CPT_Medeia_Programa_Julho_2001-compactado.pdf

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CENTRO DE PESQUISA TEATRAL DO SESC E GRUPO DE TEATRO MACUNAÍMA APRESENTAM

de Eurípedes direção: Antunes Filho

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IA marca de originalidade que acompanha o SESC - Serviço Social do Comércio é resultante não só de sua estrutura e modo de funcionamento como também dos objetivos aos quais serve. No que diz respeito ao primeiro aspecto, de ordem formal, o SESC tem demonstrado ser uma das mais respeitadas e reconhecidas instituições brasileiras. Entidade de caráter privado, criada em 1946 por iniciativa do empresariado do comércio e serviços, é por ele administrada e mantida, através de contribuições asseguradas por lei federal. Essa sintonia de propósitos entre governo e lideranças empresariais põe em andamento um modelo exemplar de trabalho social. Capaz de resultados altamente expressivos, ele deve sua eficiência à agilidade administrativa, à sobriedade de sua estrutura e à probidade na gestão dos recursos disponíveis. Com relação aos seus objetivos, eles concernem aos campos os mais variados do bem -estar social. Assim, o SESC de São Paulo realiza programas nas áreas de saúde, alimentação, cultura, lazer, férias e fins de semana, esportes e atividades físicas, terceira idade, educação infantil informal e educação ambiental, além de outros.

1 Orientada por um projeto de formação de verdadeiros cidadãos, ou seja, de homens e mulheres motivados à participação social, à expressão de idéias e reivindicações, à compreensão crítica do universo em que vivem, à receptividade e ao diálogo em relação a pontos de vista divergentes, nossa instituição não poderia senão ressaltar a importância das artes, em todas as suas manifestações. O teatro tem merecido especial atenção. Através do CPT - Centro de Pesquisa Teatral, núcleo coordenado pelo diretor Antunes Filho, o SESC/SP tem contribuído para renovar as artes cênicas no Brasil e colocá-Ias ao alcance de um público cada vez mais amplo. Medéia, o mais recente trabalho do CPT, converge para essa direção e traz novo acréscimo a uma trajetória já consolidada, extremamente bem-sucedida. Motivo de justificada satisfação para todos nós.

Abram

Szajman

Presidente do Conselho Regional do SESC no Estado de São Paulo


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:2:0 A ação cultural do SESC de São Paulo preocupa-se em abordar as questões mais candentes dos debates contemporâneos, pois acredita na capacidade reflexiva das artes, não de simples entretenimento. Nesse sentido, é de extrema satisfação trazer a público um trabalho como o do CPT /SESC, que se debruça com todo empenho sobre um dos problemas centrais do mundo moderno: a relação do homem com a natureza. A civilização tem perseguido, através da técnica e do progresso, o objetivo de livrar os homens do jugo irrestrito da natureza e fazê-Ios senhores de si e do seu meio. No entanto, esse mesmo domínio tem gerado catástrofes sem precedentes na história. A natureza, devastada, deixa hoje os homens à beira de um colapso global de recursos vitais: água, ar e energia. A Mãe Gentil, desrespeitada, volta sua ira contra os homens a quem dera a vida e que a desprezaram. Esta pode ser uma das chaves de leitura da Medéia que o CPT/SESC de Antunes Filho nos apresenta. Sua personagem trágica não é apenas a esposa traída em seu amor, nem mesmo a mulher simbólica, representante de todas as mulheres subjugadas. Mas toda a natureza gritando a dor de seu desprezo, reagindo com fúria destrutiva contra o homem, responsável por sua própria destruição. Medéia é um mito arcaico. Homero já o considerava parte das crenças dos antigos. Fixado por Píndaro, foi retomado em sua formulação mais conhecida por Eurípedes. Sêneca, filósofo estóico, viu nele os males da ausência de controle. Shakespeare o utilizou como modelo para Lady Macbeth. Corneille e Racine revisitaram-no no classicismo francês. Nos anos sessenta, Pasolini o recontou a partir de outro mito, Maria Callas. Recentemente, em Medeamaterial, Heiner Müller tratou-o como metáfora política. Christa Wolf interpretou-o pelo viés da opressão das minorias pelo poder masculino, branco e "civilizado". Esses nomes lembram que, se essa história tão antiga tem sido constantemente recontada, talvez seja porque os dilemas por ela postos

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permaneçam sempre muito atuais. O encantamento dos mitos reside no fato de que sua interpretação não é nunca definitiva. Podem sempre ser lidos e relidos, enriquecidos de sentido pela realidade que os inquire. É justamente a atual realidade da destruição da natureza que dá sentido à visitação do mito de Medéia. O homem, simbolizado por Jasão, perde tudo e é abandonado por ter voltado as costas para Medéia/Mãe Terra/Gaia. A sua fúria incontrolável é uma resposta às ações humanas. Quando o homem não mais se vê enquanto natureza e age cegamente sobre ela, a mesma reage cobrando a sua porção traída. Aquilo que a racionalidade e a técnica conquistaram - a garantia de sobrevivência do gênero humano - transforma-se em meio de destruição quando, em descontrole , ultrapassa limites. Em nossos dias, a prosperidade econômica, propiciadora de condições para um mundo mais justo e infenso à miséria, confere à técnica e aos grupos sociais que a controlam um poder muitas vezes desmedido. Esquecido de sua qualidade de ser natural, o homem torna nulo todos os fins em razão dos quais se mantém vivo: o progresso social, o aumento de suas capacidades físicas e espirituais, sua própria consciência. O medo de Platão diante da Medéia, de que a tragédia estimulasse elementos que pudessem minar a razão, pode ser repensado no momento em que a racionalidade tornou-se instrumento de dominação pela téCnica. Talvez sej a necessário recordar Aristóteles, para quem o poder de purgação despertado pela tragédia era benéfico. Ao fim dela, o público está mais esclarecido e apto a lidar com a realidade que o cerca. Essa é a esperança que o SESC de São Paulo gostaria de deixar para os espectadores dessa encenação da Medéia pelo CPT/SESC. Danilo Santos de Miranda Diretor do Departamento Regional do SESC no Estado de São Paulo


