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Resistências Confluentes É da natureza humana aventurar-se por desvelar o desconhecido. Ir ao encontro do outro para reafirmar quem somos pelas similaridades, diferenças, e alçar novos dilemas, são combustíveis aparentemente voláteis, que imprimem memórias e abastecem imaginários, nutrindo repertórios de vida. Distintas vozes ecoam e são acolhidas no programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, propiciando vivências que abarcam as trocas simbólicas, a fruição cultural e das paisagens tanto geográficas quanto humanas. O exercício democrático do turismo envolve escolhas conscientes e um permanente compromisso com a formação do público para a corresponsabilidade da experiência. Nesse contexto, insere-se o projeto Itinerários de Resistência, que apresenta parte da rede de turismo
de base comunitária paulista realizada por grupos com identidades diversificadas como as aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, associações e coletivos urbanos. Esses movimentos voltados para a coletividade convergem para o desenvolvimento local, bem como para o fortalecimento de lutas e objetivos comuns. Ao difundir saberes e aspectos socioculturais de tais territórios, apresentando uma das faces do turismo social em ambiente digital, o Sesc amplia os meios de acesso a essa pluralidade, acendendo um farol deflagrador de suas potencialidades. Que as narrativas e o conteúdo imagético de tais iniciativas sejam portadores de estímulos à reflexão e construção de uma sociedade mais justa e equânime, com encantamentos a serem desvelados, vividos e compartilhados. Sesc São Paulo
Uma ampla rede de territórios remanescentes de quilombos se espalha pelo Vale do Ribeira, tendo no Ivaporunduva uma referência de resistência, conservação do território e turismo voltado ao bemestar comunitário
“O Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira abarca, além das tarefas agrícolas, um conjunto de saberes e práticas culturais que se consolidaram fora da lógica de propriedade privada, tendo em vista o fortalecimento de uma rede de solidariedade comunitária em espaços agrícolas de uso coletivo” Trecho do parecer do Iphan que recomenda a inscrição do Sistema Agrícola Tradicional Das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira/SP no Livro de Registro dos Saberes, como Patrimônio Cultural do Brasil
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Quilombo Ivaporunduva Lua crescente é bom momento para o corte da vegetação que, por ter mais água acumulada, está mais mole. Já o plantio do feijão e do milho nesse momento do ciclo lunar dá errado: o caule é doce e a lesma vem comer. Feijão e milho que crescem saudáveis são plantados na lua minguante, porque o caule fica amargo e as pragas, distantes. É possível que esse conhecimento seja abordado primeiro à mesa, durante o café da manhã na pousada do Quilombo Ivaporunduva, enquanto os visitantes saboreiam o milho que deu certo, junto com outros alimentos cultivados no próprio quilombo. Mais tarde, as informações serão reforçadas, com mais detalhes, já na roça, durante uma das oficinas oferecidas aos turistas neste território tradicional. O Ivaporunduva fica no Vale do Ribeira, no extremo sul paulista, que
integra o maior trecho contínuo de Mata Atlântica preservada que restou no Brasil. Nessa região, desde mais de 300 anos atrás, pessoas negras foram escravizadas para trabalhar principalmente na mineração de ouro de aluvião. Daí o nome do município onde fica o quilombo, Eldorado. Essa situação deu origem a mais de 80 comunidades remanescentes de quilombos, segundo contagens de organizações como Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo) e EAACONE (Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras — Vale do Ribeira). Os saberes da agricultura tradicional quilombola do Vale do Ribeira são únicos, efetivos e transmitidos entre gerações. São, por isso, reconhecidos pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como Patrimônio Cultural do país. Esse reconhecimento, resultado da luta quilombola e oficializado
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em setembro de 2018, desmonta preconceitos e valoriza as técnicas ancestrais. Os quilombolas do Vale do Ribeira cultivam alimentos em áreas florestais. Aplicam a técnica da coivara, com pequenos períodos de cultivo seguidos de longos períodos de descanso e recuperação para o solo. Diferenciam e nomeiam estágios de crescimento da mata, como capoeira, capoeirão e tiguera. Fazem
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queimadas periódicas, controladas, e também orientadas por conhecimentos dos antigos, segundo os quais deve-se queimar na lua minguante, porque o mato demora mais para renascer e, desta forma, dá tempo de plantar. No caso do Ivaporunduva, produzem banana orgânica, facilitando a conservação dos mais de 70 rios, riachinhos e nascentes que brotam ou cruzam o território do quilombo. Felipe Leal / ISA
Antes da construção da ponte, o barco fazia o acesso da estrada para a comunidade, pelo rio Ribeira de Iguape Eldorado, SP
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Referências em várias frentes
Cláudio Tavares / ISA
Banana orgânica, cultivada na roça da comunidade. Eldorado, SP
Era início da tarde de um sábado de janeiro quando a agricultora Benedita Ferreira da Silva e o líder comunitário Benedito Alves da Silva receberam a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Foi uma aplicação cerimonial, que celebrava ali, no Ivaporunduva, a inclusão das comunidades quilombolas do estado de São Paulo na lista de populações prioritárias para a vacinação.
