Revista E - setembro/24

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Revista E | setembro de 2024 nº 03 | ano 31

Literatura de resistência

Recordações de Ruanda por Scholastique Mukasonga

Cientista boêmio

Da zoologia à arte de Paulo Vanzolini

Mulheres do teatro

História e protagonismo de criadoras cênicas

Daniela Arbex

A jornalista que constrói memórias ao narrar o sensível

21 – 29 SETEMBRO 2024

SE JOGA NESSE MOVIMENTO!

O Sesc, ao lado de parceiros públicos e privados do Brasil e da América Latina, oferece uma programação que incentiva toda a comunidade a ter um estilo de vida mais ativo e saudável.

Venha experimentar:

•Aulas abertas

•Ginástica multifuncional

•Treinos esportivos

•Práticas corporais

•Torneios

Faça parte de uma rede que fortalece laços por meio do esporte.

Atividades gratuitas, em todas as unidades.

CAPA: Obra Kassel, 22.10.43, foi um dia maravilhoso de outono, da série Florestas (1993-1998), óleo sobre tela do artista José De Quadros. O trabalho integra o livro José De Quadros –sobreviver ainda, organizado por Tereza de Arruda, que será lançado neste ano pelas Edições Sesc São Paulo. A publicação reúne registro fotográfico de mais de 80 obras, além de textos sobre a vida e a produção do artista, natural de Barretos (SP) e cidadão alemão há mais de três décadas. Leia mais na matéria Gráfica, nesta edição

Crédito: Coleção particular de José De Quadros

Leia também a revista em versão digital na sua plataforma favorita:

Portal do Sesc (QR Code ao lado)

Fraternidade, solidariedade e confiança

APP Sesc São Paulo para tablets e celulares

Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Há exatos 78 anos, no mês de setembro de 1946, o Sesc –Serviço Social do Comércio dava início às suas atividades. Idealizada, no contexto do pós-guerra, pelo empresariado do comércio de bens, serviços e turismo, a entidade nasce com o propósito de promover o bem-estar dos trabalhadores do setor e de seus familiares, bem como de toda a comunidade.

Seu surgimento marca a concretização do compromisso assumido pelos dirigentes do comércio, no ano anterior, com a Carta da Paz Social. Esse documento estipulava intenções e desenhava caminhos para a construção de um projeto de nação que reconhecia a paz como resultante de uma ação social e educativa, garantindo fraternidade e fortalecendo a solidariedade e a confiança.

Hoje presente em todo o estado de São Paulo, com 42 centros de lazer e cultura, o Sesc oferece vasta programação nos campos das artes, esportes, turismo, saúde e alimentação. As atividades estimulam os encontros, trocas e aprendizados, celebrando a diversidade e promovendo a qualidade de vida de seus frequentadores. A entidade reafirma, desse modo, os ideais que mobilizaram seus criadores, quase oito décadas atrás.

São Paulo

Mirar aqui e além

É do encontro entre elenco e plateia que nasce o teatro. Arte da intersecção, o rito teatral se concretiza pelo pacto firmado entre as atrizes e os atores e seus espectadores. Mais do que assistir a um espetáculo, o público contempla, absorve e reage aos estímulos dessa arte, num processo intenso e profundamente transformador. Ao ver uma montagem teatral, identificamos, nas narrativas apresentadas, aqueles que somos. Uma janela-espelho para mirar para dentro e, também, para o horizonte.

As artes cênicas nos proporcionam enxergar ao redor pela perspectiva do outro, permitindo, assim, o exercício da alteridade. Desse modo, novas vozes na criação teatral redimensionam o próprio fazer criativo. A presença de mulheres no protagonismo da concepção artística, como dramaturgas e diretoras, contribui para a diversificação de pontos de vista, ampliando, assim, a própria dimensão de mundo tal qual o conhecemos. A expressão das mulheres nas artes cênicas é tema de reportagem da Revista E, neste mês em que o Sesc realiza, em Santos, a sétima edição do MIRADA – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Airá Fuentes Tacca, Alessandra Aparecida da Guia, Alexsandra Xavier do Egito Costa, Aline Braguim Galcino, Aline Ribenboim, Amanda Santos Sobral, Ana Paula Verissimo Souza, André Luiz Santos Silva, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andressa Kelly Ribeiro Ivo, Anna Luisa de Souza, Antonio Henrique Carlessi Terciani, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Camila Freitas Curaçá, Chiara Regina Peixe, Christi Lafalce, Claudia Dias Perez Machado, Dalmir Ribeiro Lima, Daniel Douek, Danilo Lima da Silva, Danny Abensur, Deborah Dias Matos, Diego Polezel Zebele, Edmar Júnior, Elmo Sellitti Rangel, Fabia Lopez Uccelli dos Santos, Fabiano Maranhao, Fabricio Floro, Felipe Campagna de Gaspari, Fernando Andrade de Oliveira, Flavia Rejane Prando, Flavia Teixeira S. Coelho, Flavio Aquistapace Martins, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Carraro Dias, Gabriela Grande Amorim, Gabriela Xabay Gimenes, Geraldo Soares Ramos Junior, Giulia Maria de Campos Manocchi, Gleiceane Conceição Nascimento, Gloria Rodrigues Ramos, Graziela Delalibera, Gustavo Nogueira de Paula, Ivan Lucas Rolfsen, Ivy Granata Delalibera, Jean Guilherme Paz, Joana Carolina Teixeira Mota, José Goncalves da Silva Junior, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Neves dos Santos, Keila de Paula Ferreira, Laís Silveira de Jesus, Leandro Henrique da Silva Vicente, Leonardo Calix Soares, Ligia Helena Ferreira Zamaro, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Maria Elaine Andreoti, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Mauricio Lemos, Monique Mendonça dos Santos, Nathalia Alves Pereira, Nilton Andrade Bergamini, Patricia Piquera Vianna, Priscila dos Santos Dias, Rachel Amoroso Gonsalves, Rafaela Ometto Berto, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Renata Crivoi de Castro, Renata Gonçalves de Souza, Roseane Silveira de Souza, Sandra Ribeiro Alves, Sara Maria da Silva, Silvia Mayeda Dangelo, Tamara Demuner, Tatiane Ferrari de Souza, Teresa Maria da Ponte Gutierrez, Thamires Magalhaes Motta, Thiago da Silva Costa, Tommy Ferrari Della Pietra, Viviane Cristina dos Santos.