..."Para Euripides, a mensagem de Dioniso é chamado na comunhão com a natureza e à simplicidade do coração. Aqueles que pretendem afirmar a superioridade da razão e se recusam a escutar esse chamado serão confundidos. O deus inspira-lhes a loucura pela qual eles próprios se destróem. Ao longo da história, as sociedades urbanas e industriais, exploradoras e destruidoras do mundo natural, opuseram-se a qualquer aproximação ecológica ou mistica, à libertação do homem, à sua felicidade. As guerras, os genocidios, as destruições de civilizações inteiras sempre tiveram por base as religiões da cidade. Abel "cuidava do gado", mas Caim, que "cultivava a terra", tornou-se um "construtor de cidades. "(1) "O primeiro assassinato é cometido, portanto, por aquele que encarna de certo modo o simbolo da tecnologia e da civilização urbana"!" à alegria

refeitório

do convento de Santa Maria delle Grazie após o bombardeio. Ao fundo a "Última Ceia" protegida por sacos. J

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Dioniso"

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Religião

(1)Gênesis, cap 4, versiculo7, verso17 (2)Eliade Mircea, Histoire des croyances

da Natureza

e des idée religieuses,

e do Eras

pp 180-181)


Hesíodo,

t{JsArgonautas

de Lorenzo Costa


"Eros chegou invisivel, envolto em uma branca neblina. Excitado como um zangão se atirando contra as novilhas no pastoro vestibulo,antes de tensionar o arco, sacou da aljava uma flecha, e,sabendo que ela causaria muitos gemidos, atravessou com seus pés velozes o umbral da porta, e com os olhos incendiados, se escondendo debaixo de Jasão, colocou a seta na corda e a lançou com as duas mãos diretamente contra Medéia. Ela ficou sem fala. Eros saiu veloce, dando uma risada. Sua flecha ficara ardendo no coração da jovem qual uma labareda. Sem poder se conter, com os olhos brilhando, ela lançava ao Esónida olhares ternos e sentia perder a razão, tomada por um grande e incompreensivel tormento. Não tinha nenhum outro pensamento, e sentia sua alma ser inundada por uma adocicada dor. Como uma camponesa que coloca alguns ramos sobre o fogo, bem cedo, para iluminar sua pequena cabana, e vê do pequeno tição levantar-se uma chama e reduzir a cinzas todos os gravetos, tal era seu coração. Queimando, ardendo em uma paixão funesta, deixando ora lividas ora ruborizadas suas faces, perdida naquele turbilhão." Apolônio de Rodas As Argonaúticas

o poema épico As argonaúticas, conta as aventuras de Jasão e os Argonautas em busca do velocino de Ouro e foi escrito por Apolônio de Rodas, poeta grego e filólogo da época Alexandrina, que viveu entre os anos 300 a.C e 230 a.C aonde foi diretor da famosa biblioteca de Alexandria e preceptor do herdeiro do trono. Tradução para o português baseada na versão espanhola, Las Argonáuticas, de Máximo Brioso Sanchez, Ed Cátedra, Madri, 1986


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Outras versões mais remotas do mito de Medéia, que é conhecida até hoje somente através da tragédia de Eurípides, são controversas quanto à origem do mito e suas ações. A lenda mais antiga sobre ela que se relaciona, sobretudo, com os cultos pré-helênicos, é quase desconhecida. Fala-nos de Medéia como a rainha de Corinto, pois os coríntios veneravam Hélio - o Deus-Sol - e todos os reis da cidade descendiam desta estirpe. Medéia, neta do sol, teria se tornado herdeira do trono e, quando reinou em Corinto, teria escolhido seu esposo Jasão como regente. Durante seu reinado ela teria construído o templo de Hera Acréia e se tornado sua sacerdotisa. Nesta versão, Medéia tinha 14 filhos, número simbólico que correspondia à primeira e mais fecunda metade do mês lunar. Os Coríntios desgostosos e amedrontados com o poder da feiticeira, teriam assassinado as 14 crianças. Desde então, para expiar o crime, todos os anos eles enviavam 14 crianças para viverem durante um ano no templo, simulando sua estada no exílio ou na sepultura. Outra versão da mesma lenda conta que Hera, querendo tornar os filhos da feit~ceira imortais, conduzia Medéia e seus recém-nascidos para o templo, onde elas alcançavam a imortalidade através da passagem pelo fogo sagrado. Certo dia, Jasão, descontente com estas práticas, cheio de ira,interrompe o ritual, impedindo assim sua continuação. Devido ao fato ele abandona Medéia e volta para sua terra natal lolco. Medéia também abandona Corinto, com seu carro de serpentes, deixando o trono para Sísifo. Não se têm notícias dos filhos, se permanecem em Corinto, ou seguem com a mãe, simplesmente desaparecem do mito. Ainda uma terceira versão, mais próxima da de Eurípides, fala somente

de 2 filhos de Medéia. Estes, com a concordância de Jasão, foram apedrejados pelos Coríntios. A razão fora a ação de Medéia contra Glauca, a quem Jasão, depois de dez anos de regência, resolvera desposar. Por intermédio dos filhos, Medéia enviara um presente à rival, um vestido e diadema, que ao vesti-lo envolveu-a em chamas inextinguíveis. Envolta em chamas, Glauca, jogou -se em um rio, que desde então recebeu seu nome. A versão mais conhecida é a base da tragédia de Eurípides, onde Medéia é neta de Hélio-Sol e vive na distante Cólquida, na ilha de Ea, sob o reinado de seu pai Aetes. Por artimanhas de Afrodite e Eros, Medéia se apaixona por Jasão, chefe dos argonautas, que tinham ido até a Cólquida em busca do Velocino de Ouro. Este objeto mágico estava na ilha de Ea, sob a guarda de Aetes, em um bosque sagrado, protegido por um gigantesco e invencível dragão. A paixão de Medéia, e seus poderes mágicos, fazem com que Jasão vença o dragão e consiga o Velocino de Ouro. Contrapondo-se à sua família, ela foge com Jasão para Grécia. Depois de anos casada, Jasão a abandona para unir -se à filha de Creonte, rei de Corinto, que condena ao exílio Medéia e seus filhos. Cheia de ira e tomada por uma vontade de vingança, ela mata a nova esposa de Jasão, Creusa, seu pai e os dois filhos, fugindo em um carro alado enviado pelo seu avô o Sol. Esta versão de Eurípides, construída como soma de todos os mitos e lendas a respeito da personagem, reduz Medéia a uma mulher vingativa, enciumada e infanticida. Porém, a figura de Medéia e sua dimensão mítica são muito maiores e mais positivas do que estas por nós conhecidas através da tragédia. Eurípides era o grande representante do pensamento helênico, patriarcal e das Cidades-Estado gregas, sua tragédia traz todos os valores desta situação. Porém, ainda deixa sob a pele de uma mulher enciumada e vingativa alguns elementos que nos permitem vislumbrar sua verdadeira dimensão.


