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Resistências Confluentes É da natureza humana aventurar-se por desvelar o desconhecido. Ir ao encontro do outro para reafirmar quem somos pelas similaridades, diferenças, e alçar novos dilemas, são combustíveis aparentemente voláteis, que imprimem memórias e abastecem imaginários, nutrindo repertórios de vida. Distintas vozes ecoam e são acolhidas no programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, propiciando vivências que abarcam as trocas simbólicas, a fruição cultural e das paisagens tanto geográficas quanto humanas. O exercício democrático do turismo envolve escolhas conscientes e um permanente compromisso com a formação do público para a corresponsabilidade da experiência. Nesse contexto, insere-se o projeto Itinerários de Resistência, que apresenta parte da rede de turismo
de base comunitária paulista realizada por grupos com identidades diversificadas como as aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, associações e coletivos urbanos. Esses movimentos voltados para a coletividade convergem para o desenvolvimento local, bem como para o fortalecimento de lutas e objetivos comuns. Ao difundir saberes e aspectos socioculturais de tais territórios, apresentando uma das faces do turismo social em ambiente digital, o Sesc amplia os meios de acesso a essa pluralidade, acendendo um farol deflagrador de suas potencialidades. Que as narrativas e o conteúdo imagético de tais iniciativas sejam portadores de estímulos à reflexão e construção de uma sociedade mais justa e equânime, com encantamentos a serem desvelados, vividos e compartilhados. Sesc São Paulo
O circuito quilombola inclui uma visita ao Sapatu, comunidade profundamente ligada ao Rio Ribeira de Iguape, em cujo território está a deslumbrante Cachoeira do Meu Deus
“Tem que proteger a cabeceira das águas e aí tem água para toda vida” João Rosa, morador do quilombo Sapatu
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Quilombo Sapatu
O dia é qualquer um, um dia comum. Antes de o sol nascer, o café coado no caldo de cana moído na hora e o angu de farinha de mandioca estão prontos para serem servidos a mais pessoas do que as que moram na casa. A refeição é ligeira: logo estarão todos a caminho da roça. A tarefa do dia pode ser a coivara — capinar e queimar a vegetação superficial —, ou abrir covas com um pedaço de pau e semear arroz, feijão, milho. São, todas estas, técnicas do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira.
O nome é assim mesmo, em letras maiúsculas, porque o sistema é reconhecido pelo Iphan como Patrimônio Cultural do país desde 2018. O reconhecimento resultou de luta histórica e coletiva das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira — Ivaporunduva, também retratado nesta coleção, faz parte desse processo. E esse dia comum é um típico puxirão, o mutirão rural. O trabalho é atribuição de todos os participantes, enquanto a alimentação fica a cargo do dono ou da dona da casa que pediu a ajuda coletiva. Também
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é a família anfitriã que se encarrega do grande final do puxirão, aguardado e indispensável: a festa. Aqui, no Quilombo Sapatu, essa festa tem o som e a dança Nhá Maruca como atração. “É uma dança que tem a ver com a agricultura quilombola, com a nossa história, com a coivara”, conta Ivo Santos Rosa, liderança local. “Desde sempre, o pagamento dessas coisas não é dinheiro, é o baile.” Na Nhá Maruca, que é um pouco herdeira do fandango, os homens usam tamancos para um sapateado próprio, característico. As mulheres,
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de saia comprida e rodada, conduzem a dança, em pares e em roda, como uma quadrilha junina ao som da viola e de letras que contam coisas da roça. Em grande medida, é para conhecer mais sobre as coisas da roça que se visita o Sapatu. “A roça de coivara é quilombola e cabocla”, diz a bióloga e geógrafa Sueli Ângelo Furlan, professora do departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisadora do meio ambiente no Vale do Ribeira há mais de duas décadas. “É contra-hegemônica, é maCestarias tradicionais, vendidas na Casa de Taipa, no Quilombo Sapatu. Eldorado, SP Acervo de Ivo Santos Rosa
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Acervo ISA
nejo florestal feito com a roça, um conhecimento de agricultura que os urbanos perderam.” O Sapatu fica em Eldorado, distante cerca de 35 quilômetros do núcleo urbano do município. Integra a ampla rede de relações e legados das comunidades remanescentes de quilombo do Vale do Ribeira. Por exemplo, Ivo Santos Rosa, que atual-
mente é o presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Sapatu, tem o pai nascido ali mesmo, e a mãe em outro quilombo por perto, o Pedro Cubas. Aos 56 anos, Ivo tem uma história pessoal bastante ilustrativa dos desafios que atravessam a vida e a luta quilombola. Aos 17 anos, saiu do Sapatu para trabalhar. Voltou
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duas décadas e meia depois, aos 42, tendo vivido em Sorocaba e em São Paulo. Hoje, afirma que é com alegria que conta a história de sua comunidade. “Tenho muito orgulho de ser quilombola e falar sobre isso, porque dessa forma levo a mais pessoas o que é a nossa vida e a nossa cultura.”
