diรกrios da QUA REN TENA
PÉ DE CARAMBOLA Vicente Serroni 02 DELIVERY E DRIVE-THRU Graziela Delalibera 05 MULTIDÃO SEM NOME Ubirathan do Brasil 08 DÍARIO DA QUARENTENA Guilherme Lopes 10 DIÁRIO DA QUARENTENA Isabela Volpi Rodrigues 12 PROCESSO CRIATIVO E RESILIÊNCIA Florence Manoel 14 DE UM DIA DA QUARENTENA Priscila Topdjian 17 ENSAIO SOBRE LUTO Marcela Guimarães 21 AMOR DE FILHO, REMÉDIO PARA QUALQUER VÍRUS Ayla Farias 23 A LUA EM QUARENTENA Merli Maria Garcia Diniz 26 LEMBRANÇAS João Victor Guirado 29 QUANDO A MORTE SAIU DE FÉRIAS Diego Geovani 31 DIÁRIO DA QUARENTENA Mayara Ísis 34 DE VOLTA PRA CASA OU O MENINO E O CAMALEÃ Daniel G. Rodrigues 38 MINHA QUARENTENA Jacíra Polizero 41 AFASTAMENTO SOCIAL Raul Marques 45 LEMBRANÇAS DE QUARENTENA N• 03 Paulo H. de Oliveira 47 UM LAMPEJO EPIFÂNICO Eudes Q. de O. Júnior 49 20/05/2020, 3:00 DA MADRUGADA Ivan Reis 53 DIÁRIO DA QUARENTENA Regina Garbellini 55 ETERNO Váldir César 57 PEQUENOS POEMAS PARA ATRAVESSAR O FIM DO MUNDO Mariana Reis 61 LUGAR DA QUARENTENA Elísio Faria 63 LEMBRANÇAS DE UM FUTURO QUE NINGUÉM VIU Danilo Ferraz 67
O mundo todo parou. Fomos parados. Nunca ficamos tanto tempo em casa. Quarentena. Um misto de emoções nos toma. Cada um lidou como pode, lida ainda como pode. Muitas reflexões. É nesse contexto que nasce o “Diários da Quarentena”, uma coletânea de textos, nos diversos gêneros, com escritores da cidade e região, de diferentes idades e momentos de vida, que se derramaram em palavras e lirismo. Cada autor interpretou a realidade e traduziu em substantivos, verbos e adjetivos, sua experiência destes tempos tão ímpares. Esperamos que seja uma leitura cativante e que produza reverberações! Boa leitura!
01
PĂŠ de
Carambola
Vicente Serroni
02
Antes do isolamento, da quarentena, o pé de carambola no fundo do quintal de casa fazia despencar diariamente muitas folhas, flores e frutos cobrindo quase que por inteiro o chão deste pequeno espaço de casa. Não sei se por preguiça; desmazelo ou por não dar muita importância para a caramboleira, a verdade é que depois de alguns dias o lixo que se formava dava para encher um saco de cem litros. Confesso que aquilo me dava muito trabalho, primeiro porque os frutos não eram comestíveis devido a uma praga que fazia com que eles ficassem bichados. O acúmulo deles no chão exalava um cheiro nada agradável e um líquido pegajoso marcava todo o piso. Era preciso depois do recolhimento de tudo, lavar e esfregar todo o local, um trabalho estafante muitas vezes acompanhado de xingamentos ao pobre pé de carambola. Mais bravo ficava ainda quando tinha que carregar até lá fora aquele saco pesado contendo tudo que havia recolhido. Sempre que me colocava a fazer a limpeza a ideia de erradicar aquela árvore vinha à cabeça; cheguei até a combinar com um jardineiro o serviço, mas declinei dessa intenção. Mas essa insatisfação com a caramboleira quando eu menos esperava teve uma reviravolta com a chegada do isolamento. A quarentena que implacavelmente me faz ficar em casa por longos dias porque com esse vírus não se brinca impôs várias atividades. No começo me peguei a fazer uma série de coisas, ler; tocar violão; assistir os vários jornais da TV; ir para o notebook pesquisar na internet; acompanhar algumas minisséries, coisas pra tomar meu tempo. O celular então mais do que nunca pra mim tornou-se um bem necessário, acessar as redes sociais e os grupos do whatsapp é quase que uma obrigação nessa quarentena, uma das formas pra rever a família e os amigos. Quando falo em reviravolta é que em meio a tudo isso apareceu também uma prazerosa ocupação para se fazer e ela tinha a ver com o pé de carambola! O que antes era sacrifício, agora era deleite na quarentena, limpar tudo aquilo virou rotina pra quem procura o que fazer. Todo dia ao acordar vou até a porta de vidro que separa a sala do quintal para observar se a caramboleira fez o serviço durante a noite, derrubando tudo que tinha direito. Olha que ironia, ao ver o chão forrado com os pertences dela, pequenos galhos; flores, folhas e frutos, abro um sorriso de satisfação, não reclamo mais e nem xingo. Tudo fica ainda fica mais bonito com a chegada de um bando de maritacas fazendo um alvoroço barulhento e pousando no pé de carambola.
03
Além da beleza desses pássaros, da alegria que provocam com suas cantorias, a presença das maritacas é um reforço a mais para que meu trabalho esteja garantido. Elas adoram os frutos ainda verdes e com seus bicos tiram vários pedaços, muitos deles são perdidos e o destino é mesmo o chão. Fazem uma sujeira danada, todo dia acompanho com satisfação essa festa da natureza. Depois da debandada dos pássaros é chegada a hora da limpeza, buscar o saco de lixo; a pá e empunhar a vassoura. Fone de ouvido, uma boa música e feliz da vida me ponho a exercer mais essa ocupação na quarentena e assim passar o tempo. Após a limpeza e o lixo recolhido é hora de carregar o saco até lá fora para que os funcionários do condomínio o recolham. Essa atividade virou rotina nessa quarentena, é realizada em horário planejado, isto porque ao completá-la encontro sempre brincando na rua do condomínio um bando, desta vez não de maritacas é claro, mas de crianças alegres e felizes na companhia dos pais. Recebo alguns cumprimentos, retribuo e adentro o portão do corredor que me leva pra dentro de casa. Lavo as mãos ali no tanque que fica na área de serviço; uma toalha no varal seca as minhas mãos. Sinto que todo aquele trabalho realizado na parte da manhã me fez bem e vai me ajudar a encarar o restante do dia do meu isolamento.
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04
Delivery e Drive-thru
Graziela Delalibera
05
Passava do meio-dia quando o motoboy lhe entregou o marmitex na calçada. Na cozinha apertada nos fundos da loja, ela comeu com gosto a bisteca de porco sequinha. Era dia de virado à paulista. No prato onde serviu o conteúdo da marmita, além do arroz com feijão, havia ovo frito meio mole do jeito que gosta, linguiça, couve e um pouco de farinha de mandioca torrada. Lembrou-se do doce de leite preparado no fim de semana, guardado na geladeira de casa. Seria uma boa sobremesa agora, pensou com seus botões. Espichou-se na cadeira e tentou driblar o sono. Após servir café num copinho plástico, caminhou em direção à rua. Com cuidado, para não queimar as pontas dos dedos no líquido quente. Em frente à loja, ajeitou o copinho no beiral da janela e protegeu-se do vento para acender o cigarro. Deu a primeira tragada e começou a observar o que faziam os motoristas enquanto aguardavam a abertura do farol. Algumas horas mais tarde, ao saber que a loja ficaria fechada por conta da quarentena, ela quase surtou. Das suas mais de seis décadas de vida, ao menos duas contabiliza no interior daquela loja. É o ganha-pão do qual não pôde abrir mão mesmo quando a aposentadoria chegou. Única funcionária do estabelecimento, lá imaginava ter seus parcos momentos de sossego longe das tarefas domésticas: do cozinhar, limpar, cuidar, passar, esfregar. Do eterno preparo da comida para o companheiro e os netos, da interminável lavagem da roupa e do quintal, da infindável limpeza da sujeira dos cachorros. Naquele mesmo dia, à noite, depois de lavar a louça do jantar, teimou ao telefone com a irmã que a nova doença haveria de ser nada demais. O que ela mais queria era manter a sua rotina! “Ah, vá...” falou desdenhando do vírus, entre uma tragada e outra no cigarro. Com uma semana em casa, porém, o rumo da conversa diária ao telefone com a irmã já era bem diferente: “Ai, como é bom ter tempo pra cuidar das minhas plantas, de fazer o almoço, passar um café e fumar meu cigarro sossegada... Outro dia até dei uma cochilada à tarde...” O que ela não havia sonhado durante seu cochilo vespertino é que, bem antes do imaginado, a quarentena seria afrouxada e a loja, reaberta.
06
Logo no primeiro dia de volta à sua velha rotina, surpreendeu-se antes de abrir as portas do estabelecimento. O patrão mandara pintar uns novos escritos na fachada, com umas estrangeirices: Atendemos delivery e drive-thru. Ainda na calçada, deu um passo atrás para enxergar melhor e entender o que lhe esperava. Resignada, preferiu ficar ali parada. Segurando pelos elásticos, tirou a máscara do rosto e a guardou em um saquinho que levava dentro da bolsa. Então, acendeu um cigarro antes de começar sua jornada.