o nome Medéia (em grego Mideia) significa na do bom conselho" e em todas as tradições ela é apresentada como conhecedora da arte de curar e dotada de '" muita sabedoria. Teria o poder de restaurar a vida e de rejuvenescer. Sempre apresentada em imagens nada sombrias, com um pequeno feixe de ervas nas mãos e cercada de um ancião, ao lado de um recipiente de sacrifícios, de cujo interior salta um carneiro ou um jovem. Muitas vezes é representada também passeando, em um carro puxado por serpentes aladas, o que comprova a hipótese original de sua divindade. Todas estas referências fazem parte de um sistema religioso anterior, da veneração da Grande Deusa. Este culto, que durante milênios vigorou em todo o Oriente e Mediterrâneo, surgiu com o desenvolvimento da Agricultura, que levava os povos a considerarem a natureza, e acima de tudo a terra, como uma mãe doadora de bênçãos e alimentos. Pela capacidade das mulheres de gerarem vida, tal como a terra, o feminino tinha a primazia na ordem religiosa e social da comunidade. No universo religioso das culturas agrícolas não havia deuses, somente a Grande Deusa era considerada a origem de tudo o que existe. Ao sair do Caos, a Grande Deusa separa o mar do céu e dançando cria Bóreas, o vento setentrional, na figura de uma serpente. A serpente enroscou-se em sua volta e fecundou-a .Como uma pomba ela botou o Ovo do Mundo, que após ser chocado deu a luz tudo o que existe: o Sol, a Lua, os planetas, a Terra com suas plantas e seres vivos. Nestas representações simbólicas podemos observar vários elementos ligados a Medéia. Seu caldeirão, tal como o Ovo do Mundo, é um recipiente que contém toda a vida, onde o velho submerge e ressurge o novo. O Útero. O carro e suas serpentes aladas são também um símbolo da Grande Deusa e representam a totalidade do cosmo. A serpente é a fecundidade da terra e da água. Suas asas o aspecto espiritual ou as forças do céu. O Sol e a Lua eram símbolos também da Deusa, porém a Lua relacionada com a água, os ciclos da agricultura e da fecundidade feminina teve precedênciasobre o Sol. Suas quatro fases, crescente, cheia, minguante e nova, eram como um espelho do ciclo de brotar, florir, amadurecer, dar


frutos, murchar e morrer da agricultura. A escuridão da lua nova fazia parte da referência simbólica da deusa, não se afigurando como a extinção definitiva, mas uma fase de transformação inseparável do ciclo da vida. Com a progressiva diferenciação das sociedades matriarcais, as idéias sobre a Grande Deusa alcançaram maior complexidade, sua imagem, em analOgia com asf ases da Lua, assumiu a forma de uma tríade. Uma jovem na primavera, uma mulher fecunda no verão e uma velha no outono e inverno. Na idéia do cosmo, também composto por três partes, a jovem reinava sobre o ar e o céu, a deusa madura, do amor, sobre a terra e o mar e a deusa anciã sobre o inferno e o reino dos mortos. Ao lado dessa representação surgem as primeiras divindades masculinas, sempre relacionadas a ela: como filho, amante ou o seu herói. Nos relatos mitográficos posteriores, o carro de serpentes aladas, pertencente à deusa, foi transferido para Hélio - o Deus-Sol - que desposara a Lua e foi convidado por ela a subir em seu carro. A estirpe de Medéia, chamada de Helíades por esta união com Hélio, permite-nos deduzir a identidade original de Medéia como deusa da Lua. Os nomes dados à mãe de Medéia, como ídia - "aquela que sabe", Neera "a nova" e Asteróidea - "a do caminho das estrelas", são nomes sob os quais a Grande Deusa era invocada. O nome de sua irmã, Calcíope - "a face que brilha como o bronze", remete-nos à Lua cheia, e, finalmente, Hécate - "cêntupla fecundidade", refere-se ao grande ano do calendário lunar, que abrange cem meses. Por esses motivos e outras tantas referências espalhadas por relatos de Apolônio de Rodas, Homero e Hesíodo, tanto Medéia quanto Circe e Hécate podem ser consideradas facetas triádicas da deusa da Lua. A descoberta de que as relações sexuais tinham relação com a geração dos filhos modifica a posição do masculino na condição religiosa. Ele passa a ser no culto o símbolo da fecundidade e, no mito, o amante e esposo da deusa. Os mitos e rituais eram comandados pela sacerdotisa ou rainha do clã, que era a representante da deusa na terrar ela escolhia ritualísticamente o rei. Este par e sua relação era de natureza sagrada, seus estágios retratavam o mistério do nascimento, crescimento, morte e renascimento. Os rituais do casamento acompanhavam os ciclos da agricultura. O coito ritual era celebrado num lugar consagrado à deusa, na natureza, em um templo ou numa gruta sagrada. O pensamento mítico alcança uma dimensão mais ampla da totalidade: o amplexo amoroso do par sagrado, correspondia á união cósmica do Céu e da Terra, que permitia o surgimento da vida. A ritualização, essa imersão no sagrado repetiase durante todo o ano: na época da colheita o rei era sacrificado, a semente, que, ao morrer, tornava a mergulhar na terra. Após seu sacrifício ele passava a ser imortal e ser venerado como Deus-Sol. No assassinato de seu irmão - Fateonte - Apsirtos - podemos observar

a expressão deste ritual. Fateonte - "o radiante" - é uma denominação do Deus-Sol, ele é esquartej ado por Medéia quando ela foge da Cólquida com Jasão e, ela mesma, com o seu poder de renovar a vida, recolhe seus pedaços e o ressuscita para uma nova vida. O herói - "aquele que traz a cura" - também pode ser interpretado da mesma forma. Por devolver com seu sacrifício a fecundidade a seu pai, ele é originariamente o filho, amante e esposo da deusa. Com o desenvolvimento das sociedades matriarcais, o culto foi sendo transformado. Primeiramente porque os reis passaram a reinar por um período maior de tempo - uma criança era sacrificada em seu lugar. Esse sacrifício foi sendo substituído pelo sacrifício de ani'.0-s-e1l1-derramam --sa~~.-· ri

