ENSEADA
DA BALEIA
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Resistências Confluentes É da natureza humana aventurar-se por desvelar o desconhecido. Ir ao encontro do outro para reafirmar quem somos pelas similaridades, diferenças, e alçar novos dilemas, são combustíveis aparentemente voláteis, que imprimem memórias e abastecem imaginários, nutrindo repertórios de vida. Distintas vozes ecoam e são acolhidas no programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, propiciando vivências que abarcam as trocas simbólicas, a fruição cultural e das paisagens tanto geográficas quanto humanas. O exercício democrático do turismo envolve escolhas conscientes e um permanente compromisso com a formação do público para a corresponsabilidade da experiência. Nesse contexto, insere-se o projeto Itinerários de Resistência, que apresenta parte da rede de turismo
de base comunitária paulista realizada por grupos com identidades diversificadas como as aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, associações e coletivos urbanos. Esses movimentos voltados para a coletividade convergem para o desenvolvimento local, bem como para o fortalecimento de lutas e objetivos comuns. Ao difundir saberes e aspectos socioculturais de tais territórios, apresentando uma das faces do turismo social em ambiente digital, o Sesc amplia os meios de acesso a essa pluralidade, acendendo um farol deflagrador de suas potencialidades. Que as narrativas e o conteúdo imagético de tais iniciativas sejam portadores de estímulos à reflexão e construção de uma sociedade mais justa e equânime, com encantamentos a serem desvelados, vividos e compartilhados. Sesc São Paulo
Com seu território original tragado pouco a pouco pela erosão, a comunidade caiçara teve de se transferir inteira para outro ponto da Ilha do Cardoso. E encontrou no turismo uma estratégia de luta por autonomia e pelo direito ao seu lugar e a seus modos de vida
“... Ajudando porque é tudo família, ajudando a comunidade. Espiritualmente, de coração, acho que o mundo está precisando mais disso, né? De as pessoas se ajudarem, o ser humano está esquecendo do amor pelo próximo” Adriano Tigrão, pescador artesanal, no filme Ajude a Nova Enseada
“Todo o povo que trabalha, não se cansa porque tudo é para o bem comum, então quando a gente partilha tudo isso, fica muito fácil” Jorge Cardoso, morador, no filme Ajude a Nova Enseada
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Enseada da Baleia
Enseada da Baleia. Comunidade à direita. Ilha do Cardoso, SP
Os últimos dias de agosto de 2018 foram dias cinzas no litoral sul paulista, carregados de nuvens. No mar, a ressaca. Na divisa com o Paraná, alguns moradores presenciaram o desfecho de um processo antigo, de mais de seis décadas: a Ilha do Cardoso se partiu em duas.
Dito de forma mais precisa, a ilha perdeu o pedaço mais ao sul de sua comprida restinga espichada ao longo da borda continental. Completando um processo erosivo que vinha corroendo esse trecho desde os anos de 1950, naquela semana o mar finalmente derreteu uma estreita faixa de terra e abriu definitivamente uma passagem direta para o Estuário de Ararapira.
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André Noffs
Aproximadamente um terço da restinga, algo em torno de 5 quilômetros, ficou isolado no extremo sul do litoral paulista. Junto, os 30 e tantos moradores da Enseada da Baleia, que, naquele momento, viviam ao mesmo tempo um fim e um começo. Com seu território original tragado pouco a pouco pelas águas, a comunidade de pescadores artesanais estava se trans-
ferindo inteira, pessoas, casas, espaços comunitários, atividades econômicas, modos de vida, saberes, laços e lembranças, para um ponto mais ao norte. A 5 quilômetros da antiga localização, nascia, entre os anos de 2017 e 2018, a Nova Enseada da Baleia.
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Malaquias e Erci
Na Enseada original, as árvores tinham nomes de gente. Eram plantadas e batizadas por Erci, a Vó, a cada filho que nascia. A localidade era habitada por pescadores desde meados do século 19. Ela chegou ali criança. Pela mesma época chegou também Antônio Cardoso, que mais para a frente todo mundo na Ilha do Cardoso e em Cananéia viria a conhecer como Malaquias.