Coordenação-Geral: Ricardo Gentil

Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis, Guilherme Barreto, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira, Maria Júlia Lledó, Rachel Sciré, Roberta Della Noce e Semayat Oliveira • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Gabriela Grande Amorim, Edmar Júnior, Janete Bergonci, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Apoio administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Aju Paraguassu, Gabriela Borsoi, Humberto Vieira Mota, Ian Herman Lins e Silva, Jucimara Serra e Pablo Perez Sanches • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli

• Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc

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Entre os destaques de setembro, Semana Move mostra a importância do convívio social como incentivo à prática esportiva em mais de 400 atividades

Escritora Scholastique Mukasonga fabula sobre uma Ruanda pacificada e fala sobre a missão de ser guardiã da memória de seu povo por meio da escrita

Comunidades quilombolas do Vale do Ribeira preservam e disseminam sabedorias tradicionais em suas vivências na roça

Caminho trilhado por mulheres ibero-americanas nos ofícios de criação e direção cênicas revela afinidades e intercâmbio de ideias

Reconhecido no campo científico e no cenário musical, Paulo Vanzolini fez da observação afiada uma ferramenta para o estudo e para a arte

Permeado por questões urbanas, conflitos históricos e injustiças sociais, repertório artístico do pintor José De Quadros ganha, pela primeira vez, celebração em livro

dossiê entrevista teatro bio gráfica negritudes

Catherine Hélie (Entrevista); Espetáculo Azira’i, com Zahy Tentehar (RJBrasil). Foto: Annelize Tozetto (Teatro); Pixabay (Negritudes)

Daniela Arbex, autora de Holocausto brasileiro, revela como o jornalismo investigativo e a literatura podem ajudar a preservar a memória coletiva do país

Textos de Maria Fernanda Vomero e Helena Vieira refletem sobre características, convergências e desafios da produção teatral ibero-americana

Andrea del Fuego (conto) e Chico França (ilustrações)

Com 42 anos de carreira, Fernanda Abreu celebra um legado pioneiro na música dançante brasileira, em obra turbinada pelo suingue e dedicada às variações do pop e do funk

São Paulo é do asfalto, mas também é do cambuci, da grumixama, do araçá e de outras frutas que podem ser colhidas em árvores que ocupam diferentes regiões da cidade

Petnys

em pauta encontros inéditos

Cynthia

Alexia Twister como rei Lear no espetáculo homônimo, adaptação da tragédia de William Shakespeare (1564-1616), em montagem da Cia. Extemporânea. Sob direção de Ines Bushatsky e um elenco formado por nove drag queens, a obra teatral ficou em cartaz até o mês de agosto, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação. A produção combina elementos da dramaturgia shakespeariana clássica com a linguagem drag contemporânea. Na imagem, Alexia contracena com Ginger Moon, que faz o papel do bobo da corte.

Dez 2024

Ação destinada aos trabalhadores das empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes com o objetivo de promover a prática esportiva, a integração social e a qualidade de vida.

sescsp.org.br/copasesc

DOSSIÊ

Movimento coletivo

Importância do convívio social como incentivo à prática esportiva dá o tom à programação da Semana Move, realizada no fim do mês, em todo o estado de São Paulo

Mais de 400 ações movimentam todas as unidades do Sesc São Paulo ao redor do Estado durante a 12ª edição da Semana Move, entre 21 e 29/9. Iniciativa da dinamarquesa International Sport and Culture Association (Isca), com coordenação do Sesc São Paulo no continente americano e apoio institucional da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a campanha surgiu para incentivar a prática regular de exercícios físicos em busca de uma rotina mais saudável, motivando pessoas de todas as idades e realidades sociais a mexerem o corpo.

Com o lema “Se joga nesse movimento!”, a edição 2024 da Semana Move destaca a importância da coletividade como incentivo ao encantamento pelo esporte. “A promoção de atividades diversas e gratuitas fortalece laços comunitários, reafirmando a importância da integração e do convívio social para a manutenção de hábitos saudáveis ao longo de toda a vida”, explica Carol Seixas, gerente da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo.

Um dos maiores canoístas da história, com cinco medalhas olímpicas, Isaquias Queiroz participa da programação da Semana Move, em uma série de vivências no Sesc São Paulo, entre 26 e 29/9.

Dividida em seis blocos temáticos – Move Academia, Move Esportes, Move Água, Move Zen, Move Comunidade e Move Empresa –, a programação é totalmente gratuita e contempla centenas de aulas, vivências, treinos abertos, encontros com atletas e demonstrações esportivas. Entre os destaques, o Sesc São Paulo recebe verdadeiros campeões para uma caravana esportiva pelas unidades: o baiano Izaquias Queiroz, cinco vezes medalhista olímpico e um dos maiores canoístas da história, circula, entre 26 e 29/9, por unidades do Sesc na capital, litoral e interior; e Bboy Enzo, uma das promessas do breaking

francês, desembarca no país, em parceria com a Embaixada da França no Brasil, para uma série de vivências no Sesc, entre 21 e 29/9.