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o pensamento mítico não opera com as mesmas referências de um pensamento abstrato dualista . Diferentemente do pensamento ocidental, não trabalha e se ordena através de antagonismos como a luz e trevas, o bem e mal, mas opera com dualidades complementares: as trevas são uma condição anterior à luz, o bem não pode ser pensado sem seu complementar e oposto, o mal. Sendo assim, podemos compreender que A Grande Deusa não era venerada somente como a mãe amorosa, protetora, mas também como a goela da morte, a destruidora da vida e senhora dos infernos. Deméter e Hécate eram também chamadas de Brimo - "a irada"; Afrodite, símbolo da fecundidade, era chamada de Escótia "a escura" e Elenis "a negra". A Lua Nova ou a "Lua Negra" era um símbolo associado à velha deusa dos infernos e às trevas de onde surgiria a luz. Ela era a mãe da deusa da primavera e da deusa da fecundidade. Como "divindade do eterno retorno" ela era o tempo em que todos os antagonismos eram eliminados, unindo em si todas as polaridades, sendo considerada a eterna sabedoria. Todos os conhecimentos que o pensamento mítico relacionava com o sagrado - a profecia, o oráculo, a clarividência - estavam associados aos aspectos da escuridão, da noite e do inferno. Medéia, sábia e conhecedora da medicina, "filha" de Hécate, exibe também estes traços sombrios da deusa. A serpente é o símbolo central desta faceta da divindade, por arrastar seu ventre na terra, pela troca de pele - o que representava a renovação - e por conter em si o veneno e seu antídoto. O símbolo da sabedoria e da medicina até os dias de hoje permanece sendo a serpente. As ervas medicinais, o conhecimento de suas propriedades curativas e venenosas, era muito desenvolvido nas sociedades matriarcais. Algumas substâncias analgésicas e anti-inflamatórias, como o acônito, o salgueiro prateado e o zimbro, eram relacionados à tríade Hécate - Circe Medéia. Hécate enviava os pesadelos noturnos, a demência e a epilepsia, e também os curava. Hera era considerada a protetora das mulheres e a ela pertenciam os medicamentos utilizados em ginecologia e obstetrícia. Medéia, que fora identificada às duas deusas, algumas vezes sendo considerada filha de Hécate e protegida de Hera, sabia curar a loucura, e em razão de seus quatorze filhos era tida igualmente como deusa dos nascimentos. Eles representam simbolicamente a fecundidade da Deusa e de suas filhas, as mulheres terrenas. A arte da cura nestas culturas pré-helênicas e matriarcais não estava separada do conhecimento sagrado, que abrangia a interpretação dos sonhos, a clarividência, a magia e os oráculos. Todos estes ritos, da cura e da interpretação de outras dimensões da realidade, além do cotidiano, eram conservados em segredo e neles não era permitida a participação de não-iniciados. O rito iniciático representava uma morte simbólica, onde o iniciante era devorado pela terra, pela escuridão. Lá vivenciava e tomava conhecimento de coisas que o faziam renascer purificado para um nível superior de conhecimento e consciência. A cura como uma esfera de saber ligada ao feminino foi reprimida e distorcida negativamente. A idéia mais ampla da mulher como conhecedora


de questões fundamentais e profundas da vida, servindo de modelo e .guia dos homens, não era mais admissível na passagem da sociedade matriarcal para a patriarcal, o que transformou significativamente a relação do ser humano perante a natureza, sua vida e morte. A descoberta da agricultura foi uma revolução no desenvolvimento da humanidade, foi o início do desenvolvimento das culturas matriarcais. No terceiro ou quarto milênio antes de Cristo, uma outra transformação revolucionária nas formas da produção e da economia resultou em uma mudança estrutural e no gradativo declínio do sistema matriarcal. As novas tecnologias como o arado puxado por bois, a obtenção de metais pela fundição e o barco à vela, foram descobertas que permitiram a produção de um excedente, condição básica para a constituição de uma sociedade que se diferenciaria pela divisão do trabalho e o desenvolvimento dos sistemas de troca. Estamos no momento de passagem de uma sociedade de subsistência para uma sociedade de acumulação e troca. Naquelas sociedades que já eram maiores do que uma aldeia, que posteriormente se constituiriam nas Cidades-Estado gregas, surge também a necessidade de planejamento, direção e organização. Uma forma centralizada para coordenar e dirigir a produção agora mais complexa, provocando assim a formação de classes e hierarquias sociais, ocasionada pela descoberta da possibilidade da exploração e escravização do homem, transformado em mão-de-obra. A necessidade de um aumento constante nessa mão-de-obra, para conseqüente aumento da riqueza, leva às guerras de conquista. A necessidade de defesa da mesma ameaça externa gera a formação de uma classe de guerreiros, que logo transformar-se-ão em uma aristocracia militar masculina. Estas mudanças, que ocorreram gradativamente durante um milênio, levaram a transformações fundamentais nas relações sociais, políticas e religiosas e, consequentemente, no papel da mulher e da Grande Deusa nesta sociedade. As sacerdotisas, anteriormente situadas no ponto mais alto da hierarquia social, eram agora substituídas pela aristocracia militar, os legisladores representantes do Estado, suas leis e o pensamento abstrato. Esta revolução do terceiro e quarto milênio veio acompanhada, também, de uma mudança de consciência, onde o eu separou-se da psiquê grupal e dos ritmos circulares e constantes dos ciclos da natureza. Esta cisão ocorreu devido à constante ocupação com as guerras e à separação dos homens dos clãs femininos e sua organização coletiva do trabalho. A

