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NOTÍCIAS sem fronteiras
Se desconhecemos o que acontece em nosso entorno, deixamos de exigir direitos, cobrar mudanças e, também, valorizar representantes e celebrar manifestações culturais do espaço onde estamos inseridos. Assim, tendo em sua essência o compromisso de informar, o jornalismo se configura como uma importante ferramenta da vida em sociedade, na medida em que permite à população conhecer, acompanhar, discernir, fiscalizar e cobrar melhorias do poder público.
No entanto, dados recentes do Atlas da Notícia –iniciativa do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mantenedor do Observatório da Imprensa em parceria com Volt Data Lab –contabilizaram mais de 4 mil municípios brasileiros como desertos e quase "desertos de notícias", considerando os que possuem somente um ou dois veículos. Além disso, apenas 2.605 municípios do país – menos da metade do total das cidades brasileiras – possuem seus próprios veículos de comunicação.
Apesar disso, em seu levantamento mais recente, feito entre agosto de 2021 e fevereiro deste ano, o Atlas da Notícia mostra que houve uma redução de 8,9% no número de desertos de notícias na região Sudeste do Brasil, e um avanço de 6,7% no número de registros de veículos online. Uma sinalização positiva de mudança, impactada, em parte, pelo surgimento de iniciativas midiáticas criadas para realizar a cobertura jornalística em regiões de menor escala territorial – muitas delas distantes dos grandes centros urbanos ou nas periferias das cidades, o que vem sendo chamado de "jornalismo hiperlocal".
Rádios comunitárias e, principalmente, conteúdos digitais (como sites, redes sociais e podcasts jornalísticos) estão derrubando fronteiras e, inclusive, pautando a mídia tradicional. Conhecida também por “jornalismo de proximidade” e por “jornalismo periférico”, essa prática busca informar, criar vínculos entre quem produz e quem consome notícias, além de provocar reflexões feitas por e para diferentes territórios.
Amplificar Contextos
Entre alguns exemplos de iniciativas online concebidas por jornalistas das periferias de São Paulo está a Agência Mural. Criada, primeiramente, como um blog, em 2010, por um grupo de estudantes e recémformados que participaram de uma formação de jornalismo cidadão e educação midiática, o blog ganhou grande repercussão no estado ao valorizar pautas de interesse das periferias da Grande São Paulo, ouvir uma diversidade de fontes locais e desconstruir estereótipos comumente reforçados por mídias tradicionais. O blog Mural ficou hospedado no site da Folha de S.Paulo até 2022.
Em 2015, o trabalho dos “muralistas”, como se denominam, ganhou novo alcance com a criação da Agência Mural de Jornalismo das Periferias. “A gente faz um jornalismo profissional, e ele precisa contemplar o local, o micro e o macro. Ou seja, o local pode ser um distrito, e o hiperlocal, um bairro dentro desse distrito. Então, a Agência Mural faz jornalismo pelas periferias e para as periferias a partir da ótica local e hiperlocal”, define Vagner de Alencar, diretor de jornalismo da agência.
Com mais de 2,6 milhões de acessos às reportagens e entrevistas nas áreas de educação, emprego, política, cultura, entre outros temas, a Agência Mural ainda produz conteúdos jornalísticos para suas redes sociais, seu canal no YouTube e para tocadores de áudio.
No perfil da Agência Mural no Instagram (@agenciamural), pautas que abrangem as zonas norte, sul, leste e oeste da Grande São Paulo.
No Instagram do Desenrola e Não Me Enrola (@desenrola_), reportagens, perfis, entrevistas sobre temas diversos, tais como: tecnologia, cultura e economia.
Entre 2021 e 2022, foi a vez do podcast Próxima Parada e, recentemente, Tamo em Crise, fruto de uma parceria com o Greenpeace, que mostra como as mudanças do clima afetam a vida dos moradores das quebradas. “A gente é nativo digital e, por isso, precisa apostar nesses formatos e canais para chegar a mais jovens das periferias”, explica Alencar.
