuntos de meu interesse, leituras e preocupações. Nesse sentido, se tornaram uma forma de autorretrato que se desdobra o tempo todo. O primeiro deles entitulado apenas Index, foi feito em 2000 como uma tentativa de produzir um livro que conteria todos os livros, um tipo de meta-livro.”23 Para Cesarco - que define o seu trabalho como uma “prática de leitura” - a biblioteca torna-se um espaço criativo: “Interessa-me a sua ideia (de Borges) de que o enquadramento, ou seja, o contexto e as próprias expectativas do leitor em relação ao texto, constituem o próprio texto. Isso é interessante para mim porque sugere definir um conjunto de responsabilidades para o leitor (ou, neste caso, para o espectador) e porque acho que no centro dessas responsabilidades está a definição da leitura como um ato criativo, produtivo”24.

O livro abre um espaço de acolhimento. O dom da hospitalidade é a oferta do livro. Como escreveu Jabès: Uma porta como um livro.

Aberta, fechada. Tu passas e tu lês. Tu passas. Ela permanece25.

O artista canadense Michael Snow, apresenta em Cover to cover, de 1975, uma porta em cada capa, mas com uma diferença sutil: abrimos o livro e viramos as folhas como se abríssemos progressivamente essa porta e atravessássemos uma casa - e o que vemos é o próprio artista a abrir, do outro lado, essa porta, esse livro e as páginas. Acompanhamo-lo, sucessivamente de frente e de costas, de dois pontos de vista, na frente e no verso das páginas – pontos de vista alternativos. Nele as fotografias ilusórias, devedoras do universo cinematográfico, sucedem-se a outras que mostram pessoas com câmaras que fotografam – à frente ou atrás do artista, afastando as fotografias do seu carácter ilusório, dando a conhecer o processo de criação do próprio livro, instabilizando. Da fotografia da porta, até à fotografia da fotografia da porta na mão do artista - as costas do livro. A Ambiguidade não se dissipa. O livro propõe uma porta de duplo sentido: de entrada e saída. Ilusão e consciência desencantada da ilusão. Entramos, assim, por essa porta numa casa - estranha, por vezes. Com muitas moradas, muitos quartos diferentes. Muitos moradores inesperados. Habitar a casa dentro do livro, é o convite da página aberta: a entrar e fazer seu esse espaço que se vai conhecendo à medida que se vai folheando. Não se revela todo de uma vez. - Um candeeiro está sobre a minha mesa e a casa está no livro. - Eu habitarei finalmente a casa. - Tu seguirás o livro do qual cada página é um abismo onde a asa brilha com o nome.26

Mas não temos aí morada permanente. Durante muito tempo, a casa foi o lugar simbólico do feminino, por oposição à vida pública do homem. Lugar protegido, íntimo, familiar – fora do mundo. Como o livro. Nesse sentido, como lugar feminino de recolhimento e intimidade, o livro ganha a característica de útero: espaço fecundo, interior protegido, receptáculo do leitor. O livro-útero revela-se como aquele que

ALEJANDRO CESARCO Footnote [Nota de rodapé] #7, 2006 Vinil de recorte na parede, que pode acompanhar (informar) outras obras dimensões variáveis

se deixa fecundar para poder dar origem a algo novo: a leitura cria um livro novo, por vir. O livro é espaço uterino criador, casa original, receptáculo da origem: a khora platônica. Mas precisa do leitor para ser ativado. Precisa do Ato de fecundação: a leitura. Intromissão de um estranho que é acolhido como em sua casa, que termina de construir, na leitura, essa mesma casa. Blanchot colocou o escritor sob o signo de Orfeu, na tentativa falhada de resgatar Eurídice, e o leitor sob o signo de Cristo que consegue ressuscitar Lázaro27 - retira a obra de dentro do túmulo do livro (como o espírito resgatado da letra?). Nesta impotência do escritor e neste poder do leitor, está o segredo da literatura? O que vem para fora, não sai apenas de dentro do livro, não ressurge-ressuscita dele, mas de dentro do leitor. O leitor fecunda o livro. (Mas na verdade, também essa ressurreição é passageira, Lázaro é mortal - e o livro diz sempre ao leitor, e não apenas ao escritor, noli me legere28).

25 E. Jabès, Le livre des questions. Paris, Gallimard, 2010, p.70 26 Ibidem, p.22 27 M. Blanchot, L’ espace littéraire. Paris: Gallimard, 2007, p.257: “Le livre - escreveu Blanchot - est donc lá, mais l´oeuvre est encore cachée, absente peut-être radicalement,

20 Alejandro Cesarco in Beatrix Ruf and Alejandro Cesarco, Published on the occasion of: A Portrait, a Story, and an Ending. Zurich, Kunsthalle Zurich, 2013 , p.14-15.

dissimulé en tous cas, offusquée par l´évidence du livre, derrière laquelle elle attend la décision libératrice, le Lazare, veni foras. Faire tomber cette pierre semble la mission de

21 A quem Dominique Gonzalez-Foerster já dedicou um Tapis de lecture.

la lecture: la rendre transparent, la dissoudre par la pénétration du regard qui, avec élan, va au dela. Il y a, dans la lecture, du moins dans le point de départ de la lecture, quelque

22 Para além do espaço do livro que é zona das notas de rodapé e do Índice, num livro de artista intitulado Dedications (2006) recolheu as dedicatórias dos livros da sua biblioteca.

chose de vertigineux qui ressemble au movement déraisonnable par lequel nous voulons ouvrir à la vie des yeux déjà fermés; mouvement lié au désir qui, comme l´inpiration,

23 Alejandro Cesarco in Beatrix Ruf and Alejandro Cesarco, Published on the occasion of: A Portrait, a Story, and an Ending, p.14

est un saut, un saut infini: Je veux lire ce qui n´est pourtant pas écrit.”

24 Ibidem, p.13

28 Ibidem, p. 17


UMA FENDA NO MUNDO

Estrada aberta, em bifurcação, múltiplos caminhos - como no pequeno-grande livro de Richard Long, Labirinth. Em cada página uma estrada, sem que se saiba ainda o que está no fim dessa, depois da curva que vemos. A dobra fica assim entre estradas. Um caminho antes, atrás, e outro diante de nós. A fazer. Com os livros pode-se visitar Veneza guiados por Mann, um museu de Viena pela mão de Bernhard ou a lua com Verne. Ou o ciúme com Shakespeare, o desejo com Lispector, a amizade com Montaigne. O livro, como indica o título do livro de Richard Long, pode abrir labirintos, exteriores e interiores. Com o perigo e o jogo, a incerteza e a surpresa de um labirinto. Infinito.

Com o infinito nas mãos. O artista italiano Giovanni Anselmo dá-nos a possibilidade de termos na mão o Infinito: 116 detalhes visíveis e mensuráveis de infinito. Uma sequência de páginas pretas ou brancas, ou com as duas cores divididas geometricamente, sem um sentido aparente. Perceberemos depois que são os 116 detalhes da palavra “INFINITO” recortada, de que não vemos senão uma parte das letras em cada página, que não conseguimos reconhecer devido à fragmentação e ampliação exagerada - mas estando lá. Um jogo com a palavra (matéria visível e mensurável) e o seu sentido (indeterminável). Mas não poderá indicar, também, que na finitude mensurável de um livro, de uma obra, podemos ter o infinito? Ou, que mesmo que não reconhecível, enigmático, o infinito está já presente, e cada coisa é apenas o seu detalhe? Ou que o infinito tem sempre particularidades matéricas, visíveis e mensuráveis, como a experiência distinta das páginas a branco e preto? Que o infinito – o livro –é Volume? O livro é, afinal, um objeto. Mas é aí onde o infinito se pode revelar: à mão – num corpo a corpo. A infinitude de possibilidades só se abre à nossa frente por esse meio. Muitos livros nesta exposição revelam imediatamente esse caráter sensível, erótico: apelam aos olhos, ao toque, à relação com o nosso corpo que os tem de rodear, ver de vários ângulos no espaço. Podemos votar-lhes um “amor tátil”, como cantou Caetano Veloso. Mas, sendo coisas, negam-se sempre a ser coisificados, manipulados – ainda que exijam ser manuseados. Sem dominação possível. Pelo contrário, eles é que tantas vezes nos dominam: há livros que nos podem tornar reféns,

outros onde entramos como numa casa assombrada ou labirinto de onde nunca mais saímos. Alejandro Cesarco, na série Footnotes (iniciada em 2006), chama a atenção para um espaço esquecido, a que não damos atenção e desvalorizamos. Apagando todo o resto, a nota ganha força de texto principal. Uma forma de chamar também a atenção à hierarquização convencionada da página do livro - e da sua leitura - que fica tantas vezes inconsciente ou irrefletida. Uma atenção aos espaços inconscientes do livro e à sua função. Em particular aos espaços menos valorizados: “Eu pareço ser atraído por formas fragmentárias, marginais ou menores de escrita, como listas, índices, diários, cadernos e letras.”20 E vem-nos à ideia o extraordinário livro de Enrique Villa-Matas21 escrito com notas de rodapé: Bartleby & Co - um livro sobre os escritores do não, os que se recusaram a escrever mais ou que nunca chegaram a escrever nenhum livro. Uma forma de não chegar a escrever um livro sobre esse assunto, foi escrever apenas as notas de rodapé a um livro por escrever. O que nos recorda também as obras da série Índices, onde Alejandro Cesarco apresenta o Índice de livros que gostaria de escrever e que provavelmente nunca chegará a fazer22 - “Os índices fazem parte de um projeto em processo em que mapeio assuntos de meu interesse, leituras e preocupações. Nesse sentido, se tornaram uma forma de autorretrato que se desdobra o tempo todo. O primeiro deles entitulado apenas Index, foi feito em 2000 como uma tentativa de produzir um livro que conteria todos os livros, um tipo de meta-livro.”23 Para Cesarco - que define o seu trabalho como uma “prática de leitura” - a biblioteca torna-se um espaço criativo: “Interessa-me a sua ideia (de Borges) de que o enquadramento, ou seja, o contexto e as próprias expectativas do leitor em relação ao texto, constituem o próprio texto. Isso é interessante para mim porque sugere definir um conjunto de responsabilidades para o leitor (ou, neste caso, para o espectador) e porque acho que no centro dessas responsabilidades está a definição da leitura como um ato criativo, produtivo”24.

O livro abre um espaço de acolhimento. O dom da hospitalidade é a oferta do livro. Como escreveu Jabès: Uma porta como um livro.

Aberta, fechada. Tu passas e tu lês. Tu passas. Ela permanece25.

O artista canadense Michael Snow, apresenta em Cover to cover, de 1975, uma porta em cada capa, mas com uma diferença sutil: abrimos o livro e viramos as folhas como se abríssemos progressivamente essa porta e atravessássemos uma casa - e o que vemos é o próprio artista a abrir, do outro lado, essa porta, esse livro e as páginas. Acompanhamo-lo, sucessivamente de frente e de costas, de dois pontos de vista, na frente e no verso das páginas – pontos de vista alternativos. Nele as fotografias ilusórias, devedoras do universo cinematográfico, sucedem-se a outras que mostram pessoas com câmaras que fotografam – à frente ou atrás do artista, afastando as fotografias do seu carácter ilusório, dando a conhecer o processo de criação do próprio livro, instabilizando. Da fotografia da porta, até à fotografia da fotografia da porta na mão do artista - as costas do livro. A Ambiguidade não se dissipa. O livro propõe uma porta de duplo sentido: de entrada e saída. Ilusão e consciência desencantada da ilusão. Entramos, assim, por essa porta numa casa - estranha, por vezes. Com muitas moradas, muitos quartos diferentes. Muitos moradores inesperados. Habitar a casa dentro do livro, é o convite da página aberta: a entrar e fazer seu esse espaço que se vai conhecendo à medida que se vai folheando. Não se revela todo de uma vez. - Um candeeiro está sobre a minha mesa e a casa está no livro. - Eu habitarei finalmente a casa. - Tu seguirás o livro do qual cada página é um abismo onde a asa brilha com o nome.26

Mas não temos aí morada permanente. Durante muito tempo, a casa foi o lugar simbólico do feminino, por oposição à vida pública do homem. Lugar protegido, íntimo, familiar – fora do mundo. Como o livro. Nesse sentido, como lugar feminino de recolhimento e intimidade, o livro ganha a característica de útero: espaço fecundo, interior protegido, receptáculo do leitor. O livro-útero revela-se como aquele que

ALEJANDRO CESARCO Footnote [Nota de rodapé] #7, 2006 Vinil de recorte na parede, que pode acompanhar (informar) outras obras dimensões variáveis

se deixa fecundar para poder dar origem a algo novo: a leitura cria um livro novo, por vir. O livro é espaço uterino criador, casa original, receptáculo da origem: a khora platônica. Mas precisa do leitor para ser ativado. Precisa do Ato de fecundação: a leitura. Intromissão de um estranho que é acolhido como em sua casa, que termina de construir, na leitura, essa mesma casa. Blanchot colocou o escritor sob o signo de Orfeu, na tentativa falhada de resgatar Eurídice, e o leitor sob o signo de Cristo que consegue ressuscitar Lázaro27 - retira a obra de dentro do túmulo do livro (como o espírito resgatado da letra?). Nesta impotência do escritor e neste poder do leitor, está o segredo da literatura? O que vem para fora, não sai apenas de dentro do livro, não ressurge-ressuscita dele, mas de dentro do leitor. O leitor fecunda o livro. (Mas na verdade, também essa ressurreição é passageira, Lázaro é mortal - e o livro diz sempre ao leitor, e não apenas ao escritor, noli me legere28).

25 E. Jabès, Le livre des questions. Paris, Gallimard, 2010, p.70 26 Ibidem, p.22 27 M. Blanchot, L’ espace littéraire. Paris: Gallimard, 2007, p.257: “Le livre - escreveu Blanchot - est donc lá, mais l´oeuvre est encore cachée, absente peut-être radicalement,

20 Alejandro Cesarco in Beatrix Ruf and Alejandro Cesarco, Published on the occasion of: A Portrait, a Story, and an Ending. Zurich, Kunsthalle Zurich, 2013 , p.14-15.

dissimulé en tous cas, offusquée par l´évidence du livre, derrière laquelle elle attend la décision libératrice, le Lazare, veni foras. Faire tomber cette pierre semble la mission de

21 A quem Dominique Gonzalez-Foerster já dedicou um Tapis de lecture.

la lecture: la rendre transparent, la dissoudre par la pénétration du regard qui, avec élan, va au dela. Il y a, dans la lecture, du moins dans le point de départ de la lecture, quelque

22 Para além do espaço do livro que é zona das notas de rodapé e do Índice, num livro de artista intitulado Dedications (2006) recolheu as dedicatórias dos livros da sua biblioteca.

chose de vertigineux qui ressemble au movement déraisonnable par lequel nous voulons ouvrir à la vie des yeux déjà fermés; mouvement lié au désir qui, comme l´inpiration,

23 Alejandro Cesarco in Beatrix Ruf and Alejandro Cesarco, Published on the occasion of: A Portrait, a Story, and an Ending, p.14

est un saut, un saut infini: Je veux lire ce qui n´est pourtant pas écrit.”