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Anna Maria Andrade/ISA
Para o bom andamento desta história, que fique logo esclarecido: Benedito Alves é o Ditão, referência importantíssima do movimento quilombola no Brasil e, nos anos recentes, em turismo de base comunitária no Vale do Ribeira. Ditão vacinado poucos dias depois de iniciado o processo de imunização no país, e poucos dias depois da enfermeira Mônica Calazans, primeira pessoa a receber a vacina, representou uma importantíssima vitória para a luta dos quilombos brasileiros. Que não resolveu a questão — muito precisou e ainda precisa ser feito — mas teve um valor simbólico. Naquele sábado, Ditão e alguns companheiros aproveitaram para ficar por ali mesmo, pelo Centro Comunitário, papeando, aproveitando uma folga da lida cotidiana na roça. Porque é a roça, sobretudo a banana sem agrotóxicos, a principal fonte de renda do quilombo.
Casa de pau a pique sendo erguida na comunidade. Eldorado, SP
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A segunda é o turismo, atividade que demanda, necessariamente, agendamento com antecedência; aparecer de surpresa não funciona. Ditão afirma que o Ivaporunduva tem infraestrutura e recursos humanos para receber “uns dois ônibus por dia”. Há uma pousada que acomoda até 60 pessoas em quartos coletivos. Espaço de venda de artesanato, sobretudo artigos feitos com a fibra da bananeira trabalhada em teares que são mostrados aos turistas em oficinas temáticas. Há, ainda, oficinas de história do Felipe Leal / ISA
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quilombo e da luta quilombola do Vale do Ribeira, de casas de pau-a-pique, entre outras. Uma oficina com grande adesão de escolas é a que mostra a biologia da floresta de um jeito diferente da sala de aula. Nessa vivência, os turistas fazem um buraco na terra e colocam um balde, que fica aberto para receber folhas caídas, animais e insetos que passam, água da chuva se for o caso. Esse material ajuda a compreender os processos da natureza, por exemplo, a formação da serrapilheira e qual a
Igreja e praça central do quilombo. Eldorado, SP
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“O inventário revelou para a gente o quanto ainda havia de desconhecido na cultura das comunidades quilombolas aqui da região” Raquel Pasinato
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espessura da camada necessária para proteger adequadamente o solo durante as queimadas. São cerca de 200 ônibus cheios de visitantes a cada ano. Um fluxo que foi interrompido durante a pandemia, para evitar um surto ainda maior de contaminações pelo novo coronavírus — foram 30 casos na comunidade. Mas que não chegou a resultar em perda severa da capacidade das famílias de se sustentarem. As roças de subsistência garantiram a alimentação. O começo da hoje significativa trajetória do Quilombo Ivaporunduva no turismo de base comunitária data do início dos anos 2000. Mobilizaram entidades e recursos públicos para proporcionar capacitações aos moradores, reivindicaram instalação de rede de água e a construção da pousada. O Instituto Socioambiental (ISA) começou seu projeto na região pouco antes disso. Por meio do Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira, em parceria com essas comunidades e territórios, identificou a demanda de apoio qualitativo à produção de artesanato de fibra de bananeira e para certificação da banana orgânica. “O inventário revelou para a gente o quanto ainda havia de desconhecido na cultura das comunidades quilombolas aqui da região”, afirma Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira do ISA. “Então começamos a compreender que era preciso fazer alguma proposta no sentido do turismo de base comunitária, que fortalecesse essa frente, naquele momento em desenvolvimento só no Ivaporunduva e de forma muito inicial no [Comunidade Quilombo do] Mandira.” O Quilombo do Ivaporunduva começou recebendo escolas, que ainda hoje representam uma parcela significativa das visitas.