Outra ação que também nasceu a partir de um blog foi o projeto Desenrola e Não Me Enrola, com reportagens sobre a cena cultural das periferias da cidade de São Paulo. A ideia surgiu em 2012, fruto da observação dos estudantes de jornalismo Ronaldo Matos e Thais Siqueira, moradores do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. “Na faculdade, Thais e eu tivemos o primeiro choque de realidade: todos os estudantes vislumbravam trabalhar em redes de TV, jornais e rádios tradicionais. Era esse o destino e a perspectiva de futuro de atuação profissional. A gente também percebeu que muitas pessoas moravam nas periferias, mas não gostavam de falar o nome do bairro. Então, a gente já percebia isso como um problema do jornalismo, uma vez que as pessoas tinham dificuldade de se aceitar e de falar do seu território”, recorda Ronaldo Matos, jornalista, educador e editor do Desenrola e Não Me Enrola.
SINTONIZA AÍ!
Criada e dirigida pela União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS), a Rádio Heliópolis nasceu em 1992, com o objetivo de organizar os moradores da maior favela da cidade de São Paulo em um mutirão para construção de casas. No começo, a programação chegava ao público por meio de alto-falantes “cornetas”, instalados em dois pontos da comunidade.
Até que em 1997, transformou-se em rádio comunitária, com frequência modulada (FM), sintonizada por comunidades do entorno – por lei, uma rádio comunitária tem a permissão de um alcance de um quilômetro. Hoje, a Rádio Heliópolis também publica notícias e veicula sua programação cultural pelo site e redes sociais. "A Rádio Heliópolis nasce em 1992 como instrumento de valorização da arte, da cultura e do fortalecimento do território. Ao longo dos anos, as demandas, desafios e conquistas foram destaques na grade de programação da rádio, trazendo uma narrativa de empoderamento e autovalorização, colocando a favela como potência e exemplo de articulação, mobilização e organização social pela garantia de direitos", explica Reginaldo José, coordenador da rádio e liderança no território.
Foi apenas depois do contato desses dois amigos com os movimentos culturais e sociais nas periferias, principalmente os saraus, que perceberam, “com a cabeça de jornalista”, diz Matos, “que aquele movimento não era um processo de declamação de poesia, mas de incentivo à leitura, ao livro, à construção de novos imaginários sobre o lugar onde essas pessoas moravam”. A partir desse momento, pensaram em criar um blog para contar essas histórias. “Uma das primeiras reportagens que a gente fez demonstrava um pouco do que seria a linha editorial do Desenrola: mostrar iniciativas, pessoas e projetos que promovem transformação social nas periferias e que produzem o futuro de políticas públicas”, complementa Matos.
Para dar conta da cobertura jornalística nas periferias da cidade, o Desenrola criou, em 2014, o projeto anual Você Repórter da Periferia, voltado para jovens entre 16 e 25 anos, e destinado à pesquisa e criação de espaços para o exercício das identidades culturais de jovens periféricos, utilizando o jornalismo como um elemento pedagógico para produção de conhecimento. Em 2017, o blog abriu novas frentes, tornando-se um portal de notícias que ampliou sua linha editorial, hoje com conteúdos sobre o fazer cultural nas periferias, mas também sobre moradia, trabalho, convivência e outros desafios dos territórios periféricos.
A rádio comunitária também realizou uma parceria com o Sesc Ipiranga (situado a três quilômetros de Heliópolis) no projeto Sesc Ipiranga na Comunidade, em 2020. Fruto de uma cooperação entre a Rádio Heliópolis e a UNAS, o projeto entrou ao vivo no programa Bairro Educador, com pautas sobre saúde, bem-estar, cultura, educação, literatura, esporte e cidadania voltadas para a comunidade onde moram mais de 200 mil pessoas.
