QUILOMBO
MANDIRA
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Resistências Confluentes É da natureza humana aventurar-se por desvelar o desconhecido. Ir ao encontro do outro para reafirmar quem somos pelas similaridades, diferenças, e alçar novos dilemas, são combustíveis aparentemente voláteis, que imprimem memórias e abastecem imaginários, nutrindo repertórios de vida. Distintas vozes ecoam e são acolhidas no programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, propiciando vivências que abarcam as trocas simbólicas, a fruição cultural e das paisagens tanto geográficas quanto humanas. O exercício democrático do turismo envolve escolhas conscientes e um permanente compromisso com a formação do público para a corresponsabilidade da experiência. Nesse contexto, insere-se o projeto Itinerários de Resistência, que apresenta parte da rede de turismo
de base comunitária paulista realizada por grupos com identidades diversificadas como as aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, associações e coletivos urbanos. Esses movimentos voltados para a coletividade convergem para o desenvolvimento local, bem como para o fortalecimento de lutas e objetivos comuns. Ao difundir saberes e aspectos socioculturais de tais territórios, apresentando uma das faces do turismo social em ambiente digital, o Sesc amplia os meios de acesso a essa pluralidade, acendendo um farol deflagrador de suas potencialidades. Que as narrativas e o conteúdo imagético de tais iniciativas sejam portadores de estímulos à reflexão e construção de uma sociedade mais justa e equânime, com encantamentos a serem desvelados, vividos e compartilhados. Sesc São Paulo
Extrativismo de ostras sustenta a comunidade desde meados da década de 1970, e a atividade também está na base de toda a programação turística, que inclui gastronomia, história e visita ao manguezal, ecossistema fundamental para a biodiversidade do litoral sul paulista
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Quilombo Mandira
Nei Mandira
Misturar ostra com farinha de mandioca é um hábito antigo no Quilombo Mandira. Remonta aos antepassados, à segunda metade do século 19, quando o sobrenome da grande família que forma a comunidade ainda era Vicente.
Sede do Quilombo Mandira. Cananeia, SP
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José Gabriel Lindoso/ISA
Barco nos arredores da Ilha Comprida. Cananeia, SP
Naquela época, o molusco era assado, e a mandioca vinha dos quintais para ser processada nos tráficos, nome tão curioso quanto comum em todo o Vale do Ribeira e na região litorânea do Lagamar e que, nesse contexto, significa apenas a casa ou barracão onde se fabrica artesanalmente a farinha. Hoje, com algumas alterações, a combinação dos dois ingredientes continua em alta. Tomate e outros temperos entram no preparo da farofa de ostra servida no Restaubar Ostra e Cataia. Localizado no próprio
quilombo, o bar-restaurante se tornou um destaque turístico do município de Cananeia. De exploração predatória que quase extinguiu a ostra nos manguezais desse território quilombola, a extração do molusco evoluiu para uma atividade sustentável em sentido amplo. É por meio desse extrativismo que as 25 famílias do Mandira se sustentam e, ao mesmo tempo, é por causa dele que intensificaram a conservação ambiental. Em 2002, a área se tornou uma Resex, Reserva Extrativista do Mandira, com plano
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Acervo de Nei Mandira
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Prato Mandirano. Cananeia, SP
de manejo que organizou a extração das ostras sem inviabilizar o modo de vida dos moradores. Com isso, a cozinha local baseada no molusco foi se diversificando. Criaram pratos, receitas: pastel de ostra, ostra gratinada, arroz com palmito e ostra - este ganhou até o nome de Prato Mandirano - e, claro, as ostras servidas frescas e cruas com gotas de limão. No copo, o acompanhamento é a cataia, uma garrafada feita de folhas de uma planta medicinal curtidas em cachaça e que, por aqui, também é chamada de uísque caiçara. Alta gastronomia quilombola-caiçara é uma definição justa para a
comida mandirana. Por causa dessa cozinha refinada e fresquíssima, turistas continuaram a chegar mesmo durante a pandemia. O Mandira não é exatamente um quilombo isolado, apesar do acesso por uma estrada de terra que os moradores querem que continue assim, sem asfalto, justamente para não atrair multidões. Está no caminho para Ariri, outra comunidade em Cananeia. Como não foi possível fechar o acesso, o Restaubar continuou atendendo ao longo dos anos de pandemia, em 2020 e 2021, com os necessários cuidados e mesas espalhadas em uma grande varanda, sempre que as regras sanitárias permitiram.