07
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MultidĂŁo
sem nome
Ubirathan do Brasil
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“Eu tinha muitas coisas para fazer, que tomavam muito tempo. E, mesmo assim, resolvi escrever um livro” — a escritora respondeu a mais uma pergunta do entrevistador. Era mentira, como tudo o que lhe contou posteriormente. Seu primeiro romance foi escrito durante a quarentena. Naquele tempo estranho de pessoas presas e amedrontadas. Mas ela queria afastar de seus pensamentos tais circunstâncias. Já não podia acreditar que a humanidade tivesse passado por isso dias atrás e que ela havia sobrevivido! Até a luz do sol tocava sua pele com mais entusiasmo agora. Concluiu que mergulhar no processo criativo havia sido uma alternativa à sensação de estar vivendo uma distopia. Heloísa escreveu seus “Diários da Quarentena”, que deram origem ao livro, pois estava perplexa diante da raridade da vida, que parecia mais curta apesar dos dias longos. Sua imaturidade literária não a impediu de buscar a eternidade por meio de um trabalho de qualidade questionável. Ainda que não publicasse ou não agradasse os críticos, tinha muito a dizer às pessoas com as quais tinha afinidade. Por isso, escreveu sobre a tristeza de ver o inverno se aproximar em meio à pandemia, trazendo mais frio e escuridão aos corações aflitos. Queria dizer aos seus pais que sentia falta dos abraços, adiados devido ao risco de contaminação. Queria contar aos seus dois irmãos que as divergências eram pequenas perto do que realmente importava: a admiração e o afeto que nutria por cada um. E dizer que, na distância, paradoxalmente, os amigos se tornaram mais próximos: mais do que compartilhar risos, vivenciavam angústias semelhantes e confortavam uns aos outros. Depois de publicar, percebeu que não havia dito nada disso. Na verdade, seu romance abordava muito mais os seus próprios costumes, narrados em terceira pessoa. E entre seus hábitos, as manias que desenvolveu durante a quarentena. Além dos momentos de escrita, lia mais durante o isolamento. Foi nesse período que conheceu “O Último Poema”, de Manuel Bandeira, e entendeu que o poeta estava sempre se despedindo. Que as pessoas estão sempre se despedindo... Despedia-se, com frequência, por WhatsApp. Para o reencontro, uma distância incalculável. ... Entretanto, a melancolia chegou ao fim: o riso ultrapassou o silêncio. Já podia caminhar pelas ruas e sentir o vento tocar em seu rosto. Novamente, reunia-se com amigos para compor e tornou-se um pouco mais sensível às canções alheias. E conseguiu, finalmente, marcar um café com um sujeito que era objeto de sua curiosidade. ... Depois da entrevista, seguiu para sua casa, onde almoçou sozinha, como fazia todos os dias há mais de duas décadas. Porém, não ficou muito tempo usufruindo de si mesma. Recebeu a visita dos pais e pôde ter a alegria de abraçá-los pela terceira vez após a pandemia. Nesse momento, tudo era motivo de gratidão: até mesmo o mau humor crônico do pai, que demonstrava estar mais saudável do que nunca enquanto reclamava de aborrecimentos cotidianos. E a mãe novamente se sentia forte e pronta para aproveitar a vida perto daqueles que amava: era comovente constatar sua vitalidade. ... Heloísa ressignificou o ócio para lidar com a acidez dos dias por meio de seus “Diários da Quarentena” e dessa forma continuou ganhando novas qualidades apesar do isolamento e vendo sua literatura evoluir. E a necessidade de resistir, que antes flutuava, criou raízes em seu coração.
Não sei que horas são dentro de mim, e/ou, muito menos lá fora. Pensei apenas abrir a janela, pessoas não passam alí. Porque me deixaram sozinho nessa cidade que nem parece uma cidade? Pensei em construir uma horta, produzir algumas mudas, talvez seja divertido, mas, não recebo visitas, queria alguém falando coisas, qualquer tipo de coisa no quintal. Meu rádio chiado soa triste, silencioso como um raio que não cai. A janela está aberta. Finjo estar na janela fitando alguém levando crianças pra escola e observando a fonte luminosa na praça da matriz. As avenidas, os semáforos estão órfãos e há tantas pessoas caminhando dentro de mim.
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09
Diรกrio da Quarentena
Guilherme Lopes
10
Le Pendu. o doente acorda, os lábios azeitados. o enfermeiro pensa baixinho uma ave maria. o velho aspira rarefeito os orifícios. o enfermeiro abre uma frestinha da janela. o doente repara o enfermeiro. o doente, parece meu filho, o enfermeiro, eu?, o doente, não, só as mãos. o filho limpa o nariz do pai. o doente, mais quanto tempo isso, o enfermeiro, só mais um pouco e te deixo quieto, o doente, vai embora e deixa tuas mãos. o enfermeiro vai inteiro, uma cruz invisível no peito do doente. o doente sozinho: lembra porra nenhuma. o enfermeiro descarta as luvas, memórias inventadas, subsolo do doente. o doente na frestinha fria do sol. o sol cresce no poente errado, rasteja a Belém pra nascer.
La Roue de Fortune. no mercado, de um em um, estiram as mãos pro álcool. entram reclamando depois. a de dentro vai mais ágil, caixa um, caixa dois. próximo. um sem sapato, de barrilzinho na mão, as pontas do dente pretas. caixa um, passa no balcão. caixa um, algo mais? duas moedas de real, notinha fiscal direto pro lixo. caixa dois, de canto de olho, testemunha. caixa um responde, telepata. entre caixa alfa e caixa ômega, o primeiro e o último, o princípio e fim. os passos em erosão saem pela frente. senta na pracinha, uma roda de esterco, cachacinha em mãos. a máscara fica de lado. os pés se enfiam no barro, suicidam-se. voltam à raízes, arborecidos: caixa um, caixa dois, anunciai os paralelos da extinção.
L'Hermite.
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de fora do prédio, olha os acesos, a colmeia interditada. sobe igual mosca, apelando à escada pela lâmpada. chega de máscara mole, deixa no banho o modelo empregatício. cabem nos pingos a cozinha industrial. cabe o cheiro ressentido do dia, o cheiro embebido. desaparece a casca, troca o ventre despolpado. toma, comprei pra você, é de quê, amendoim. os vãos sem dente regozijam. vem, dá beijo. deitam na cama os dois, encosta nas pernas dele. um ronco fininho de criança a acorda depois, a hora pela metade, a noite esvaziando de dentro pra fora. escorre luz quieta do seu rosto, percebe, esfregando os olhos. é assim que o mundo acaba, num ruído assim, tão baixinho?
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Diรกrio da
Quarentena
Isabela Volpi Rodrigues
12
A quarentena para o bem e para o mal, inflama ainda mais o que as pessoas já são. É um período em que você tem a oportunidade de enxergar quem se preocupa com o mundo e quem não. Nunca pensaríamos que um vírus poderia “acabar” com o afeto: abraços, beijos e carinho. A gente só dá valor quando perde mesmo. Não foram somente 40 dias, foram muitas 24 horas multiplicadas por ansiedade, medo, preocupação, agonia; quem diria que iríamos ter vontade de fazer uma chamada de voz novamente, afinal. Um lado bom a pandemia tem, ela nos permitiu que olhássemos para dentro e refletindo pudemos perceber o quanto não damos valor para o que temos em casa, o valor que as pessoas têm para cada um e que cada pessoa é importante para alguém, para o mundo. O lado ruim, foi que infelizmente com essa reflexão, alguns ficaram nos mesmos lugares onde estavam e continuaram disseminando egoísmo, ódio e outras formas de desdém. Por mais que milhares tentassem convencer da união, outros ‘importantes’ continuaram a dizer não. Esse período nos mostrou muita empatia, solidariedade e que a cultura importa muito. Infelizmente algumas contradições viriam. A gente fica se perguntando do clichê mesmo, “Aonde esse mundo vai parar com tanto ódio ao invés de compaixão?”, quando vamos perceber que realmente não vivemos sozinhos, que as coisas que mais importam são as que vem do coração? A ganância, o poder, o status já se infiltrou na sociedade há anos, quem ensinou vocês a saírem dos nossos planos? De igualdade, de lutar pelos outros, de sermos humanos! No dicionário o significado de Humanidade é: sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos. Quem não está se portando assim e achando que foi ‘escolhido’? Tudo o que somos e o que o mundo é, vem de muitos anos, e a vida é assim, mas quando percebemos que há algo errado, temos que tentar mudar. Saber que o mundo está errado não basta. Aja, converse, ensine, sinta. Sejamos melhores para nós mesmos e para o mundo.
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Processo Criativo e
ResiliĂŞncia
Florence Manoel
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“Eu tinha muitas coisas para fazer, que tomavam muito tempo. E, mesmo assim, resolvi escrever um livro” — a escritora respondeu a mais uma pergunta do entrevistador. Era mentira, como tudo o que lhe contou posteriormente. Seu primeiro romance foi escrito durante a quarentena. Naquele tempo estranho de pessoas presas e amedrontadas. Mas ela queria afastar de seus pensamentos tais circunstâncias. Já não podia acreditar que a humanidade tivesse passado por isso dias atrás e que ela havia sobrevivido! Até a luz do sol tocava sua pele com mais entusiasmo agora. Concluiu que mergulhar no processo criativo havia sido uma alternativa à sensação de estar vivendo uma distopia. Heloísa escreveu seus “Diários da Quarentena”, que deram origem ao livro, pois estava perplexa diante da raridade da vida, que parecia mais curta apesar dos dias longos. Sua imaturidade literária não a impediu de buscar a eternidade por meio de um trabalho de qualidade questionável. Ainda que não publicasse ou não agradasse os críticos, tinha muito a dizer às pessoas com as quais tinha afinidade. Por isso, escreveu sobre a tristeza de ver o inverno se aproximar em meio à pandemia, trazendo mais frio e escuridão aos corações aflitos. Queria dizer aos seus pais que sentia falta dos abraços, adiados devido ao risco de contaminação. Queria contar aos seus dois irmãos que as divergências eram pequenas perto do que realmente importava: a admiração e o afeto que nutria por cada um. E dizer que, na distância, paradoxalmente, os amigos se tornaram mais próximos: mais do que compartilhar risos, vivenciavam angústias semelhantes e confortavam uns aos outros. Depois de publicar, percebeu que não havia dito nada disso. Na verdade, seu romance abordava muito mais os seus próprios costumes, narrados em terceira pessoa. E entre seus hábitos, as manias que desenvolveu durante a quarentena. Além dos momentos de escrita, lia mais durante o isolamento. Foi nesse período que conheceu “O Último Poema”, de Manuel Bandeira, e entendeu que o poeta estava sempre se despedindo. Que as pessoas estão sempre se despedindo... Despedia-se, com frequência, por WhatsApp. Para o reencontro, uma distância incalculável. ...
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Entretanto, a melancolia chegou ao fim: o riso ultrapassou o silêncio. Já podia caminhar pelas ruas e sentir o vento tocar em seu rosto. Novamente, reunia-se com amigos para compor e tornou-se um pouco mais sensível às canções alheias. E conseguiu, finalmente, marcar um café com um sujeito que era objeto de sua curiosidade. ... Depois da entrevista, seguiu para sua casa, onde almoçou sozinha, como fazia todos os dias há mais de duas décadas. Porém, não ficou muito tempo usufruindo de si mesma. Recebeu a visita dos pais e pôde ter a alegria de abraçá-los pela terceira vez após a pandemia. Nesse momento, tudo era motivo de gratidão: até mesmo o mau humor crônico do pai, que demonstrava estar mais saudável do que nunca enquanto reclamava de aborrecimentos cotidianos. E a mãe novamente se sentia forte e pronta para aproveitar a vida perto daqueles que amava: era comovente constatar sua vitalidade. ... Heloísa ressignificou o ócio para lidar com a acidez dos dias por meio de seus “Diários da Quarentena” e dessa forma continuou ganhando novas qualidades apesar do isolamento e vendo sua literatura evoluir. E a necessidade de resistir, que antes flutuava, criou raízes em seu coração.
