CPT_Toda_Nudez_Sera_Castigada_Programa_Marco_2013.pdf

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DESPIDOS ATE AALMA DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor Regional do Sesc São Paulo

A alma humana abriga infinitas possibilidades e contradições inerentes ao complexo desafio de vi ver nossa condição. Diferentemente dos demais seres vivos, o exercício dessa natureza em nós se concretiza pelos atos conscientes e, também, pelo que é construído a partir da memória. Contudo, o recurso à memória se configura insidioso na medida em que envolve com suas brumas até a maior das certezas, abrindo fissuras no edifício social. elson Rodrigues, jornalista, escritor e dramaturgo, que completaria 100 anos em 2012, permanece como modelo do incômodo e obsessivo inquiridor das atitudes e omissões na cena social- a exemplo de alguns escri tores russos de sua preferência - oferecendo uma contundente autópsia das grandes e pequenas vilanias praticadas pelos nossos semelhantes, com extrema agudeza e atualidade. Nele, discussões de relevo filosófico, como moral e ética, ganham abordagens desconcertantes e inspiradoras também para outros criadores. Neste sentido, as questões essenciais do ser rodriguiano, trágico ou cômico, fazem parte do universo habitualmente revisitado por Antunes Filho - à frente do Grupo de Teatro Macunaíma e como responsável pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT/Sesc) - para conceber obras carregadas de simbolismos, conflitos e reflexões sobre a sociedade contemporânea e o nosso lugar neste mundo de excessos e escassez de referências e valores. Para o Sesc, tão importante quanto apresentar novas criações, é manter em movimento o fluxo cultural, desenvolvendo cursos e encontros para atores e criadores, publicações temáticas, estabelecendo parcerias e intercâmbios nacionais e internacionais, além de ampliar a apropriação de conteúdos em programas disponíveis pela Internet e pelo SescTY. Na mesma medida em que valoriza o acesso e a difusão cultural para o aperfeiçoamento do bem-estar e da qualidade de vida de todos os cidadãos, priorizando uma vivência educativa dos sentidos com força transformadora para repercutir em cada um de nós até a alma.




NUDEZ: PARA " ALEMDEEROS EDETANATOS A

MOISÉS NETO Mestre e Doutor em Letras pela UFPE, dramaturgo recifense.

Que jazemos

nós desde que nascemos, senão

teatro, autêntico,

válido, incoercível teatro?

A ficção para ser purificadora

tem que ser atroz.

O personagem é vil para que não sejamos ... " Nelson Rodrigues

Herculano, Patrício, Serginho, as tias, o libidinoso ladrão boliviano ... todos estão de volta. Escutamos a voz de Geni: Aqui quem te jala é uma morta ... e tudo recomeça; são eles que voltam, somos nós mesmos a ouvir Nelson Rodrigues (cem anos sem solidão: o autor está vivo!) com regência de Antunes Filho, que retoma ao texto por ele trabalhado em 1981. Lares e lupanares acendem-se intensamente qual origami se desdobrando, qual flor da obsessão desabrochando em plena noite paulistana. Em Nelson, é a partir da tragicidade e do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos' do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa. O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o registro aqui vai além dos clichês freudomarxistas e os põe em xeque. O choque de ricos / grã-finos com pobres é também transgressão. Há que se estilhaçar esse painel rodriguiano e reorganizá-Io acentuando o que há de comédia, não de cômico, em Nelson, afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista. Para Antunes montar Nelson Rodrigues é algo similar a um desafio cósmico: desdobrar a totalidade da existência, observar o todo desdobrado em si e sua relação com a "realidade". Ele talvez queira oferecer-nos mais uma vez sua catalisação num espetáculoonde cada parte, no contexto do todo, se coloca em


superposição. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em simultaneidade (tão presente na vida), em ritmo frenético. Fazer nossos sentidos ficarem ligados em várias coisas, simultaneamente. Fazer o tempo comprimir-se ao ponto de explodir. No barroquismo do texto o sentido dialético é levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobram a disposição de análises sociológicas ou psicológicas, o castigo pela nudez é também imagem caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla percepção e estabelecendo insólitas relações. "Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios", sentencia Antunes Filho. Desde sua última versão para A Falecida, ele vem aprimorando seu método com vieses bem peculiares, como sempre. Propondo cenas articuladas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, tudo calcado, neste caso, no sugestivo texto rodriguiano, incitando a percepção aguda, que não quer se alienar e que se mantém longe do convencional, em linguagem própria e dinâmica onde o ator é um servidor do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. É bom não esquecer que Nelson é também essa expressão brasileira, não através de filtros intelectuais ou conceitos generalizantes, mas de um farto material humano que é oferecido à criação do ator. E você? Nunca pisou num rendez-vous? É um habitué? Conhece o método do nosso regisseur? Leu os registros anteriores? Sabe onde está se metendo? Tem conhecimento de causa? Acredita em anjo pornográfico?