guerra eXlgla uma autonomia e uma oportunidade de libertação e formação de unidades cooperativas independentes do feminino, o que ocasionou uma transformação nas estruturas sociais e políticas. Outras vertentes falam também de diferentes estruturas de poder patriarcais sendo introduzidas nas sociedades matriarcais desde o segundo milênio a.C., através de invasões de povos pastores, que em invasões sucessivas foram debilitando lentamente a sociedade matriarcal. Eles adotavam em parte a cultura mediterrânea, mas impunham seus deuses que tornavam-se irmãos das deusas, dissolvendo de certa forma a organização mítica vigente. Somente por volta de 1200, depois da invasão denominada "migração Dórica", é que efetivamente a realeza patriarcal transformou-se no modelo da sociedade grega. A figura de Medéia nos permite observar todos os níveis e fases deste processo de transição de um sistema para outro. Todos os heróis associados a Medéia apresentam características de reis sagrados, de encarnações do Rei-Sol. Aparecem como heróis solares e protegidos das deusas Hera, Atena e Medéia, mas que pouco a pouco vão se transformando em guerreiros do Deus-pai Zeus, que se opunha às regras das deusas. A lenda apresenta Medéia em Corinto como herdeira e rainha, sacerdotisa do templo de Hera. O episódio das crianças expostas ao fogo para alcançar a imortalidade pode ter outro sentido, sendo talvez lembranças remotas de antigos e primitivos cultos onde crianças eram sacrificadas à Deusa-mãe. Ou, então, referir-se aos costumes transformados das sociedades matriarcais de sacrificar rapazes durante sete anos até o sacrifício do rei, no oitavo ano do ciclo lunar. As crianças alcançariam a imortalidade através do sacrifício, isto é, a consideração no culto. . A idéia destes rituais pode ser uma reação conservadora contra as leis recentes das Cidades-Estado, que haviam abolido os sacrifícios humanos. Este passado bárbaro deveria ser suprimido na nova ordem da cidade, não só ele, mas também todo o sistema religioso da Deusa. Sendo assim, Hera é integrada ao reino dos olímpicos como boa mãe e protetora. Medéia assume o outro lado, o aspecto obscuro da deusa, a conhecedora de artifícios e da morte. Neste percurso, Jasão deixa de ser seu amante e herói e torna-se seu inimigo. Ao abandonar a antiga ordem da Deusa e assumir sua condição de nobre e guerreiro, ele rompe com as regras matriarcais e se transforma em um componente do sistema patriarcal, da ordem da Cidade-Estado.

HÉCATE


Nas sociedades pré-helênicas Oculto a Hécate (de cuja figura triádica faziam parte Circe e Medéia) era difundido e respeitado, tinha uma grande importância. Na Grécia helênica a figura de Hécate perdeu o seu caráter luminoso, maternal e bondoso, assumindo a figura de uma deusa lúgubre, senhora das sombras, da noite e da morte. A deusa era agora representada com três corpos e três cabeças, de uma forma fantasiosa e redutora da idéia original da antiga trindade da deusa da Lua. Esta dissolução fantasiosa e negativa espalhou-se por toda a sociedade e pensamento grego. Na mitologia olímpica os deuses passaram a assumir um papel primordial. Entre eles foram divididos o céu, propriedade de Zeus, os oceanos, propriedade de Possêidon e os reinos da sombra possessão de Hades. As deusas permanecem como irmãs ou esposas de seus senhores, a eles subjugadas. Este "extermínio" da Deusa se fazia necessário, já ela possuía o conhecimento sagrado e também o poder terreno -- e consequentemente político - por intermédio de suas sacerdotisas, que precisavam ser exterminadas nesta nova ordem. A queda das deusas expressa o fato de que a relação com a natureza, o conhecimento e respeito aos ciclos naturais e da vida não podiam mais estar integrados a uma consciência política e patriarcal. Os valores e imagens válidos para aquele momento estavam sendo cunhados pelos deuses pais e pelos senhores das leis, da tecnologia e do pensamento abstrato. A sabedoria dá lugar à filosofia. A Deusa abandona seu caráter triádico, sendo reduzida à "boa Mãe" e à "mãe devoradora". ~ dentro desta perspectiva que vislumbramos o desaparecimento de Medéia no carro de serpentes, buscando o exílio após sua expulsão de Tebas e Atenas, na Tessália, ou na Ásia Menor ou no litoral do mar Negro, estes últimos territórios não integrados à Grécia helênica. A atribuição do conhecimento, da sabedoria, da criatividade e da ciência, tanto na sociedade patriarcal quanto matriarcal, a determinado sexo, comprova que nenhum dos sistemas se desenvolveu em ~ua plenitude. Faz-se urgente a necessidade de transcendê-Ios. A grande Deusa aos poucos vai sendo reabilitada por uma necessidade de sobrevivência do próprio planeta. O abandono de uma relação harmônica com a

natureza, da compreensão de seus ciclos, de sua forma de criação e morte, por uma exploração desenfreada e inconseqüente de seus recursos, a construção de uma realidade artificial e sedutora sobreposta a ela, pode ser representada como a fúria desmedida de Medéia, na sua ação em Corinto, ao exterminar a nova esposa de Jasão, seu pai e os próprios filhos. A Grande Deusa abandonada, obrigada ao desaparecimento, mostra sua potência e seu lado cruel. Demonstra, por outro lado, a impotência da lei e da ciência, da lógica, frente à expansão do outro lado complementar e não antagônico. O par sagrado não pode ser separado. O herói e a Deusa transformados em guerreiro e feiticeira deslocam o mundo de seu devido lugar, provocando catástrofes de várias ordens. Este espetáculo ousa esta interpretação. Plausível. 1.