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De um dia da quarentena
Priscila Topdjian
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Não adianta torcer para o ano passar rápido, a ordem agora é sobreviver. (Sobreviver, aliás, é uma tática nossa). Acordei, você já percebeu, mas não recomendo. Olho para o quarto, para os óculos, para os jornais impressos em cima da escrivaninha e pergunto-me, enojando-me: “Para quê? Para que tanta perna, meu Deus?”. Vontade de fugir do Brasil só pra ver se o entendo mais de longe. Aqui, daqui mesmo, fica tudo perto demais. Quem é que vê, de verdade, a própria mão, quando há louça e latas de molho de tomate para lavar? *** Quatro pratos, duas panelas (uma grande e uma média), um escorredor de macarrão, seis copos, duas colheres, um pegador, quatro facas e cinco garfos. *** Ponho-me a lavar a louça que Eva deixou desde que foi expulsa do Paraíso. Enquanto aspiro o cheiro de maçã, uma gata marrom olha-me da janela do vizinho, soberba em sua afável condescendência para com minha espécie. Poucos minutos depois, a danada cochila gostoso. (É chegada a hora de levar o lixo). Caminho até o portão de saída e avisto o zelador, que está sem máscara. Lembro-me da obra: “Existencialismo é um humanismo”. Distancio-me. Disfarço-me. Coloco uma árvore entre mim e ele. O saco de lixo pesa 12 quilos sobre meus ombros. Prometo não calcular as dores do mundo. (A impossibilidade de romper a distância com um soco). Meus amigos morrendo aos montes sem que eu possa defendê-los. Evoco a memória de minha mãe... Não a vejo desde março. Adentro noutro espaço.
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Convoco cenas familiares, tardes nas varandas, rostos e telas infantis: a exposição de artes plásticas do meu sobrinho de 5 anos. (Um ano se passou). Na memória, tudo parece melhor. Hoje é mais um dia que se transformou num chão de pedras sobrepondo-se. Volto para casa. Chamo outro dia do passado e chega uma rua. Já andei por tantos lugares, conheci tanta gente, mas o que poderei dizer acerca do tempo que houve além do tempo em que vivo? Tenho a poesia ao meu lado. Ela me apresenta um território de outras palavras, outras narrativas, galhos de um tempo que só recolho quando o faço meu. Canto um nome, mas atende um espirro na parede. Disponho uma narrativa, um diário sobre a pandemia, mas atravesso linha a linha o fracasso da criação. Ligo a TV e as reportagens ilustram meu desejo de desistir. Talvez pelo peso do que não me aconteceu nesses 30 anos, pelo erro de sobreviver enquanto outros morrem. Não sei, não sei mais nada! (A vida, você há de concordar, descontinuou). Que horas são agora? “É o tempo em que a mediocridade violenta galgou o direito de se escancarar como nunca e de se festejar a si mesma”. O Estado carrega nos porões um rinoceronte cansado e infatigáveis operadores de caldeiras... Enquanto os desavisados, de verde e amarelo, medem força cantando sua ópera no convés. Estamos num país que se arma dia a dia, mano a mano, piso a piso. Eis tudo: uma sombra que é projeção de outra sombra. Uma aproximação da lente parece colocar-me diante do que nem existe mais.
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Sinto saudades de minha mãe. Sinto saudades de tudo que ameaçou ser. (Quando foi que caiu dentro de mim um tempo que me desconhece?). Ia arrancar a folha do calendário da geladeira, mas o dia 31 de maio de 2020 ainda não terminou.
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Ensaio sobre Luto Marcela GuimarĂŁes
21
Eu viro a câmera pra mim no intuito de me enxergar, me entender melhor. Eu enquadro meu rosto meus movimentos na expectativa de encontrar neles alguma resposta, um conforto para os conflitos internos. Historicamente não temos esse costume de nos observar Nos enxergamos como um ser complexo, repleto de camadas sem medo de parecermos muito emotivas, raivosas ou fracas. Eu exponho minha vulnerabilidade a fim de entender qual é a sua qual é a dela qual é a minha. Eu escrevo, apago Penso, coreógrafo Recuo e me desfaço no movimento Em um momento me perco e não sei se me acho. Me convenço de que pressa não tenho Que é pra respeitar o tempo da dor O agir dela em mim No meu espaço e onde mais for preciso. Eu abri a porta pra ela
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e ela aqui tem estado.
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Amor de Filho, remédio para
qualquer Vírus
Ayla Farias
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Quase 11 anos depois, e cá estou eu em um novo puerpério. Sem a ação enlouquecedora dos hormônios, é fato, porém com a intensidade que marca aquele período em que mãe e filho são um só, dia e noite, noite e dia, entrelaçados em medos, noites em claro, exaustão, dores, fraldas, mamá, golfadas e cólicas. “Eu tinha muitas coisas para fazer, que tomavam muito tempo. E, mesmo assim, resolvi escrever um livro” — Não que o dia a dia de uma mãe permita muitos planejamentos a escritora respondeu a mais uma pergunta do entrevistador. que lhe contou primeiro romance foi escrito durante a – Era jámentira, que, como em tudo se otratando deposteriormente. criança, Seu tudo pode mudar num quarentena. Naquele tempo estranho de pessoas presas e amedrontadas. Mas ela queria afastar de seus piscar de olhos – mas, desta vez, o puerpério imposto pela pensamentos tais circunstâncias. Já não podia acreditar que a humanidade tivesse passado por isso dias atrás e que ela havia sobrevivido! Até pandemia nos isola e é um infinito não saber, uma sucessão de a luz do sol tocava sua pele com mais entusiasmo agora. Concluiu que mergulhar no processo sido uma alternativa à sensação deàestar vivendopelo uma dias incertos. Dias estes,criativo noshavia quais tudo foi colocado prova distopia. vírus: meu trabalho, minhas o perplexa sustento, Heloísa meu escreveunegócio, seus “Diários da Quarentena”, que deram origem ao relações, livro, pois estava diante da raridade da vida, que parecia mais curta apesar dos dias longos. meu autocuidado, o cuidado com os que amo e até o meu olhar Sua imaturidade literária não a impediu de buscar a eternidade por meio de um trabalho de qualidade questionável. Ainda que não publicasse ou não agradasse os críticos, tinha muito a dizer às pessoas com as sempre alegre diante da vida. quais tinha afinidade. Sem rotina, previsão, dois, só nós Por isso, escreveusem sobre acerteza, tristeza de versem o inverno se aproximarsomos em meio ànós pandemia, trazendo mais frio e escuridão aos corações aflitos. dois. Sem rede de apoio e de afeto, sem as presenças que tornam Queria dizer aos seus pais que sentia falta dos abraços, adiados devido ao risco de contaminação. Queria seus dois irmãos as divergências eram pequenas perto do que realmente importava: a a contar vidaaosmais fácil e que leve. admiração e o afeto que nutria por cada um. Assim, desde o diaparadoxalmente, 16 de março, me torneimais a única E dizer que, na distância, os amigos se tornaram próximos:para mais doencenar que compartilhar risos, vivenciavam angústias semelhantes e confortavam uns aos outros. todos os papéis no palco diário da vida do meu filho. E ele, o Depois de publicar, percebeu que não havia dito nada disso. Na verdade, seu romance abordava muito mais os seus espectador próprios costumes, dos narrados em terceira E entre seus hábitos, as manias único dias sem pessoa. roteiro nem direção quequesedesenvolveu durante a quarentena. tornaram minha rotina. Além dos momentos de escrita, lia mais durante o isolamento. Foi nesse período que conheceu “O Último Poema”, de Manuel Bandeira, e entendeu que o poeta estava sempre se despedindo. Que as pessoas estão Tudo ao redor da maternidade é um caos, sempre! Permeado por sempre se despedindo... Despedia-se, comcansaço frequência, por WhatsApp. muita. Para o reencontro, uma distância sobrecarga, e culpa, E agora, com incalculável. o caos ... generalizado, nóschegou doisao estamos nos conhecendo novo. Entretanto, a melancolia fim: o riso ultrapassou o silêncio. Já podiade caminhar pelas ruas e sentir o vento tocar em seu rosto. Novamente, reunia-se com amigos para compor e tornou-se um pouco mais Estamos nos conhecendo profunda e intensamente. Não somos a sensível às canções alheias. E conseguiu, finalmente, marcar um café com um sujeito era objeto de suasociais, curiosidade.nem as agenda que temos a cumprir, nem asqueatividades ... obrigatoriedades dapararotina. Somos mãe e filho, Depois da entrevista, seguiu sua casa, onde almoçou sozinha, como faziaem todosmodo os dias há mais de duas décadas. Porém, não ficou muito tempo usufruindo de si mesma. sobrevivência. Recebeu a visita dos pais e pôde ter a alegria de abraçá-los pela terceira vez após a pandemia. momento, tudo era motivo de gratidão: até mesmo oapós mau humor crônico do pai, que E Nesse como naquelas primeiras semanas 20 de junho de demonstrava 2009, estar mais saudável do que nunca enquanto reclamava de aborrecimentos cotidianos. está tudo bagunçado, é uma via deperto mão dupla, somos E a mãe novamente se sentia forteporém e pronta para aproveitar a vida daqueles que amava: era comovente constatar sua vitalidade. dois, é uma troca. Agora, não é somente ele que depende ... Heloísa ressignificou o ócio lidar com acidez dos diasdependo por meio de seus “Diários da Quarentena” e exclusivamente depara mim: euatambém dele. dessa forma continuou ganhando novas qualidades apesar do isolamento e vendo sua literatura evoluir. Desde as tarefas domésticas, integralmente nossas, ao E a necessidade de resistir, que antes flutuava,que criou são raízes em seu coração. acesso à plataforma “Zoom” para a reunião remota da escola. _______________________ Dependo do seu sorriso de bom dia todas as manhãs e dos ovos mexidos deliciosos que ele faz para o nosso café. Dependo dos sons que saem do quarto dele enquanto interpreta suas brincadeiras. Dependo também do silêncio que ele faz quando estou ao telefone em mais uma conversa difícil. Dependo da sua impaciência e dos questionamentos sobre o novo modelo adotado para o dia a dia escolar e até dos seus momentos de tristeza, quando está com saudade ou medo.