Antunes desenha, pinta, arquiteta meticulosamente: nem santa nem dominatrix, Geni é claro enigma do bordel à sala da família: noiva, esposa, morta rediviva, muito além de Eros e Tânatos. Da cornucópia verbal do autor estão intactos o sarcasmo e o humor nas montagens de Antunes. Nelson escrevia escutando ópera, seu método abarca tudo, suas dezessete peças ecoam tragédias para rir, são textos escandalosamente líricos e Antunes extrai de maneira primorosa o implacável senso crítico do autor na sua crítica ao cretino fundamental, aos imbecis que o arruinavam. Há dentro da mente oceânica de Nelson, um Pierrô de antigos carnavais cheio de fúria, frustração, insatisfação ao constatar sempre que todos nós somos cruéis e ferimos, que o brasileiro é um cafajeste em seu complexo de vira-lata, no seu empate pior do que a derrota. Os personagens de Toda Nudez ... detonam frases como "o ser humano é louco" (o maquiavélico Patrício), "eu mesma não me entendo", "vou me entregar a qualquer um, na primeira esquina", "beije meus sapatos, como eu beijei os teus", "não quero nada senão um prato de comida e um canto para dormir" (a suicida Geni), "pederasta, eu matava", "o menino serviu de mulher [... ] o guarda viu, mas não fez nada" (a tia solteirona), "o sujeito mais degradado tem a salvação dentro de si, lá dentro" (o médico). Em seu folhetinesco mundanismo vermelho-sangue dito reacionário Nelson explora os limites da virtude e do maniqueísmo em ritmo frenético, compulsivo, desconstruindo o senso comum. O câncer no seio que matou a falecida esposa de Herculano é o mesmo da praga rogada pela mãe de Gen i à filha.


Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus "monstros", quis forçar ao seu público um "pavoroso fluxo de consciência". Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos, afinal o homem só se salva se reconhecer sua própria hediondez, não é? O teatro é também uma espécie de expurgo, acerto de contas do ser humano com sua história, com todos os homens, com a vida e Nelson o faz de modo cético, sombrio e até romântico. Sábato Magaldi enquadrou Toda nudez como uma tragédia carioca, mas o que temos aqui, com essa montagem do CPT, é à voz de todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares. Pausa. Grito. Rompe-se o limite entre lua de mel e separação dos amantes.

final

Como anda sua nudez? Você pensa que sabe de tudo? Você não sabe de nada!





O Bailarino

TODANUDEZ SEBASTIÃO MILARÉ Crítico e te6rico

Solitário é puxado lá de trás. Constituiu-

se nos espetáculos "Nelson Rodrigues, O Eterno Retorno" (1981) e "Nelson 2 Rodrigues" (1984), viajou

",

no tempo e ressurge nas cenas iniciais de "Toda udez Será Castigada", última incursão de Antunes Filho, com os atores do CPT~Centro de Pesquisa universo

Teatral, ao insólito

do Poeta. Outra citação de obra anterior,

que

na época aprofundava a visão do diretor sobre o drama rodriguiano, vem no final, rememorando o momento em que Zulmira entra no caixão fúnebre em "A Falecida", "Paraíso,

no

Zona Norte" (1989). Embora conceitualmente

muito bem justificadas no contexto dramático em que surgem, tais citações parecem também um "à parte" do diretor, profundo

destinado

aos espectadores,

lembrando

o

estudo que fez da obra de Nelson Rodrigues,

cujos resultados

se espalham

últimas décadas

em espetáculos

pela história do teatro das de altíssimo nível e em

imagens antológicas

da cena brasileira.

implica

bravata

certamente

Se assim for, não

do diretor, mas a confissão

sincera de que ao fim de tão longo, profundo e seminal mergulho, acredita ter chegado à essência do poeta, ao possível fundo-do-poço

dessa dramaturgia

incomum.

E

que isto é o que está em cena. Vendo o ensaio na sala munida de escassos elementos cênicos

e luz normal,

manifestado

o pensamento

do diretor

no gesto exato e na voz precisa

dos atores,

que vão desvelando espectador f

da qual

nota-se

aos olhos

e à sensibilidade

o delírio de Geni na situação o Poeta

organizou

Nada ali é excessivo.

sua narrativa

Sequer as referidas

do

limite, dentro dramática.

lembranças


de incursões

anteriores,

somadas a outras mais, como

as prostitutas seminuas em cortejo pagão no casamento de Ceni, excedem os contornos dessa escritura cênica minimalista.