Conheça a programação completa em sescsp.org.br/semanamove

A promoção de atividades físicas diversas e gratuitas fortalece laços comunitários

Carol Seixas, gerente da Gerência de Desenvolvimento Físico-esportivo do Sesc São Paulo.

Vivências, oficinas, apresentações artísticas e outras atividades compõem a programação do projeto Boca, Pra Que Te Quero?, nas unidades do Sesc São Paulo em todo Estado.

A BOCA NO MUNDO

Quando se fala em saúde bucal, é comum pensar apenas em um sorriso com dentes brancos e saudáveis. Porém, existem diferentes possibilidades de saúde da boca, que vão além do senso comum. Para chamar atenção para esse tema, desconstruir estigmas e promover o autocuidado cotidiano, o projeto Boca, Pra Que Te Quero? chega à sua 6ª edição, entre 6 e 15/9, em diversas unidades do

Cultivo à longevidade

Sesc São Paulo ao redor do Estado. Na atividade de abertura, o Sesc 24 de Maio promove, em 5/9, um ciclo de debates sobre saúde bucal ampliada, com a presença de vários profissionais de referência, além de intervenções artísticas. Ao todo, a programação inclui 38 atividades, como vivências, oficinas, apresentações artísticas, bate-papos e contação de histórias. Saiba mais em sescsp.org.br/boca

O Sesc São Paulo participa da 6ª edição do Longevidade Expo+Fórum, um dos maiores encontros dedicados ao público de pessoas idosas do Brasil, marcado para os dias 29 e 30/9 e 1º de outubro, das 10h às 18h, no Novo Distrito Anhembi, na zona Norte de São Paulo. A iniciativa tem como foco as discussões a respeito de temas contemporâneos relacionados ao envelhecimento e à longevidade, além do fomento de negócios e produtos. O Sesc São Paulo estará presente em um estande e realizará atividades do programa Trabalho Social com Pessoas Idosas nos palcos do evento. A entrada é gratuita, com inscrições em longevidade.com.br

DIÁLOGOS SOBRE ACESSIBILIDADE

A partir de 21/9, começa mais uma edição do projeto Modos de Acessar, ação do Sesc São Paulo que busca contribuir para a construção de ambientes socialmente justos para pessoas com deficiência, neurodivergentes e com mobilidade reduzida. Com o tema “Construindo acessibilidade em territórios diversos”, a edição deste ano é realizada em 29 unidades do Sesc São Paulo na capital, Grande São Paulo, interior e litoral com ações educativas, como oficinas, vivências e bate-papos, que abordam diferentes aspectos e manifestações da acessibilidade. Um dos exemplos é a vivência Yoga, Meditação e Inclusão, no Sesc 14 Bis, com Leandro Pereira, professor surdo oralizado especializado em modalidades como “surdo yoga”, “yoga na cadeira” e “yoga para cegos e baixa visão”. O Modos de Acessar segue até 3 dezembro, data em que se celebra o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Saiba mais em sescsp. org.br/modosdeacessar

Leandro Pereira, especializado em modalidades como “surdo yoga”, conduz a vivência Yoga, Meditação e Inclusão, no Sesc 14 Bis, pelo Modos de Acessar.

Anderson Rodrigues (Boca, Pra Que Te Quero?) / Acervo Pessoal (Modos de Acessar)

DOSSIÊ

Na onda do frevo

O Selo Sesc lança em 20/9, nas plataformas digitais, “Frevo é Muito Bom!”, novo álbum infantil de Hélio Ziskind, em que o músico interpreta suas composições, como em um passeio pelo vocabulário rítmico do frevo. A ideia de Ziskind para o álbum foi trazer o ritmo do frevo para dentro de suas canções. "É o frevo passando por dentro de mim, pelo meu mundo”, explica Ziskind no encarte do trabalho. No repertório, faixas clássicas, como “Banho É Bom”, “Sapo Martelo” e “Nos

Dias Quentes de Verão”, além de músicas de domínio público, como “Caranguejo”, e uma canção inédita, “Pó pó pó”. Nailor Proveta foi o responsável pelos arranjos de sopro, Mario Manga tocou guitarra, e Guegué Medeiros esteve nas percussões e bateria. Para marcar o lançamento físico do álbum, o Sesc Santo Amaro apresenta o show em 22/9, às 15h, no teatro. Saiba mais em sescsp.org.br/sescsantoamaro. Ouça o álbum em sesc.digital e nas principais plataformas de streaming de música.

O Sesc estará presente na 27ª edição da Bienal Internacional do Livro com um estande das Edições Sesc São Paulo, duas unidades do projeto BiblioSesc, além de realizar mais de 50 atividades, entre bate-papos e apresentações artísticas.