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“Eu tinha muitas coisas para fazer, que tomavam muito tempo. E, mesmo assim, resolvi escrever um livro” — a escritora respondeu a mais uma pergunta do entrevistador. Era mentira, como tudo o que lhe contou posteriormente. Seu primeiro romance foi escrito durante a quarentena. Naquele tempo estranho de pessoas presas e amedrontadas. Mas ela queria afastar de seus pensamentos tais circunstâncias. Já não podia acreditar que a humanidade tivesse passado por isso dias atrás e que ela havia sobrevivido! Até a luz do sol tocava sua pele com mais entusiasmo agora. Concluiu que mergulhar no processo criativo havia sido uma alternativa à sensação de estar vivendo uma distopia. Heloísa escreveu seus “Diários da Quarentena”, que deram origem ao livro, pois estava perplexa diante da raridade da vida, que parecia mais curta apesar dos dias longos. Sua imaturidade literária não a impediu de buscar a eternidade por meio de um trabalho de qualidade questionável. Ainda que não publicasse ou não agradasse os críticos, tinha muito a dizer às pessoas com as quais tinha afinidade. Por isso, escreveu sobre a tristeza de ver o inverno se aproximar em meio à pandemia, trazendo mais frio e escuridão aos corações aflitos. Queria dizer aos seus pais que sentia falta dos abraços, adiados devido ao risco de contaminação. Queria contar aos seus dois irmãos que as divergências eram pequenas perto do que realmente importava: a admiração e o afeto que nutria por cada um. E dizer que, na distância, paradoxalmente, os amigos se tornaram mais próximos: mais do que compartilhar risos, vivenciavam angústias semelhantes e confortavam uns aos outros. Depois de publicar, percebeu que não havia dito nada disso. Na verdade, seu romance abordava muito mais os seus próprios costumes, narrados em terceira pessoa. E entre seus hábitos, as manias que desenvolveu durante a quarentena. Além dos momentos de escrita, lia mais durante o isolamento. Foi nesse período que conheceu “O Último Poema”, de Manuel Bandeira, e entendeu que o poeta estava sempre se despedindo. Que as pessoas estão sempre se despedindo... Despedia-se, com frequência, por WhatsApp. Para o reencontro, uma distância incalculável. ... Entretanto, a melancolia chegou ao fim: o riso ultrapassou o silêncio. Já podia caminhar pelas ruas e sentir o vento tocar em seu rosto. Novamente, reunia-se com amigos para compor e tornou-se um pouco mais sensível às canções alheias. E conseguiu, finalmente, marcar um café com um sujeito que era objeto de sua curiosidade. ... Depois da entrevista, seguiu para sua casa, onde almoçou sozinha, como fazia todos os dias há mais de duas décadas. Porém, não ficou muito tempo usufruindo de si mesma. Recebeu a visita dos pais e pôde ter a alegria de abraçá-los pela terceira vez após a pandemia. Nesse momento, tudo era motivo de gratidão: até mesmo o mau humor crônico do pai, que demonstrava estar mais saudável do que nunca enquanto reclamava de aborrecimentos cotidianos. E a mãe novamente se sentia forte e pronta para aproveitar a vida perto daqueles que amava: era comovente constatar sua vitalidade. ... Heloísa ressignificou o ócio para lidar com a acidez dos dias por meio de seus “Diários da Quarentena” e dessa forma continuou ganhando novas qualidades apesar do isolamento e vendo sua literatura evoluir. E a necessidade de resistir, que antes flutuava, criou raízes em seu coração.
Dependo das suas perguntas intermináveis, da sua busca pelo entendimento dos fatos, que geralmente aliviam o meu emaranhado interior. Dependo do mundo que ele me apresenta nos filmes que me mostra, nas músicas que toca, nas bandas que ouve e nos vídeos que vê sobre teorias que o desafiam, instigam. Dependo do olhar infantil dele diante das atrocidades cometidas pelos adultos, que nos tiram a paz e nos colocam em risco. Eu preciso ser abastecida diariamente pela sensibilidade dele em meio a tanta injustiça.
Dependo da sua pequena mão segurando a minha em frente à TV, quando o coração aperta e as lágrimas não se contêm mais nos olhos, escorrendo em choro pela incerteza do amanhã. Como o beijo de mãe, que tem o poder de sarar dores interiores ou ralados de joelho, o beijo de um filho tem o poder de nos curar, inteirinhas, e relativizar angústias, agonias, culpas. Amor de filho regenera corpo e alma. Junta nossos pedaços, para nos tornar aptas a viver mais um dia, mais uma fase, mais uma semana, mais um ano... Só uma coisa não mudou neste puerpério. Continuo sentindo medo e encarando algumas noites em claro. E aí, mais do que nunca, repito para mim mesma o velho mantra ensinado para as mães de primeira viagem: “Vai passar...” Vai sim, vai passar! _______________________
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A Lua em
Quarentena
Merli Maria Garcia Diniz
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Tento através das palavras gravar as emoções que tem acometido meu cotidiano ultimamente, sem lograr êxito. Pelo quadrilátero transparente de minha janela, percebo o luar que lá fora enfeita a noite e não ouso desenhar com letras o quarto-crescente irisado pairando sobre a cidade. Minha vidraça aprisiona a lua que me aprisiona e sou naquele momento, reduzida à mera testemunha visual de uma natureza morta. Em outras ocasiões, imediatamente estaria compondo pela escrita, o poema que a vida me oferecia. Não agora. Empaco como criança birrenta e não há jeito de grafar minhas percepções. Insisto e reinicio riscos e rabiscos para tentar contar sobre minha condição de afastamento e desencanto com o momento ora vivenciado. Nada acontece. Abandono minha incursão pela literatura e deixo descansar meus escritos, para quem sabe, ficarem mais apetitosos. Pois é. Deixei-os de lado, com certo desprezo, como se apartado deles, fosse possível melhorar meu mau humor. Cozinhei-os em banho Maria. Foi então que dei para vigiar o céu. Parece coisa de gente maluca, cismada ou de quem não tem nada para fazer. Mas, não é bem assim, não. Faz um mês mais ou menos que me deu essa doideira. E olhem que começou quando ainda não era lua cheia. É que de acordo com a sabedoria popular, durante o plenilúnio ficam aguçadas as loucuras e bizarrices das pessoas. No entanto, era só um tímido quarto-crescente. Foi num sábado de uma tarde triste e cinzenta que se descortinou a minha frente, o sol, querendo furar a cortina de fumaça que se impunha vigorosamente à paisagem. E foi aí que a coisa pegou, que me pus a cuidar dos dias, a velar as noites e a pajear as tardes. Comecei examinando o horizonte logo de manhãzinha. Dia após dia. Nada. Não contente dei início a perscrutar a noite. Noite após noite. Tenho sondado também os entardeceres. Os pores-do-sol que sempre foram vermelhos, exuberantes, parecem-me agora melancólicos, como se lhes faltasse alento para manterem suas escandalosas incandescências. Há uma névoa gris em nossos corações a atrapalhar a explosão crepuscular enquanto a tarde se faz noite. E é essa desconcertante incerteza dos dias, que nos fragiliza e nos revela a obscena desigualdade social e que faz aflorar em nós, a solidariedade, contrapondo-se à insignificância dos valores materiais, pois demonstrado está que, de certa forma, nos igualamos no medo, na solidão e na incerteza que essa pandemia nos trouxe.
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E essa vigilância insistente e insana, tem sido na esperança de encontrar uma única nuvenzinha, prenunciando pelo menos, um ligeiro chuvisqueiro. Em minhas fantasias, o aguaceiro lava as tardes, a cidade e exaure a pandemia, dando resolução ao nosso enclausuramento, enquanto a natureza nos observa do lado de fora. Natureza esta, que tem demonstrado o seu nervosismo, devolvendo-nos o calor do dia em vento frio da noite. E era só um tímido quarto-crescente, ocasião em que tudo principiou. Nessas minhas incursões de astrologia, eis que num domingo à noite dei de cara novamente com luminosa lua, adornada por grande círculo, projetando as cores do arco-íris quase dentro da minha sala. Mesmo assim, nada descrevi sobre minha visão. Ignorei-a. No entanto, na manhã ainda escura de hoje, deparo-me novamente com a dita cuja me desafiando. Esplendorosa no azul do amanhecer, em sua plenitude. Sou pega de surpresa. Invade a casa e meus sentidos, sem as formalidades legais, em versão 3D, a visão esplendorosa de uma lua cheia, redonda, prateada, imensa, brincando contra um incrível fundo anil. Equilibra-se perfeitamente, entre dois edifícios Ficou por lá bailando a minha frente, exibida como ela só, na certeza de que não seria desconhecida. Intrometida como sempre. Não resisti ao seu encanto e eis-me aqui a rasgar-lhe elogios merecidos. Abusada cúmplice das noites e amanheceres de isolamento, ofereceu-me o contraponto para que minha alma restabelecesse sentires que andava a ignorar. Entre riscos, rabiscos e sentimentos desencontrados, minhas emoções cravadas por insistentes desencantos, finalmente desabrocharam. A indiscreta lua por testemunha. Há tanto para ver para aqueles que sabem onde e quando abrir os olhos.
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Lembranรงas Lembranรงas Joรฃo Victor Guirado
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Joana d’Arc Garcia Diniz Guirado Onde estarão Dorvalina e Encarnação? Vivem outras vidas Sem ser aquela Que eu conhecia? Fizeram parte da Minha infância Querida Como dizia Castro Alves Era isso? Onde andarão? Será que vivem Em alto escalão? No céu, não sei, No mar talvez? Onde andarão Repito sempre isso Porque não sei Queria, gostaria de saber Por que tanta importância Às pessoas tão simples Pra vocês? Por que as mãos Sustentaram tanto peso Junto aos braços, Que trabalharam Incansavelmente Na lida do trabalho, Na roupa estendida, No fogão areado Nas panelas lavadas Nos pratos quebrados Pela pressa do dia-a-dia Onde andarão Dorvalina e Encarnação Luci que areava Os meninos Pra ir à escola Passava o pente fino Literalmente pra ver se Não tinha piolhos! Onde andarão, nas Nuvens, nos céus Nos aviões, Que transportam Alegrias e tristezas Também Voltar ao Índice Pergunta incessante Com uma única Resposta Moram no meu coração
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Quando a
Morte saiu de FĂŠrias
Diego Geovani
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Imagina a loucura! Deu no jornal! Ninguém mais morre, ninguém vai óbito! O âncora do telejornal no maior entusiasmo, os doentes tiveram curas instantâneas, os acidentados novinhos em folha! Todo mundo agora é imortal! Deu no jornal! E agora podemos viver o perigo, podemos ser radicais, e fazer as mais emocionantes loucuras! Deu no jornal! O apresentador disse bem assim: - É oficial, nada mais acaba, nossa vida não tem fim! As pessoas agora querem voar, aceleram seu carros na maior velocidade, bebem, fumam e brigam por qualquer motivo, e ninguém morre! A vida é infinita! Deu no jornal! Doenças? Que nada! Com esse corpo ninguém se mete, afinal, somos imortais, sem fim! Fechem os cemitérios, ninguém mais pisa lá, celebremos a vida! Festas, comidas, e bebam, mas bebam para deixar qualquer deus com inveja, afinal, deu no jornal. Ninguém morre mais! Mas por trás de todo regozijo existia uma luz, que se apagava a cada dia, a cada ação sem freio que eles tomavam, afinal, tinha dado no jornal, ninguém mais vai partir. Os anseios da juventude cessaram agora a apatia já tomava conta, os velhos não tinham mais o merecido descanso, era tudo vazio, a máscara de felicidade estava em ruinas, viver de perigo não era mais tão divertido, eles escolheriam dessa vez morrer, caso tivessem a oportunidade. Viver de perigo já não satisfazia, agora viam que a necessidade do início e do fim era necessário, o ciclos renovando, a dita normalidade reinando, queriam a morte de volta, batendo a sua porta, mas deu no jornal, o repórter falou, ninguém mais morreria. Foi quando alguém teve ideia - Vamos protestar! Não podemos mais nos deixar levar por essa vida sem limites, temos que voltar a morrer – e ainda brincou – Não aguento mais minha sogra! Fazendo todos que estavam deslumbrados com a promessa de ocupar o vazio rirem, e gritar palavras de ordem, ou caos, dependia de quem via aquilo. Saíram para as ruas, faixa, placas, até gente com fantasia da morte tinha e gritavam e pediam a volta da morte, como um entidade, adoravam agora o Deus morte, que teria que vir ceifar a vida de quem merecia, mas que não fosse alguém próximo, podia ser aquele vizinho chato, ou aquele artista que gostava de simplesmente não morrer.