“Existia o campo de futebol, que era uma diversão e agora já está todo no mar” Malaquias Cardoso, no filme Vazantes.
Casados, Malaquias e Erci assumiram, na década de 1970, a secagem artesanal de peixes. Formaram a sua grande família. Nos anos 2000, a erosão acelerada se tornou uma preocupação urgente. Uma produtora de cinema de São Paulo lançou em 2010 o documentário Vazantes, que mostra o avanço das águas sobre a terra. No filme, o próprio Malaquias comenta: “Existia o campo de futebol, que era uma diversão e agora já está todo no mar”. A história da Enseada da Baleia é uma história de resistência familiar a sucessivas tentativas de expulsão do território e de criminalização ou destruição do modo de vida caiçara. Geração após geração, a comunidade resistiu à proibição de práticas tradicionais como a roça, imposta pela criação do Parque Estadual da Ilha do Cardoso. Enfrentou a legislação da pesca, que não reconhece a existência de pesca-
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dores artesanais. Lutou contra a especulação imobiliária. Até propostas de irem morar na cidade, em conjuntos habitacionais populares, os moradores ouviram do poder público. “Vai chegar lá [na cidade] e morrer, porque tá acostumado num paraíso desse aqui, vai chegar lá e sofrer, não tem um lugar pra você sair, um lugar de embarcação, para ver uma praia”, disse Malaquias Cardoso no documentário Vazantes.
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“Vai chegar lá [na cidade] e morrer, porque tá acostumado num paraíso desse aqui, vai chegar lá e sofrer, não tem um lugar pra você sair, um lugar de embarcação, para ver uma praia”
Acervo AMEB (Associação de Moradores da Enseada da Baleia)
Malaquias Cardoso, no filme Vazantes.
Pesca Tradicional Manjuba Cananeia, SP
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Malaquias não viveu a decisão de mudar a comunidade toda para outra parte da restinga: morreu em 2010. Sem ele, Erci, que habitualmente pouco se envolvia na mobilização política, se colocou no lugar de liderança. Então, com o incentivo da Vó, suas descendentes criaram a associação Mulheres Artesãs da Enseada da Baleia para impulsionar o trabalho de artesanato que já faziam a partir das redes de pesca e reorganizar a produção de peixe seco. Elas tomaram para si também a tarefa de organizar o turismo. Essa atividade existia na Enseada desde a década de 1980, e ganhou mais importân-
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cia como complementação de renda na última década. Hoje, também é fonte de empoderamento e de autonomia das mulheres. Em abril deste ano de 2021, a comunidade lançou o seu Protocolo de Consulta, um documento que reivindica que os moradores sejam ouvidos previamente e que tenham suas vozes consideradas em quaisquer processos que causem ainda mais impactos em seus modos de vida. O protocolo é uma resposta à ameaça mais recente, a aprovação da lei que permite conceder à iniciativa privada a exploração do turismo na Ilha do Cardoso.