24 Ibidem, p.13

28 Ibidem, p. 17


A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA

RAYMOND QUENEAU (1903-1976) Cent mille milliards de poèmes [Cem mil milhões de poemas], 1973 Livro impresso e recortado 29 x 24,3 cm

Pelas fissuras do livro saem novas e inesperadas realidades. Aparições. Anúncios que recriam o mundo. O livro tem algo de bomba. Não há explosão como um livro (Mallarmé). Explosão de palavras, ideias, imaginação, sentidos - que destroem e recriam o horizonte de possibilidades em que nos movemos. E exigem de nós: faz, pensa, vê, sê! Uma linha transita de uns livros para outros: como se de um mesmo livro se tratasse. Uma linha imemorial que vem de trás e que nos ultrapassará. Os autores contaminam-se. As personagens, as citações e as ideias migram. As leituras cruzam-se criando novos sentidos. Um fio atravessa todas as páginas, e sai de um livro e passa para outros. A escrita e a leitura são tarefas inacabadas. Odisseia interminável.


A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA

RAYMOND QUENEAU (1903-1976) Cent mille milliards de poèmes [Cem mil milhões de poemas], 1973 Livro impresso e recortado 29 x 24,3 cm

Pelas fissuras do livro saem novas e inesperadas realidades. Aparições. Anúncios que recriam o mundo. O livro tem algo de bomba. Não há explosão como um livro (Mallarmé). Explosão de palavras, ideias, imaginação, sentidos - que destroem e recriam o horizonte de possibilidades em que nos movemos. E exigem de nós: faz, pensa, vê, sê! Uma linha transita de uns livros para outros: como se de um mesmo livro se tratasse. Uma linha imemorial que vem de trás e que nos ultrapassará. Os autores contaminam-se. As personagens, as citações e as ideias migram. As leituras cruzam-se criando novos sentidos. Um fio atravessa todas as páginas, e sai de um livro e passa para outros. A escrita e a leitura são tarefas inacabadas. Odisseia interminável.


MARSHALL MCLUHAN, QUENTIN FIORE (1911-1980) The medium is the massage: an inventory of effects [O meio é a mensagem: un inventário de efeitos], 1967 livro impresso 10,4 x 17,8 cm

A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA


MARSHALL MCLUHAN, QUENTIN FIORE (1911-1980) The medium is the massage: an inventory of effects [O meio é a mensagem: un inventário de efeitos], 1967 livro impresso 10,4 x 17,8 cm

A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA


A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA

O livro torna-se carne: encarna no mundo. Sai de si. Projeta-se, ganha relevância pessoal e comunitária: as ideias, a imaginação, as personagens montam a sua tenda entre nós. Tornam-se vizinhos da nossa história. Alteram-na. Recriam o modo de olhar, pensar, organizar a vida das sociedades. O que podemos esperar e o que somos. Não criam um mundo à parte, mas um novo modo de poder habitar este. Podem exigir, como neste Anúncio, uma mudança de vida – como exigem as verdadeiras obras de arte, segundo Rilke. O livro é já, ele próprio, um acontecimento no mundo. Em Alphaville, de Godard, a personagem de gestos e palavras robotizados que Ana Karenina interpreta será salva pela leitura de um livro de Paul Eluard, Capitale de la doleur que lhe é dado por um agente secreto estrangeiro. Num país futuro, dominado e organizado pelo computador Alpha, os livros que têm marca de subjetividade, sentimentos e consciência individual são proibidos, e substituídos pela “Bíblia”, um dicionário com as palavras permitidas. A redescoberta da possibilidade do amor, da paixão, do prazer e da dor que encontra no livro de Eluard, vai acabar por aniquilar todo o sistema lógico, destruir aquela sociedade - e salva-se quando ela é capaz de trazer à palavra aquilo que sente e que lhe era proibido sentir ou dizer, ou sequer saber que sentia, antes de ler o livro. O livro é arma contra a tirania. O livro tem o tremendo poder de fazer mudar a vida de todos aqueles que com ele se cruzam – ele é como o hóspede estrangeiro de Teorema de Pasolini.

O livro, sendo matéria, permite (exige?) uma desmaterialização – é instrumento espiritual, lembra Mallarmé. Na sua materialidade instrumental, o livro pode abrir uma brecha que é passagem, um forma de viagem, de saída: ainda antes do primeiro astronauta ter dado um salto na lua, já Cyrano de Bergerac por lá tinha passado, e Méliès não teria lá chegado sem os livros de Verne como escada. É sobre esse poder do livro, e a sua capacidade de saída em direção ao mundo, o pequeno filme de Méliès que aqui apresentamos, Le livre magique (1900): de dentro do livro, vemos sair para o mundo personagens inesperadas. Ao abrir o livro, saltam da página, ganham corpo, incarnam. Assim também acontece na homenagem a Méliès que William Kentridge realiza em 2003, Journey to the moon (2003), um filme onde imagem “real”, colagem e desenho animado se

29 Michel Lisse, L’Expérience de la lecture, I, La Soumission, Paris, Galilée, 1998, p. 17

SOL LEWITT (1928-2007) Autobiography [Autobiografia], 1980 livro impresso 26,2 x 26,2 cm

Pela fenda, pela porta, por onde entramos no livro, há também coisas que saem e se projetam no mundo. Aparições. Anúncios inesperados. Ele expele, explode, dando ao mundo as sementes que o renovam. Se, por um lado, o leitor fecunda o livro, ele é também fecundado por ele. Penetração mútua: encontro e troca. A intimidade entre o leitor e o livro dá origem à incarnação da leitura no leitor: como no ato sexual, um desejo de suprimir a distância. De se tornarem uma só carne. Carne da mesma carne. Penetrar o livro, ser penetrado por ele. Como Michel Lisse recorda, a metáfora sexual foi usada na história, pelo menos desde os gregos, para pensar a leitura: “Ler equivale a ser penetrado pelo seu amante”29. Aí surge como forma de submissão ao escrito. Ler - particularmente em voz alta, como era comum na época - é emprestar o corpo, o tempo, a um estranho. Era tarefa de escravos. Mas esta relação de intimidade - e conhecer é, no contexto, bíblico palavra para designar a relação sexual - não precisa ser de pura submissão, mas de encontro. Na verdade, o bom leitor tem algo de insubmisso - lê com um lápis, aponta nas margens, escreve aí o seu livro. Na grande maioria das representações da cena bíblica do anúncio do Anjo a Maria, esta é representada surpreendida num momento de leitura, a rezar com um livro de orações ou a Bíblia, a Palavra de Deus, nas mãos. A tradição iconográfica parece querer dizer-nos que o que entre o livro e o coração se passa, o anúncio divino, materializa-se no interior da virgem. Escutará, Maria, as palavras de Gabriel dentro ou fora do livro? Estará mesmo lá o Anjo se ela levantar os olhos do livro? Não é o livro o próprio anjo, o mensageiro de que a Palavra encarnará? O anjo é portador de uma mensagem que sai do próprio espaço da moldura, que destrói o enquadramento. Que contamina o mundo fora do livro. Mas ainda antes, a tradição iconográfica prepara essa cena de leitura fecundação pela aprendizagem da leitura: Santa Ana ensina sua filha, Maria, a ler. Prepara-a para que a leitura mude a sua vida, para que encarne a Palavra - o filho de Deus. Aquilo que acontece no interior da Virgem, a encarnação do Logos, acontece metaforicamente a todo aquele que lê atento: deixa-se fecundar pelas palavras e imagens do livro. Se antes escrevemos que o livro é espaço uterino, que se deixa fecundar pela leitura, agora afirmamos que o livro é orgão de fecundação - se o leitor estiver disponível ao anúncio transformador, ainda que pareça inacreditável ou impossível. O útero é agora o leitor.


A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA

O livro torna-se carne: encarna no mundo. Sai de si. Projeta-se, ganha relevância pessoal e comunitária: as ideias, a imaginação, as personagens montam a sua tenda entre nós. Tornam-se vizinhos da nossa história. Alteram-na. Recriam o modo de olhar, pensar, organizar a vida das sociedades. O que podemos esperar e o que somos. Não criam um mundo à parte, mas um novo modo de poder habitar este. Podem exigir, como neste Anúncio, uma mudança de vida – como exigem as verdadeiras obras de arte, segundo Rilke. O livro é já, ele próprio, um acontecimento no mundo. Em Alphaville, de Godard, a personagem de gestos e palavras robotizados que Ana Karenina interpreta será salva pela leitura de um livro de Paul Eluard, Capitale de la doleur que lhe é dado por um agente secreto estrangeiro. Num país futuro, dominado e organizado pelo computador Alpha, os livros que têm marca de subjetividade, sentimentos e consciência individual são proibidos, e substituídos pela “Bíblia”, um dicionário com as palavras permitidas. A redescoberta da possibilidade do amor, da paixão, do prazer e da dor que encontra no livro de Eluard, vai acabar por aniquilar todo o sistema lógico, destruir aquela sociedade - e salva-se quando ela é capaz de trazer à palavra aquilo que sente e que lhe era proibido sentir ou dizer, ou sequer saber que sentia, antes de ler o livro. O livro é arma contra a tirania. O livro tem o tremendo poder de fazer mudar a vida de todos aqueles que com ele se cruzam – ele é como o hóspede estrangeiro de Teorema de Pasolini.

O livro, sendo matéria, permite (exige?) uma desmaterialização – é instrumento espiritual, lembra Mallarmé. Na sua materialidade instrumental, o livro pode abrir uma brecha que é passagem, um forma de viagem, de saída: ainda antes do primeiro astronauta ter dado um salto na lua, já Cyrano de Bergerac por lá tinha passado, e Méliès não teria lá chegado sem os livros de Verne como escada. É sobre esse poder do livro, e a sua capacidade de saída em direção ao mundo, o pequeno filme de Méliès que aqui apresentamos, Le livre magique (1900): de dentro do livro, vemos sair para o mundo personagens inesperadas. Ao abrir o livro, saltam da página, ganham corpo, incarnam. Assim também acontece na homenagem a Méliès que William Kentridge realiza em 2003, Journey to the moon (2003), um filme onde imagem “real”, colagem e desenho animado se

29 Michel Lisse, L’Expérience de la lecture, I, La Soumission, Paris, Galilée, 1998, p. 17

SOL LEWITT (1928-2007) Autobiography [Autobiografia], 1980 livro impresso 26,2 x 26,2 cm

Pela fenda, pela porta, por onde entramos no livro, há também coisas que saem e se projetam no mundo. Aparições. Anúncios inesperados. Ele expele, explode, dando ao mundo as sementes que o renovam. Se, por um lado, o leitor fecunda o livro, ele é também fecundado por ele. Penetração mútua: encontro e troca. A intimidade entre o leitor e o livro dá origem à incarnação da leitura no leitor: como no ato sexual, um desejo de suprimir a distância. De se tornarem uma só carne. Carne da mesma carne. Penetrar o livro, ser penetrado por ele. Como Michel Lisse recorda, a metáfora sexual foi usada na história, pelo menos desde os gregos, para pensar a leitura: “Ler equivale a ser penetrado pelo seu amante”29. Aí surge como forma de submissão ao escrito. Ler - particularmente em voz alta, como era comum na época - é emprestar o corpo, o tempo, a um estranho. Era tarefa de escravos. Mas esta relação de intimidade - e conhecer é, no contexto, bíblico palavra para designar a relação sexual - não precisa ser de pura submissão, mas de encontro. Na verdade, o bom leitor tem algo de insubmisso - lê com um lápis, aponta nas margens, escreve aí o seu livro. Na grande maioria das representações da cena bíblica do anúncio do Anjo a Maria, esta é representada surpreendida num momento de leitura, a rezar com um livro de orações ou a Bíblia, a Palavra de Deus, nas mãos. A tradição iconográfica parece querer dizer-nos que o que entre o livro e o coração se passa, o anúncio divino, materializa-se no interior da virgem. Escutará, Maria, as palavras de Gabriel dentro ou fora do livro? Estará mesmo lá o Anjo se ela levantar os olhos do livro? Não é o livro o próprio anjo, o mensageiro de que a Palavra encarnará? O anjo é portador de uma mensagem que sai do próprio espaço da moldura, que destrói o enquadramento. Que contamina o mundo fora do livro. Mas ainda antes, a tradição iconográfica prepara essa cena de leitura fecundação pela aprendizagem da leitura: Santa Ana ensina sua filha, Maria, a ler. Prepara-a para que a leitura mude a sua vida, para que encarne a Palavra - o filho de Deus. Aquilo que acontece no interior da Virgem, a encarnação do Logos, acontece metaforicamente a todo aquele que lê atento: deixa-se fecundar pelas palavras e imagens do livro. Se antes escrevemos que o livro é espaço uterino, que se deixa fecundar pela leitura, agora afirmamos que o livro é orgão de fecundação - se o leitor estiver disponível ao anúncio transformador, ainda que pareça inacreditável ou impossível. O útero é agora o leitor.


A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA

fundem – e afinal, qual tem mais realidade? O livro aberto, as páginas de um livro, são o motor de uma viagem de suspensão (imaginação) e de saída de elementos para o mundo, como fantasmas que vão e vêm. O livro materializa e desmaterializa. Complexo. Paradoxal.

Explosão, espacial e temporal: Raymond Queneau retoma esse desejo de um livro infinito, também com um carácter espacial e visual importante, em 100 000 milliards de poémes. Com o envolvimento decisivo de Massin, publica em 1961 um livro de poesia combinatória que escapa ao desejo de totalidade. Em cada página foi impresso um soneto e cada frase desse poema é recortada, tornando cada linha numa pequena folha. Basta virar uma linha para todo o poema ser diferente, numa montagem sempre nova, mantendo a estrutura de soneto regular. Afirma Queneau no prefácio: “é, em suma, uma espécie de máquina para fabricar poemas, mas em número limitado; é verdade que esse número, ainda que limitado, fornece leitura para cerca de 200 milhões de anos (lendo vinte e quatro sobre vinte e quatro horas)”. O livro é assim um instrumento em evolução, renovação permanente, produção: máquina, fábrica. Oferece-se a uma leitura inacabada, que ultrapassa o nosso tempo limitado de vida. Como escreveu Blanchot sobre o sentido que no livro se pode encontrar: “princípio de dissolução de todos os sentidos”. A obra - o livro - não é um extra-mundo, ou um acrescento, é parte do mundo – e a sua transgressão. Tira o tapete debaixo dos pés. Abana as certezas que nos organizam. Desorganiza. Pode mesmo provocar uma cegueira, à qual poderá sobrevir uma luz mais nítida. É também uma explosão o que encontramos nas manchas como de um teste Rorschach, coloridas e tridimensionais do livro de José Escada. Manchas que vêm na nossa direção ao abrirmos o livro – e onde cada um vê o que pode ver. Figurativas, ambíguas, abstratas, saem do livro, inesperadamente, ao virar da página. Uma surpresa. A materialidade da palavra, é exposta diante de nós na explosão que encontramos nos jogos linguísticos, das palavras em liberdade (Marinetti). Uma explosão ambígua, de autonomia da língua, do signo, do significante em relação ao significado. Um Bang de quem sabe que the medium is the message: o meio, a escrita, é a própria mensagem – ou “massagem”, que Marshall MacLuhan e o designer Quentin Fiore mantiveram no título, porque confirmava o

seu argumento, depois de (dizem) ter sido assim impresso erradamente. A atenção dada aos signos, à materialidade linguística, tem raízes ancestrais. E nelas há mesmo um desejo de destruição do livro como progressão e tempo, como narrativa que implica a passagem das páginas e da leitura – sendo, habitualmente, uma mise en page, depois agrupadas, mais do que uma mise en livre. Uma preferência pela imediatez visual, recusando a narratividade – seguindo a proposta de Marinetti de uma simultaneidade polissêmica, em vez da narrativa sucessiva. Apenas alguns exemplos dessa linhagem onde os seus autores, com a autonomização dos signos linguísticos, dão de novo vida aos sinais, às letras e palavras: porque, habitualmente, é preciso a morte do signo para a aparição do sentido (não olhar para as letras na sua materialidade ou grafismo, mas para o sentido da palavra). Com esta utilização do livro, ou melhor, da página, dá-se uma libertação do modelo linguístico. Uma operação de abalo.