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E lá de cima o anjo da morte absorto com a cena, eles não gostaram do presente, queria a morte, esqueceram de estar e queriam somente fazer, chamou seus anjos conselheiro e questionou, devemos tirar esse dom dessas pessoas? E quem quisesse continuar a vida? Seus anjos discutiram por um bom tempo e chegaram a conclusão, vamos deixar a morte entre eles novamente! E como num apertar de botão o anjo voltou à ativa, as pessoas caíram como peças de xadrez uma a uma, o inflamador dos protestos, o artista que queria aproveitar a vida, doentes e quem quer que fosse, sem distinção de querer, poder, raça, ou religião. E pouco a pouco as pessoas foram notando, que o problema não era morrer, mas saber viver, aproveitar cada instante como se fosse o último, mesmo que não fosse, olhar para os olhos dos pais, mães e filhos e sentir o momento, o passar do tempo com as mãos e se sentiam culpadas, elas escolheram ser erráticas, egoístas e agora teriam que arcar com a consequência funesta da morte inadiável.
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Diรกrio da
Quarentena
Mayara ร sis
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minha cabeça ainda pesa no dia mais um desse registro, que não começou em março, mas exauriu com mais força e mesmo alvo. ontem eu arrastava a cabeça pela casa com o peso substantivo concreto do que abriga meu peito. a analogia que me chegava eram das bolas enormes arrastadas por prisioneiros e escravizados, onde, no agora, isso são nossas cabeças.a sensação não se equivale ao mote, mas não chega vã. minha cabeça dói e não nascem palavras. gestação longa e difícil... não se pari a quase morte. as horas passam. soube que era segunda quando me convenci a tocar alto o padê musical de jussara. na tela, uma mão se estende. a pandemia fez alargar a saudade, mas não desfaz os tratados ancestrais. o que finda são os vínculos e coisas sem substância, elas e apenas elas ficam muito mais frágeis e difíceis de se sustentar. no fundo, a gente finge se enganar, mas a dor não engana e a gente sabe quem sabe entoar e cuidar dos nossos lamentos e honrar nossas vitórias. se antes não soubera, agora é tempo quem diz. a preta mulher que do outro lado diz, vem não por acaso, e o fardo que há também lá, não finda, mas se divide e encanta. da seca das palavras, o cuidado e afeto se umedece. na colheita das conexões, ela manifesta: “despeja isso”. não são essas as sensações dessa solitude?! não eis aqui minha carne preta, senão abatida, tentando decompor a morte? deste contato, parte do peso absurdo se decodifica e mais uma vez a imagem recorrente na angústia, água represada. há tempos, eu sei que meu silêncio é barragem do que não pôde desaguar. minha cabeça dói em cada trincado que os dias fazem e mais uma vez o açude não quer conter. ao intervalo da digital prosa goteja dos meus olhos o efeito, tem gente que não se pretende chave, mas elucida parte do mistério. coincidência é pacto de antes. ao final da tarde ainda gesto palavras, nutrida de raiva, medo, angústia, cuidado, afeto e saudade. não sei falar, não sei dizer, mas compreendo. ainda não há linguagem suficiente. no meu ventre ORIentação as palavras se estrebucham. não há beleza, mas há feitiço.
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em(poça)da em parte da minha letargia, assisti pelo dia todo os ecos do ontem que agora se faz anteontem. o que irrompeu pelas ruas foi a continuidade da fumaça. não daquele fogo (mas também) que alastrou à milhares de corpos pretos daqui. a fumaça de revolta que rompe agora o isolamento é fogo de justiça que há tanto queima dentro. no diário da contagem dos corpos pretos não houve hiato. nunca houve intermitência, espera “não atira”. no domingo, as águas de uma barragem estourada pelo esgotamento do racismo que não aguarda para depois do vírus. em quarentena, João Pedro foi morto pelo estado, doente tão antes do agora. em risco pandêmico multiplicado, pelas encruzas se lançaram a sorte e desespero quem sempre esteve a sua própria sorte e desespero. a negra onda que inunda ruas quer estancar sangue. não se louva a quase morte. se não é a bala, é o vírus, a fome, o descaso, a depressão, e mesmo envolta em todas minhas “comodidades” eu não esqueço que à maioria daqueles em que isso tudo vem pela mesma porta, eu sei... eles se parecem comigo. eu não espero pelo normal, quando acabar a quarentena os meus ainda serão pretos. eu não quero que os meus sejam nenhuma dessas estatísticas e como disse a Jacy “eu não quero ser um nome no cartaz de uma manifestação, eu quero ficar viva”. não há bandeira branca que se erga que não recolha corpos pretos e não tremule o racismo. no final da noite do ontem, outro contato, agora com quem não veste minha pele, nem tenta, há afeto, mas não se busca simetria. de uma sentença elaborada durante a conversa, o gatilho do momento exato em que estive olhando um fragmento de dor no museu afro em são paulo. o artefato era a mordaça de ferro, naquela sala de vozes, dor, foi nela em que eu me demorei por mais tempo. o silenciamento de tantos ontens, me pesava ainda ontem. na mimesis do tempo, eu podia, mas não conseguia falar. antes de dormir, no twitter, casa da bolha pandêmica, e bem antes, da esperança e dos dejetos, um post de Joel, aquele mesmo que se faz voz, abrigo e luta por e entre os nossos e estampou milhares de matérias sobre a onda dominical. na foto do tweet, seu filho e o agradecimento de uma bolsa de estudos ganho na escola do menino. no dia mais um depois da onda dominal, em plena pandemia, que eu não esqueça, eu vi um pai preto feliz por seu filho e um pouco mais aliviado, como ele mesmo disse pela “forma de me ajudar e apoiar na luta em defesa de vidas negras!”
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hoje a cabeça doeu um pouco menos, mas ainda é ontem e anteontem, só que agora aqueles não se importam com nossas vidas pintaram redes sociais de preto. o antirracismo ganhou outra palavra, talvez amanhã não haja mais mortes, não seja mais vitimismo, não seja mais só uma brincadeira, e até as vidas pretas importem enquanto vivas. talvez depois de hoje ou quando tudo voltar ao normal, em algum fim de semana, os meninos João Pedro, possam passear no parque. eu vou rezar pra esse domingo chover o suficiente pra que não escorra mais sangue. e antes que eu me esqueça! estamos em meio a duas pandemias, é o vírus do covid e sempre foi o do ódio; cuide dos seus, passe álcool nas mãos, encha também seu copo, tenha afeto, reze, lute e se guarde. porque por hora, todo dia é o fim do mundo, mas não acaba. 02/06/2020
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De volta pra casa ou O menino e o camaleão
À Irene Araújo Corrêa, in memorian Daniel Garcia Rodrigues
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A lua inteira agora É um manto negro Oh! Oh! O fim das vozes no meu rádio Oh! Oh! São quatro ciclos No escuro deserto do céu... . Moro dentro do corpo desta mulher que é um homem, mas eu sou um menino. Ela tem 56 anos. Ele tem 47. Eu tenho 15. Na tela da smart tv, o camaleão canta essa canção tão azul e fria. É maio de 2020 e o mundo todo está em prisão domiciliar. Viiiiiiiiiiiiiiiiiiiiixxeeeeeeeeeee! A tevê tá desligada, cara, tá ligado? Como é que tô ouvindo essa música e vendo o camaleão? Não! É um elfo! Você tá falando comigo, que da hora, cara, cantando pra mim! Quero um machado pra quebrar o gelo Oh! Oh! Quero acordar do sonho agora mesmo Oh! Oh! Quero uma chance de tentar viver sem dor... . Eu que mando neste corpo, ela sabe, ele também, eles querem que eu ganhe, porque só eu sou real. Só quero correr na praia com uma yorkinha que se chama “Adorável”! Não quero saber de tanta morte e do monstro comandando o navio! Cara, vai afundar e eu tô com tanto medo, morando neste corpo, sendo a alma dele. O homem disse pra mulher que sou eu que mando, não no navio, na casa e no corpo. Eles são eu e querem ser só eu, me falaram. Huuuum! Elfo de asas? Elfo de asas é o quê? Anjo! Arcanjo! Arcanjo arcangélico sideral! Hahahahahahaha! Uma gripinha tá matando tanta gente! Arcanjo, é você, dentro da minha cabeça? São dez bilhões de neurônios na minha cabeça, são dez bilhões, dez bilhões! O nome da gripinha é feio que nem de filme de vírus e apocalipse, é Covid-19. Um vírus UK, do Reino Unido? Coronavírus! Arcanjo, é você ou são os dez bilhões de neurônios na minha cabeça? São dez bilhões?
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Sempre estar lá e ver ele voltar Não era mais o mesmo mas estava em seu lugar... Sempre estar lá e ver ele voltar O tolo teme a noite como a noite vai temer o fogo... Vou chorar sem medo, vou lembrar do tempo De onde eu via o mundo azul... Hum! Hum! Hum! Hum! Hum!.. . A Terra é redonda, redondinha, Monstro burrão! E tem menos de dez bilhões de pessoas na cabeça dela, né? Mas nenhuminha pode morrer porque você é muito mau e burro! A trajetória escapa o risco nu Uh! Uh! As nuvens queimam o céu nariz azul Uh! Uh! Desculpe estranho, eu voltei mais puro do céu... A lua o lado escuro é sempre igual Al! Al! No espaço a solidão é tão normal Al! Al! Desculpe estranho eu voltei mais puro do céu... Sempre estar lá e ver ele voltar Não era mais o mesmo mas estava em seu lugar... . Se os etês vierem me buscar, não será abdução, será resgate, Arcanjo! Peraí... já tô indo!