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Cláudio Tavares/ISA
Acervo de Nei Mandira
Ostras da Reserva Extrativista do Mandira. Cananeia, SP
Peixe Mandi Cananeia, SP
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Resgate da identidade O Mandira nem sempre se viu como um quilombo. Nei Mandira, atual vice-presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo da Reserva Extrativista do Mandira, conta que, por sofrer discriminação contínua, a comunidade recusava essa identidade. Foi assim até o começo dos anos 2000, quando começaram os contatos mais frequentes e as trocas de informações e conhecimentos com outros quilombos do Vale do Ribeira, especialmente de Eldorado. Ao mesmo tempo, a produção das ostras começava a ficar mais organizada. Foram mais de duas décadas de exploração predatória nos manguezais, desde meados da década de 1970, até o esgotamento do ecossistema. Graças a uma série de parcerias com a Fundação Florestal, a Universidade de São Paulo e outras organizações da sociedade civil, a comunidade desenvolveu e aplicou um projeto para a extração sustentável das ostras e melhoria da qualidade de vida dos moradores, que resultou na eliminação de atravessadores, aumento da renda dos pescadores artesanais e, por fim, em reconhecimento internacional. O Projeto de Ordenamento da Exploração de Ostra do Mangue do Estuário de Cananeia foi uma das 25
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Cláudio Tavares / ISA
iniciativas no mundo premiadas na Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+10, no ano de 2002. Chico Mandira, liderança e referência na comunidade, foi até Johannesburgo, na África do Sul, receber o prêmio. “Até hoje chega aqui gente do exterior que conhece o projeto”, diz Chico. É verdade que o povo do Mandira passou a se dedicar à extração de ostras por falta de opção para se sustentar. Para entender como se chegou a esse ponto, é relevante conhecer o básico da origem da comunidade. “A gente conta a nossa história a partir de 1868”, começa Chico Mandira. Naquele ano, o jovem Francisco Vicente, filho de uma mulher escravizada com o antigo senhor daquelas terras, recebeu
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“Até hoje chega aqui gente do exterior que conhece o projeto” Chico Mandira
Chico Mandira, na coleta de ostras do viveiro. Método sustentável de cultivo na Reserva Extrativista. Cananeia, SP
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“Nunca se cria um parque na área de uma fazenda, claro, porque não tem mais nada para preservar. As comunidades tradicionais preservam o meio ambiente, não são responsáveis por desmatamento” Nei Mandira
Cláudio Tavares / ISA
Ruína histórica de uma casa de pedra, provável armazém da antiga fazenda, construída por escravizados que ali viviam. Cananeia, SP
a propriedade em doação de sua meia-irmã, que não tinha mais interesse na área. Antes da Abolição da Escravidão ser oficialmente assinada no Brasil, as pessoas negras do Mandira estavam livres. Francisco Vicente foi o patriarca dos Mandira, que não têm muita certeza sobre a origem deste novo sobrenome. Acredita-se que tenha algo a ver com o mandi, um bagrezinho do rio que cruza o território, provavelmente nomeado por Guaranis da região. O fato é que os descendentes de Francisco Vicente foram ficando por ali, obviamente enfrentando resistências de proprietários brancos das terras do entorno, vivendo de caça, pesca e culturas de subsistência. Em algum momento, o nome Mandira suplantou o Vicente. Na década de 1960, a criação do Parque Estadual de Jacupiranga proibiu todas essas atividades e expulsou a maioria dos mandiranos da localidade. “Nunca se cria um parque na área de uma fazenda, claro, porque não tem mais nada para preservar. As comunida-