BRAÇOS E LIVROS ABERTOS

Em parceria com a Câmara Brasileira do Livro (CBL), o Sesc São Paulo participa da 27ª Bienal Internacional do Livro, de 6 a 15/9, no Distrito Anhembi, zona Norte da capital paulista. Além da venda de livros, CDs e outros produtos no estande das Edições Sesc São Paulo, a participação da instituição inclui duas unidades do projeto BiblioSesc

e uma extensa programação cultural, com mais de 50 ações, como bate-papos, contações de histórias e apresentações artísticas nos espaços Praça da Palavra e Praça de Histórias. Além disso, o Sesc também participa da curadoria do Salão de Ideias, que recebe grandes nomes da cultura e de outros campos, para discutir

questões contemporâneas. Em mais uma edição, trabalhadores do comércio, serviços e turismo, e seus dependentes, terão acesso gratuito à Bienal, com a apresentação da Credencial Plena válida e um documento com foto na entrada do evento. Visite e aproveite a programação: sescsp.org.br/bienaldolivro

Matheus
José Maria

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Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial

Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

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Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

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PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
Ricardo Ferreira

de 6 a 15 de Setembro 2024

Uma boca saudável vai além da higiene e da estética. Experimente novas possibilidades e sentidos para a boca, reflita sobre os padrões de beleza e aprenda a cuidar da sua saúde bucal.

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24 de Maio | Avenida Paulista | Belenzinho | Bom Retiro | Campo Limpo | Consolação | Florêncio de Abreu | Guarulhos | Interlagos | Pompeia | Santo Amaro | Ipiranga | Itaquera | Santo André | Vila Mariana | Piracicaba | Ribeirão Preto | Jundiaí | São José dos Campos | Taubaté

SESCSP.ORG.BR/BOCA

Guardiã inabalável

Fiel à missão de honrar a memória do seu povo por meio das palavras, escritora Scholastique Mukasonga sonha com uma Ruanda pacificada

POR SEMAYAT OLIVEIRA

Catherine Hélie

Éum papel. Se você algum dia possuí-lo e vier a precisar dele, idipolomi nziza, um belo diploma, ele te salvará da morte que nos é destinada. Guarde-o sempre consigo como um talismã, seu passaporte para a vida.” Essas palavras são de Cosmas, pai da escritora Scholastique Mukasonga. Pelas suas contas, ele foi morto aos 79 anos, durante o genocídio que sangrou Ruanda, entre abril e julho de 1994. Mas, antes, cumpriu uma tarefa soprada por seu coração: garantir a sobrevivência de pelo menos um dos seus filhos pela educação. Suas palavras estão logo no início de Um belo diploma (Nós, 2020), um dos livros de Mukasonga publicados no Brasil. Ao escrevê-lo, a autora reafirmou sua fidelidade ao dever de salvar a memória e as tradições de sua família e do seu povo por meio da literatura.

As primeiras obras da escritora publicadas no país foram A mulher de pés descalços (2017), Nossa senhora do Nilo (2017) e Baratas (2018), todas lançadas pela editora Nós. Juntas, formam uma trilogia sobre os massacres ocorridos em Ruanda contra a etnia tutsi, o último genocídio do século 20, com mais de 800 mil vítimas. Entre elas, 37 familiares da escritora. “Eu tinha um dever de memória a transmitir, um dever muito pesado para carregar sozinha. Sempre disse que era preciso, absolutamente, encontrar um meio de criar outros guardiões e guardiãs. Penso ser o que meus leitores e leitoras se tornaram”, disse Mukasonga, durante uma conversa aberta ao público no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, em maio deste ano. O diálogo foi traduzido por Marly Peres, com exclusividade para a Revista E.

Na ocasião, a escritora também lançou seu novo romance, Kibogo subiu ao céu (2024). Diferentemente das memórias

Vencedora do Prêmio Renaudot e finalista do National Book Award, Scholastique Mukasonga nasceu em 1956, em Ruanda, e vive e trabalha na região da Baixa Normandia, na França.

apresentadas nos primeiros livros, aqui seus olhos estão voltados para o passado de seu país. “É onde reencontro Ruanda como Ruanda foi, onde reencontro a força dos nossos ancestrais, nossas raízes. Já que agora estou engajada nesta bela aventura da escrita, posso escrever sobre qualquer assunto. Minha única certeza é de que não posso não escrever”. Nas páginas a seguir, Scholastique Mukasonga nos pega pela mão e, com sua voz suave e firme, conta sobre sua obcecada busca por um diploma, a inevitável relação com a escrita, porque Kibogo é sua nova história, e vislumbra a construção de uma Ruanda reconciliada.

Por que seu pai, Cosmas, dizia que o diploma escolar era como um “talismã”?

Ele decidiu que pelo menos um dos seus filhos deveria sobreviver pela via da escola. E ele não se enganou. Mas, eu era teimosa e não queria, para mim, um sonho irrealizável. A escola primária não era um problema. Todas as crianças ruandesas podiam cursar os seis anos iniciais, desde que fossem batizadas. Ruanda era um país dominado por missionários católicos e, associada a uma missão católica, havia sempre uma escola primária. O difícil era acessar o secundário. Na época, havia um sistema de cotas [correspondente a 10%] para limitar o número de vagas para os tutsis. Mas, para quem estava em Nyamata, região de deportação dos tutsis, os párias, a cota nem sempre funcionava. Lembro quando, todas as manhãs, preferia ficar na cama e só me preparar para ir à lavoura atrás da minha mãe. No entanto, meu pai insistia: “Levanta, levanta. A escola espera por você!”. Então, no dia do exame nacional, depois da conclusão do primário, eu não queria fazer a prova e pensava que não adiantaria nada. Porém, ele, vestindo sua roupa branca de domingo, me disse: “Mukasonga, você vai fazer o exame nacional!”. A prova aconteceria a 10 quilômetros da nossa casa, então andamos 20 quilômetros – 10 na ida e 10 na volta. Fui aceita e passei. Meu pai dizia: “É preciso ter um diploma e ir além do lugar onde você está. Ir mais alto. Custe o que custar”. Nenhum de nós sabia qual diploma seria, mas meu pai sabia que este seria um talismã.