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Minha
Quarentena
Jacira Polizero
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NOTÍCIAS CHEGANDO DE TODOS OS LADOS DE QUE A TAL GRIPE JÁ ESTAVA NO BRASIL. Notícias chegando de que a COVID-19 chegou a Rio Preto. E notícias chegando de que começava uma QUARENTENA. Portas fechando, idosos, principalmente, ficar em casa. Todos ficarmos em casa. Mensagem no celular: avisamos que sua consulta foi cancelada, não vamos atender por esses dias, assim que nos organizarmos a gente remarca. Obrigada. Mensagem no celular: avisamos que sua sessão de pilates foi cancelada, não vamos atender nessa semana, estamos reunidos para ver como melhor atender, em breve faremos contato. Agradecemos a compreensão. Obrigada. Mensagem no interfone: por enquanto não haverá terço no salão do condomínio, está proibido ajuntamento de pessoas. Obrigada. Mensagem no celular: não haverá Grupo de Oração nessa terça-feira, não podemos nos reunir. Obrigada. E mais: não haverá missa, lojas não abrirão, melhor não ficar doente para não sobrecarregar hospitais, não podemos receber visitas, não podemos visitar, voos cancelados, transporte público restrito. E mais: filas distanciadas para pagar contas, filas com marcação para comprar comida, feiras canceladas temporariamente, marcação de lugar na farmácia, restaurantes fechados. E mais: aqueles dois eventos que estavam marcados, em minha agenda, lá longe: cancelados. ENGAVETEI a agenda. Ficou sem sentido abri-la: só páginas em branco. Percebi que o armário começou a ficar muito organizado: as roupas todas lá: lavadas, passadas, arrumadinhas, sem uso. Só mesmo duas bermudas e umas quatro camisetas continuam no batente. ESQUECI o armário. Passam os dias. E os NÚMEROS ficaram mais evidentes que todas as outras coisas. Esquecemos a PRIMAVERA, que estava se despedindo. A primavera esqueceu de si. Somente uma de minhas orquídeas floriu. Ninguém viu o VERÃO, que passou inteirinho sem nada se falar sobre ele. Não teve praia, prainha, festas nos clubes, eventos sertanejos...
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cadê tudo? CANCELADO! Entramos no OUTONO e nem sei se tem folhas caindo. Mas vi que o sol está carruncudo, emburrado. Só tenho visto informações sobre NÚMEROS. Números de tristezas. Números em hospitais, cemitérios, despedidas, ajudas, gastos, compras, e máscaras, e EPIs, e respiradores e números... números...números: quantos se foram, quantos ainda irão, quantos se salvarão... vou me apegar a esses, por favor: salvem todos, todos, todos! E passam os dias: interfone toca: O Sr. José veio se despedir. Ele que tem 70 anos, vinte deles aqui conosco, estava afastado, mas as filhas pediram prá ele aproveitar a sua aposentadoria, pois agora já tem um bisneto. E quem vai cuidar do nosso jardim, das nossas lindas primaveras, da linda horta aqui do prédio? Quem vai dar bom dia com aquele sorriso sempre tão amável, gentil e tímido? E a festa do sr. José? Não pode! Não pode??? Então vou descer para entregar uma carta e me despedir. Descer de máscara, ok? No elevador só pessoas do mesmo apartamento. Senhor José, aqui está uma cartinha de carinho, estamos ARQUIVANDO temporariamente o seu bolo, o seu presente, o seu abraço, tudo arquivado até um dia que vamos ligar para o senhor vir aqui receber tudo. Por enquanto só essas palavras da carta. Mesmo porque também as minhas lágrimas e meu sorriso estão GUARDADOS atrás da máscara. A tal gripe tem um efeito DEVASTADOR de ENGAVETAMENTO, ARQUIVO, ESQUECIMENTO, DISTANCIAMENTO, AUSÊNCIA, DESPEDIDA, INCERTEZAS, SOFRIMENTOS, ADIAMENTOS, CASAS VAZIAS, SEM IR E VIR, SEM BEIJO, SEM ABRAÇO, SEM APERTO DE MÃO...MUITO APERTO NO CORAÇÃO...SOLIDÃO...e SAUDADE. Saudade de como era tudo até o início da primavera. Saudade de conversar, de ouvir vozes, de me misturar no calçadão, de esbarrar pelos corredores do supermercado. Saudade de depois. Chega logo depois. No início foi assustador. Mas, foi-se dando um jeito, wattsapp para tudo: pilates por chamada de vídeo, terço por chamada de vídeo, grupo de oração com reunião on line, compras on line: receber, lavar, higienizar...
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Mas, “eu quero crer no amanhã”. Eu ESPERO e CONFIO no efeito QUARENTENA. Haverá o entendimento, haverá o aproveitamento. Mas, “EU QUERO CRER NO AMANHÔ... Quero ver o INVERNO chegar. Frio é chatooooo! Imagine! Mas eu acho o frio chato. Agora não acho. Amo o frio. Quero desengavetar uma blusa de lã. Entrar no elevador lotado de vizinhos, chegar até a rua. Quero tremer de frio, quero sentir o vento geladinho no rosto...sem máscara. Quero andar na rua batendo queixo. Quero respirar, respirar, respirar...muito ar, por favor! Ah...quero cortar e tingir os cabelos... Quero festejar com bolo, refri e presentes, no salão do condomínio, a merecida aposentadoria do Sr. José! “PORQUE ELE VIVE, TEMOR NÃO HÁ! EU POSSO CRER NO AMANHÃ!” EU CREIO NO AMANHÃ!
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Afastamento
Social
Raul Marques
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I Tranco a porta da rua antes de ingressar no mundo que estou construindo. Nele, não há convenção social, lei injusta, métrica ou meta exorbitante. O projeto é viver livre. II Procuro nas gavetas o espírito de menino. Mas só encontro máscaras e quinquilharias. III Li em um livro antigo: a borboleta só pode ser extraída pela Natureza após a lagarta aceitar seu propósito. Aceitei o que sou: bem menos do que imaginei. IV O silêncio é mais devastador do que uma rajada de palavras disparadas em escala industrial por uma potente máquina acionada por teclado de celular. V No meu pequeno mundo, sou chefe de estado de um governo imaginário, sou cavalo em disparada pela América do Sul, sou uma parte invisível do altiplano, sou barco sem destino no meio da tempestade, sou apenas o que tenho, eu mesmo.
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VI E, nesse encontro diário com as múltiplas facetas e limitações, um dia irei renascer por inteiro.
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Para enfrentar a cidade que (ainda) me pertence.
Lembranรงas de
o Quarentena n 03
Paulo Henrique de Oliveira
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Ainda não nos habituamos em nossa própria morada. Somos estranhos de nós mesmos e estrangeiros de nossa pátria. Estávamos acostumados com o ruído das ruas, as buzinas do trânsito e os barulhos que sufocavam o silêncio de nossas casas, barracos ou apartamentos. Encantados e desesperados, nós, “Eu tinha muitas coisas para fazer, que tomavam muito tempo. E, mesmo assim, resolvi escrever um livro” — cidadãos pós-modernos, jurávamos que tudo estava indo bem; a escritora respondeu a mais uma pergunta do entrevistador. Era mentira, como tudo o que lhe contou posteriormente. Seu primeiro romance foi escrito durante a bem corridos, bem atarefados, bem medicados, bem quarentena. Naquele tempo estranho de pessoas presas e amedrontadas. Mas ela queria afastar de seus pensamentos tais circunstâncias. normatizados. Ouso dizer que muitos de nós sentíamos saudade Já não podia acreditar que a humanidade tivesse passado por isso dias atrás e que ela havia sobrevivido! Até do a luzque do solera tocavanormal. sua pele com mais entusiasmo agora. Concluiu que mergulhar no processo criativo havia sido uma alternativa à sensação de estar vivendo uma Os rios já não tinham voz e os pássaros amanheciam nublados distopia. Heloísa escreveu seus da Quarentena”, que deram origem livro, pois estava perplexa diante da na poluição da“Diários imensa paisagem. Vista daao janela da cidade raridade da vida, que parecia mais curta apesar dos dias longos. vertical é pedra sobre pedra atéa oeternidade longínquo horizontal; lá onde Sua imaturidade literária não a impediu de buscar por meio de um trabalho de qualidade Ainda que não publicasse ou não agradasse os críticos, tinha muito a dizer às pessoas com as oquestionável. sol reside e insiste em aparecer e se recolher no fim do dia, quais tinha afinidade. Por isso,dia. escreveu a tristeza o invernoquinto se aproximar meio à pandemia, trazendo e mais frio e todo Nasobre janela dode ver décimo euemolhava pra baixo via escuridão aos corações aflitos. pessoas, um emdevido idasao eriscovindas atrás Queria do Queria dizer aos seusformigueiro pais que sentia faltana dosavenida abraços, adiados de contaminação. contar aos seus dois irmãos que as divergências eram pequenas perto do que realmente importava: a sustento ou do futuro, quem sabe? Andávamos pra lá e pra cá, admiração e o afeto que nutria por cada um. E dizer que,sei na distância, se tornaram maisnão próximos: mais do que muito compartilhar só não se tãoparadoxalmente, livre levesoseamigos soltos; sei lá, tínhamos risos, vivenciavam angústias semelhantes e confortavam uns aos outros. tempo pra pensar talvez fosse Eu atéabordava achomuito quemais Depois de publicar, percebeu nisso, que não havia dito nada disso.bobagem. Na verdade, seu romance os seus próprios costumes, narrados em terceira pessoa. E entre seus hábitos, as manias que desenvolveu de modo geral a vida estava indo e as pessoas eram felizes ou durante a quarentena. Além dos momentos de escrita, lia maisum durante o isolamento. nesse período que conheceu “O Último tentavam ficar. Até que dia, a vida Foi resolveu mudar, o sol Poema”, de Manuel Bandeira, e entendeu que o poeta estava sempre se despedindo. Que as pessoas estão “deu asdespedindo... caras” como sempre fez, mas as pessoas contra sempre se Despedia-se, com frequência, por WhatsApp. Para o reencontro, uma distância incalculável. suas próprias vontades, não. ... Entretanto, a melancolia chegou ao fim: omuito riso ultrapassou o silêncio. se Já podia caminhar pelas Inesperadamente, a vida externada recolheu. As ruas e sentir o vento tocar em seu rosto. Novamente, reunia-se com amigos para compor e tornou-se um pouco mais produções, sensível às cançõesações alheias. e planos tiveram que dar um tempo, não mais E conseguiu, finalmente, marcar um café com um sujeito que era objeto de sua curiosidade. no nosso tempo, o tempo era outro. Não éramos nós mais que ... Depois da entrevista, seguiu para não sua casa, onde almoçou mais sozinha,a como fazia todos os dias há maissobre de duas ditávamos as regras, tínhamos ideia de controle décadas. Porém, não ficou muito tempo usufruindo de si mesma. tudo, mais absolutos. Recebeu não a visita éramos dos pais e pôde ter a senhores alegria de abraçá-los pela terceiraProntamente vez após a pandemia. tivemos Nesse momento, tudo era motivo de gratidão: até mesmo o mau humor crônico do pai, que demonstrava que reconhecer e dar um passo pra trás, olhar para coisas estar mais saudável do que nunca enquanto reclamava de aborrecimentos cotidianos. E a mãe novamente se sentia forte e pronta paraaaproveitar a vida perto daqueles que amava: era comovente essenciais e voltar a enxergar simplicidade das coisas. Mas não constatar sua vitalidade. se ... iluda, a simplicidade é sofisticada demais. Logo, fomos Heloísa ressignificou o ócio para lidar com a acidez dos dias por meio de seus “Diários da Quarentena” e lembrados que respirar era a coisa mais importante, que um dessa forma continuou ganhando novas qualidades apesar do isolamento e vendo sua literatura evoluir. E a necessidade resistir, que antes flutuava, raízes em seu coração. abraço era deimportante, que secriou encontrar com as pessoas que vivem junto da gente também. Coisas que sempre tiveram _______________________ sentido e com o tempo foram sendo esquecidas voltaram a importar. O que tinha valor voltou a ter e o que era fugaz voltou ao seu lugar. Mudanças foram acontecendo e transformações se realizando. E quando menos esperávamos, aos poucos, pudemos ir saindo melhores, nos encontrando pelas ruas, avenidas e bares, alegres em afagos, abraços e esperança renovada. Escrito na Primavera de um ano qualquer.