Por outro lado, o livro pode ser um envio: pode exigir ações, incidir sobre o que lhe é exterior, fazer do leitor o autor como no livro Do it, organizado pelo curador Hans Ulrich Obrist, em 2005. Neste livro recolhem-se as instruções de artistas que são propostas para que o leitor crie a obra – e só nessa participação ativa do leitor a obra existirá. O livro é performativo: ser uma exposição ou propôr uma ação. O livro é, desse modo, um acontecimento. Não apenas um relato ou memória do que aconteceu, mas promotor de acontecimento. Muitos escritores e leitores interrogaram-se, ao longo da história, se não haveria, afinal, apenas um Livro. Um único que se distribuiria por todos os volumes. À imagem da Bíblia – etimologicamente, Os livros – a biblioteca. Escrita e leitura de um mesmo livro, que retoma uma linha escrita-lida anterior. Os livros são atravessados por um fio que os antecede e os ultrapassa. Tempo e imagem é o que nos dá o livro de Tápies: sempre o mesmo traço vermelho aparentemente descuidado e matérico, que atravessa todas as folhas, e que se desdobra em sangue, marca, rasto. A linha que atravessa os livros é também o que procuramos tantas vezes dentro de um livro: um fio que o atravesse e lhe dê unidade – sentido - como um fio de Ariadne que nos permite a salvação? Mas não é pedir de mais (ou de menos,

diria eu) aos livros? Não podem eles conduzir-nos a caminhos mais perigosos e estranhos: como tantos destes livros que aqui expomos, ele pode ser a exaltação de um sentido que ultrapassa a lógica. Ou que se afasta dela, em direcções mais sutis – profundas ou altas? Livros na margem da iligibilidade. Como o fio vermelho que atravessa o Livro ilegível de Bruno Munari: constituído por folhas de diferente cor e materialidade, esburacadas, e atravessadas por um mesmo fio que as une. Fio que encontramos nos livros bordados de Lourdes Castro, onde o direito e o avesso, e o avesso do avesso, e por aí em diante, permitiria um livro infinito, uma tarefa infinita, mas também a impossibilidade da leitura, um afastamento do sentido. Uma desordem interior. Como a própria artista explica: “queria escrever uma dedicatória. Tinha uma agulha na mão com linha de cor. Bordei a dedicatória. Virando a folha tive a surpresa com o avesso das letras: um desenho estranho, apenas alguns pontos a coincidir com o que acabara de escrever do outro lado. E se continuasse a bordar o avesso do avesso e por assim por diante? Um livro que nunca acabasse. Fiz vários, com palavras diferentes, cada página a transformação da precedente, jamais reconhecível nem legível. Sombras?” Assim, da palavra Sombra bordada – em francês, português e japonês – chegamos, ao virar as páginas, a signos que já não identificamos, porque o avesso da sombra, e o avesso do avesso, e por aí em diante, vão-nos afastando do desenho inicial da palavra reconhecível, dirigindo-nos a uma ambiguidade e desconhecimento que se transforma em pura experiência estética e já não lógica (no sentido de logos). Um “livro que nunca acabasse”. Uma linha infinita. A linha interminável, encontramo-la também, sinuosa, a atravessar as capas de um livro de Alberto Carneiro, acompanhada de uma indicação: “esta linha que percorre a memória dos nossos tempos vivos é uma obra de arte”. Não uma representação de uma obra, mas a própria obra. Linha que não é apenas a que vemos, mas uma que, na relação com a memória, atravessa o passado e que a obra-de-arte abre ao futuro. Metamorfose da experiência viva. Sempre começo. Linha deambulante e inquieta: que se transforma em indicação de mapa de território percorrido em silêncio, em Hamish Fulton.

Linha: que vem de longe e vai para muito longe – cada livro é apenas um suporte passageiro onde ela se imprime. Uma linha que começa antes dele e que avança para além

dele. Um abismo atrás e outro à frente. Ou melhor, ele é um abismo em si.

Cada livro inscreve-se numa tradição. O infinito não está apenas à sua frente, nas leituras que se poderão fazer ou os livros que gerará, mas também atrás de si: em todos os que o antecedem e, conscientemente ou não, resultam nele. Ou

LAWRENCE STERNE (1713) The life and opinions of Tristram Shandy, gentleman, 1767 (vol. IX), p.17.

que a partir dele projectam nova luz em direção aos do passado, criando os seus antecessores. Os livros são, assim, continuação da tarefa de outros: com citações, mais ou menos explícitas. Por vezes assumidas: como Balzac ao colocar como epígrafe a La Peau de Chagrin, uma citação visual de Lawrence Sterne. E uma citação visual errada: o que é uma linha gestual oblíqua no inclassificável The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentle-

HONORÉ BALZAC (1799) Epígrafe de La Peau de Chagrin publicado em 1831

man (o livro ausente mais presente nesta exposição), tornase horizontal; o que era um gesto transforma-se em serpente. Ler mal, reformular a linha, errar, é condição essencial à sua continuidade – diria Harold Bloom. Com ou sem angústia da influência, matando ou exaltando o pater - ou escondendo-o, estando sempre ainda lá - nos livros percebemos bem o valor do impulso geneológico ou arqueológico: escavamos um pouco, e à superfície aparecem as ruínas de civilizações perdidas e as raízes de futuras. Somos resultado: os livros são parte da nossa biografia, íntima e pública. A biblioteca pessoal é, então, uma forma de autobiografia - como parece revelar Sol Lewitt, ao fotografar para o livro Autobiography, de 1980, as estantes da sua biblioteca.


A EXPLOSÃO E A LINHA INFINITA

fundem – e afinal, qual tem mais realidade? O livro aberto, as páginas de um livro, são o motor de uma viagem de suspensão (imaginação) e de saída de elementos para o mundo, como fantasmas que vão e vêm. O livro materializa e desmaterializa. Complexo. Paradoxal.

Explosão, espacial e temporal: Raymond Queneau retoma esse desejo de um livro infinito, também com um carácter espacial e visual importante, em 100 000 milliards de poémes. Com o envolvimento decisivo de Massin, publica em 1961 um livro de poesia combinatória que escapa ao desejo de totalidade. Em cada página foi impresso um soneto e cada frase desse poema é recortada, tornando cada linha numa pequena folha. Basta virar uma linha para todo o poema ser diferente, numa montagem sempre nova, mantendo a estrutura de soneto regular. Afirma Queneau no prefácio: “é, em suma, uma espécie de máquina para fabricar poemas, mas em número limitado; é verdade que esse número, ainda que limitado, fornece leitura para cerca de 200 milhões de anos (lendo vinte e quatro sobre vinte e quatro horas)”. O livro é assim um instrumento em evolução, renovação permanente, produção: máquina, fábrica. Oferece-se a uma leitura inacabada, que ultrapassa o nosso tempo limitado de vida. Como escreveu Blanchot sobre o sentido que no livro se pode encontrar: “princípio de dissolução de todos os sentidos”. A obra - o livro - não é um extra-mundo, ou um acrescento, é parte do mundo – e a sua transgressão. Tira o tapete debaixo dos pés. Abana as certezas que nos organizam. Desorganiza. Pode mesmo provocar uma cegueira, à qual poderá sobrevir uma luz mais nítida. É também uma explosão o que encontramos nas manchas como de um teste Rorschach, coloridas e tridimensionais do livro de José Escada. Manchas que vêm na nossa direção ao abrirmos o livro – e onde cada um vê o que pode ver. Figurativas, ambíguas, abstratas, saem do livro, inesperadamente, ao virar da página. Uma surpresa. A materialidade da palavra, é exposta diante de nós na explosão que encontramos nos jogos linguísticos, das palavras em liberdade (Marinetti). Uma explosão ambígua, de autonomia da língua, do signo, do significante em relação ao significado. Um Bang de quem sabe que the medium is the message: o meio, a escrita, é a própria mensagem – ou “massagem”, que Marshall MacLuhan e o designer Quentin Fiore mantiveram no título, porque confirmava o

seu argumento, depois de (dizem) ter sido assim impresso erradamente. A atenção dada aos signos, à materialidade linguística, tem raízes ancestrais. E nelas há mesmo um desejo de destruição do livro como progressão e tempo, como narrativa que implica a passagem das páginas e da leitura – sendo, habitualmente, uma mise en page, depois agrupadas, mais do que uma mise en livre. Uma preferência pela imediatez visual, recusando a narratividade – seguindo a proposta de Marinetti de uma simultaneidade polissêmica, em vez da narrativa sucessiva. Apenas alguns exemplos dessa linhagem onde os seus autores, com a autonomização dos signos linguísticos, dão de novo vida aos sinais, às letras e palavras: porque, habitualmente, é preciso a morte do signo para a aparição do sentido (não olhar para as letras na sua materialidade ou grafismo, mas para o sentido da palavra). Com esta utilização do livro, ou melhor, da página, dá-se uma libertação do modelo linguístico. Uma operação de abalo.

Por outro lado, o livro pode ser um envio: pode exigir ações, incidir sobre o que lhe é exterior, fazer do leitor o autor como no livro Do it, organizado pelo curador Hans Ulrich Obrist, em 2005. Neste livro recolhem-se as instruções de artistas que são propostas para que o leitor crie a obra – e só nessa participação ativa do leitor a obra existirá. O livro é performativo: ser uma exposição ou propôr uma ação. O livro é, desse modo, um acontecimento. Não apenas um relato ou memória do que aconteceu, mas promotor de acontecimento. Muitos escritores e leitores interrogaram-se, ao longo da história, se não haveria, afinal, apenas um Livro. Um único que se distribuiria por todos os volumes. À imagem da Bíblia – etimologicamente, Os livros – a biblioteca. Escrita e leitura de um mesmo livro, que retoma uma linha escrita-lida anterior. Os livros são atravessados por um fio que os antecede e os ultrapassa. Tempo e imagem é o que nos dá o livro de Tápies: sempre o mesmo traço vermelho aparentemente descuidado e matérico, que atravessa todas as folhas, e que se desdobra em sangue, marca, rasto. A linha que atravessa os livros é também o que procuramos tantas vezes dentro de um livro: um fio que o atravesse e lhe dê unidade – sentido - como um fio de Ariadne que nos permite a salvação? Mas não é pedir de mais (ou de menos,

diria eu) aos livros? Não podem eles conduzir-nos a caminhos mais perigosos e estranhos: como tantos destes livros que aqui expomos, ele pode ser a exaltação de um sentido que ultrapassa a lógica. Ou que se afasta dela, em direcções mais sutis – profundas ou altas? Livros na margem da iligibilidade. Como o fio vermelho que atravessa o Livro ilegível de Bruno Munari: constituído por folhas de diferente cor e materialidade, esburacadas, e atravessadas por um mesmo fio que as une. Fio que encontramos nos livros bordados de Lourdes Castro, onde o direito e o avesso, e o avesso do avesso, e por aí em diante, permitiria um livro infinito, uma tarefa infinita, mas também a impossibilidade da leitura, um afastamento do sentido. Uma desordem interior. Como a própria artista explica: “queria escrever uma dedicatória. Tinha uma agulha na mão com linha de cor. Bordei a dedicatória. Virando a folha tive a surpresa com o avesso das letras: um desenho estranho, apenas alguns pontos a coincidir com o que acabara de escrever do outro lado. E se continuasse a bordar o avesso do avesso e por assim por diante? Um livro que nunca acabasse. Fiz vários, com palavras diferentes, cada página a transformação da precedente, jamais reconhecível nem legível. Sombras?” Assim, da palavra Sombra bordada – em francês, português e japonês – chegamos, ao virar as páginas, a signos que já não identificamos, porque o avesso da sombra, e o avesso do avesso, e por aí em diante, vão-nos afastando do desenho inicial da palavra reconhecível, dirigindo-nos a uma ambiguidade e desconhecimento que se transforma em pura experiência estética e já não lógica (no sentido de logos). Um “livro que nunca acabasse”. Uma linha infinita. A linha interminável, encontramo-la também, sinuosa, a atravessar as capas de um livro de Alberto Carneiro, acompanhada de uma indicação: “esta linha que percorre a memória dos nossos tempos vivos é uma obra de arte”. Não uma representação de uma obra, mas a própria obra. Linha que não é apenas a que vemos, mas uma que, na relação com a memória, atravessa o passado e que a obra-de-arte abre ao futuro. Metamorfose da experiência viva. Sempre começo. Linha deambulante e inquieta: que se transforma em indicação de mapa de território percorrido em silêncio, em Hamish Fulton.

Linha: que vem de longe e vai para muito longe – cada livro é apenas um suporte passageiro onde ela se imprime. Uma linha que começa antes dele e que avança para além

dele. Um abismo atrás e outro à frente. Ou melhor, ele é um abismo em si.

Cada livro inscreve-se numa tradição. O infinito não está apenas à sua frente, nas leituras que se poderão fazer ou os livros que gerará, mas também atrás de si: em todos os que o antecedem e, conscientemente ou não, resultam nele. Ou

LAWRENCE STERNE (1713) The life and opinions of Tristram Shandy, gentleman, 1767 (vol. IX), p.17.

que a partir dele projectam nova luz em direção aos do passado, criando os seus antecessores. Os livros são, assim, continuação da tarefa de outros: com citações, mais ou menos explícitas. Por vezes assumidas: como Balzac ao colocar como epígrafe a La Peau de Chagrin, uma citação visual de Lawrence Sterne. E uma citação visual errada: o que é uma linha gestual oblíqua no inclassificável The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentle-

HONORÉ BALZAC (1799) Epígrafe de La Peau de Chagrin publicado em 1831

man (o livro ausente mais presente nesta exposição), tornase horizontal; o que era um gesto transforma-se em serpente. Ler mal, reformular a linha, errar, é condição essencial à sua continuidade – diria Harold Bloom. Com ou sem angústia da influência, matando ou exaltando o pater - ou escondendo-o, estando sempre ainda lá - nos livros percebemos bem o valor do impulso geneológico ou arqueológico: escavamos um pouco, e à superfície aparecem as ruínas de civilizações perdidas e as raízes de futuras. Somos resultado: os livros são parte da nossa biografia, íntima e pública. A biblioteca pessoal é, então, uma forma de autobiografia - como parece revelar Sol Lewitt, ao fotografar para o livro Autobiography, de 1980, as estantes da sua biblioteca.


O FOGO E O LIVRO POR VIR

NICOLAS GIRAUD (1978) Fire Season [Estação de queimadas] #19 e #20, 2018 adesivo autocolante 5,5 x 8,0 cm

Os livros são perigosos: ateiam-nos fogo. Temíveis pelo pensamento único totalitário: por isso, são atirados ao fogo. Mas as suas cinzas são carne da nossa carne. Somos resultado dos livros que lemos. Incorporamo-los. Somos livro a ser escrito. A fazer-se e desfazer-se. Tarefas infinitas, chamou-lhes Husserl, porque não se limitam ao tempo da vida individual e são criação comunitária. O livro, a arte, o pensamento, a ciência. Vêm de longe e dirigem-se para longe. Sempre a (re)começar. Toma, come-o!