Mulheres Artesãs da Enseada da Baleia Cananeia, SP
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Todo mundo ganha O turismo na Enseada da Baleia é uma troca em que a comunidade ganha e os visitantes ganham também. “A gente mantém o contato com o mundo exterior, e os turistas entendem de fato o nosso modo de vida caiçara”, explica a moradora Tatiana Cardoso. Graduada em Ciências Sociais e educadora popular, ela afirma que o turismo de base comunitária é uma estratégia fundamental na luta pelo direito de permanecer em seu território. Ao se aproximarem da história e da cultura, os visitantes entendem o valor de sua conservação e se aliam à causa. Segundo Joyce Cardoso, integrante do grupo de mulheres que cuida da loja e de assuntos administrativos, a energia única e a recepção calorosa são
“A gente mantém o contato com o mundo exterior, e os turistas entendem de fato o nosso modo de vida caiçara”
Processamento de tainhas Ilha do Cardoso, SP
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Tatiana Cardoso
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o que transformam essa visita em uma experiência ímpar. “Quem vem aqui acaba se envolvendo, criando vínculo, as pessoas ficam com a gente nas nossas casas, usam a nossa cozinha. Uma relação de amizade.” O modelo local de turismo é uma elaboração comunitária, de acordo com seus interesses e limites. “O nosso foco é fortalecer a nossa cultura”, conta Tatiana. “Mapeamos as atividades tradicionais, os saberes, criamos oficinas a partir disso.” Também criaram cardápios que destacam a culinária caiçara, como o azul marinho, cozido de peixe seco com banana verde e batata doce; e a porção de iriko, uma manjubinha frita. Chegaram a um arranjo em que os homens são responsáveis pelas oficinas culturais, e as mulheres, por hospedagem, alimentação, manutenção e oficinas de artesanato. Os homens dividem entre si a renda do trabalho que lhes cabe, e as mulheres fazem o mesmo com a sua parte, entre elas.
Pesca tradicional de tainha com cerco fixo Ilha do Cardoso, SP
“Quem vem aqui acaba se envolvendo, criando vínculo, as pessoas ficam com a gente nas nossas casas, usam a nossa cozinha. Uma relação de amizade.” Joyce Cardoso
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Madeiras para a construção da Nova Enseada Ilha do Cardoso, SP
“A Enseada da Baleia conseguiu criar o que talvez seja o modelo mais bacana de turismo, com participação direta da comunidade, sem impacto negativo na natureza e na cultura local”, diz o gestor cultural e mestre em ecologia Fernando Oliveira. Criador da agência Matimpererê, focada no que ele chama de turismo consciente, Fernando participou de um dos primeiros experimentos de turismo pedagógico na Enseada. Quem define o calendário de visitação é a comunidade. Há outras tarefas de reprodução da vida local que não podem ser abandonadas. Além do beneficiamento dos peixes, o cultivo de alimentos como mandioca, batata, milho, abóbora, feijão e outros, a temporada da pesca da tainha e a produção do artesanato compõem um calendário anual que organiza a disponibilidade, ou não, para o turismo. A estratégia se mostrou particularmente acertada na pandemia. Sem poder receber forasteiros, os
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moradores da Enseada centraram esforços na produção de peixe seco. “Foram cinco toneladas e meia destinadas a cestas de alimentação”, diz Tatiana Cardoso. “Movimentamos 100 mil reais, garantimos renda a cerca de 40 pescadores artesanais, e reforçamos o entendimento de que o turismo é ótimo, mas a gente precisa saber viver do território, do que temos ou podemos produzir aqui.” Em 2016, diante da erosão acelerada, começaram as reivindicações da Enseada da Baleia ao poder público para realocar a comunidade em outro ponto da própria Ilha do Cardoso. Em 2017 a autorização foi dada, mas sem nenhuma destinação de recursos. A nova vila foi construída em mutirão, com ajuda de vaquinhas, campanhas e eventos públicos para arrecadação, shows musicais mobilizados por turistas amigos. Toda a madeira necessária para as novas edificações foi obtida em doação de um lote apreendido na Amazônia em situação irregular. Foram ne-
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“... garantimos renda a cerca de 40 pescadores artesanais, e reforçamos o entendimento de que o turismo é ótimo, mas a gente precisa saber viver do território, do que temos ou podemos produzir aqui.” Tatiana Cardoso
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Construção da Nova Enseada Ilha do Cardoso, SP
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Ao fundo, a casa da Vó Erci, primeira casa da Nova Enseada. Ilha do Cardoso, SP
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cessários nove fins de semana para transportar as toras, de balsa, do Guarujá até a Ilha do Cardoso. A Nova Enseada da Baleia tem 11 casas, nas quais vivem 9 mulheres, 11 homens e o restante de crianças, num total de 32 pessoas. Além delas, são 6 espaços coletivos. A igreja de São Sebastião, porque os moradores se declaram católicos. A estufa de secagem e defumação de pescados. O espaço de produção de artesanato. O atracadouro de barcos, localmente chamado de trapiche. O centro comunitário em construção. E a casa da Vó. A casa da Vó foi a primeira estrutura a ser erguida em mutirão na Nova Enseada da Baleia. Ela foi projetada para ser igual à residência de Erci na antiga vila. Adicionalmente, ganhou seis quartos independentes para acomodar turistas com mais conforto e privacidade. A Vó não chegou a se mudar para sua nova casa. Depois de orientar, de incentivar a comunidade a permanecer unida, ela morreu em abril de 2017.