Nunca teria sido escritora se não tivesse acontecido o genocídio dos tutsis em Ruanda. Esse acontecimento fez de mim uma escritora.

A princípio, sua escolha foi pelo curso de serviço social. Pode nos contar um pouco mais sobre essa trajetória?

Fiz o curso secundário e estudei até o ano de 1973 [a essa altura, na Escola Social de Karubanda, em Butare, cursando serviço social], quando os tutsis foram proibidos de irem à escola. Deveriam ser perseguidos, expulsos e até mortos. Então, meus pais disseram: “Não vamos desaparecer. Temos esperança de deixar um rastro da nossa vida, Mukasonga foi à escola e tem um passaporte internacional, porque fala francês. Ela vai embora, partir para o Burundi”. Esse é um país vizinho, a cerca de 40 quilômetros. Para chegar até lá, eu percorri o trajeto à noite, a pé, sem ser vista, sem ser pega, ou seria morta. Lá, retomei meus estudos e me formei em assistência social. Tinha escolhido esse curso em Ruanda, mas só estudei durante um ano e não pude continuar. Esse era o único curso que me permitiria voltar às aldeias. A figura da assistente social era a de uma funcionária pública, que trabalhava junto do líder da comuna. Queria levar algum saber àquelas mulheres que passavam o dia nos campos, na lavoura, e me tornar embaixadora delas. Não pude fazer isso em meu país, mas fiz ao lado das camponesas do Burundi. Depois, fui embora para o Djibuti [país localizado na região nordeste da África], onde a função não era conhecida, mas fiz coisas relativamente equivalentes por meninas e jovens analfabetas.

Quando decidiu ir para a França, o desejo por um diploma te acompanhou?

Na França, onde a função de assistente social existe, fiz um novo exame para alinhar e atualizar meu diploma de acordo com a formação do país. Foi quando soube do genocídio dos tutsis em Ruanda, na escola de formação de assistente social. Então, me dei conta: meu pai tinha toda a razão. Aquele diploma fazia um vínculo, um laço, e tinha se tornado um cordão umbilical entre minha família e eu. Voltei a almejar aquele diploma, pois era o desejo do meu pai. Sem o diploma, ele dizia que eu não acharia meu

lugar na vida. E ele tinha razão. Muito rapidamente, fui adotada e aceita pelos normandos [população da região da Normandia, na França]. Decidi trabalhar no campo e, ali, junto desses normandos do interior, me transformei em memória. Não havia outra solução a não ser escrever.

Foi quando começou a transição da assistente social para a escritora?

Nunca pensei em ser escritora. Tinha escolhido a carreira de assistência social para estar em contato com as pessoas. Na época, não havia essa possibilidade em Ruanda, principalmente para mulheres. Só havia escritores homens. Havia uma influência religiosa muito grande, somente teólogos e filósofos escreviam. Hoje somos mais numerosas, mas foi preciso ir devagar. Nunca teria sido escritora se não tivesse acontecido o genocídio dos tutsis em Ruanda. Esse acontecimento fez de mim uma escritora. Eu tinha um dever de memória a transmitir, um dever muito pesado para carregar sozinha. Sempre disse que era preciso, absolutamente, encontrar um meio de criar outros guardiões e guardiãs dessa memória. E penso ser, espero não estar enganada, o que meus leitores e leitoras se tornaram. Quando comecei, não tinha um modelo e nem a intenção de ser escritora. O único objetivo era salvar a memória. Fazia anotações sobre tudo. Tinha uma angústia permanente de perdê-la, como um computador que pudesse ter seu disco rígido apagado.

E quando surgiu o desejo de publicar?

Quando tive força para voltar ao meu país, quando cheguei à minha aldeia, onde tinham nos jogado em 1960, em Nyamata, não encontrei nada. Nenhum rastro dos seres humanos que lá viveram. Segundo reza a lenda – talvez não seja uma lenda, mas sim uma realidade –, matavam as pessoas e, então, plantavam tabaco para não deixar suspeitas. E se algum sobrevivente procurasse, não encontraria vestígios do que havia acontecido ali. Levei dez anos para voltar à casa e enfrentar a realidade nua, mas deparei com uma mata rasteira tomando conta de tudo.

Então, voltei rapidamente, muito depressa mesmo, para reunir meus escritos dispersos, como anotações soltas e tudo o que minha memória conservou. Foi quando mandei os textos [a editoras] e eles começaram a ser publicados.

Sua obra, no geral, é marcada pelo protagonismo das mulheres. O livro A mulher dos pés descalços (2017), por exemplo, é uma homenagem à sua mãe, Stefania. Qual a importância de homenagear seu pai no romance Um belo diploma (2020)?

Agradeço às leitoras e leitores de São Paulo por me colocarem nessa via de escrever um livro para meu pai. Eu estava em um encontro, acho que foi em uma livraria, quando alguém no público se levantou e, de forma muito séria, fez a seguinte pergunta: “Você sempre escreve sobre a sua mãe e os personagens da sua obra são mulheres. Você não teve pai?”. Nos meus escritos é normal o personagem mais importante ser mulher. E não faço isso de propósito, é algo espontâneo. Aprendi tudo com a minha mãe. Fiquei abalada com essa pergunta, me senti até envergonhada. Logo eu, que fiz de tudo para não ser uma filha ingrata.