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Um Lampejo Epifânico (Post Coronavírus) Eudes Quintino de Oliveira Júnior
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Falar sobre a pandemia, um tema tão abrangente quanto sua nocividade sem limites, carrega uma carga de dificuldade para aquele que aceita o desafio e fica meditando para saber qual ou quais aspectos que serão abordados no texto. Quanto mais amplo o tema - constatação errônea se considerada vantajosa - mais o autor tem que delimitar seu foco, acomodá-lo com toda segurança e fazer com que as paralelas corram para ele. Conseguir encontrá-lo é como ter a sua disposição a tábua de salvação após soçobrar em alto mar. Agarro-me a ele, portanto, com todas as forças. É a regra. Assim é que - expressão que denota a segurança do autor em ter encontrado seu foco - vislumbro um assunto observacional que me chamou a atenção. Justamente naquele período em que o pensamento fica absorto à espera de algum acontecimento. Pelo que constatei, e a corrente mundial segue a mesma esteira, as pessoas já não serão as mesmas após a pandemia, embora o mundo continue com seu movimento normal. Mas ele é somente o palco, um espaço físico. Esta mudança repentina, tão séria e inesperada, em razão de uma guinada fora de qualquer previsibilidade, ao que tudo indica, apesar de todo sofrimento que afligiu, vai pender para o lado bom. E aí que está meu achado, meu momento de criação, meu lampejo de inspiração que foi captado de cuidadosas observações, num legítimo processo epifânico de Clarice Lispector. Quando se fala em pandemia a conversa se torna universal, assim como todas as pessoas passam a pertencer a uma grei única e, cada uma no seu isolacionismo, vai buscar novos caminhos. É como se fosse uma chamada de consciência comunitária. O procedimento inicial é igual para todos: as pessoas são retiradas da sua convivência normal e isoladas para, na sequência, iniciarem a hibernação em busca de seu espírito crítico. A resposta comunitária, que conta com adesão da maioria, é no sentido de que a vida precisava de alguns reparos. Não que fosse inadequada, mas a desagregação de cada um, e aqui sem qualquer culpa do coronavírus já que anterior a ele, foi aumentando e distanciando cada vez mais as pessoas. E agora, por incrível que pareça, o isolamento pede a participação comunitária. Acabou a brincadeira de esconde-esconde. Agora é mãos dadas, olhos nos olhos, cara a cara. Intimidade extremada. Machado de Assis, em seu romance Quincas Borba, recomendou mais. “ A expressão: conversar com os seus botões, parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções. ”
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Aí é que me localizo e olho para fora e vejo o mundo paralisado, como se uma engrenagem houvesse se soltado. Olho para dentro e dou de cara com um mundo estranho e conturbado, calibrado por sentimentos detonados por mensagens sem parâmetros por parte da mídia e do meu estreito mundo de comunicação. Ninguém entende nada. Verdadeira Torre de Babel. E nesta louca incursão, quem sabe, encontro a minha verdade e posso reconstruir meu interior, colocar cada coisa em seu lugar e tudo em seu tempo. Diante desta quase paranoica sensação de viver sem saber como viver uma vida enviesada e sem soluções aparentes, eu me instalo definitivamente como posseiro do meu interior e passo a quixotear comigo mesmo. É como um morrer fora do tempo e sair flutuando nas pesadas nuvens que cobrem o nebuloso céu. A única certeza é que a humanidade foi aturdida pelas tocaias e ciladas de um insipiente e indesejado vírus. Perdido nos porões das minhas memórias, nem sei por onde começar a faxina, mas tenho consciência que nada pode ser jogado por baixo do tapete. É hora de devassar meu interior, vasculhar todos os pontos, retirar o pó que grassa sobre os pesados móveis, onde estão guardadas as lembranças, as desejadas e as indesejadas, e pinçar, no mais fundo, os invasores que lá habitam sem autorização, num verdadeiro processo de despejo coletivo. Como se fosse uma lavagem da alma, na mesma intenção que move as baianas nas escadarias. Assim consigo expurgar os fantasmas que, como ébrios, deambulam com insistência pelas minhas estreitas veredas, criando um verdadeiro labirinto de dúvidas e incertezas. Vou, também, ajustar os ponteiros do meu emocional e racional. Estabelecer regras fixas para dividir o terreno de cada um, sem invasão. Apesar de os dois habitarem o mesmo espaço, terão tarefas distintas. O emocional passará por uma reforma integral cujos cacos disformes serão encaminhados para restauração. Uma nova estrutura será edificada tendo como suporte uma sensibilidade que floresça sem provocação artificial, como foi direcionada pelo mundo digitalizado. O racional continuará sua tarefa, menos ridículo e mais sábio, calibrado pela precisão do pensamento ponderado e inteligente. Afinal, sou um homem emprestado para o mundo, mas me pertenço.
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Feita a limpeza necessária nos desvãos de minhas memórias, vou emergir dos escombros, explorar meus sonhos, não como castelos utópicos que o passado sepultou, mas sim como promessas fertilizadas pela esperança, ajustar minhas balizas corretamente apontadas para a verdadeira mudança. O tempo que passou serviu de aprendizado e daqui para a frente cabe a mim fazer as podas de algumas distorções, sem transformar o mundo num clipe triste de uma crônica do coronavírus. Apesar de constatar que os anos correram rapidamente, tenho tempo suficiente para procurar ver as boas coisas que a vida oferece com mais vagar. Vou colocar no meu espírito a tonalidade própria da minha mudança, temperando-a com moderação, harmonia e amor neste novo normal que se avizinha. São estas as propostas que ofereço para a humanidade. Apesar de calcadas num lampejo epifânico, guardam a verdadeira mensagem de que a vida é bela e merece ser exaurida intensamente. Basta ter esperança e acreditar.
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20/05/2020 3:00 da madrugada Ivan Reis
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Sigo sem dormir, várias fitas! Sei que o medo não é o melhor lugar para guardar as horas! Mas agora vivemos a vida um tanto pior, um vírus se instaurou entre nós. Minha mãe me dê a sua bênção! Nas ruas carros não passam mais, o vazio instalado, navio negreiro de rodas levou no porão, angústia, revolta e dor! A cada 23 minutos uma vida negra se esvai e mais um número pra compor: Jovem negro morre nesta nossa Pandemia secular do racismo e estrutural, institucional: estava Pedro em sua casa #fiquememcasa: Polícia invadiu e tal, setenta e cinco marcas de balas nas paredes, uma mentira deles contra dez verdades nossa, minha nossa! O genocídio nesta Necropolítica é a arma deles: relacionam Preto Pobre e morte como coisa normal a caminho do genocídio. Nas esquinas paranoia delirante de um chefe de estado que ri da sua dor, se comporta contra o amor: E daí? Muitas vidas vão subir! Para um povo sempre assaltado. Quem mata mais negro é exaltado. Aqui na periferia deste mundo louco, eu você, aquele e aquela, mais uma Mano e mais um pouco. Eu que deliro com sonho de ver todo mundo bem: Pessoas voltando a sorrir, crianças no parque, na paz e ao fundo um som de Jorge Bem... Seria perfeito! Mas a vida tá cruel, uma nova Pandemia nos pegou de jeito, as pessoas ditas "de bem" vem dizer que tudo isso de quarentena a e squerda inventou... Seis da manhã vejo o dia lá a clarear, sob a luz que vem em meus olhos de minha janela. Lá fora, no estio o sol se animando. “O choro pode durar uma noite, mas há esperança ao amanhecer”... Eu quero envelhecer ver meus netos e bisnetos ao alvorecer. O sol há de brilhar e tudo isso irá passar. Meu pai Oxalá nos guarde em sua luz, em Gandhi ou em Jesus,... Buda, Maomé, Maria Padilha, ou Nossa Senhora e Alá Ogum ou São Jorge guerreiro, Omulu, atotô nos salve! abençoe nossos caminhos... Nos guarde! Mas ninguém quer láureas, ou nenhum emblema, meu diário da quarentena.
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Diรกrio da Quarentena
Regina Garbellini
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O mundo pegando fogo, fazendo a roda girar. Eu tomo um café. No meio desta pandemia a miséria e a injustiça se escancaram. Faço algumas postagens, respondo alguns e-mails. No meio do medo brota o medo que mobiliza. O trabalho acelera, home-office tem vantagens, faço mais um café. No meio do lodo brota a raiva que leva às ruas. Olho o sol, tiro minha filha dos estudos, damos uma volta no quintal. No meio de tudo a paz de saber que a roda gira. A comida, sim, a comida... peixe ao forno, rapidinho. Que o mundo será, sim, sempre o mesmo. A louça, a roupa no varal, a casa por limpar, tudo clama. Avançando, retrocedendo. Lutando. Dia desses vou dar aquela arrumada no meu guarda-roupa. Eternos ciclos em espirais. Supermercado, caramba, esqueci, hoje tem que ir... As pessoas abrindo espaços a fórceps. Máscaras, luvas, distâncias. Porque não há carinho na carestia. Limpar tudo, lavar, lavar...guardar, arrumar... Não há delicadeza no sofrimento. O trabalho atrasou! Cansa tanto ficar sentado, na frente desse computador! Não há empatia na desigualdade. Preciso assinar esta petição. Esta causa é importante. Quarentena é para poucos. Nossa, quanta coisa acontecendo... Dia acabando... A maioria tem que lutar. Uma live? Música pra combinar com o fim do dia. Muito e sempre. Sempre e muita.