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Pôr do sol na Ilha Ilha do Cardoso, SP
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Quando a ilha se rompeu
O berbigão é um molusco que vive em bancos de areia. Valorizado na gastronomia, aparece em cardápios de restaurantes com seu outro nome: vôngole. Um prato individual de espaguete com vôngole, na cidade de São Paulo, chega a custar cem reais. Na Enseada da Baleia, o berbigão coletado ali por perto alimenta a própria comunidade em momentos de reunião e descanso. “Não vendemos, é a nossa comida de domingo”, conta Tatiana Cardoso. Também é o ingrediente principal das oficinas de culinária nas visitas de turismo pedagógico. Os alunos aprendem a desmariscar — ou seja, descascar — e preparar o molusco. Quando a ilha se rompeu, o berbigão foi um dos indícios de alteração no meio ambiente. “É um molusco que vive numa salinidade específica, e quando as águas se misturaram, nós vimos muitos mariscos mortos, as cascas soltas”, conta Tatiana. Com menos de três anos desde a abertura da nova barra, os es-
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tudos sobre os impactos ambientais estão apenas começando. A barra está hoje com cerca de 2 quilômetros de extensão. A Enseada da Baleia antiga se diluiu completamente no mar: já não existem mais casas, nenhuma árvore com nomes de familiares. Lidar com a tristeza é parte do processo. “O impacto emocional de sair daquele território, ver desaparecerem as lembranças das pessoas que fizeram parte da nossa vida e não estão mais lá, ter força para reconstruir tudo em um novo lugar, é muito difícil”, diz Tatiana Cardoso. “A gente só conseguiu passar por tudo isso porque a gente se uniu muito, como a Vó disse que era para a gente fazer, e comemorou cada vitória.” Um dia, durante um dos mutirões de construção da nova vila, alguém encontrou uma laranja. “Ela era bem amarelinha”, lembra Joyce Cardoso. “A gente descascou a laranja e dividiu com todas as pessoas. Todo mundo comeu um pedaço do primeiro fruto da Nova Enseada.”
Nova Enseada Ilha do Cardoso, SP
“O impacto emocional de sair daquele território, ver desaparecerem as lembranças das pessoas que fizeram parte da nossa vida e não estão mais lá, ter força para reconstruir tudo em um novo lugar, é muito difícil” Tatiana Cardoso
Acervo AMEB (Associação de Moradores da Enseada da Baleia)
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Paisagem Ilha do Cardoso, SP
Para assistir ao filme Vazantes, clique aqui
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Quilombo do Ivaporunduva
ELDORADO Quilombo Sapatu
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CANANÉIA
PARANÁ
Quilombo Mandira
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SP 33 0
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JUNDIAÍ SOROCABA
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SÃO PAULO
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Oceano Atlântico
Comunidades retratadas Águas
ILHA DO CARDOSO
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Áreas de Proteção Ambiental Municípios em destaque Rodovias
ENSEADA DA BALEIA @ajudeanovaenseada @enseadadabaleia Informações sobre agendamento de visitas e roteiros disponíveis em — tel: (13) 99643-2326, com Tatiana Cardoso