“Tenho muito orgulho de ser quilombola e falar sobre isso, porque dessa forma levo a mais pessoas o que é a nossa vida e a nossa cultura” Ivo Santos Rosa
Grupo de Nha Maruca do Quilombo Sapatu. Eldorado, SP
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Margem direita
A origem do Quilombo Sapatu está ligada a abrigo para pessoas negras dissidentes da mineração de ouro de aluvião no Vale do Ribeira, mas também a escravizados fugindo de recrutamento forçado para servir na Guerra do Paraguai. Isso lá pelos anos de 1870. Já o nome é atribuído a uma briguinha trivial entre mulheres que disputavam vaga numa pedra plana para lavar roupas no rio. Uma delas teria criticado a demora da outra chamando-a de “sapa”, feminino de sapo. A réplica teria sido um “sapa é tu”. E assim ficou.
Tamancos tradicionais, para a dança Nha Maruca. Eldorado, SP
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O modo de vida local tem no Rio Ribeira de Iguape um dos seus pilares. O Quilombo Sapatu fica na margem direita. A voz falha, emocionada, quando Ivo conta: “Foi o rio que alimentou a nossa família, segurou a gente aqui nessa terra.” Também estão direta ou indiretamente relacionados ao Rio Ribeira alguns dos atrativos turísticos no território do quilombo: a Cachoeira do Meu Deus, deslumbrante com seus mais de 50 metros de altura, e a Cachoeira do Sapatu, menorzinha e com poço para um banho gelado. Seja recebendo escolas estimuladas pela lei 10.639/2003, que transformou o ensino de história e cultura afrobrasileiras em parte integrante do
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“Foi o rio que alimentou a nossa família, segurou a gente aqui nessa terra.” Ivo Santos Rosa
Acervo ISA
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Anna Maria Andrade / ISA
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Vista do Rio Ribeira de Iguape, no Quilombo Sapatu. Eldorado, SP
currículo da educação básica no país, seja recepcionando turistas avulsos ou em grupos organizados por instituições como o Sesc São Paulo — que inclui o Sapatu em um circuito quilombola —, o turismo, aqui, é baseado nas experiências e determinações da própria comunidade. Moradores atuam como guias de grupos para passeios pela natureza ou para saber sobre a história e o cotidiano no quilombo. Produzem artesanato com a fibra da bananeira. Apresentam a Nhá Maruca no quilombo e fora dele — 24 famílias estão diretamente ligadas à dança. Cozinham as receitas que fazem parte do seu dia a dia, como o batume, um misturado de arroz e feijão, aparentado com o baião de dois. No Sapatu, come-se o que a terra dá. Bolos de banana e mandioca; bolo de roda, que é como um biscoito feito de farinha de milho; cuscuz de arroz; ca-
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ponata de umbigo de banana. Farinha de mandioca, produzida em moendas que localmente são chamadas de “tráfico de farinha”. Mas, no caso específico da culinária, só mesmo com agendamento. A pandemia interrompeu a chegada de visitantes. “Turismo é o complemento de renda de parte da comunidade”, disse Ivo Santos Rosa. “É a renda que paga melhorias na vida, como a internet, que aqui é muito cara.” Ele mesmo passou períodos desconectado. “Só não passamos necessidade porque a nossa agricultura é muito forte”, conta. A centralidade da banana e da produção de alimentos com a floresta em pé no sustento da comunidade ficou ainda mais evidente no período da pandemia. Em isolamento, ações conjuntas com a Cooperquivale (Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira), como a que forneceu alimentos a favelas da capital paulista, ajudaram nas vendas.