Ao pensar sistematicamente em minha mãe e em todas as mulheres deportadas para Nyamata, todas essas mães-coragem, benfazejas, generosas, que nos consolaram e protegiam, esqueci que devia a vida ao meu pai… Quando você é sobrevivente de um genocídio, não quer mais viver, a vida chega a incomodar. Mas foi meu pai quem me permitiu sair dessa condição das pessoas chamadas de “baratas”. Ele conseguiu me devolver essa humanidade. Portanto, como poderia estar diante de vocês e dizer que em Nyamata não se assassinaram baratas, mas sim seres humanos? Como poderia construir aquilo que chamei de túmulo de papel nos livros Baratas (2018) e A mulher de pés descalços (2017)? Como responder ao pedido lancinante de minha mãe, profundamente ligada à tradição, de que uma filha deve cobrir o corpo de sua mãe? Ora, minha mãe, que não sei onde está, tinha cinco filhas. Eu era a do meio: Judith, Alexia, eu, Juliette e Jeanne. Todas foram embora, morreram. Fiquei sozinha com a responsabilidade de cobrir o corpo ausente de minha mãe. Teci um sudário de papel, um patchwork de papel, para recobrir o corpo de minha mãe. E isso graças ao meu pai e à sua obstinação pelo estudo.

A escritora Scholastique Mukasonga e a jornalista Semayat Oliveira em encontro realizado no mês de maio, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo. Camila

Sobre seu compromisso inabalável com a salvaguarda da memória, na vida vale mais um diploma ou o compromisso com um propósito?

Acredito não ser uma questão de diploma, mas sim de comprometimento. Claro, é preciso ter o mínimo de saber, evidentemente, para corresponder a esse comprometimento, para dar conta dele. Acredito que os pais de qualquer povo oprimido aspiram que seus filhos tenham um destino melhor do que o deles. Não querem que os filhos esqueçam a vivência dos pais, mas desejam uma outra vida, mais iluminada. Para essa luz existir, é preciso não esquecer o passado.

A partir dessa experiência dolorosa, daquilo que aconteceu e não deveria ter acontecido, cria-se algo melhor. Devemos aceitar olhar para ela. Isso nos permitirá ir adiante e abrir um espaço de respeito à vida. Um espaço em que você tenha os mesmos direitos de todos os outros, sendo o primeiro deles, o direito de viver com dignidade. Como digo em Um belo diploma (2020), não é tanto o papel em si, mas, sim, ter as ferramentas para acessar um lugar na sociedade e poder compartilhar sua própria história. Por meio dos livros, podemos passar essa mensagem. O ser humano é um ser social. Para avançar é preciso compartilhar, e precisamos dos outros para compartilhar a nossa história, qualquer que tenha sido.

Neste ano, você veio ao Brasil para lançar seu novo romance, Kibogo subiu ao céu. Por que é tão importante contar essa história centrada no conflito gerado pela opressão de ruandeses por padres missionários e a emergência de uma resistência cultural e social?

Kibogo é onde reencontro com Ruanda como Ruanda foi, onde reencontro a força dos nossos ancestrais, de nossas raízes. Já que agora estou engajada nesta bela aventura da escrita, posso escrever sobre qualquer assunto. Minha única certeza é a de que não posso não escrever. Mas, antes, precisava escrever Kibogo subiu ao céu. O livro mostra que, antes de 1994 [ano do genocídio] e antes dos anos 1960, quando fomos deportados para Nyamata, houve os anos 1900 e a chegada dos padres brancos, os primeiros missionários católicos. Ao mesmo tempo, chegaram os primeiros

O recém-lançado Kibogo subiu ao céu (2024) é o quinto livro da escritora Scholastique Mukasonga publicado no Brasil, pela editora Nós.

colonizadores alemães. Com a Primeira Guerra Mundial, eles foram rapidamente substituídos por belgas, em 1916. Estes passaram toda a gestão para os missionários, responsáveis por “domesticar” e “civilizar” os “selvagens”. E o que se vai fazer é desenraizar os ruandeses. Para “civilizar” esse povo, era preciso batizá-lo e impor o esquecimento das nossas crenças tradicionais, nosso Imana [Deus adorado pelo povo Banyarwanda], nossos deuses, nossos “fazedores de chuva”. As pessoas foram proibidas de praticar os cultos e os rituais para garantir a chuva, porque a chuva é cheia de caprichos: se não fizermos cultos e rituais, ela desaparece. Ruanda é um país agrícola, não vivemos exclusivamente do dinheiro. Para comer é preciso contar com a plantação de cada um, em seu próprio terreno. Então, os ruandeses começaram a se sentir perdidos.

E quem é a figura de Kibogo?

Segundo uma narrativa oficial, quando enfrentávamos guerras ou desastres naturais, pedíamos ao príncipe ou para alguém importante, até para o próprio rei, beber hidromel com veneno e se sacrificar para salvar o país. E, no passado, Kibogo [filho do rei de sua época], tinha subido ao céu – levado por uma nuvem – com suas mulheres, suas vacas e seus filhos, provocando a chuva e fazendo Ruanda reencontrar a bonança. No livro, eu conto que, em 1943, Ruanda passava por uma grande seca. Então, os padres e missionários fizeram procissões para que a Virgem Maria fizesse chover. Porém, os sábios, os anciãos, invocam Kibogo, que está no céu. Minha mãe me contou a história de Kibogo. Quando os missionários quiseram explicar aos ruandeses quem era Jesus, que tinha vindo salvar as almas perdidas, danadas, e que havia “subido aos céus”, usavam como exemplo o relato conhecido de Kibogo. E aí tudo se misturou, uns e outros, em sincretismo. O cristianismo vinha nos dizer que nossas crenças eram ruins: “O paganismo é ruim! Vocês sofrerão a danação caso não se batizem”. Mas, não abandonamos nossas raízes. Pessoalmente, não vivi isso. Ouvi os contos de minha mãe e, para escrever, sempre irei “cavoucar” e recorrer ao baú de tesouros dela. Por meio das histórias, as mães transmitiam a tradição, e para não esquecermos de onde viemos. Foi o que nos salvou depois do genocídio.