Ricardo Muniz Fernandes

A pesquisa para a redação deste texto foi realizada nos li vros: Mito e Pensamentoentre os Gregosde Jean Pierre Vernant- Edusp, 1980 Medeia,o direito á ira e ao ciUme- Dlga Rinne Editora Cultrix, 1998 A descoberta do espírito - Bruno Snell- edições 70,1992




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Aristófanes, na sua mais conhecida comédia, As Rãs, afirma que a "tragédia acaba de morrer", e esta morte acontece pelos poetas estarem sentados "de cócoras junto à Sócrates, tagarelando, rejeitando a arte e abandonando as alturas da poesia trágica". A arte foi derrotada pela filosofia. Esta crítica tem como alvo principal Eurípides, pois toda a ação de As Rãs, é uma discussão no mundo inferior entre Ésquilo e Eurípides, para este arrancar daquele o seu lugar como grande poeta. Aristófanes não tinha o obj etivo de formular uma doutrina estética, como Platão, que acusava a tragédia de não estar a serviço da verdadeira virtude, mas do prazer e da adulação - mas queria impor sua opinião sobre um estilo poético que ele estava completamente em ~esacordo e que acreditava ter contribuído para destruir a moral e a antiga estrutura do Estado ateniense. Sua critica a Eurípides se estende também aos sofistas, a Sócrates e todos aqueles que representavam o que era inovador e moderno na sociedade ateniense daqueles anos 400. Para ele, Eurípides corrompera os atenienses,


e fizera com que o moralmente mau triunfasse sobre o bem, sua arte ao invés de contribuir para tornar os cidadãos honestos e úteis, apenas os desencaminhava e corrompia. Nesta época, Aristófanes não aceitava a realidade de que os gregos agora escreviam prosa e não mais versos, que a tragédia dera lugar as obras filosóficas de Platão e Aristóteles, que a poesia perdera seu lugar para a oratória de Demóstenes. Estas críticas de Aristófanes não obtiveram muito respaldo durante o período em que foram escritas, pois Eurípides já era considerado o clássico do Drama desde o séc IV e seu rival na comédia de Aristófanes, -Ésquilo-, já fora quase completamente esquecido. As tragédias de Eurípides continuaram a ser reapresentadas durante toda a época romana, no Renascimento e permanece até hoje como o poeta trágico que mais influenciou o teatro ocidental. As críticas a Eurípides formuladas por Aristófanes, quase esquecidas durante muitos séculos, são retomadas no séc XIX, pelo filólogo August Wilhelm Schlegel em uma série de conferências sobre arte dramática, e nestas ele insiste na censura ao trágico, pelo seu realismo exacerbado, imoralismo e racionalismo. O primeiro aspecto é apresentado ao afirmar que Eurípides mostra deuses e heróis em roupas de dormir, colocando por terra toda a grandeza e moral presente no drama grego clássico, recordando o tempo todo aos espectadores que estes seres que ali estão mostrando sua história, são homens que têm as mesmas fraquezas, e agem pelos mesmos motivos que qualquer um dos mais vulgares espectadores. Suas tragédias estavam preocupadas somente em dramatizar os defeitos e as faltas morais das personagens, vulgarizando-as e fazendo com que elas se orgulhem desta vulgaridade como se fosse um ideal. Traçava um retrato de Eurípides como um homem de dupla personalidade, uma como poeta com uma solenidade religiosa que, ele venerava e se colocava sob a sua proteção e outra como um sofista que com pretensões filosóficas, apresentava opiniões de livre pensador e dessa forma misturava e confundia as suas dúvidas religiosas com os prodígios das histórias sagradas que eram a base de suas peças. Para Schlegel, Eurípides era um religioso e ao mesmo tempo um acético, um moralista, mesclando duas instâncias muito diferentes: a fé e a razão. Estas censuras são retomadas com maior vigor por Friedrich Nietzsche no texto nA Origem da Tragédia" onde ele toma como base as críticas de Aristófanes e as opiniões de seu contemporâneo Schlegel, para afirmar que Eurípides livrou a tragédia da sua corpulência pomposa, colocando em cena o comum, o conhecido de todos, a vida e as ocupações cotidianas, sobre as quais agora todos podem proferir um juízo, dando assim ao povo uma possibilidade de sabedoria. Nietzsche traça um paralelo também entre Eurípides e Sócrates, sendo o primeiro considerado o poeta do socratismo estético, pois introduz na tragédia o pensamento, sendo também o primeiro poeta com senso crítico, e oposto aos poetas inspirados e ignorantes.

Para Nietzsche, diferentemente de Aristófanes e Schlegel, é o espírito teórico criado por Eurípides e Sócrates que destrói o antigo, o vivo e o santo. Estas afirmações de Nietzsche tiveram uma forte repercussão nas discussões estéticas das gerações seguintes e sua visão da arte, baseada neste momento em discussões com a obra de Richard Wagner e Arthur Schopenhauer afirmam que tudo aquilo que era grande e vital na obra de arte e neste caso na tragédia, tomada ali como um modelo, estava situado antes de Sócrates, pois sua grandeza residia nas forças irracionais que a fizeram surgir: as festas Dionisíacas atenienses, as concepções religiosas primitivas, os rituais da fertilidade, e os coros de sátiros que daí brotaram. A essência e a grandeza da tragédia primitiva estava no poder da música - os coros ditirâmbicos - e nos poderes míticos que Nietzsche denomina respectivamente de Dionisíaco e Apolíneo. Sua crítica amplia ainda mais a dimensão negativa de Eurípides, pois além de ser um mero representante da poesia decadente como queria Aristófanes, ele torna-se o exemplo típico da origem e do declínio da arte. O grande problema destas interpretações e discussões estéticas é que elas não levam em conta um dado essencial, que é se tivessem sido mantidas a dependência e a função religiosa da tragédia, esta jamais teria se transformado de um ritual religioso da fertilidade, e mascaradas presentes em quase todos os povos primitivos do mundo no que hoje podemos denominar a tragédia Ática. Sua permanência e atualidade existe somente por aquele elemento que todos estes críticos, desde Aristófanes até Nietzsche, insistem em ver como o responsável pelo seu declínio - o saber socrático - isto é a "reflexão". A grandeza da tragédia surge quando ela abdica do antigo fundo ritual, e traz conteúdos diferentes, e se torna profana. Mesmo ainda mantendo o mito como tema, a tragédia de Eurípides abandona-o como um refúgio protegido, e coloca o homem frente a frente consigo mesmo, com seu agir, sendo obrigado a refletir sobre as questões concretas da justiça e da injustiça, alcançando desta forma uma existência mais plena e independente e não tão idílica, distante e aprisionada. Com a tragédia de Eurípides surge a consciência da liberdade e do agir autônomo. A tragédia Medeia é uma das principais peças que nos mostra claramente esta nova dimensão não somente trágica mas filosófica. O conflito entre os personagens surge, quando ela já vivendo há muito tempo com Jasão na Grécia, é trocada por outra mulher. Os motivos desta troca e suas conseqüências são completamente diferentes para os dois personagens, que representam duas visões de mundo antagônicas e ao mesmo tempo complementares. O conflito, quando vem à tona no primeiro confronto entre os dois, não é heróico ou mítico, mas jurídico. Jasão busca uma existência burguesa ordenada, e todas suas justificativas para este novo matrimônio estão totalmente de acordo com os ideiais políticos e sociais e à idéia de direito vigente na Grécia daquele momento. Medéia