O FOGO E O LIVRO POR VIR

NICOLAS GIRAUD (1978) Fire Season [Estação de queimadas] #19 e #20, 2018 adesivo autocolante 5,5 x 8,0 cm

Os livros são perigosos: ateiam-nos fogo. Temíveis pelo pensamento único totalitário: por isso, são atirados ao fogo. Mas as suas cinzas são carne da nossa carne. Somos resultado dos livros que lemos. Incorporamo-los. Somos livro a ser escrito. A fazer-se e desfazer-se. Tarefas infinitas, chamou-lhes Husserl, porque não se limitam ao tempo da vida individual e são criação comunitária. O livro, a arte, o pensamento, a ciência. Vêm de longe e dirigem-se para longe. Sempre a (re)começar. Toma, come-o!


O FOGO E O LIVRO POR VIR

Escreveu Maria Zambrano: Um livro, enquanto não se lê, é somente ser em potência, tão em potência como uma bomba que não estalou. E todo o livro tem de ter algo de bomba. De acontecimento que, ao acontecer, ameaça e põe em evidência, ainda que seja somente com o seu tremor, a falsidade. Como quem lança uma bomba, o escritor arremessa fora de si, do seu mundo e, portanto, do seu ambiente controlável, o segredo achado. Não sabe o efeito que vai causar, nem pode dominá-lo com a sua vontade. Mas isso é um ato de fé, como pôr uma bomba ou atear fogo a uma cidade; é um ato de fé, como a lançar-se a algo cuja trajetória não é dominável por nós.

Os livros são perigosos: por isso, condenados ao fogo. Criadores de alternativas, de ideais subversivos, de contradições, conflitos e complexidade. Transportam uma pedagogia dupla: de transgressão e constituição – como afirmou Jean Ladrière sobre os mitos. Transgridem os horizontes reconhecidos, e constituem um novo horizonte. E nunca únicos, mas múltiplos: o infinito que transportam, a tarefa infinita em que se inscrevem, nega a possibilidade de um livro absoluto - porque esse livro absoluto seria um fim, e o infinito é sem fim. As sociedades que querem a uniformidade do livro único procuram queimar todos os outros que negam essa mentira, e que, pelo simples fato de existirem, revelam que não há o livro único absoluto, que a verdade não está revelada num único livro. Que o livro tem por nome legião: somos muitos, parecem dizer. Heterodoxia, parecem exigir. Perigosos, são por isso condenados ao fogo por aqueles que querem a mediocridade fácil do caminho único. Como escreveu Ray Bradbury: “Encham o homem de informações inofensivas, incombustíveis, que eles se sintam a rebentar de “fatos”, informados acerca de tudo. Em seguida, eles imaginarão que pensam e terão o sentimento do movimento, enquanto realmente apenas se arrastam. (…) Não os levem para terrenos escorregadios como a filosofia ou a sociologia, em que tenham de confrontar a sua experiência. É a fonte de todos os tormentos”30. Ray Bradbury publicou, em 1953, o livro Fahrenheit 451. Nele encontramos descrita uma sociedade onde os livros são proibidos, porque perigosos; em que o leitor é o marginal perseguido e os bombeiros são aqueles que ateiam fogo aos livros: “salvam” do mal que podem vir a causar.

No livro – que Truffaut adaptou ao cinema – os bombeiros invadem uma casa que esconde no sótão uma biblioteca com milhares de livros. Montag, um dos bombeiros, acidentalmente lê uma frase de um dos livros, que secretamente guarda – e que vai mudar o rumo da sua história. (“Montag apenas teve um segundo para ler uma linha, mas essa linha brilhou no seu espírito durante todo o minuto seguinte, como marcado a ferro em brasa.” p.41). Os bombeiros atiram e juntam os livros num monte na entrada da casa, para lhes atear fogo, e pedem à dona da casa e dos livros para sair, mas a “criminosa” recusa separar-se deles: acende ela própria o fósforo que queimará seus livros – e a si mesma. O leitor, inseparável do livro. Carne da mesma carne. Chama do mesmo fogo, já queimado anteriormente pelos livros. Interroga-se Montag: “Deve haver alguma coisa nesses livros, coisas que não podemos imaginar, para uma mulher decidir ficar numa casa que arde; há concerteza uma razão”31. Como Bradbury nos mostrará depois, o leitor é ele mesmo o livro. Por isso, entre os livros, a mulher arde como eles: é fogo. O início do livro David Copperfield, de Dickens, que Montag lê no filme de Truffaut, torna-se um motor para a sua acção: “Se eu me torno o herói de minha vida, ou se essa estação será ocupada por outra pessoa, estas páginas devem mostrar”.

Os livros são perigosos: ateiam-nos fogo. O final do livro Farhenheit 451 propunha que, porque os livros são queimados, a forma de eles existirem é na memória, no coração, na transmissão oral. Uma estranha forma de desmaterialização e consequente incarnação – alimentação. Os leitores tornam-se os livros, passam mesmo a ser conhecidos pelo título do livro que sabem de cor e que transmitem a quem os quiser ler. Devorar o livro, é torná -lo parte de si: conhecer o sabor, o saber, transmutá-lo em parte do seu corpo, da sua vida. E a amargura é outra forma de sentir e atravessar o fogo. Como na cena que Durer retoma do livro do Apocalipse: é preciso comer o livro32, consumi-lo, torná-lo carne da nossa carne. É preciso devorá-lo:

Entre 1497 e 1498, Durer retoma a narrativa e as visões do Livro do Apocalipse, e cria 15 xilogravuras, não para acompanhar ou ilustrar o texto, nem por encomenda de um editor, mas como uma unidade, uma obra em livro. Numa dessas gravuras, Durer desenha João em ato de comer o livro: aquele que lhe vai saber primeiro doce, e depois amargo. Prazer imediato e dificuldade consequente: para que se torne carne da sua carne. Incarnar a palavra: transformar a sua vida, gestos e voz em revolução profética. Esta passagem tem antecedentes nos livros de Ezequiel e Jeremias, do Antigo Testamento. Também eles receberam a mesma ordem de comer e pregar (Ez 2, 9 - 3, 3; e Jr 15, 16-17). A sobrevivência do livro é a vida do homem; o livro é a parte do fogo, frágil e efémero, para que um bem maior aconteça. Uma escada.

Atear fogo a livros: cena tantas vezes infamemente repetida ao longo da história. Se bibliotecas são queimadas, é porque o livro é material inflamável já em si: e não me refiro ao papel, mas às palavras e imagens que eles guardam. Antes que eles ateiem fogo ao mundo pelo seu poder explosivo, ateemos-lhes fogo a eles – é o grito do poder opressivo que atravesso os séculos - como tinha sido também o propósito dos “amigos” de Quixote que deitaram fogo aos seus livros. Paradoxalmente, na sua destruição revela-se o poder lumínico de um livro: a deflagração do seu ser-bomba. Causam cismas. Criam separações. Facções. Exércitos. O modo como as páginas cortam, criam cisão: e para quê continuar a escrever senão para que alguma coisa mude? Se mexa? Se erga? Uma biblioteca é constituída de matéria espiritualmente inflamável, não apenas materialmente volátil. De que ardem as bibliotecas, do fogo que os livros transportam ou daquele que lhes é ateado?

Vai, toma o livrinho aberto da mão do Anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra”. – Fui, pois, ao Anjo e pedi-lhe que me entregasse o livrinho. Ele então disse-me: “toma-o e devora-o; ele te amargará no estômago, mas na tua boca será doce como mel”. Tomei o livrinho da mão do Anjo e devorei-o: na boca era doce como mel; quando o engoli, porém, meu estômago tornou-se amargo. Disse-me então: “É necessário que continues ainda a profetizar contra muitos povos, nações, línguas e reis. (Ap 10, 8-11).

As cinzas são sinais do fogo e terreno fértil. Não recusam nem escondem o amargo, mas também revelam a doçura.

As cinzas indiciam o esplendor do fogo que as causa. Como nas caixas de ferro onde Rui Chafes junta as cinzas dos textos que escreve. O que lê, o que pensa, o que ouve, o que é: isso é fogo, isso deixa cinzas. Como bem sabe (e terá escrito num desses papéis queimados?), “toda a cinza é pólen” (Novalis). Rui Chafes recolhe-as e dá-lhes um lugar de acesso impossível. Em silêncio. Mas fecundo. Aqueles textos, aquelas palavras, talvez desenhos, não os poderemos mais ver-ler. Mas não estão sempre lá? A sua ausência não é forma de presença? E se olharmos as outras obras e textos do artista, os seus livros, não são eles fruto destas cinzas? Nas caixas de Rui Chafes, as cinzas são o livro de uma vida, mas ainda a ser escrito – a estas caixas outras se irão acrescentando. Também ele podia escrever como Jabès: “Criança, enquanto escrevia pela primeira vez o meu nome, tive a consciência de começar um livro”33. Neste sentido, a consumação pelo fogo não é, no entanto, condenação de um juizo final, mas sinal da experiência cotidiana: somos atirados ao fogo pelas palavras de outros ou pelas nossas. São ordálio. São essas palavras que nos queimam: e das quais podemos resurgir mais fortes ou condenados. Mas o juízo não é externo, o fogo não é estranho: é o livro da vida que escrevemos que nos salva ou condena.

Sobre o poder fecundo e transformador do livro é também a instalação-alegoria de Bas Jan Ader, 473 Reader´s Digests digested, de 1970. Numa galeria criou um “compost heap” de terra e revistas sobre as quais plantou sementes de relva, que com a ajuda de luz artificial cresceu. O livro apresenta-se aqui como terreno fértil - e digerido para que algo cresça. Alimento. Fall é um dos temas recorrentes na curta e intensa obra de Bas Jan Ader. E é fácil compreender a relação entre Fall e Fail – queda e falha. E a relação entre ela e a fragilidade, a perda, a impotência. E sendo os pais pastores protestantes, percebemos que a conotação simbólica e mítica da Queda não lhe era estranha. Aquele-que-cai. Poucas definições assentam melhor ao humano do que esta. Antes ainda de se compreender como “ser-para-a-morte”34, irremediavelmente apreende-se como ser-para-a-queda. No livro de artista de Ader que aqui se apresenta, queda [Fall], seguimos os fotogramas de duas

32 cfr Gérard HADDAD, Manger le Livre - rites alimentaires et fonction paternelle, Grasset et Fasquelle, 1984. 30 Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Lisboa: Livros do Brasil. 1999, pp.63-64

33 Reb Stein cit Edmond Jabès, Le livre des questions, p.27

31 Ibidem, p.54

34 Cfr M.Heidegger, Sein und Zeit. Tubingen: Max Niemayer Verlag, 1967; §45ss.


O FOGO E O LIVRO POR VIR

Escreveu Maria Zambrano: Um livro, enquanto não se lê, é somente ser em potência, tão em potência como uma bomba que não estalou. E todo o livro tem de ter algo de bomba. De acontecimento que, ao acontecer, ameaça e põe em evidência, ainda que seja somente com o seu tremor, a falsidade. Como quem lança uma bomba, o escritor arremessa fora de si, do seu mundo e, portanto, do seu ambiente controlável, o segredo achado. Não sabe o efeito que vai causar, nem pode dominá-lo com a sua vontade. Mas isso é um ato de fé, como pôr uma bomba ou atear fogo a uma cidade; é um ato de fé, como a lançar-se a algo cuja trajetória não é dominável por nós.

Os livros são perigosos: por isso, condenados ao fogo. Criadores de alternativas, de ideais subversivos, de contradições, conflitos e complexidade. Transportam uma pedagogia dupla: de transgressão e constituição – como afirmou Jean Ladrière sobre os mitos. Transgridem os horizontes reconhecidos, e constituem um novo horizonte. E nunca únicos, mas múltiplos: o infinito que transportam, a tarefa infinita em que se inscrevem, nega a possibilidade de um livro absoluto - porque esse livro absoluto seria um fim, e o infinito é sem fim. As sociedades que querem a uniformidade do livro único procuram queimar todos os outros que negam essa mentira, e que, pelo simples fato de existirem, revelam que não há o livro único absoluto, que a verdade não está revelada num único livro. Que o livro tem por nome legião: somos muitos, parecem dizer. Heterodoxia, parecem exigir. Perigosos, são por isso condenados ao fogo por aqueles que querem a mediocridade fácil do caminho único. Como escreveu Ray Bradbury: “Encham o homem de informações inofensivas, incombustíveis, que eles se sintam a rebentar de “fatos”, informados acerca de tudo. Em seguida, eles imaginarão que pensam e terão o sentimento do movimento, enquanto realmente apenas se arrastam. (…) Não os levem para terrenos escorregadios como a filosofia ou a sociologia, em que tenham de confrontar a sua experiência. É a fonte de todos os tormentos”30. Ray Bradbury publicou, em 1953, o livro Fahrenheit 451. Nele encontramos descrita uma sociedade onde os livros são proibidos, porque perigosos; em que o leitor é o marginal perseguido e os bombeiros são aqueles que ateiam fogo aos livros: “salvam” do mal que podem vir a causar.

No livro – que Truffaut adaptou ao cinema – os bombeiros invadem uma casa que esconde no sótão uma biblioteca com milhares de livros. Montag, um dos bombeiros, acidentalmente lê uma frase de um dos livros, que secretamente guarda – e que vai mudar o rumo da sua história. (“Montag apenas teve um segundo para ler uma linha, mas essa linha brilhou no seu espírito durante todo o minuto seguinte, como marcado a ferro em brasa.” p.41). Os bombeiros atiram e juntam os livros num monte na entrada da casa, para lhes atear fogo, e pedem à dona da casa e dos livros para sair, mas a “criminosa” recusa separar-se deles: acende ela própria o fósforo que queimará seus livros – e a si mesma. O leitor, inseparável do livro. Carne da mesma carne. Chama do mesmo fogo, já queimado anteriormente pelos livros. Interroga-se Montag: “Deve haver alguma coisa nesses livros, coisas que não podemos imaginar, para uma mulher decidir ficar numa casa que arde; há concerteza uma razão”31. Como Bradbury nos mostrará depois, o leitor é ele mesmo o livro. Por isso, entre os livros, a mulher arde como eles: é fogo. O início do livro David Copperfield, de Dickens, que Montag lê no filme de Truffaut, torna-se um motor para a sua acção: “Se eu me torno o herói de minha vida, ou se essa estação será ocupada por outra pessoa, estas páginas devem mostrar”.

Os livros são perigosos: ateiam-nos fogo. O final do livro Farhenheit 451 propunha que, porque os livros são queimados, a forma de eles existirem é na memória, no coração, na transmissão oral. Uma estranha forma de desmaterialização e consequente incarnação – alimentação. Os leitores tornam-se os livros, passam mesmo a ser conhecidos pelo título do livro que sabem de cor e que transmitem a quem os quiser ler. Devorar o livro, é torná -lo parte de si: conhecer o sabor, o saber, transmutá-lo em parte do seu corpo, da sua vida. E a amargura é outra forma de sentir e atravessar o fogo. Como na cena que Durer retoma do livro do Apocalipse: é preciso comer o livro32, consumi-lo, torná-lo carne da nossa carne. É preciso devorá-lo:

Entre 1497 e 1498, Durer retoma a narrativa e as visões do Livro do Apocalipse, e cria 15 xilogravuras, não para acompanhar ou ilustrar o texto, nem por encomenda de um editor, mas como uma unidade, uma obra em livro. Numa dessas gravuras, Durer desenha João em ato de comer o livro: aquele que lhe vai saber primeiro doce, e depois amargo. Prazer imediato e dificuldade consequente: para que se torne carne da sua carne. Incarnar a palavra: transformar a sua vida, gestos e voz em revolução profética. Esta passagem tem antecedentes nos livros de Ezequiel e Jeremias, do Antigo Testamento. Também eles receberam a mesma ordem de comer e pregar (Ez 2, 9 - 3, 3; e Jr 15, 16-17). A sobrevivência do livro é a vida do homem; o livro é a parte do fogo, frágil e efémero, para que um bem maior aconteça. Uma escada.