Este último livro também tem uma boa dose de humor e ironia. Como foi escrevê-lo?

Não tive dificuldades em utilizar o humor. Ele faz parte da tradição ruandesa. E, modestamente, penso que, depois da minha mãe, esta é a minha vez: me

Queria levar algum saber àquelas mulheres
que passavam o dia nos campos, na lavoura, e me tornar embaixadora delas

tornei guardiã dessas tradições. Faço parte dos sábios, dos anciãos. Quando vou a Ruanda, os jovens vêm me ouvir. Meus livros são para eles e, em todos, transmito o que consegui recolher de minha mãe. Então, o humor faz parte da nossa tradição. Tudo isso é muito difícil, mas a forma mais acertada de escrever sobre o desenraizamento e a discriminação é com humor. E isso não é algo inventado por mim, é a forma pela qual nossos pais conseguiram nos proteger, em Nyamata. Embora estivéssemos exilados em nosso próprio país, tentaram nos transmitir tudo aquilo que constituía os ruandeses. E tudo era contado com humor. Mesmo no meu primeiro livro, Baratas, escrito na dor, nem tudo ali é apenas infelicidade, sofrimento. Há humor para proteger o leitor e a leitora, e também para me proteger. Eu não teria prosseguido na escrita se não tivesse a sorte de recorrer ao que faz de mim uma ruandesa, ou seja, o humor.

Este ano marca três décadas do genocídio em Ruanda. Diante dessa memória terrível, como o país pode cultivar o amor no lugar do ódio?

Quem escapou, quem é sobrevivente, tem a obrigação de reconstruir Ruanda. As gerações de hoje, a minha geração e a atual, só conheceram a discriminação. Nós não podemos comparar. Não tivemos a sorte de ter conhecido a Ruanda de antes, em paz. Ainda assim, nossos pais nos deram amor. Eles sabiam ser impossível exterminar a todos nós, felizmente. Um genocídio nunca é total. E sabiam que seria preciso dar armas aos sobreviventes. E a primeira arma é o amor. O amor também pelo seu país, por Ruanda. E esse amor eles transmitiram, cumpriram

O ser humano é um ser social. Para avançar é preciso compartilhar, e precisamos dos outros para compartilhar a nossa história, qualquer que tenha sido.

seu objetivo, sua vontade. Foram os próprios ruandeses que estancaram o genocídio. Ninguém nos atribuiu importância, nenhuma força externa veio nos ajudar. E, no dia seguinte ao genocídio, pensamos em nossos filhos, nossas crianças. Não havia um só país que não tivesse recebido um exilado ruandês. Eu tenho percorrido o mundo e em toda parte há um ruandês exilado. E sem trocar uma ideia sobre isso, todos nós pensamos em nossos filhos. Eles deveriam conhecer outra Ruanda. Era preciso fazer de tudo para que não vivessem o mesmo. E nós, os sobreviventes, pedimos a reconciliação. Sobretudo porque estamos falando de um genocídio de proximidade, de vizinhança. No dia seguinte ao genocídio, a vítima e o carrasco moravam frente a frente.

E como está Ruanda hoje?

Vou regularmente a Ruanda. Estive lá em abril [de 2024], por ocasião de uma comemoração para não esquecermos a história. Não devemos ser reféns dela, nem cair na mesma lógica de dor. Para a divisão, haviam sido criados documentos de identidade étnica, pois, sem eles, era impossível saber quem era hutu ou tutsi. Pois essa ideia extravagante de diferenciar os tutsis por características físicas é algo completamente falso. Por isso, a primeira coisa feita depois do genocídio foi queimar aqueles documentos de identidade étnica e criar um documento de identidade nacional, onde está simplesmente escrito ruandês, para os homens, e ruandesa, para as mulheres. Quando estou em Ruanda, não perco tempo pensando quem é hutu e quem é tutsi. Aliás, tudo isso já não existe mais. Isso não se diz. E não é

porque queremos apagar essas palavras. São palavras e não tinham nada de mal. O que era ser hutu? Alguém que cultivava sua terra. O que era ser tutsi? Alguém que criava vacas. Em ambos os casos, era uma função exercida em determinado momento. Se mudássemos essa atividade, cultivar o campo ou criar vacas, nos tornaríamos hutu ou tutsi. Portanto, hoje, impera a reconciliação. Claro, aqueles que cometeram o massacre de tutsis pagaram o preço através da justiça ocidental, muitos desses homens foram presos. Mas, foi impossível colocar na prisão 84% da população [na época, 84% de hutus e 14% de tutsis], seria impossível reconstruir o país. Exterminaríamos o país e precisávamos dele. Tínhamos sido afastados de Ruanda e queríamos reencontrar Ruanda.

Como os rituais e tradições também ajudaram nessa reconstrução do país?

A tradição de Kibogo também veio nos ajudar, porque recorremos aos nossos tribunais tradicionais [chamados de Gacacas], nos quais a vítima se limita a pedir a confissão de quem matou seus filhos e seu marido. Ela quer apenas saber onde pode encontrar os restos mortais de seus familiares e fazer seu luto. Muitas vezes, estão em covas coletivas e, como frequentemente as sobreviventes são mulheres, elas fazem dessas covas seus repositórios de memória. Mas, hoje, há essa vontade de reconstruir Ruanda, de reconstruir os ruandeses. Todo mundo acordou e se deu conta de que, nessa história, todos foram manipulados. E é por isso que, agora, depois dos meus quatro primeiros livros, eu me volto para a Ruanda de antes. A Ruanda de antes do genocídio.