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Eterno Eterno VĂĄldir CĂŠsar
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Não há desejo mais ultrapassado que o da eternidade Nem mesmo as muletas da paixão conseguem segurá-lo A razão cava rugas em seu rosto a maquiagem não resolve Você contrata ilusionistas com bisturis e eles não têm mais o que e s t i c a r na sua pele (que esconda as marcas da razão no semblante da beleza) Observo tudo da carroça que cavalga à reprise do futuro puxada por meus dois cavalos rivais Ora trilhando a esperança que pesa nas costas do senso comum que curva as colunas que as submete até que os degraus da eternidade desçam do céu como recompensa Ora questionando a necessidade de outra vida que amenize a dor dos amores não correspondidos dos afetos derramados sobre o sonho no qual minhas lágrimas pingam Carvalgo até as muralhas neon da cidade Até que tu atravessas meu caminho teus passos e o giro anti-horário da tua bolsa rejuvenescem a noite
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e meus cavalos discutem diante da tua beleza e minha carroça derrapa nas lombadas do medo O medo do fim Suas dúvidas cobrindo os espelhos os vidros voltados pra terra Será que fugirías comigo? Será que tua beleza em meus braços causaria guerra? Ou será que costurarías promessas durante os dias Descosturadas às noites Aguardando o meu retorno? Será que eu viveria pra vê-la de novo? Será que me abraçaria d e v a g a r pra que eu tivesse tempo de te apaixonar? Será que é o caso de rezar pra tê-la será que seria egoísta apelando à fé que guerras s e m e i a Minha carroça é bombardeada por interrogações no meio do fogo cruzado das opiniões dos cavalos Mas eu desisto Lutei trinta e três anos contra este atraso de futuro contra a soberba da razão e da crença Mas teu gingado grego cruzou meu caminho e eu caí de joelhos:
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- prometo, deus, vou pra guerra prometo nada mais escrever desistir de ser poeta se tiver um filho com ela E haveria outra forma mais racional de prolongar tua beleza? Mas tu não querias filhos nem viver pra sempre nem ser pivô de uma guerra nem esperar que alguém retornasse de uma Tu eras tua protagonista Tu eras um monólogo E jogou * * * * * * * * teu corpo do alto de um prédio tua eternidade tua obra de arte em queda livre E enquanto tu caías Percebi que a eternidade era a saudade em harmonia com o inevitável A razão que leu demais e adormeceu no colo da paixão e ambas tiveram o mesmo sonho: uma lembrança que convencia pela palavra que não dependia de prova E que pra imortalizar tua beleza na minha vida eu precisaria versificar meu amor resistente à morte fingido à primeira vista Então eu dei um nó nos pescoços dos cavalos que puxavam minha carroça E enquanto eu despencava nasceu este poema.
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Pequenos Poemas
para Atrevessar o Fim do Mundo
Mariana Reis
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doença na etimologia pandemia: todo o povo. - eu (...) nós paradoxo da cura.
solidão as horas que correm no tropeço dos dias escancaram nossa finitude de existir no vazio das multidões de nós. solitários, somos laços o infinito.
cegos tenho me comunicado pelos olhos desejo que falem. quero entender como é viver sem o sorriso que ofusca minha visão. - enxergar é um privilégio.
futuro e quando houver a cura o que será curado? a doença do mundo ou a indiferença do ser humano imunizado?
prólogo
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enquanto escrevo mulheres morrem. para o vírus homem não há vacina. mas há esperança palavra feminina . mulheres estão salvando mulheres dessas pandemias. - não seremos mais silenciadas!
Lugar da
Quarentena
ElĂsio Faria
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Minha casa, meu recanto! Uma Atmosfera, adorno pessoal. No Cotidiano, na pressa, Uma Vez, outras vezes, Tão Somente um olhar: Tudo Lá vivo - em seu lugar.
Vasos,enfeites, samambaias, Quadros,discos, aparadores, Presentes Nos ritos domiciliares. Como Hóspede acanhado, Passo Por eles, correndo, Vou Buscar a vida lá fora!
Para Fechar o verão 2020 As Águas de março então, Decretaram:voltar a casa! Tempo Estranho, pandêmico, Recolhimento:ligar o sinal, Salvar,suavizar, salvar-se!
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Nova Arquitetura doméstica, Novas Questões de ordem: Que Dia é hoje? O que fazer? Novo Rito de passagem: O'Que faço de meus dias? Rever,reinventar, quarentenar.
Alojar-se:refúgio doméstico, Olho A vida em câmera lenta: Acapa surrada do velho vinil, Uma Dedicatória descorada: Revisão saudade de escritas Do Que foi dezembro de 1980.
Meu lendário caderno de receitas, Guardião De escritas e recortes Iguarias Históricas: acepipe, petiscos, Numa Caixa dormia, desbotando-se, Imaginei-o de soslaio, me provocar: - Sou o seu pão, cuscuz, pudim, manjar!
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Dos Discos, aos livros novo mergulho! Respiração Em cumplicidade, Partilha De segredos enredados, Reencontros:narrador e eu-poético! Anestésicos,os livros me transportaram, As Leituras refinaram minha alma de sentidos!
Na Tristeza borralhenta das ruas, das macas, Confinado,em casa em tempos grises, Bordeia vida em doce companhia! Revicada canto e encantos meus. Tudo Cá vive: bolo de fubá, Fio das Missangas, Para sempre Alice, Elis, Aldir, Moraes!
Rio Preto, outono de 2020
20.000 mortes pelo Corona Vírus - 19 de maio
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Lembranças de um Futuro que NinguÊm Viu Danilo Ferraz
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Aconteceu no início da década de 90. Quem me contou jura de pés juntos que não se trata de uma piada, mas de um legítimo “causo”, daqueles que se passa de geração a geração em meio a risadas regadas a comes e bebes no entorno de uma fogueira – ou de uma churrasqueira, no caso do Brasil: Um homem liga para o serviço de atendimento ao consumidor de uma empresa de computadores e reclama que o porta-copo de seu PC quebrou. A pessoa do outro lado da linha parece não entender. “Porta-copo?”, ela repete, intrigada. A falta de compreensão inicial não a impede de entender o dilema do cliente insatisfeito. Certa de que há alguma parte da história carente de aprimoramento de detalhes, ela insiste: “Você quer dizer que comprou um porta-copo em nossa loja, é isso?” “Não, ele veio com o computador que comprei. Faz parte do equipamento.” “Mas... nossos computadores não têm porta-copo.” “Você não sabe de nada, querida. Tem sim. Inclusive, estou olhando agora mesmo pra ele”, responde o homem, já sem muita paciência. “É só apertar o botãozinho que o porta-copo sai na hora, e o meu está quebrado!” Só depois é que se entendeu que a gavetinha de CD do computador do homem não resistira ao peso da xícara de porcelana com café pingado que ele apoiava sobre a peça toda manhã. É fácil culpar o personagem da piada – perdão, causo – pela sua falta de conhecimento básico de tecnologia, mas não estamos longe de protagonizar cenas similares. Se no passado havia um espaço de algumas décadas para disseminar a história por entre os diferentes círculos de amigos (os colegas da firma, os parentes, a família do cônjuge, etc.), hoje temos apenas poucas semanas até que a anedota perca sua força – seja por já ter virado um meme compartilhado à exaustão ou por nos fazer lembrar de nossa própria ignorância: enquanto você está rindo do tiozão obsoleto, a obsolescência já está rindo de você. Nada deixou esse fato tão cristalino para mim quanto a quarentena.
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De repente, as reuniões ganharam nomes diferentes – hangout – e onomatopeias que só se viam na antiga série do Batman, como zoom, ganharam novo significado, ao mesmo tempo que reunir amigos virtualmente para conferir uma performance de Paul McCartney cantando “Hey Jude” da sala de sua casa se tornou normal. Quem adiava a intimidade com internet se viu, do dia pra noite, em um complicado ménage entre smartphones e a vida real. É claro que nada disso é necessariamente novidade, mas as lacunas que defasavam as estruturas emergentes se abriram como abismos sob os pés de todos. A tecnologia, que vem cumprindo papel fundamental na manutenção da sanidade coletiva durante o isolamento social, tem evoluído de forma mais rápido do que prevíamos – ainda que as previsões para 2020 fossem repletas de aviões supersônicos, carros voadores e metrópoles com calçadas rolantes. Ainda não chegamos lá. Uma entrevista recente do Elon Musk, inclusive, me decepcionou: ele disse que as implicações adaptativas de ordem urbana, financeira e tecnológica impedem a produção e utilização de carros voadores por enquanto. Tudo bem, ainda temos Twitter e aplicativos de delivery (ei, dar palpite na vida de presidentes estrangeiros e ter uma comida que não seja pizza entregue em casa é, sim, uma marca característica da civilização moderna; pergunte à sua vó). Embora ainda estejamos longe dos carros voadores, a ideia sobre aquele futuro distópico dos filmes nunca esteve tão fora das telas. A um olhar apressado e desatento, ficamos com a parte ruim da barganha: escassez, ansiedade, armazenamento de alimentos, lockdown e ruas desertas são apenas alguns dos cenários aos quais nos tornamos atores involuntários. Mas a verdade é que, além de porta-copos improvisados e aplicativos essenciais, a tecnologia nos deu uma certa capacidade de enxergar o futuro. E não foram poucos que o fizeram. Bill Gates alertou em 2015, o Instituto de Estudos Futuros de Copenhague avisou em 2016 e a Universidade Johns Hopkins simulou um cenário similar em novembro de 2019.
Para deixar a coisa ainda mais assustadora, em um documento escrito e publicado em 2004 para descrever o mundo em 2020, o Conselho Nacional de Inteligência (NIC) dos EUA descreveu: “Alguns especialistas acreditam que é apenas uma questão de tempo até que uma nova pandemia apareça, como o vírus da gripe de 1918 a 1919, que matou cerca de 20 milhões em todo o mundo, e poderá colocar uma interrupção nas viagens e no comércio global durante um período prolongado, levando os governos a gastar enormes recursos em setores de saúde sobrecarregados.” O período tem trazido à tona diversos pedidos de previsões futuras dessa espécie. Eu me atrevi a algumas. Seremos expostos a alguns dilemas éticos importantes como no caso da vigilância biométrica pelos governos, ou da nossa privacidade versus nossa segurança, mas essa discussão é velha. Agora, nos cabe aceitar que somos a geração que encabeça essa luta e agradecer por termos a oportunidade, mais uma vez, de colocarmos em prática um futuro que promova novas realidades. Entre futuristas, já se fala de monitoramento térmico por câmeras para identificar febres e focos de contaminação e sistemas de identificação ultraeficiente de novas doenças epidemiológicas através de inteligência artificial – uma empresa canadense deste segmento, inclusive, alertou sobre os casos atípicos da nova doença em Wuhan 10 dias antes da OMS fazer seu primeiro comunicado sobre o assunto. Ah, e as entregas de comida muito provavelmente não terão motoristas: drones deixarão o alimento na porta da sua casa. Já posso imaginar os slogans. Eu poderia continuar desfiando aqui outras muitas glórias não louvadas do revolucionário futuro próximo – distanciamento por geolocalização, interconectividade de dados atualizados para enfrentamento assertivo – mas não vou fazê-lo. Não há espaço para tanto e, de toda forma, se nem ao Bill Gates ouviram, que dirá a mim. Apenas não tente usar o porta CD como guarda-copos. Isso eu garanto que não funciona. Mas que é revolucionário, é.
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