Atear fogo a livros: cena tantas vezes infamemente repetida ao longo da história. Se bibliotecas são queimadas, é porque o livro é material inflamável já em si: e não me refiro ao papel, mas às palavras e imagens que eles guardam. Antes que eles ateiem fogo ao mundo pelo seu poder explosivo, ateemos-lhes fogo a eles – é o grito do poder opressivo que atravesso os séculos - como tinha sido também o propósito dos “amigos” de Quixote que deitaram fogo aos seus livros. Paradoxalmente, na sua destruição revela-se o poder lumínico de um livro: a deflagração do seu ser-bomba. Causam cismas. Criam separações. Facções. Exércitos. O modo como as páginas cortam, criam cisão: e para quê continuar a escrever senão para que alguma coisa mude? Se mexa? Se erga? Uma biblioteca é constituída de matéria espiritualmente inflamável, não apenas materialmente volátil. De que ardem as bibliotecas, do fogo que os livros transportam ou daquele que lhes é ateado?

Vai, toma o livrinho aberto da mão do Anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra”. – Fui, pois, ao Anjo e pedi-lhe que me entregasse o livrinho. Ele então disse-me: “toma-o e devora-o; ele te amargará no estômago, mas na tua boca será doce como mel”. Tomei o livrinho da mão do Anjo e devorei-o: na boca era doce como mel; quando o engoli, porém, meu estômago tornou-se amargo. Disse-me então: “É necessário que continues ainda a profetizar contra muitos povos, nações, línguas e reis. (Ap 10, 8-11).

As cinzas são sinais do fogo e terreno fértil. Não recusam nem escondem o amargo, mas também revelam a doçura.

As cinzas indiciam o esplendor do fogo que as causa. Como nas caixas de ferro onde Rui Chafes junta as cinzas dos textos que escreve. O que lê, o que pensa, o que ouve, o que é: isso é fogo, isso deixa cinzas. Como bem sabe (e terá escrito num desses papéis queimados?), “toda a cinza é pólen” (Novalis). Rui Chafes recolhe-as e dá-lhes um lugar de acesso impossível. Em silêncio. Mas fecundo. Aqueles textos, aquelas palavras, talvez desenhos, não os poderemos mais ver-ler. Mas não estão sempre lá? A sua ausência não é forma de presença? E se olharmos as outras obras e textos do artista, os seus livros, não são eles fruto destas cinzas? Nas caixas de Rui Chafes, as cinzas são o livro de uma vida, mas ainda a ser escrito – a estas caixas outras se irão acrescentando. Também ele podia escrever como Jabès: “Criança, enquanto escrevia pela primeira vez o meu nome, tive a consciência de começar um livro”33. Neste sentido, a consumação pelo fogo não é, no entanto, condenação de um juizo final, mas sinal da experiência cotidiana: somos atirados ao fogo pelas palavras de outros ou pelas nossas. São ordálio. São essas palavras que nos queimam: e das quais podemos resurgir mais fortes ou condenados. Mas o juízo não é externo, o fogo não é estranho: é o livro da vida que escrevemos que nos salva ou condena.

Sobre o poder fecundo e transformador do livro é também a instalação-alegoria de Bas Jan Ader, 473 Reader´s Digests digested, de 1970. Numa galeria criou um “compost heap” de terra e revistas sobre as quais plantou sementes de relva, que com a ajuda de luz artificial cresceu. O livro apresenta-se aqui como terreno fértil - e digerido para que algo cresça. Alimento. Fall é um dos temas recorrentes na curta e intensa obra de Bas Jan Ader. E é fácil compreender a relação entre Fall e Fail – queda e falha. E a relação entre ela e a fragilidade, a perda, a impotência. E sendo os pais pastores protestantes, percebemos que a conotação simbólica e mítica da Queda não lhe era estranha. Aquele-que-cai. Poucas definições assentam melhor ao humano do que esta. Antes ainda de se compreender como “ser-para-a-morte”34, irremediavelmente apreende-se como ser-para-a-queda. No livro de artista de Ader que aqui se apresenta, queda [Fall], seguimos os fotogramas de duas

32 cfr Gérard HADDAD, Manger le Livre - rites alimentaires et fonction paternelle, Grasset et Fasquelle, 1984. 30 Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Lisboa: Livros do Brasil. 1999, pp.63-64

33 Reb Stein cit Edmond Jabès, Le livre des questions, p.27

31 Ibidem, p.54

34 Cfr M.Heidegger, Sein und Zeit. Tubingen: Max Niemayer Verlag, 1967; §45ss.


O FOGO E O LIVRO POR VIR

quedas: de bicicleta para dentro de um canal de Amsterdam e de cima do telhado de sua casa nos Estados Unidos para o chão. A um tempo, situação cômica e trágica – o artista apresenta-se como uma espécie de clown, mas um palhaço triste, que produz situações em que perde o controle sobre o processo. Esta leitura sobre a sua obra fica ampliada pelo seu desaparecimento no mar, que demonstra a verdade no centro da sua obra: a perda de controle da situação, a fragilidade humana tematizada nas obras deste artista, encontram um impressionante desfecho (e confirmação) no seu desaparecimento enquanto atravessava o Atlântico sozinho num pequeno barco – parte do projeto de exposição que iria fazer na Europa, intitulada In search of the miraculous. Com ele no barco, contou depois a sua mulher, levava dois livros: um livro sobre navegação marítima e um

outro de Hegel35. Nenhum deles lhe terá salvo a vida. E se a queda for, mais do que um padecimento, uma verdadeira ação? Um “descer num movimento onde a gravidade não tem lugar...”, escreveu Simone Weil36. Esse seria, para ela, o movimento superior de incarnação a que a Graça poderia ajudar o humano. Um assumir totalmente a condição humana. O artista ensina a cair37, e a aprender com a queda: permite-nos que a surpresa do desequilíbrio seja também o da surpresa do ponto de vista insuspeito. Do ponto de vista daquele que cai, o mundo altera-se. Imprevisivelmente. O horizonte modifica-se. E é isso que nos transforma. Neste sentido, a leitura de um livro pode ser uma forma de queda. Ou de caminho a fazer-se, uma viagem, uma odisseia - como a do homérico Ulisses (Detanico e Lain).

35 Agradeço a Miguel Guedes esta indicação - que o artista utiliza no livro de artista Faraway Friend; Os livros encontrados de Bas Jan Ader, 2001. 36 “A criação é feita do movimento descendente da gravidade, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça à segunda potência”.

ANGELA DETANICO (1974) E RAFAEL LAIN (1973) Ulisses, 2017 animação, sem som, loop

Simone Weil, La pesanteur et la grâce. Paris: Plon, 1999; p.10. 37 “O poema ensina a cair sobre os vários solos desde perder o chão repentino sob os pés como se perde os sentidos numa queda de amor, ao encontro do cabo onde a terra abate e a fecunda ausência excede(…)” Luiza Neto Jorge. Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim – 1993; p.141


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quedas: de bicicleta para dentro de um canal de Amsterdam e de cima do telhado de sua casa nos Estados Unidos para o chão. A um tempo, situação cômica e trágica – o artista apresenta-se como uma espécie de clown, mas um palhaço triste, que produz situações em que perde o controle sobre o processo. Esta leitura sobre a sua obra fica ampliada pelo seu desaparecimento no mar, que demonstra a verdade no centro da sua obra: a perda de controle da situação, a fragilidade humana tematizada nas obras deste artista, encontram um impressionante desfecho (e confirmação) no seu desaparecimento enquanto atravessava o Atlântico sozinho num pequeno barco – parte do projeto de exposição que iria fazer na Europa, intitulada In search of the miraculous. Com ele no barco, contou depois a sua mulher, levava dois livros: um livro sobre navegação marítima e um

outro de Hegel35. Nenhum deles lhe terá salvo a vida. E se a queda for, mais do que um padecimento, uma verdadeira ação? Um “descer num movimento onde a gravidade não tem lugar...”, escreveu Simone Weil36. Esse seria, para ela, o movimento superior de incarnação a que a Graça poderia ajudar o humano. Um assumir totalmente a condição humana. O artista ensina a cair37, e a aprender com a queda: permite-nos que a surpresa do desequilíbrio seja também o da surpresa do ponto de vista insuspeito. Do ponto de vista daquele que cai, o mundo altera-se. Imprevisivelmente. O horizonte modifica-se. E é isso que nos transforma. Neste sentido, a leitura de um livro pode ser uma forma de queda. Ou de caminho a fazer-se, uma viagem, uma odisseia - como a do homérico Ulisses (Detanico e Lain).

35 Agradeço a Miguel Guedes esta indicação - que o artista utiliza no livro de artista Faraway Friend; Os livros encontrados de Bas Jan Ader, 2001. 36 “A criação é feita do movimento descendente da gravidade, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça à segunda potência”.

ANGELA DETANICO (1974) E RAFAEL LAIN (1973) Ulisses, 2017 animação, sem som, loop

Simone Weil, La pesanteur et la grâce. Paris: Plon, 1999; p.10. 37 “O poema ensina a cair sobre os vários solos desde perder o chão repentino sob os pés como se perde os sentidos numa queda de amor, ao encontro do cabo onde a terra abate e a fecunda ausência excede(…)” Luiza Neto Jorge. Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim – 1993; p.141


BAS JAN ADER (1942) Fall [queda], 1970 Livro impresso 19 x 19 cm

O FOGO E O LIVRO POR VIR


BAS JAN ADER (1942) Fall [queda], 1970 Livro impresso 19 x 19 cm

O FOGO E O LIVRO POR VIR


TUDO EXISTE PARA CHEGAR A UM LIVRO

INDETERMINADO O FUTURO: Periodico Litterario. Rio de Janeiro, 1862-63 24,5 x 17 cm

COSTA MARTINS, (1922-1995) VICTOR PALLA (1922-2006) Lisboa: cidade triste e alegre, 1959 Livro impresso 29x 23,3 cm

Do mais comum cotidiano à mais extraordinária iluminação ou utopia longínqua – e desorganizando essas categorias: tudo se dirige para um livro. O trabalho e o descanso, a dor e o prazer, a ficção e a realidade, o mesmo e o outro, o comum e o estranho, a vida e a morte… O desejo enciclopédico de apreender todo o conhecimento do mundo, de apreender a diferença e o diferente, de tudo conter. Existirá o mundo porque o livro existe?


TUDO EXISTE PARA CHEGAR A UM LIVRO

INDETERMINADO O FUTURO: Periodico Litterario. Rio de Janeiro, 1862-63 24,5 x 17 cm

COSTA MARTINS, (1922-1995) VICTOR PALLA (1922-2006) Lisboa: cidade triste e alegre, 1959 Livro impresso 29x 23,3 cm

Do mais comum cotidiano à mais extraordinária iluminação ou utopia longínqua – e desorganizando essas categorias: tudo se dirige para um livro. O trabalho e o descanso, a dor e o prazer, a ficção e a realidade, o mesmo e o outro, o comum e o estranho, a vida e a morte… O desejo enciclopédico de apreender todo o conhecimento do mundo, de apreender a diferença e o diferente, de tudo conter. Existirá o mundo porque o livro existe?


Tudo se dirige para um livro: gestos banais do cotidiano e iluminações divinas, vidas exemplares e atitudes execráveis, o fatual e o fictício, o desordenado e o desejo de ordem. Numa biblioteca encontraremos a beleza e o terror, a saúde e a doença, a festa e o luto, o céu e o inferno. A condição humana na sua totalidade, e não apenas uma parte. O livro transporta o aparentemente oposto com a mesma dignidade e destrona mesmo a pretensa superioridade daquilo que se considera habitualmente mais importante. Toda a memória do mundo (Alain Resnais). Muitos escritores e leitores interrogaram-se, ao longo da história, se não haveria, afinal, apenas um Livro. Um único que se distribuiria por todos os volumes, numa lombada infinita, colocados lado a lado, prateleira após prateleira. Como na Biblioteca Nacional Francesa, filmada por Alain Resnais. O desejo de reunir “toda a memória do mundo”, necessariamente contraditória e complexa, sem desejo do livro-pensamento-único, pelo contrário, caminhos múltiplos, multiplicando-se. Cada livro inscreve-se numa tradição. O infinito não está apenas à sua frente, nas leituras que dele se poderão fazer ou nos livros que gerará, mas também atrás de si: em todos os que o antecedem e, conscientemente ou não, resultam nele. Os livros de uma biblioteca, tal como as fotografias segundo

Benjamin, ainda que de modo menos impositivo, rodeiam a nossa vida com a presença dos mortos. Estão por todo o lado, rodeamo-nos de fantasmas. Históricos e estóricos, igualmente fantasmáticos e influentes. E será mais influente Francesca de Rimini ou Dante? Quixote ou Cervantes? Bovary ou Flaubert? – não por acaso, a todos eles, autores e personagens, os livros mudaram a vida.

O anseio de recolher todo o conhecimento do mundo, toda a vida, e ordená-la - e isso demonstraria que a ordem existe não apenas no livro, mas no próprio mundo -, esse desejo enciclopédico. Com a enciclopédia, como que por magia, todo o conhecimento estaria ao nosso alcance, e com ele o poder de alterar o mundo e a vida. Não é esta promessa ainda uma continuação da crença no livro que guardaria as chaves mágicas, as fórmulas secretas das origens, para dominar o universo? A (im)possibilidade de termos acesso a todo o conhecimento fica claramente questionada no filme de 1971, de John Latham – artista que trabalhou recorrentemente sobre e com o livro. Em Encyclopaedia Britannica apresenta à nossa frente, rapidamente, uma após a outra, em breves minutos, todas as páginas da gigantesca Enciclopédia Britânica. Todo o conhecimento fica diante de nós, mas inapreensível. Estas imagens, este conhecimento, são como Eurydice, esbracejando à nossa frente, mas em desaparição, incapazes que somos de a agarrar - motivo da insanidade de Orfeu.

Tudo se dirige para um livro. Por isso encontramos, lado a lado, nas páginas dos livros de horas, o trabalho e o prazer, as ocupações diárias e a recompensa do descanso. Ou podemos ver o trabalho nos cais do Tejo, ao lado da vida nocturna dos bares, nas fotografias de Victor Palla e Costa Martins do cotidiano de Lisboa nos anos 50, ou a cidade de São Paulo e a sua vida em tempos históricos distintos (São Paulo antigo e moderno, 1554-1904, JCL Comunicações). Se tudo se dirige para um livro, neles encontraremos a beleza e o terrível, a saúde e a doença, a festa e o luto, o céu e o inferno. A condição humana na sua totalidade, e não apenas uma parte.