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“Turismo é o complemento de renda de parte da comunidade [...] Só não passamos necessidade porque a nossa agricultura é muito forte” Ivo Santos Rosa
Artesanato tradicional da região. Eldorado, SP
Felipe Leal / ISA
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Sementes ancestrais
Roberto Almeida/ ISA
No dia a dia, o que vende bem é banana nanica. Já em eventos e situações específicas, como feiras de agricultura familiar, o Sapatu tem a chance de apresentar toda a variedade de bananas que cultiva: bananas naniquinha, nanicão, maçã, pão ou figo, prata, vinagre ou São Tomé, da terra. São “bananas de moda”, como se diz localmente.
Produção de abóboras na 10a Feira de trocas de sementes e mudas tradicionais das comunidades de quilombos do Vale do Ribeira, em 2017. Eldorado, SP
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Abóbora tem da pescoçuda, dura e moranga. Milho, amarelo, preto, branco. Arroz vassourinha, cateto, catetinho e catetão, temporão. Durante 12 anos, até 2019, as comunidades quilombolas da região realizaram anualmente um grande evento de salvaguarda de seu sistema agrícola. A Feira de Troca de Sementes e Mudas das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, impulsionada pelo Instituto Socioambiental (ISA), tem importante papel na preservação das roças tradicionais por meio da disseminação das sementes ancestrais e de debates sobre a mercantilização dos alimentos e de sua produção. Em uma das edições do evento, João Rosa, um dos mais velhos do Sapatu e pai de Ivo, disse sobre a feira: “Peguei sementes que eu não tinha, e pegaram as minhas sementes. Mudas também: vendi e doei mudas de cará-espinho, que não tem mais”. Interrompida em 2020 por causa da pandemia, a expectativa é de que a feira de sementes volte o quanto antes. O turismo, é claro, também. São de João Rosa parte das citações e ensinamentos que os guias transmitem aos visitantes nas caminhadas até as cachoeiras, nas visitas ao Rio Ribeira. Grupos econômicos tentam há anos instalar barragens para produção de energia hidrelétrica no Rio Ribeira — intenção im-
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“Peguei sementes que eu não tinha, e pegaram as minhas sementes. Mudas também: vendi e doei mudas de caráespinho, que não tem mais” João Rosa, no vídeo do Instituto Socioambiental
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pulsionada pelo agora em andamento programa Vale do Futuro, do governo estadual, que prevê investimentos, alguns à revelia dos interesses das comunidades tradicionais da região. “Meu pai sempre fala que não se pode prender o rio, ele tem que ficar
“Meu pai sempre fala que não se pode prender o rio, ele tem que ficar solto, cantar o barulho das cachoeiras, fazer sua dança popular” Ivo Santos Rosa
Cachoeira do Meu Deus Eldorado, SP
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solto, cantar o barulho das cachoeiras, fazer sua dança popular”, diz Ivo. “A nuvem sobe aqui no Vale do Ribeira, o vento com todo o carinho sopra chuva para onde não tem árvore. O rio fala, a natureza fala. Nós queremos que o rio traga alegria”, finaliza.
“O rio fala, a natureza fala. Nós queremos que o rio traga alegria”
Felipe Leal / ISA
Ivo Santos Rosa
Acesse aqui o site chamado Sabores e Saberes do Ribeira com várias receitas da região.
SP 28 0
SP 27 0
Quilombo do Ivaporunduva
ELDORADO
Quilombo Sapatu
r Rio Ribei a de Ig pe ua
CANANÉIA
PARANÁ
Quilombo Mandira
SP 33 0
SP 30 0
JUNDIAÍ SOROCABA
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SÃO PAULO
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Oceano Atlântico
Comunidades retratadas Águas
ILHA DO CARDOSO Enseada da Baleia
Áreas de Proteção Ambiental Municípios em destaque Rodovias
QUILOMBO SAPATU Informações sobre agendamento de visitas e roteiros disponíveis em tel: (13) 99628-3609, com Ivo Rosa