Pelo contrário, as imagens se constituem

e se movimentam no âmbito do pensamento. Mas não para ilustrá-lo, somente para torná-lo matéria visível. As citações

abrem

espaços,

fendem

as paredes

da

estrutura do drama pessoal fundindo-o ao drama coletivo. Brechas por onde passeiam arquétipos, tirando as situações do prosaico e redimensionando-as das imanências,

no plano

onde o efêmero digladia com o eterno,

o profano copula com o divino, a aparência

da coisa é

apenas a indicação de infinitas possibilidades.

t

j f

nada tem a ver com a poética vulcânica de Nelson. Nela a palavra é arma de difícil manejo, mas letal, em todos os casos. E é para os abismos das palavras que Antunes conduz seus atores nesta versão de "Toda Nudez Será Castigada" . Na verdade, a palavra do poeta sempre foi matériaprima

para

detona a ação é a palavra. Vislumbra-se

o principal

cavalo-de-batalha

seus processos

de Antunes

e sem lhe castrar

mas plena de significados

começa na preparação

os sentidos

as contradições?

emitir a palavra com decisão e precisão automática,

Filho em

criativos com os atores do CPT. Como

tornar a palavra funcional preservando-lhe simbólicos

aqui

Como

sem torná-Ia ocultos? Tudo

do corpo, pois ele fala antes

das cordas

vocais

serem

acionadas,

e culmina

na

ressonância,

onde a palavra se libera sem constranger o

ambulação"

cênicas.

Todavia,

ao se

em torno do objeto, na busca impenitente

de alcançar os significados mais profundos. Como meio de questionamento sobre a matéria, às vezes permite-se a associação

livre,

mas sem abandonar

movimentos circulares.

E da associação

imagens

que

referenciais,

desembocam

os

livre, surgem em formas

estéticas emblemáticas. Curioso observar, por exemplo, três abordagens à "A Falecida", com resultados formais, estéticos, diversos, mas movidas pelo desejo de apreensão

da essência

poética. A primeira é de 1965,

com alunos da EAD, e estava presa a conceitos do teatro psicológico,

realista,

A segunda,

no "Paraíso,

ambiente

embora com traços de ruptura.

gótico agitado

corpo em seu contínuo discurso mudo. Entre uma coisa e outra está o profundo entendimento do universo poético

A terceira,

em questão. Sem dúvida na longa pesquisa

Vupt", resolvia-se

de modos

criações

examinar as muitas montagens que realizou a partir de obras de Nelson Rodrigues, evidencia-se a sua "circum-

também

o que

suas

Zona Norte", resolvia-se por arquétipos,

com claras

referências (associações livres) ao inconsciente cujo título completou-se na linguagem

em

coletivo.

por irônico "Vapt,

pop. Em todas elas,

expressivos e técnica vocal, desenvolvida no CPT, textos

no entanto, a busca mais profunda do sentido expresso

de Nelson Rodrigues apresentavam-se

como exemplos e

desafios. Frequentemente

com encenações

(ou oculto) nas palavras prevalecia sobre a forma, ou ia para além da forma. Agora, em "Toda Nudez Será

deparamos

de obras de Nelson Rodrigues

onde os criadores

se

deixam levar pelo pitoresco das expressões e situações, banalizando as palavras e ignorando os abismos que nelas se ocultam. Pode até ficar "engraçadinho",

mas


Castigada", licenças

as

poéticas

imagens

referenciais

colocadas

surgem

sobre o discurso

detonado pelas palavras do texto, ambulação" atinge o núcleo do objeto.

e

como cênico

a "circum-

o

espaço aparentemente vazio está pleno de pulsações. Não apenas o drama de Geni se manifesta no tablado, mas o drama humano. Anseios e frustrações criam o cenário de angústias e descaminhos, atmosfera densa, labirintos gerados pela fantasia e pelo medo de cada um. Não há salvação possível a esses seres que buscam a remissão por caminhos tortos ou por meios sórdidos. A essência de Nelson Rodrigues é assim revelada pelo artista que compreendeu

como ninguém

a sua natureza poética. Por isso, dentre tantos eventos e encenações Rodrigues,

em homenagem

aos cem anos de Nelson

a montagem de "Toda Nudez" por Antunes

Filho e atores do CPT ganha especial relevo. Dá-se ali o diálogo sobre a condição humana, estabelecido por poetas que se entendem e se complementam, da escrita e outro é da cena.

pois um é




1982

30 2012



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