Em relação ao tempo, o livro abre-nos, escreveu Blanchot, “um outro modo de temporalidade que não nos deixa mais

38 Stéphane Mallarmé, Quant au livre. Le livre, instrument spirituel, Bordeaux, William Blake and Co, 2011. 39 Cabanne, p.93.

ser tranquilamente nossos contemporâneos”. Com o livro, o tempo move-se do seu eixo, desloca-se irreparavelmente: a temporalidade do leitor e do escritor deixa de ser a natural. O seu reino não é já deste mundo – destrói-o e reconstrói-o permanentemente. Mesmo os livros aparentemente mais distantes do cotidiano vivido, também dele fazem parte: Duchamp escolhe um livro de geometria para um dos seus ready-mades, aquele a que adjetivou de “malheureux”, infeliz. Foi o seu presente para celebrar o casamento da sua irmã Suzanne com Jean Crotti, em 1919. Enviou a Suzanne uma carta, de Buenos Aires, onde indicava as instruções para a sua realização: ela teria que comprar um livro de geometria “que deveria ser pendurado com fio sobre a varanda do seu apartamento na rua de La Condamine; o vento deveria folhear o livro, escolher ele mesmo os problemas, arrancar as folhas e despedaçá-las”39. Que o vento possa escolher e resolver os problemas aí encontrados, deixar que o livro se despedace. A permanência é uma ilusão que os livros gostam de criar e manter. Afinal, tudo passa.

BARTHOLOMEU DE GUSMÃO (1685), Petição do Padre Bartholomeu Lourenço sobre o instrumento…, 1774 Manuscrito, 22,3 x 17,5 cm

Na ambição (conscientemente falhada?) do livro absoluto, Mallarmé acreditava que “tudo no mundo existe para chegar a um livro”38. O livro seria, então, uma forma de fixar o efêmero, de agarrar o tempo, de não desperdiçar nada da vida, de legitimação e sobrevivência. Ou, no sentido hegeliano, de que tudo quer ser dito, trazido à linguagem, ao livro que compreenda a racionalidade do real, e a realidade do racional. Ou, no sentido cabalístico ou místico, de que um livro poderia conter o mundo, a chave de acesso ao seu segredo - o livro da sabedoria onde a verdade estaria revelada. Ou à imagem do “Livro da vida”, onde fica escrito e guardado o que fizemos e somos. No fundo, Mallarmé retoma, de outro ponto de vista, uma ideia antiga, que propõe que o próprio universo é um livro – como em Campanella, para quem “o mundo é o livro onde o juízo eterno escreve os seus conceitos”; ou como em Galileu, que usa a metáfora do “livro da natureza” escrito em linguagem matemática. Do mundo-livro ao livro-mundo. Diferentes, mas uns e outros propõe que a fronteira entre o dentro e o fora do livro é mais permeável do que julgamos.

JOHANN BAPTIST SPIX (1781) ; VON MARTIUS (1794), CARL FRIEDRICH (1777) Reise in Brasilien aus Besehl Sr. Majestät…[Viagem ao Brazil sob o Comando de Sua Majestade...], 1823-1831 37 x 28,8 cm

TUDO EXISTE PARA CHEGAR A UM LIVRO


Tudo se dirige para um livro: gestos banais do cotidiano e iluminações divinas, vidas exemplares e atitudes execráveis, o fatual e o fictício, o desordenado e o desejo de ordem. Numa biblioteca encontraremos a beleza e o terror, a saúde e a doença, a festa e o luto, o céu e o inferno. A condição humana na sua totalidade, e não apenas uma parte. O livro transporta o aparentemente oposto com a mesma dignidade e destrona mesmo a pretensa superioridade daquilo que se considera habitualmente mais importante. Toda a memória do mundo (Alain Resnais). Muitos escritores e leitores interrogaram-se, ao longo da história, se não haveria, afinal, apenas um Livro. Um único que se distribuiria por todos os volumes, numa lombada infinita, colocados lado a lado, prateleira após prateleira. Como na Biblioteca Nacional Francesa, filmada por Alain Resnais. O desejo de reunir “toda a memória do mundo”, necessariamente contraditória e complexa, sem desejo do livro-pensamento-único, pelo contrário, caminhos múltiplos, multiplicando-se. Cada livro inscreve-se numa tradição. O infinito não está apenas à sua frente, nas leituras que dele se poderão fazer ou nos livros que gerará, mas também atrás de si: em todos os que o antecedem e, conscientemente ou não, resultam nele. Os livros de uma biblioteca, tal como as fotografias segundo

Benjamin, ainda que de modo menos impositivo, rodeiam a nossa vida com a presença dos mortos. Estão por todo o lado, rodeamo-nos de fantasmas. Históricos e estóricos, igualmente fantasmáticos e influentes. E será mais influente Francesca de Rimini ou Dante? Quixote ou Cervantes? Bovary ou Flaubert? – não por acaso, a todos eles, autores e personagens, os livros mudaram a vida.

O anseio de recolher todo o conhecimento do mundo, toda a vida, e ordená-la - e isso demonstraria que a ordem existe não apenas no livro, mas no próprio mundo -, esse desejo enciclopédico. Com a enciclopédia, como que por magia, todo o conhecimento estaria ao nosso alcance, e com ele o poder de alterar o mundo e a vida. Não é esta promessa ainda uma continuação da crença no livro que guardaria as chaves mágicas, as fórmulas secretas das origens, para dominar o universo? A (im)possibilidade de termos acesso a todo o conhecimento fica claramente questionada no filme de 1971, de John Latham – artista que trabalhou recorrentemente sobre e com o livro. Em Encyclopaedia Britannica apresenta à nossa frente, rapidamente, uma após a outra, em breves minutos, todas as páginas da gigantesca Enciclopédia Britânica. Todo o conhecimento fica diante de nós, mas inapreensível. Estas imagens, este conhecimento, são como Eurydice, esbracejando à nossa frente, mas em desaparição, incapazes que somos de a agarrar - motivo da insanidade de Orfeu.

Tudo se dirige para um livro. Por isso encontramos, lado a lado, nas páginas dos livros de horas, o trabalho e o prazer, as ocupações diárias e a recompensa do descanso. Ou podemos ver o trabalho nos cais do Tejo, ao lado da vida nocturna dos bares, nas fotografias de Victor Palla e Costa Martins do cotidiano de Lisboa nos anos 50, ou a cidade de São Paulo e a sua vida em tempos históricos distintos (São Paulo antigo e moderno, 1554-1904, JCL Comunicações). Se tudo se dirige para um livro, neles encontraremos a beleza e o terrível, a saúde e a doença, a festa e o luto, o céu e o inferno. A condição humana na sua totalidade, e não apenas uma parte.

Em relação ao tempo, o livro abre-nos, escreveu Blanchot, “um outro modo de temporalidade que não nos deixa mais

38 Stéphane Mallarmé, Quant au livre. Le livre, instrument spirituel, Bordeaux, William Blake and Co, 2011. 39 Cabanne, p.93.

ser tranquilamente nossos contemporâneos”. Com o livro, o tempo move-se do seu eixo, desloca-se irreparavelmente: a temporalidade do leitor e do escritor deixa de ser a natural. O seu reino não é já deste mundo – destrói-o e reconstrói-o permanentemente. Mesmo os livros aparentemente mais distantes do cotidiano vivido, também dele fazem parte: Duchamp escolhe um livro de geometria para um dos seus ready-mades, aquele a que adjetivou de “malheureux”, infeliz. Foi o seu presente para celebrar o casamento da sua irmã Suzanne com Jean Crotti, em 1919. Enviou a Suzanne uma carta, de Buenos Aires, onde indicava as instruções para a sua realização: ela teria que comprar um livro de geometria “que deveria ser pendurado com fio sobre a varanda do seu apartamento na rua de La Condamine; o vento deveria folhear o livro, escolher ele mesmo os problemas, arrancar as folhas e despedaçá-las”39. Que o vento possa escolher e resolver os problemas aí encontrados, deixar que o livro se despedace. A permanência é uma ilusão que os livros gostam de criar e manter. Afinal, tudo passa.

BARTHOLOMEU DE GUSMÃO (1685), Petição do Padre Bartholomeu Lourenço sobre o instrumento…, 1774 Manuscrito, 22,3 x 17,5 cm

Na ambição (conscientemente falhada?) do livro absoluto, Mallarmé acreditava que “tudo no mundo existe para chegar a um livro”38. O livro seria, então, uma forma de fixar o efêmero, de agarrar o tempo, de não desperdiçar nada da vida, de legitimação e sobrevivência. Ou, no sentido hegeliano, de que tudo quer ser dito, trazido à linguagem, ao livro que compreenda a racionalidade do real, e a realidade do racional. Ou, no sentido cabalístico ou místico, de que um livro poderia conter o mundo, a chave de acesso ao seu segredo - o livro da sabedoria onde a verdade estaria revelada. Ou à imagem do “Livro da vida”, onde fica escrito e guardado o que fizemos e somos. No fundo, Mallarmé retoma, de outro ponto de vista, uma ideia antiga, que propõe que o próprio universo é um livro – como em Campanella, para quem “o mundo é o livro onde o juízo eterno escreve os seus conceitos”; ou como em Galileu, que usa a metáfora do “livro da natureza” escrito em linguagem matemática. Do mundo-livro ao livro-mundo. Diferentes, mas uns e outros propõe que a fronteira entre o dentro e o fora do livro é mais permeável do que julgamos.

JOHANN BAPTIST SPIX (1781) ; VON MARTIUS (1794), CARL FRIEDRICH (1777) Reise in Brasilien aus Besehl Sr. Majestät…[Viagem ao Brazil sob o Comando de Sua Majestade...], 1823-1831 37 x 28,8 cm

TUDO EXISTE PARA CHEGAR A UM LIVRO


INDETERMINADO CEST LA DEDVCTION [Esta é a dedução], 1551 Gravura 22,1 x 16,3 cm

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INDETERMINADO CEST LA DEDVCTION [Esta é a dedução], 1551 Gravura 22,1 x 16,3 cm

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DORA GARCÍA Joycean Society [Sociedade Joyciana], 2013 Vídeo, loop, 53’

O LEITOR, A BIBLIOTECA, O UNIVERSO

A biblioteca é extimidade: exterioridade íntima (Lacan). Uma forma de auto-retrato: somos seres-emaranhados-nas-histórias (Schapp), estamos rodeados de uma interminável biblioteca fantasma e sem muros - vivemos nesse labirinto: extensão da memória e da imaginação, da razão e da sensibilidade, espaço onde se cruzam a ficção e a realidade. A biblioteca torna-nos, assim, não-contemporâneos de nós próprios. E em permanente correção, alteração, mudança. Em inacabamento. Ler é, na verdade, ler-se - e escrever-se. Entrar no Universo - a que outros chamam Biblioteca…


DORA GARCÍA Joycean Society [Sociedade Joyciana], 2013 Vídeo, loop, 53’

O LEITOR, A BIBLIOTECA, O UNIVERSO

A biblioteca é extimidade: exterioridade íntima (Lacan). Uma forma de auto-retrato: somos seres-emaranhados-nas-histórias (Schapp), estamos rodeados de uma interminável biblioteca fantasma e sem muros - vivemos nesse labirinto: extensão da memória e da imaginação, da razão e da sensibilidade, espaço onde se cruzam a ficção e a realidade. A biblioteca torna-nos, assim, não-contemporâneos de nós próprios. E em permanente correção, alteração, mudança. Em inacabamento. Ler é, na verdade, ler-se - e escrever-se. Entrar no Universo - a que outros chamam Biblioteca…


O LEITOR, A BIBLIOTECA, O UNIVERSO

Também sobre a leitura, e sobre a subjetividade construtiva desse ato, é o livro de Fabio Morais: o artista retém das páginas dos livros comprados em sebos, apenas as anotações deixadas pelos leitores. O desenho resultante da leitura feita por outros: os sublinhados, as setas, os círculos, algumas palavras ou frases… Como as marcas que vemos nos livros filmados por Dora Garcia, mas na obras de Morais já sem o texto original, fica apenas a marca da passagem do leitor, a sua leitura - mesmo sem sabermos o que terá lido, por ter sido obliterado, ou só o podermos adivinhar através da interpretação das escassas indicações que o leitor deixou nas margens, pelas palavras que resumem uma ideia ou destacam um conceito. Essa é, aliás, uma das vantagens do códice: poder libertar a mão para escrever. A página torna-se lugar de encontro entre o texto e o leitor - que ao ler com um lápis na mão, se torna mais interventivo, mesmo fisicamente, como estes desenhos nos mostram. Outro gênero de marcas deixadas pelo leitor no livro, encontramos na delicada obra Hanna Arendt Library (2012),

TILT REC PRODUTORA Cristina Antunes-Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2018 Vídeo 7’, loop

os documentos são sinal das leituras, de um percurso intelectual, da história pessoal, da vida quotidiana: o recibo de uma reparação de sapatos, bilhetes, postais, manuscritos… Uma bio-bibliografia. Afinal, a biblioteca é uma forma de auto-retrato.

A biblioteca, o leitor. A distração do leitor em relação ao mundo, talvez mais aparente do que real, tem como contraponto o caráter ativo da leitura. A leitura como recriação e não apenas como recreação. Percebemos isso na performance de leitura de John Cage, a ler um dos seus livros preferidos, Finnegans Wake de James Joyce. A interpretação, a voz, o som, a entoação criam outro texto. Deixa de pertencer ao autor. A leitura documentada por Takahiko Iimura é sussurro, canto, proclamação. As palavras, sílabas ou letras, foram escolhidas ao acaso do livro de James Joyce Finnegan´s Wake, com a ajuda do método de I-Ching, e transformam-se numa composição de Cage40 - recusando a coerência ou sentido, já de si difícil, do texto original. A leitura é uma recriação, constante mutação, transmutação. Afinal, ler não é a leitura servil de um texto já escrito, mas construção de um original - ao limite, do próprio si.

Esse mundo próprio do leitor - mesmo do leitor obcecado com um texto que “nunca termina de dizer o que tem a dizer”, como afirmou Italo Calvino sobre os clássicos - fica bem revelado na obra de Dora Garcia, The Joycean Society (2013). A leitura que se torna em anotação, comentário, procura de sentido - e confrontação com a leitura de outros. A leitura é, aqui, questão comunitária. Dora Garcia realiza um filme sobre um clube de leitura que se encontra todas as semanas, desde 1985, em Zurique, para estudar a obra enigmática Finnegans Wake. O filme dura o tempo de uma sessão de leitura. O filme torna-se, assim, num comentário aos comentários ao livro - marcado, sublinhado, lido. Uma soma de leituras, e com elas a consciência do seu sentido aberto e enigmático. Bem como a passagem do tempo que elas implicam na vida dos membros deste clube de leitura. Um livro - e um filme - sobre a linguagem, o conhecimento, a imaginação - e a construção do mundo. Sobre esse esforço de uma leitura em comum - de criação do comum.

de Heinz Peter Knes, Danh Vo e Amy Zion. Os autores fotografaram os documentos encontrados dentro dos livros da biblioteca da filósofa alemã. As marcas do tempo, dos dias, dos lugares - memórias de uma leitura incarnada: os documentos que o leitor, neste caso a leitora, deixou dentro dos livros da sua biblioteca41. Eles transformam-se em sinais de uma mistura entre dois mundos: um exterior e outro interior ao livro. Conscientes de que o exterior é já formado por ele, tal como o interior é constituído a partir do exterior. As fronteiras são instáveis. Sabendo em que livro estavam, entre que páginas,

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin é também um espelho do colecionador. Ou melhor, do leitor que José Mindlin foi. São essas histórias de relação com o leitor-colecionador e com os livros da sua biblioteca o que nos conta Cristina Antunes, bibliotecária que é a memória viva desta biblioteca. E escutá-la é pensar nas Mil e uma noites: em como a biblioteca é um contentor impossível de todas as histórias, a biblioteca é uma imagem do universo infinito - como lembrou Borges. Para Wilhem Schapp42, o emaranhamento em narrativas não é uma complicação secundária, mas a condição primeira, essencial, da subjetivação. Emaranhados nas histórias de outros desde que nascemos, e aprendemos, por outros, a nossa própria história – é a condição necessária para a nossa própria “identidade narrativa” (Paul Ricoeur), para podermos contar a nossa história à nossa maneira, refazendo-a, alterando-a. Esse ser-emaranhado-nas-histórias é o fenômeno mais originário43. O lugar onde devemos procurar o mundo é nesse estado de ser-emaranhado-nas-histórias. E quem procura fugir desse emaranhado, está já a criar uma história e uma outra forma de estar emaranhado.