do outro lado, é uma estrangeira, representante de outros valores, e não tem direitos à vínculos concretos e definitivos, pois ousou abandonar sua família, fugindo com Jasão e os Argonautas, trocando sua pátria e .origens por novos vínculos. A atitude de Jasão poderia ser tomada como idêntica e poderia, na estrutura dramática da tragédia, legitimar seu gesto, porém a personagem Medeia opta por um direito mais elevado, natural e humano. A discussão não é mais sobre uma lei comandada pelo divino - como foi sua atitude de seguir Jasão, fruto das artimanhas de Eros, - mas de um sentimento de justiça pessoal frente a uma legislação voltada aos interesses políticos e sociais da Grécia do séc V. A estreiteza da ação e das justificativas de Jasão ficam evidentes frente à maior profundidade da idéia de justiça de Medeia, e sua visão restrita sendo expressa e iluminada, nos permite vislumbrar na sombria razão e ações de Medeia uma idéia mais ampla e verdadeira do direito. Eurípides, neste preciso momento da sua obra, transforma toda a estrutura da tragédia clássica, pois deixa o herói em uma posição inferiorizada e envolta em mediocridade, defensor de convencionalismos e de uma legalidade tacanha, traçando também uma críitca ao sistema da cidade-estado, e daquela sociedade patriarcal. Se na escolha da versão do mito de Medeia ele opta pela versão patriarcal contra a grande Deusa, aqui ele restabelece a força do feminino, frente a uma legalidade unilateral. Eurípides ousa em uma tragédia o monólogo interior, assim colocando pela primeira vez em cena, uma forma de debate onde questões sobrehumanas ou divinas não têm mais importância, mas somente os impulsos e dúvidas da alma humana, que se torna o verdadeiro palco de conflitos. O mito é profanado, é abandonado, mas não somente por interesses políticos, econômicos e sociais, mas por ter perdido a importância na Grécia daquele momento, pois tanto o mito quanto a sua noção de divindade implícita, já foram substituídas pela descoberta do divino no espírito humano. Esta divindade pode ser vivida não somente através da razão, mas também das forças irracionais que movem os homens, e com o que os torna grandes e próximos aos deuses, ao mito: suas paixões. A razão em Eurípides assume um caráter muitas vezes negativo, pois nos conduz ao absurdo da paixão e leva os personagens a se questionarem, a se perderem em seus tantos motivos e descaminhos, fracassando e deixando somente um espaço vazio que vem a ser ocupado pela paixão. Eurípides nos mostra que toda e qualquer moral tradicional e convencional não pode $er tomada como o único sistema possível de moralidade, como se o homem decente e razoável só pudesse fazer o que está sancionado pelas velhas tradições religiosas, cívicas e militares, ignorando que também pode ser moral - e mesmo uma moral mais elevada - apelar, face à tradição, para uma outra instância, seja ela a razão, o sentimento moral ou a paixão. E se esta idéia do justo emerge em um primeiro momento como algo individual logo alcança, por ser genuína e verdadeira, um valor universal.

Lançando a consc1encia moral numa nova crise, ele funda a moralidade no sentimento pessoal, e as abandona às flutuações do sujeito. Os valores tornam-se problemáticos, os homens instáveis. Perdida a certeza dos valores tradicionais, assim os atenienses perdem a segurança que, desde Sólon, tinham encontrado no conceito de justiça. A tragédia assume também a forma de um diálogo moral e filosófico sendo possível traçar um paralelo de suas formas de agir. A transição da tragédia para a filosofia realiza-se de uma forma tipicamente grega, pois renovam o interesse pelo "natural", vão em busca "do fundo de si mesmo" e não interpretam a existência à luz da validade do mito. Eurípides torna cada vez mais antinatural o elemento mítico e as personagens longíquas de um mundo semidivino, as suas situações e conflitos extremos, tornam-se estranhos para a vida dos cidadãos. Sócrates procura garantir e ampliar este conhecimento levando a sério, no campo filosófico e teórico, o pensamento como um elemento genuíno e natural do homem. A tragédia àtica clássica morreu com Eurípides, mas nasceram dali os fundamentos de toda a dramaturgia ocidental. A tragédia também morreu pelas mãos de Sócrates mas desta morte também surgiu algo de novo e fundamental: a filosofia. Ricardo Muniz Fernandes

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A pesquisa para a redação deste texto foi realizada nos li vros: A descoberta do espírito, de Bruno Snell , edições 70, 1992 A origem da tragédia ,de Friedrich Nietzsche, Guimarãeseditores, Lisboa, 1978 Mito e tragédia na Grécia Antiga, , Jean Pierre Vernant, Edusp, 1980


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o espectador moderno, assustado com Eurípides, remete o caso Medeia para uma das esferas da psicologia. Isso, no mínimo, é bom, porque é uma forma de explicar. Outra atitude é compreender a personagem no âmbito da mitologia, pois tudo era mito não só na cultura arcaica, mas nas outras, que, na Grécia, precederam toda a cultura grega. A rigor, os mitos gregos procedem de uma Grécia pré-helênica, vale dizer, da Grécia minóica e micênica, para não falar dos indo-europeus, que estiveram na Grécia bem antes, e que lá deixaram sua ideologia bélica, religiosa e trabalhista. Os gregos tiveram de mão beijada tudo isso. E prosseguiram com tal ideologia, que eles trabalharam genialmente. Quem pensa na mulher da Grécia de Aristófanes e de Eurípides pressente logo que alguma coisa devia andar errada, para que ela fosse tão out, tão reprimida. A situação feminina era categorial, estava dentro de um sistema. Os gregos pouco a discutiam. Pois ela valia pelos resultados. O homem grego, desde sempre, tinha de haver-se com os deuses, cujos desígnios ele se esforçava por adivinhar, e essa dúvida tornou-se o motor do gênio grego, aquilo que fez com que os gregos primeiro lutassem com os demônios, para reduzi-los a condição mais favorável, mais estética. E tudo isso era natural, porque antes de pensarem na natureza os gregos dialogaram com ela, apalparam-na, sentiram suas curvas, seus apelos, suas emboscadas.