Multiplicar Atores
Paralelamente ao trabalho de produção jornalística da Agência Mural e do Desenrola e Não Me Enrola, há também nessas iniciativas o foco em formação de novos colaboradores nas periferias, a partir de programas de educação midiática. Recentemente, a Agência Mural oficializou duas áreas de atuação: a Mural Jornalismo, voltada à produção de conteúdo, e a Clube Mural, que sistematiza a área de formação. “Quando a gente seleciona correspondentes locais, eles passam por uma formação do que é periferia, como produzir conteúdo hiperlocal. Conceitos, práticas e ações que a gente já fazia antes, mas de forma orgânica. Agora, a gente vai estruturar isso e todos os processos seletivos passarão pelo Clube Mural”, conta Alencar.
A preocupação com a produção de conteúdo feita pelo portal Desenrola sempre caminhou junto à formação dos jovens que participaram do Você Repórter da Periferia. “Foi aí que a gente começou a aprimorar e a fazer tanto o processo de produção jornalística como também o processo da educação midiática. A gente começou a elaborar um pouco mais a nossa metodologia, que nasceu das técnicas e conceitos do jornalismo tradicional, mas a gente também enraizou o jornalismo feito a partir das periferias”, conta o cofundador do Desenrola.
Aceleradora De Mudan As
Entre os impactos positivos gerados por ações do jornalismo comunitário, está o de apontar problemas locais e ir em busca de respostas do poder público para solucioná-los, como por exemplo questões de infraestrutura, que são posteriormente resolvidos por subprefeituras. “Vemos um impacto real na vida do morador”, resume o diretor de jornalismo da Mural.
Outro ponto de destaque é a repercussão que essas iniciativas ganham nos grandes veículos de imprensa. “Hoje a gente vê que as mídias tradicionais precisam tomar a decisão de contratar jornalistas das periferias, e isso vem acontecendo em alguns casos. Essas mídias têm que entender que elas não conseguem falar sobre periferias como a gente fala. Por isso, a importância de parcerias com jornais e portais”, destaca o editor do Desenrola.
Outra iniciativa é a cobertura jornalística do perfil da Alma Preta Jornalismo no Instagram (@almapretajornalismo): agência de jornalismo especializada em pautas antirracistas.
Tanta visibilidade gera ainda, por consequência, o interesse dos educadores para utilizar o conteúdo gerado por essas agências em sala de aula, além de render convites para participar de seminários e outras atividades nas universidades. “Queremos levar o debate da educação midiática para dentro de organizações, como Fábricas de Cultura e o próprio Sesc [Leia mais em Articular trocas e parcerias]”, acrescenta.
Segundo Reginaldo José, coordenador da Rádio Heliópolis, o trabalho da rádio teve grande contribuição na transformação da região, pois "conta com uma equipe de locutores voluntários que, em sua maioria, são moradores que conhecem as demandas locais, colocando-as em pauta nas programações e provocando o poder público para, em conjunto com os moradores, solucionar diversas questões".
Neste contexto, a cientista social e mestre em comunicação, Raquel Quintino, observa que quem não mora nas periferias e tem acesso a esses conteúdos também ganha com essa mudança de perspectiva sobre as vivências desses territórios, e com toda a “capacidade literária, poética e política” que habita essas regiões. Em 2011, para sua dissertação de mestrado intitulada Comunicação Comunitária e Direito à Moradia, pela Universidade Metodista de São Paulo, ela produziu um programa de rádio na área do Chafik, em Mauá, município do ABC paulista. Batizado de O outro lado da cidade, o programa foi feito em parceria com a Associação pelo Desenvolvimento da Habitação do Brasil (ADEHAB) e com a colaboração da Rádio Z FM. Em 20 edições, o projeto contou com uma equipe de repórteres comunitários e, a partir dele, como observa a pesquisadora, começou-se a ampliar a mente e o olhar sobre quem é esse "outro".
O coordenador da Rádio Heliópolis complementa: "as rádios comunitárias, apesar de serem de pequeno porte, têm uma enorme potência por promover o debate da comunidade para a comunidade. Por isso, são potentes instrumentos de informação, mobilização e valorização dos artistas, empreendedores e da cultura local, dando oportunidade aos seus colaboradores, ouvintes e telenautas do acesso à maior fonte de poder: o conhecimento.".