41 Michael Asher, em 1991, fez uma instalação a partir dos documentos encontrados nos livros de psicologia da Biblioteca publica de informação do Pompidou. 40 Este vídeo mostra a parte lida de Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans Wake de J. Cage, de 1979 - que usa como texto base o livro Finnegans Wake, de

Mais recentemente, em 2005, Mariana Castillo Deball, realizou The readers traces, na Jan Van Eyck Academie, em Maastricht.

Joyce. O texto reconstruído por Cage - entre 1976 e 1979 - foi publicado sob o título Writing for the Second Time through Finnegans Wake. Cage descreve também

42 Sobre a obra de Wilhem Schapp seguiremos a análise de Jean Greisch, Paul Ricoeur, L´intineraire du sens. Grenoble: Millon. 2001, p.147ss

como se pode aplicar o mesmo método a qualquer livro: “translating a book into a performance without actors, both literary and musical or one or the other”.

43 Ibidem, p.150. O seu postulado fundamental, como lembra J.Greisch é “que as modalidades pré ou não-literárias da narrativa são mais decisivas para a compreensão do fenômeno da narratividade que as suas expressões literárias”


O LEITOR, A BIBLIOTECA, O UNIVERSO

Também sobre a leitura, e sobre a subjetividade construtiva desse ato, é o livro de Fabio Morais: o artista retém das páginas dos livros comprados em sebos, apenas as anotações deixadas pelos leitores. O desenho resultante da leitura feita por outros: os sublinhados, as setas, os círculos, algumas palavras ou frases… Como as marcas que vemos nos livros filmados por Dora Garcia, mas na obras de Morais já sem o texto original, fica apenas a marca da passagem do leitor, a sua leitura - mesmo sem sabermos o que terá lido, por ter sido obliterado, ou só o podermos adivinhar através da interpretação das escassas indicações que o leitor deixou nas margens, pelas palavras que resumem uma ideia ou destacam um conceito. Essa é, aliás, uma das vantagens do códice: poder libertar a mão para escrever. A página torna-se lugar de encontro entre o texto e o leitor - que ao ler com um lápis na mão, se torna mais interventivo, mesmo fisicamente, como estes desenhos nos mostram. Outro gênero de marcas deixadas pelo leitor no livro, encontramos na delicada obra Hanna Arendt Library (2012),

TILT REC PRODUTORA Cristina Antunes-Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2018 Vídeo 7’, loop

os documentos são sinal das leituras, de um percurso intelectual, da história pessoal, da vida quotidiana: o recibo de uma reparação de sapatos, bilhetes, postais, manuscritos… Uma bio-bibliografia. Afinal, a biblioteca é uma forma de auto-retrato.

A biblioteca, o leitor. A distração do leitor em relação ao mundo, talvez mais aparente do que real, tem como contraponto o caráter ativo da leitura. A leitura como recriação e não apenas como recreação. Percebemos isso na performance de leitura de John Cage, a ler um dos seus livros preferidos, Finnegans Wake de James Joyce. A interpretação, a voz, o som, a entoação criam outro texto. Deixa de pertencer ao autor. A leitura documentada por Takahiko Iimura é sussurro, canto, proclamação. As palavras, sílabas ou letras, foram escolhidas ao acaso do livro de James Joyce Finnegan´s Wake, com a ajuda do método de I-Ching, e transformam-se numa composição de Cage40 - recusando a coerência ou sentido, já de si difícil, do texto original. A leitura é uma recriação, constante mutação, transmutação. Afinal, ler não é a leitura servil de um texto já escrito, mas construção de um original - ao limite, do próprio si.

Esse mundo próprio do leitor - mesmo do leitor obcecado com um texto que “nunca termina de dizer o que tem a dizer”, como afirmou Italo Calvino sobre os clássicos - fica bem revelado na obra de Dora Garcia, The Joycean Society (2013). A leitura que se torna em anotação, comentário, procura de sentido - e confrontação com a leitura de outros. A leitura é, aqui, questão comunitária. Dora Garcia realiza um filme sobre um clube de leitura que se encontra todas as semanas, desde 1985, em Zurique, para estudar a obra enigmática Finnegans Wake. O filme dura o tempo de uma sessão de leitura. O filme torna-se, assim, num comentário aos comentários ao livro - marcado, sublinhado, lido. Uma soma de leituras, e com elas a consciência do seu sentido aberto e enigmático. Bem como a passagem do tempo que elas implicam na vida dos membros deste clube de leitura. Um livro - e um filme - sobre a linguagem, o conhecimento, a imaginação - e a construção do mundo. Sobre esse esforço de uma leitura em comum - de criação do comum.

de Heinz Peter Knes, Danh Vo e Amy Zion. Os autores fotografaram os documentos encontrados dentro dos livros da biblioteca da filósofa alemã. As marcas do tempo, dos dias, dos lugares - memórias de uma leitura incarnada: os documentos que o leitor, neste caso a leitora, deixou dentro dos livros da sua biblioteca41. Eles transformam-se em sinais de uma mistura entre dois mundos: um exterior e outro interior ao livro. Conscientes de que o exterior é já formado por ele, tal como o interior é constituído a partir do exterior. As fronteiras são instáveis. Sabendo em que livro estavam, entre que páginas,

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin é também um espelho do colecionador. Ou melhor, do leitor que José Mindlin foi. São essas histórias de relação com o leitor-colecionador e com os livros da sua biblioteca o que nos conta Cristina Antunes, bibliotecária que é a memória viva desta biblioteca. E escutá-la é pensar nas Mil e uma noites: em como a biblioteca é um contentor impossível de todas as histórias, a biblioteca é uma imagem do universo infinito - como lembrou Borges. Para Wilhem Schapp42, o emaranhamento em narrativas não é uma complicação secundária, mas a condição primeira, essencial, da subjetivação. Emaranhados nas histórias de outros desde que nascemos, e aprendemos, por outros, a nossa própria história – é a condição necessária para a nossa própria “identidade narrativa” (Paul Ricoeur), para podermos contar a nossa história à nossa maneira, refazendo-a, alterando-a. Esse ser-emaranhado-nas-histórias é o fenômeno mais originário43. O lugar onde devemos procurar o mundo é nesse estado de ser-emaranhado-nas-histórias. E quem procura fugir desse emaranhado, está já a criar uma história e uma outra forma de estar emaranhado.

41 Michael Asher, em 1991, fez uma instalação a partir dos documentos encontrados nos livros de psicologia da Biblioteca publica de informação do Pompidou. 40 Este vídeo mostra a parte lida de Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans Wake de J. Cage, de 1979 - que usa como texto base o livro Finnegans Wake, de

Mais recentemente, em 2005, Mariana Castillo Deball, realizou The readers traces, na Jan Van Eyck Academie, em Maastricht.

Joyce. O texto reconstruído por Cage - entre 1976 e 1979 - foi publicado sob o título Writing for the Second Time through Finnegans Wake. Cage descreve também

42 Sobre a obra de Wilhem Schapp seguiremos a análise de Jean Greisch, Paul Ricoeur, L´intineraire du sens. Grenoble: Millon. 2001, p.147ss

como se pode aplicar o mesmo método a qualquer livro: “translating a book into a performance without actors, both literary and musical or one or the other”.

43 Ibidem, p.150. O seu postulado fundamental, como lembra J.Greisch é “que as modalidades pré ou não-literárias da narrativa são mais decisivas para a compreensão do fenômeno da narratividade que as suas expressões literárias”


O LEITOR, A BIBLIOTECA, O UNIVERSO

Os meus livros (que não sabem que existo) São uma parte de mim, como este rosto De têmporas e olhos já cinzentos Que em vão vou procurando nos espelhos E que percorro com a minha mão côncava. Não sem alguma lógica amargura Entendo que as palavras essenciais,

As que me exprimem, estarão nessas folhas Que não sabem quem sou, não nas que escrevo. Mais vale assim. As vozes desses mortos Dir-me-ão para sempre.44

O labirinto é, a um tempo, a biblioteca exterior e a biblioteca interior. E sempre em alteração, tarefa infinita, interminável. À imagem do universo. Biblioteca infinita de Babel. “Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida, diria que é a biblioteca de meu pai. Na realidade, creio nunca ter saído dessa biblioteca.”45. Foram os livros que formaram a sua atenção: “Sempre cheguei às coisas depois de encontrá-las nos livros”46. Do mesmo modo que os livros que leu levaram aos livros que escreveu. Borges era, escreveu Blanchot, um “homem essencialmente literário”. Mesmo para os que julgam ver, a biblioteca é um espaço impossível, de cegueira, de obscuridade - o espaço dos espaços, que se multiplicam em todas as páginas fechadas nas prateleiras e de que as lombadas são uma promessa. O abismo das fendas intermináveis que as dobras do livro indicam. A biblioteca é a soma infinita dos espaços que a leitura abre, lugares imaginários, sítios e épocas que só nos livros se revelam e apenas àquele leitor. Nenhum outro encontrará o mesmo. Irrepetível. Um mapeamento onde se misturam os espaços existentes e imaginários, da mesma maneira que esses espaços se imiscuem na nossa vida. Ela torna-nos nãocontemporâneos, partilhando o tempo e o espaço, a história e a ficção, com milhares de fantasmas. A biblioteca é sem muros. Lugar de orientação ou de desorientação - exigindo a reconfiguração permanente do horizonte de possibilidades onde nos movemos: “O universo (a que outros chamam a Biblioteca)…”47.

Uma biblioteca revela sempre o poder do inacabamento - de que não há o livro único, e que um livro convoca outros, que um epílogo é um novo prólogo… É essa ideia que o artista brasileiro Waltércio Caldas deixou numa das suas Notas: “A melhor visão de uma coisa sugere/ seu futuro inacabado”. Tarefas infinitas,

44 Jorge Luis Borges, “Os meus livros” in A Rosa Profunda (1975). Edição francesa: Jorge Luis Borges, « Mes livres », in La Rose profonde (1975), trad. Jean Pierre Bernès, Nestor Ibarra, Œuvres complètes, II, Paris, Gallimard, Pléiade, 2010, p. 572. 45 Jorge Luis Borges e Osvaldo Ferrari, Sobre a filosofia e outros diálogos. São Paulo, Hedra, 2009, p.16 46 Ibidem, p.20 47 J. L. Borges, “A biblioteca de Babel” in Ficções. Trad. Francesa: J. L. Borges, « La Bibliothèque de Babel », in Fictions (1944), trad. Roger Caillois, Nestor Ibarra, Paul Verdevoye, Paris, Gallimard, Œuvres complètes, 1, Pléiade, 2010, p. 491.

GRACILIANO RAMOS Vidas Secas (O mundo coberto de pennas), 1938 Prova tipografica onde o autor muda definitivamente o título da obra para o atual. 33 x 23,5 cm

Se em Schapp as estórias não são necessariamente, nem primeiramente, literárias, a biblioteca - e a biblioteca como labirinto - pode ser uma imagem desse envolvimento identitário, desse emaranhamento essencial. Até pela condição de pré-conceito que ela envolve: tal como o arquivo, a biblioteca é sempre um dispositivo político, de escolha, de seleção, de esquecimento. Um dispositivo, uma técnica, de subjetivação. O livro - tal como a biblioteca - é um espaço ambíguo: uma alteridade que se revela mais íntima que o próprio íntimo. Interior intimo meo (Santo Agostinho). Como percebeu Proust, é um impulso vindo de fora, exterior, mas que só se realiza no interior de cada um, e que só assim pode surtir efeito. “Exterioridade íntima”, é a definição que Lacan dá àquilo que, a um tempo, parece pertencer e não pertencer ao indivíduo: extimité. É a característica de uma “coisa” - de um ça - que é igualmente exterior e íntima. Como o inconsciente, o desejo, a potência da sexualidade, o tempo, o próprio real. Assim o livro, interior intimo meo. Algo fora e enxertado em nós, e que por essa técnica de enxerto nos tornamos consubstanciais - corpo do nosso corpo, vida da nossa vida - e no entanto, experimentado ainda como estrangeiro, um fora. (E aí também a comparação entre o livro e a morte - o Outro absoluto, e que é o mais íntimo.) O conceito de extimidade permite escapar ao dualismo exterior-interior, é um conceito dialético, plástico. Dentro e fora são permutáveis, não contrários. Extimidade não se opõe nem a intimidade nem a exterioridade. Uma é o núcleo da outra. Assim também a nossa relação com os livros: somos os livros que lemos, somos os livros que escrevemos, e ao mesmo tempo são-nos estranhos, têm vida própria, não dependem de nós - leitores ou escritores. Como sabia Borges, que imaginava o Paraíso como uma biblioteca:


O LEITOR, A BIBLIOTECA, O UNIVERSO

Os meus livros (que não sabem que existo) São uma parte de mim, como este rosto De têmporas e olhos já cinzentos Que em vão vou procurando nos espelhos E que percorro com a minha mão côncava. Não sem alguma lógica amargura Entendo que as palavras essenciais,

As que me exprimem, estarão nessas folhas Que não sabem quem sou, não nas que escrevo. Mais vale assim. As vozes desses mortos Dir-me-ão para sempre.44

O labirinto é, a um tempo, a biblioteca exterior e a biblioteca interior. E sempre em alteração, tarefa infinita, interminável. À imagem do universo. Biblioteca infinita de Babel. “Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida, diria que é a biblioteca de meu pai. Na realidade, creio nunca ter saído dessa biblioteca.”45. Foram os livros que formaram a sua atenção: “Sempre cheguei às coisas depois de encontrá-las nos livros”46. Do mesmo modo que os livros que leu levaram aos livros que escreveu. Borges era, escreveu Blanchot, um “homem essencialmente literário”. Mesmo para os que julgam ver, a biblioteca é um espaço impossível, de cegueira, de obscuridade - o espaço dos espaços, que se multiplicam em todas as páginas fechadas nas prateleiras e de que as lombadas são uma promessa. O abismo das fendas intermináveis que as dobras do livro indicam. A biblioteca é a soma infinita dos espaços que a leitura abre, lugares imaginários, sítios e épocas que só nos livros se revelam e apenas àquele leitor. Nenhum outro encontrará o mesmo. Irrepetível. Um mapeamento onde se misturam os espaços existentes e imaginários, da mesma maneira que esses espaços se imiscuem na nossa vida. Ela torna-nos nãocontemporâneos, partilhando o tempo e o espaço, a história e a ficção, com milhares de fantasmas. A biblioteca é sem muros. Lugar de orientação ou de desorientação - exigindo a reconfiguração permanente do horizonte de possibilidades onde nos movemos: “O universo (a que outros chamam a Biblioteca)…”47.