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A comunidade quase inteira se envolve na atividade turística. “Tem trabalho de todo tipo”, diz Ditão. Cuidador de trilhas, monitor ambiental, cozinha, arrumação e artesanato são algumas dessas ocupações. Agricultores produzem os alimentos servidos aos visitantes: mandioca, couve, pão caseiro, pamonha, cuscuz, beiju, banana da terra, inhame. Os guias são cerca de 30. A Associação Quilombo de Ivaporunduva, que foi criada em 1994, tem estatuto e regimento interno — este, mais conhecido como Protocolo Comunitário —, gerencia tudo, organiza os rodízios de trabalhadoras e trabalhadores nas funções e, desta forma, garante a distribuição dessa renda. “A gente vê que a autonomia da comunidade foi o que fez esse projeto de turismo comunitário dar certo”, diz Raquel Pasinato. O retorno da atividade turística após a pandemia está condicionado à decisão comunitária.
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“A gente vê que a autonomia da comunidade foi o que fez esse projeto de turismo comunitário dar certo” Raquel Pasinato
Pratos tradicionais, servidos em roteiros turísticos, na pousada do quilombo. Eldorado, SP
Loiro Cunha / ISA
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Circuito de cultura e natureza
Loiro Cunha / ISA
Rio Ribeira de Iguape, no território preservado do quilombo. Eldorado, SP
O Sesc São Paulo costuma ser um parceiro frequente do turismo comunitário no Quilombo Ivaporunduva. São várias as unidades que levam visitantes para entrar em contato com a natureza e a cultura quilombola do Vale do Ribeira em roteiro que compõe um circuito.
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Felipe Leal / ISA
Além do pernoite e da visita à produção de banana orgânica do Ivaporunduva, esse roteiro inclui o Quilombo do Sapatu, com sua Cachoeira de Meu Deus, e o Quilombo André Lopes, onde fica a atração mais famosa do Vale, a Caverna do Diabo. Em grande medida, esses quilombos são interligados por laços de parentesco e pelas histórias de suas formações. “A gente entende que a família negra no Brasil não começou na senzala, onde a criança nascia e tinha um dono”, afirmam Ditão e outros mais velhos nas rodas de conversa com turistas. “A família negra começou no quilombo, foi no quilombo que os bebês nascidos começaram a ter direito a ter pai, mãe, tios, avós.” O café servido nesses momentos de conversa é preparado não com água fervente, mas com suco fresco da cana-de-açúcar fervido e passado pelo pé de café. Ou seja, a prosa é densa e necessária, mas não amarga.
Tecendo com tear e palha de bananeira, artesanato tradicional da região. Eldorado, SP
“A gente entende que a família negra no Brasil não começou na senzala, onde a criança nascia e tinha um dono” Ditão
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O chamado coração da banana, com o qual se faz pratos tradicionais. Eldorado, SP
No Brasil Colônia, quilombos eram territórios de organização autônoma de pessoas negras que neles se refugiavam ao conseguir escapar da situação de escravizadas. De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), muitas dessas comunidades se estabeleceram a partir de terras herdadas, doadas ou dadas em pagamento por serviços, tanto durante a vigência do sistema escravista quanto após sua abolição. Hoje, o termo se refere também a terras que foram adquiridas por negros libertos, abandonadas pelos proprietários em época de crise econômica, entre outras situações de ocupação histórica de territórios.
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Felipe Leal / ISA
Ainda segundo a definição da Conaq, os remanescentes de quilombo são definidos como grupos étnico-raciais que tenham também uma trajetória histórica própria, dotada de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra e resistência à opressão. Em seu artigo 68, a Constituição brasileira reconhece o direito quilombola à terra: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Mastro de celebração de São Sebastião, inventariado como bem cultural do quilombo. Eldorado, SP
Veja aqui o Parecer técnico que recomenda ao Iphan a inscrição do Sistema Agrícola Tradicional Das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira/SP no Livro de Registro dos Saberes, como Patrimônio Cultural do Brasil.
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Quilombo do Ivaporunduva
ELDORADO
Quilombo Sapatu
r Rio Ribei a de Ig pe ua
CANANÉIA
PARANÁ
Quilombo Mandira
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SP 30 0
JUNDIAÍ SOROCABA
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SÃO PAULO
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Oceano Atlântico
Comunidades retratadas Águas
ILHA DO CARDOSO Enseada da Baleia
Áreas de Proteção Ambiental Municípios em destaque Rodovias
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