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des tradicionais preservam o meio ambiente, não são responsáveis por desmatamento”, reflete Nei Mandira. Sobre a estratégia de criação de parques para proteção ao meio ambiente, a bióloga e geógrafa Sueli Ângelo Furlan, professora do departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, reflete: “Essa ideia de conservação é imposta da forma como é pensada pelo Estado”, diz. Para ela, é preciso pensar em conservação colaborativa, com as comunidades, por meio de modelos que “comportem a justiça ambiental e o combate ao racismo ambiental”. “Com todas as proibições, nossos parentes venderam seus sítios muito barato e foram embora”, contou Nei Mandira. Os poucos que ficaram passaram a se dedicar à extração de ostras. E foi também a partir da compreensão dessa trajetória que os habitantes do Mandira entenderam que o que fizeram ali, desde sempre, foi um aquilombamento. O Itesp - Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo - produziu em 2002 um relatório sobre as terras do Mandira e sua demanda de reconhecimento como remanescente de quilombo que defendeu que a sociedade brasileira atualizasse o conceito de quilombo. Disse o documento: “o reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades negras rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização das terras (...) traz à tona a necessidade de redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o binômio fuga/resistência”. O documento recomendou a urgente regularização fundiária de mais de 2 mil hectares. Em outubro de 2015, 1.200 hectares foram reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
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“Essa ideia de conservação [de criação de parques para proteção ao meio ambiente] é imposta da forma como é pensada pelo Estado” Sueli Ângelo Furlan
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Força no turismo
Procurado para visitas de um dia, o Quilombo Mandira tem buscado incentivos para criar opções de hospedagem e ampliar o turismo, visto como uma estratégia que ajuda a comunidade a ficar em seu território.
“Eu digo para os jovens que aqui não tem emprego. Mas trabalho para ganhar o pão de cada dia, tem bastante” Chico Mandira
Proprietário da agência Matimpererê e parceiro de longa data do Mandira, o gestor cultural Fernando Oliveira comenta que a força do turismo na comunidade vem da auto-organização. “O Mandira é pioneiro nesse modelo na nossa região do Lagamar”, conta. Não à toa, é destino de grupos, de escolas interessadas em turismo pedagógico, de pesquisadores universitários - que, antes de saborear as ostras, vão aprender o que é, afinal de contas, o extrativismo por ali. Nos manguezais, os visitantes descobrem que os pescadores do Mandira não criam ostras. Elas se reproduzem naturalmente em seu hábitat, as raízes da vegetação. São deixadas ali até atingirem um tamanho entre 5 e 10 centímetros. “Com menos de 5
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Acervo de Nei Mandira
centímetros, a ostra ainda não se reproduziu; com mais de 10 centímetros, é considerada uma mantenedora da população nos manguezais, e daí também não é extraída”, explica Nei Mandira. As ostras coletadas no tamanho adequado são levadas para os tabuleiros de engorda, onde começa o manejo. Só depois desse processo é que podem ser tiradas para limpeza, embalagem e comercialização. Nessa observação, os visitantes também aprendem que o trabalho dos pescadores é totalmente condicionado pela natureza. Maré alta, maré baixa. Fase da lua. “O pescador não tem um horário fixo de trabalho, é na hora que as condições naturais estiverem mais adequadas”, diz Nei Mandira. Para Chico Mandira, que criou todos os filhos graças ao trabalho extrativista, o que o manejo sustentável das ostras proporciona à comunidade é a possibilidade de viver em seu território. “Eu digo para os jovens que aqui não tem emprego. Mas trabalho para ganhar o pão de cada dia, tem bastante.”
Luís Mandira. Cultivo sustentável de ostras da Reserva Extrativista. Cananeia, SP
Veja aqui o Relatório do Itesp que recomenda o reconhecimento do Mandira como território remanescente de quilombo
SP 28 0
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Quilombo do Ivaporunduva
ELDORADO
Quilombo Sapatu
r Rio Ribei a de Ig pe ua
CANANÉIA
PARANÁ
Quilombo Mandira
SP 33 0
SP 30 0
JUNDIAÍ SOROCABA
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SÃO PAULO
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Oceano Atlântico
Comunidades retratadas Águas
ILHA DO CARDOSO Enseada da Baleia
Áreas de Proteção Ambiental Municípios em destaque Rodovias
QUILOMBO MANDIRA @QuilomboDoMandira @RestaubarOstraeCataia Informações sobre agendamento de visitas e roteiros disponíveis em tel.: (13) 997631056, com Sidnei Coutinho.