Uma biblioteca revela sempre o poder do inacabamento - de que não há o livro único, e que um livro convoca outros, que um epílogo é um novo prólogo… É essa ideia que o artista brasileiro Waltércio Caldas deixou numa das suas Notas: “A melhor visão de uma coisa sugere/ seu futuro inacabado”. Tarefas infinitas,

44 Jorge Luis Borges, “Os meus livros” in A Rosa Profunda (1975). Edição francesa: Jorge Luis Borges, « Mes livres », in La Rose profonde (1975), trad. Jean Pierre Bernès, Nestor Ibarra, Œuvres complètes, II, Paris, Gallimard, Pléiade, 2010, p. 572. 45 Jorge Luis Borges e Osvaldo Ferrari, Sobre a filosofia e outros diálogos. São Paulo, Hedra, 2009, p.16 46 Ibidem, p.20 47 J. L. Borges, “A biblioteca de Babel” in Ficções. Trad. Francesa: J. L. Borges, « La Bibliothèque de Babel », in Fictions (1944), trad. Roger Caillois, Nestor Ibarra, Paul Verdevoye, Paris, Gallimard, Œuvres complètes, 1, Pléiade, 2010, p. 491.

GRACILIANO RAMOS Vidas Secas (O mundo coberto de pennas), 1938 Prova tipografica onde o autor muda definitivamente o título da obra para o atual. 33 x 23,5 cm

Se em Schapp as estórias não são necessariamente, nem primeiramente, literárias, a biblioteca - e a biblioteca como labirinto - pode ser uma imagem desse envolvimento identitário, desse emaranhamento essencial. Até pela condição de pré-conceito que ela envolve: tal como o arquivo, a biblioteca é sempre um dispositivo político, de escolha, de seleção, de esquecimento. Um dispositivo, uma técnica, de subjetivação. O livro - tal como a biblioteca - é um espaço ambíguo: uma alteridade que se revela mais íntima que o próprio íntimo. Interior intimo meo (Santo Agostinho). Como percebeu Proust, é um impulso vindo de fora, exterior, mas que só se realiza no interior de cada um, e que só assim pode surtir efeito. “Exterioridade íntima”, é a definição que Lacan dá àquilo que, a um tempo, parece pertencer e não pertencer ao indivíduo: extimité. É a característica de uma “coisa” - de um ça - que é igualmente exterior e íntima. Como o inconsciente, o desejo, a potência da sexualidade, o tempo, o próprio real. Assim o livro, interior intimo meo. Algo fora e enxertado em nós, e que por essa técnica de enxerto nos tornamos consubstanciais - corpo do nosso corpo, vida da nossa vida - e no entanto, experimentado ainda como estrangeiro, um fora. (E aí também a comparação entre o livro e a morte - o Outro absoluto, e que é o mais íntimo.) O conceito de extimidade permite escapar ao dualismo exterior-interior, é um conceito dialético, plástico. Dentro e fora são permutáveis, não contrários. Extimidade não se opõe nem a intimidade nem a exterioridade. Uma é o núcleo da outra. Assim também a nossa relação com os livros: somos os livros que lemos, somos os livros que escrevemos, e ao mesmo tempo são-nos estranhos, têm vida própria, não dependem de nós - leitores ou escritores. Como sabia Borges, que imaginava o Paraíso como uma biblioteca:


SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda Superintendentes Técnico-social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio M. Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli Gerentes Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga de Mattos Artes Gráficas Hélcio Magalhães Assessoria de Relações Internacionais Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Centro de Pesquisa e Formação Andréa de Araujo Nogueira Equipe Sesc Carla Ferreira, Eder Martins, Ieda Maria de Resende, Kelly Teixeira, Rafael Peixoto, Rosana Elisa Catelli, Sandra Leibovici e Tina Cassie

BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN Diretor Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron Vice Diretor Alexandre Macchione Saes Especialistas em Pesquisa Cristina Antunes, João Marcos Cardoso

BIBLIOTECA DE ARTE FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Presidente do Conselho de Administração Fundação Calouste Gulbenkian Isabel Mota Direção Biblioteca de Arte e Arquivos Fundação Calouste Gulbenkian João Santos Vieira Bibliotecária de referência Ana Barata Courier Sónia Casquiço Gestão e conservação das coleções Constança Costa Rosa

TAREFAS INFINITAS QUANDO A ARTE E O LIVRO SE ILIMITAM [exposição] Curadoria e textos Paulo Pires do Vale Curadoria cursos e fóruns Rosely Nakagawa Pesquisa - Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Diana Mindlin, Lucia Loeb Produção executiva e coordenação geral Gabriela Teixeira, Maíra Ramos Projeto Gráfico Beatriz Matuck, Acauã Novais Ilustrações Bruna Canepa Expografia Ricardo Amado Projeto Iluminação Lúcia Chedieck Reprodução e tratamento imagens Edson Kumasaka Comunicação Breno Liguori Tradução Camila Mugan Audiovisual TILT - Beto Macedo e Tiago Berbare (direção), Marcos Gerez (desenho de som), Vinicius Colé (direção) Execução de obras Arrisca, Giorgia Massetani, Oficina São João [cursos e fóruns] Curadoria Rosely Nakagawa Assistente Gabriela Teixeira e Lucia Loeb Assistente audiovisual Pedro Maranhão [cursos] A Paisagem como Livro Eduardo Neves; O Livro Como Invenção Elaine Ramos; Produção Gráfica e editorial, vista através do Papel Aline Valli; Do Papel ao Livro Rosely Nakagawa (part. Sidnei Perego e Lucia Loeb); Caminhos Cruzados Entre a Leitura e a Escrita Noemi Jaffe; Criando Sob Novas Condições Tiago Mesquita; Tipografia Libre, Fontes Digitais da Tela à Mídia Marcelo Magalhães; Mallarmé: Pesquisa do Motor do Infinito Rosie Mehoudar; Livro de artista: Partitura Coreográfica ou Quase Cinema? Edith Derdyk; Políticas de Biblioteca de Mário de Andrade Carlos Augusto Calil; O Livro e a Arquitetura Eduardo Costa; O Livro, o Texto e a Imagem Joca Reiners Terron e Diógenes Moura; Livros de artista: Matéria, Memória e Apagamento Luise Weiss.

Agradecimentos Ana Barata, Ana Helena Curti, Beatrix Overmeer, Elaine Duarte Alves, Fabiana Ruggiero, Fernanda Fragateiro, Isabella Lenzi, João Vieira, Khaled Ghoubar, Luisa Malzoni, Luiz Vieira, Paulo Mendes da Rocha, Rui Chafes e Tiago Mesquita. Créditos imagens © António Jorge Silva (p. 4,5) © José Moscardi (p. 6, 7) © Alejandro Cesarco e Tanya Leighton Gallery (p. 19) © Carlos Azevedo - Fundação Calouste Gulbenkian (p. 12, 16-17, 20, 22-23, 34-35) © Edson Kumasaka (p. 36) © Lucia Loeb (p. 14-15, 37, 39, 49, 40-41, 47) © Change is good, Paris, para a Fondation Calouste Gulbenkian, Paris (p. 25) © Nicolas Giraud (p. 28) © Sylvie Chan-Liat (p. 32) © TILT REC (p. 44-45) © Dora García Lopez (p. 42) Acervos Alejandro Cesarco e Tanya Leighton Gallery-Berlim, Fernando Lemos, Auguste Orts-Bélgica, Marian Goodman Gallery-Nova Iorque, Angela Detanico e Rafael Lain, Atelier Fernanda Fragateiro, Antonio Carlos Kfouri, Biblioteca de Arte Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Diana Mindlin, Fernando Lemos, Frac Lorraine, Metz (FR), Lucia Loeb, Galeria Luisa Strina, Galeria Vermelho, Coleção Pedro Vieira, Paulo Mendes da Rocha, Maria Gilissen-Broodthaers e DeJonghe Film Post Production, Cinémathèque Méliès-Les Amis de Georges Méliès, The John Latham Foundation-Lisson Gallery, Takahiko Iimura, Video Data Bank, School of The Arts Institute of Chicago, Auguste Orts, Edith Derdyk, Luise Weiss e Patrícia Telles.

[fóruns] Tarefas Infinitas Paulo Pires do Vale, Diana Mindlin e Rosely Nakagawa; Alternativas para tornar o meio editorial mais sustentável (part. Bia Bittencourt) Rachel Gontijo [A Bolha editora], Elaine Ramos [UBU editora] e Vanderley Mendonça [ed. Demônio Negro]; A cidade, o livro, a biblioteca Carlos Augusto Calil, Francesco Perrota Bosch e Paulo Mendes da Rocha; Livros podem ser partituras Juçara Marçal, Rodrigo Brandão, Rodrigo Carneiro. Mediação: Lulie Macedo; De um livro brotam imagens Tiago Santana, Maureen Bisilliat e Lauro Escorel Publicações de artista no Brasil: desafios na concepção, produção e pesquisa Fabio Morais, Luiz Vieira (IKREK) e Regina Melim; Livro e imagem Ana Martins Marques, Miguel Del Castillo e Norval Baitello Junior

Todo o conteúdo dos cursos e fóruns encontrase na audioteca Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Informações através do e-mail centrodepesquisaeformacao@sescsp.org.br ou pelo telefone 11 3254-5600.

parceria institucional

realização


SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda Superintendentes Técnico-social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio M. Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli Gerentes Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga de Mattos Artes Gráficas Hélcio Magalhães Assessoria de Relações Internacionais Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Centro de Pesquisa e Formação Andréa de Araujo Nogueira Equipe Sesc Carla Ferreira, Eder Martins, Ieda Maria de Resende, Kelly Teixeira, Rafael Peixoto, Rosana Elisa Catelli, Sandra Leibovici e Tina Cassie

BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN Diretor Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron Vice Diretor Alexandre Macchione Saes Especialistas em Pesquisa Cristina Antunes, João Marcos Cardoso

BIBLIOTECA DE ARTE FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Presidente do Conselho de Administração Fundação Calouste Gulbenkian Isabel Mota Direção Biblioteca de Arte e Arquivos Fundação Calouste Gulbenkian João Santos Vieira Bibliotecária de referência Ana Barata Courier Sónia Casquiço Gestão e conservação das coleções Constança Costa Rosa

TAREFAS INFINITAS QUANDO A ARTE E O LIVRO SE ILIMITAM [exposição] Curadoria e textos Paulo Pires do Vale Curadoria cursos e fóruns Rosely Nakagawa Pesquisa - Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Diana Mindlin, Lucia Loeb Produção executiva e coordenação geral Gabriela Teixeira, Maíra Ramos Projeto Gráfico Beatriz Matuck, Acauã Novais Ilustrações Bruna Canepa Expografia Ricardo Amado Projeto Iluminação Lúcia Chedieck Reprodução e tratamento imagens Edson Kumasaka Comunicação Breno Liguori Tradução Camila Mugan Audiovisual TILT - Beto Macedo e Tiago Berbare (direção), Marcos Gerez (desenho de som), Vinicius Colé (direção) Execução de obras Arrisca, Giorgia Massetani, Oficina São João [cursos e fóruns] Curadoria Rosely Nakagawa Assistente Gabriela Teixeira e Lucia Loeb Assistente audiovisual Pedro Maranhão [cursos] A Paisagem como Livro Eduardo Neves; O Livro Como Invenção Elaine Ramos; Produção Gráfica e editorial, vista através do Papel Aline Valli; Do Papel ao Livro Rosely Nakagawa (part. Sidnei Perego e Lucia Loeb); Caminhos Cruzados Entre a Leitura e a Escrita Noemi Jaffe; Criando Sob Novas Condições Tiago Mesquita; Tipografia Libre, Fontes Digitais da Tela à Mídia Marcelo Magalhães; Mallarmé: Pesquisa do Motor do Infinito Rosie Mehoudar; Livro de artista: Partitura Coreográfica ou Quase Cinema? Edith Derdyk; Políticas de Biblioteca de Mário de Andrade Carlos Augusto Calil; O Livro e a Arquitetura Eduardo Costa; O Livro, o Texto e a Imagem Joca Reiners Terron e Diógenes Moura; Livros de artista: Matéria, Memória e Apagamento Luise Weiss.

Agradecimentos Ana Barata, Ana Helena Curti, Beatrix Overmeer, Elaine Duarte Alves, Fabiana Ruggiero, Fernanda Fragateiro, Isabella Lenzi, João Vieira, Khaled Ghoubar, Luisa Malzoni, Luiz Vieira, Paulo Mendes da Rocha, Rui Chafes e Tiago Mesquita. Créditos imagens © António Jorge Silva (p. 4,5) © José Moscardi (p. 6, 7) © Alejandro Cesarco e Tanya Leighton Gallery (p. 19) © Carlos Azevedo - Fundação Calouste Gulbenkian (p. 12, 16-17, 20, 22-23, 34-35) © Edson Kumasaka (p. 36) © Lucia Loeb (p. 14-15, 37, 39, 49, 40-41, 47) © Change is good, Paris, para a Fondation Calouste Gulbenkian, Paris (p. 25) © Nicolas Giraud (p. 28) © Sylvie Chan-Liat (p. 32) © TILT REC (p. 44-45) © Dora García Lopez (p. 42) Acervos Alejandro Cesarco e Tanya Leighton Gallery-Berlim, Fernando Lemos, Auguste Orts-Bélgica, Marian Goodman Gallery-Nova Iorque, Angela Detanico e Rafael Lain, Atelier Fernanda Fragateiro, Antonio Carlos Kfouri, Biblioteca de Arte Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Diana Mindlin, Fernando Lemos, Frac Lorraine, Metz (FR), Lucia Loeb, Galeria Luisa Strina, Galeria Vermelho, Coleção Pedro Vieira, Paulo Mendes da Rocha, Maria Gilissen-Broodthaers e DeJonghe Film Post Production, Cinémathèque Méliès-Les Amis de Georges Méliès, The John Latham Foundation-Lisson Gallery, Takahiko Iimura, Video Data Bank, School of The Arts Institute of Chicago, Auguste Orts, Edith Derdyk, Luise Weiss e Patrícia Telles.

[fóruns] Tarefas Infinitas Paulo Pires do Vale, Diana Mindlin e Rosely Nakagawa; Alternativas para tornar o meio editorial mais sustentável (part. Bia Bittencourt) Rachel Gontijo [A Bolha editora], Elaine Ramos [UBU editora] e Vanderley Mendonça [ed. Demônio Negro]; A cidade, o livro, a biblioteca Carlos Augusto Calil, Francesco Perrota Bosch e Paulo Mendes da Rocha; Livros podem ser partituras Juçara Marçal, Rodrigo Brandão, Rodrigo Carneiro. Mediação: Lulie Macedo; De um livro brotam imagens Tiago Santana, Maureen Bisilliat e Lauro Escorel Publicações de artista no Brasil: desafios na concepção, produção e pesquisa Fabio Morais, Luiz Vieira (IKREK) e Regina Melim; Livro e imagem Ana Martins Marques, Miguel Del Castillo e Norval Baitello Junior

Todo o conteúdo dos cursos e fóruns encontrase na audioteca Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Informações através do e-mail centrodepesquisaeformacao@sescsp.org.br ou pelo telefone 11 3254-5600.

parceria institucional

realização


A mostra ocorre em dois espaços simultaneamente. Confira programação no site sescsp.org.br/cpf

Centro de Pesquisa e Formação R. Dr. Plínio Barreto, 285 [4º andar] Bela Vista - 01313-020 - São Paulo - SP Trianon-Masp 700m Anhangabaú 2000m 11 3254-5600 | / cpfsesc centrodepesquisaeformacao@sescsp.org.br VISITAÇÃO 9 AGOSTO A 27 OUTUBRO 2018 Segunda a sexta, das 10h às 21h30. Sábados, das 10h às 18h.

Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Rua da Biblioteca s/n, USP [Sala multiuso] [Universidade de São Paulo - Cd. Universitária] Butantã VISITAÇÃO 10 AGOSTO A 15 SETEMBRO 2018 Segunda a sexta, das 8h30 às 18h30.


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