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Ora, a mulher participava dessa natureza como um ser menos dialogável que o homem. Por que? Porque os homens amavam outros homens (desde a Ilíada, pelo menos) e, tal como hoje, sempre quiseram ser deuses, e, não podendo ser isso, tornaram-se reis, poetas, filósofos, arquitetos, e sobretudo tiranos. É nesse contexto em que costuma se ver a Medéia de Eurípides. Ela protesta. Entretanto, o que ela faz só pode ser entendido por símbolos. Ou não será entendido. Medéia tem um ressentimento bem anterior a ela e que não vem da situação conjugal, mas esta, ao contrário, é que vem daquele ressentir primitivíssimo. O grego não podia ter noção de natureza (a não ser tardiamente), porque ele mesmo era uma natureza a dialogar com outras. Ele era uma physis sobrepuj ando as outras, fazendo com elas um acordo, em nome de um equilíbrio, que nem sempre lhe era favorável. Ele não podia ludibriar a natureza, porque a resposta era imediata: a natureza adoecia, e adoecia ele também. A natureza era animada. A rigor, a palavra theós designava não uma figura, mas qualquer coisa em que os homens se envolvessem. Essa palavra funcionava como uma espécie de predicado universal. Em geral não se observa que, nas tragédias áticas, o que precipita a vertigem da ação é um estado inicial de miasma, de apodrecimento da vida, como, por exemplo, no Édipo de Sófocles. A hybris, a "desmesura" (punida mais cedo ou mais tarde) é o resultado natural desse logro, que envolve um eu, um tu e o próprio mundo. O ressentimento de Medéia está ligado ao que ela fizera e ao que lhe fizeram em tempos memoriais, em algum recanto da Cólquida. Isto nos obriga a lidar com o simbólico. Medéia é anterior ao panteão olímpico-patriarcal. Jasão, ao contrário, reza nos terreiros da Grécia masculina. Há uma anacronia na peça de Eurípides. Tudo faz crer que Medéia era do tempo em que a mulher mandava. As várias culturas femininas espalhadas pelo Mediterrâneo (antes do ano 2000 pelo menos) eram sensuais e sedentárias. O que mais então machucaria os homens não era o poder (inclusive religioso) das mulheres, porque eles, mesmo com inveja, endossariam tal poder, que consideravam divino. Ao contrário do que ocorreria hoje (mulheres invejando o phallós) era o homem que invejava o ventre, o ventre que não era deles, e que despe-


java no mundo os novos seres. Essa inveja primordial foi recalcada por milênios de sublimação olímpica. Afora isso, havia no matriarcado, pelo menos, uma pacificação entre a vida e a natureza, coisa que o panteão olímpico aboliu, quando Hermes, de mulher que era, converteu -se em homem, passando ao lado oposto. Medéia é fruto dessa crise, em que a mulher se nomadiza, se seculariza, e passa de deusa, que era, para feiticeira, e de feiticeira para mulher preterida, mais uma vez, portanto, em fuga. Este é um ponto. O outro ponto diz respeito à anacronia. Medéia não pode ser nem virgem, nem noiva, nem dona de casa, apesar de todo esforço. Ela é filha dessa crise, em que não faltaram banhos de sangue ou poluções. E estas coisas, por mais antigas, são dívidas presentes, e assim definem o ser. A natureza reage, faz cobranças. Não só por causa de Medéia, mas pela inteira reversão do mundo. Por isso é que a montagem de Antunes Filho é sábia. Não são os acontecimentos em si mesmos o que ele prestigia. Antunes não quer drama, porque o drama pode ser o pior tipo de presentificação. Ele quer o que (felizmente) se pode urdir ainda hoje: o jogo arcano do discurso, o fluxo das palavras (fazendo a cena retornar ao logos), frase contra frase, pois só a palavra nos faz retornar internamente à primitividade, nossa verdadeira família. Tudo no cenário de Antunes nos carrega para lá. Porque nós estávamos lá. Mas isto é para quem vai ver o espetáculo. Antonio Medina Rodrigues


Os meus filhos não vão morrer por mãos estranhas, inimigas! Se por mim nasceram, por mim também irão morrer . .. .Vamos, pois, coração, arma-te de força! Se o mal é necessário, não tens porque vacilar. Vai, mísera mão, empunha a espada e segue comigo o triste rumo da malfadada vida. Não te acovardes, Medéia, segue! Esquece por ora que são teus filhos e depois geme - terás o resto da vida, até a morte, para disso se lamentar!




Adaptação e Direção ANTUNES FILHO Cenário HIDEKI MATSUKA JACQUELINE Figurlnos CASTRO E CHRISTINA GUIMARÃES Iluminação DAVI DE BRITO E ROBSON BESSA

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Som RAUL TEIXEIRA ~ Assistente

de direção REGINA PARRA

Adereços KURT STUERMER Pintura Cortinas FABIANA QUEIROLO DOVENIR

Costura DA SILVA

Sonoplastia SÉRGIO OLIVEIRA Coordenação

Núcleo de Cenografia (Projeto Medéia) JACQUELINE CASTRO OZELO Administração CPT NIVALDO TODARO

Elenco JULIANA GALDINO (MEDÉ!A) KLEBER CAETANO (JASAOI CREONTE/EGEU/PEDAGOGO) SUZAN DAMASCENO (AMA) EMERSO~ DANESI (MENSAGEIRq) LAZARA SEUGLING (BABA)

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