11/9. Q uar t a , 20h.

Cena do espetáculo

Quemar el bosque contigo adentro

[Queimar a floresta com você dentro], da diretora e dramaturga peruana Mariana de Althaus, reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico que faz um paralelo entre o abuso do corpo feminino e a devastação da natureza.

criadoras

criadoras EM CENA

Dramaturgas e diretoras do teatro latino e ibero-americano abrem caminhos para novas gerações e dialogam em contextos tão singulares quanto semelhantes

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Paola Vera

Lançando mão de códigos obscuros para driblar a censura, mas suficientemente claros para serem decifrados pelo público, como já descreveu o crítico

Décio de Almeida Prado (1917-2000), a escritora Hilda Hilst (1930-2004) deixou como legado oito peças. Todas elas escritas no momento mais sombrio da ditadura brasileira. Entre os textos, O rato no muro (1967) foi encenado pela primeira vez em 1968, por alunos da Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP), sob direção de Terezinha Aguiar. No ano seguinte, a peça seria levada ao Festival de Teatro Universitário da Colômbia. No palco, o rato em questão é o único personagem entre dez religiosas enclausuradas capaz de ultrapassar o muro da opressão. Quando encenada em outro idioma, O rato no muro foi igualmente compreendida pelo público colombiano, que também sofria as violências de um regime totalitário. Hilda Hilst, considerada à época “uma

espécie de unicórnio na dramaturgia brasileira”, nas palavras do filósofo e crítico alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973), faria parte de um levante de mulheres na dramaturgia brasileira, na década de 1960.

Num período em que as lutas feministas também ganhavam espaço na política e nas artes, as dramaturgas brasileiras saltaram o muro. A partir daquele momento, não estariam mais restritas aos palcos ou à plateia. Mesmo assim, nas universidades ainda persistiria, pelas próximas décadas, o apagamento dos nomes e obras dessas pioneiras. Pesquisadora, professora e autora de Um teatro da mulher (Perspectiva), Elza Cunha de Vincenzo jogaria luz sobre a memória das criadoras do teatro brasileiro nesse livro lançado em 1992. Nele, Vincenzo demonstrou que, “por razões e causas tanto históricas quanto sociais e culturais”, um significativo número de escritoras da mesma geração – Renata Pallottini (1931-2021), Hilda Hilst, Leilah Assumpção, Consuelo de Castro (1946-2016), Isabel Câmara (1940-2006),

Maria Adelaide Amaral, Carolina Maria de Jesus (1914-1977), entre outras –, voltava-se para o teatro e passava a ser acompanhada pela crítica e pelo público, no fim dos anos 1960 em diante.

Autoras que abriram portas para que gerações posteriores ocupassem um espaço de escrita e expressão que já foi, majoritariamente, masculino. Diretora, dramaturga e educadora teatral, Solange Dias faz parte da geração de estudantes da década de 1980, quando iniciou sua formação em artes cênicas. Depois da graduação, buscou novos conhecimentos na Universidade de São Paulo (USP), onde encontrou, por fim, mestras que iriam lhe apresentar dramaturgas que se tornariam referências. “Eu bati na porta da Renata Pallottini que, na época, estava trabalhando em produção dramatúrgica. Também fiquei por um ano com Elza Cunha de Vincenzo, uma pesquisadora incrível. Tudo isso numa época em que a gente não falava da mulherada. Por exemplo, a dramaturgia de Hilda Hilst, eu descobri nessa época. Aliás, todas as outras dramaturgas. Porque, quando se fala

A dramaturga e diretora peruana Mariana de Althaus também leva ao MIRADA 2024, o espetáculo La vida en otros planetas [A vida em outros planetas], que traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de um grupo de professores e alunos, incorporando testemunhos de educadores e atores.

em dramaturgia, você vai se lembrar sempre dos dramaturgos, e acaba se esquecendo desse grupo de mulheres que abriram espaço para a gente. Depois, nós abrimos um pouquinho mais. E hoje, as mulheres já escancaram a porta”, observa Dias.

REALIDADES CERCANAS

A presença expressiva de mulheres em posições de direção e criação teatral na cena latina e ibero-americana segue atravessada por mudanças nas últimas décadas. Não mais cerradas em seus territórios, encontram-se em constante troca e diálogo por meio de um crescente número de festivais, como o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, que acontece neste mês, na cidade de Santos, litoral sul de São Paulo. Realizado a cada dois anos pelo Sesc São Paulo, o MIRADA reúne espetáculos e propõe diálogos entre criadoras e criadores a respeito das suas produções e dos desafios que permeiam o trabalho no teatro.

Dramaturga, diretora e professora, a peruana Mariana de Althaus é uma das convidadas da sétima edição do festival, no qual apresentará dois espetáculos.

Historicamente, segundo Althaus, “a participação das mulheres na dramaturgia e na direção nos teatros de Lima melhorou”. No entanto, observa, “não creio que possamos estender essa valorização ao teatro em todas as regiões. Em Lima, aumentou a procura por diretoras e, também, dramaturgas, e algumas desenvolvem uma carreira muito interessante e constante”. A diretora, uma das mais expressivas vozes da sua geração, também destaca que “ainda existe uma maioria masculina nestas áreas, talvez, não por falta de procura ou de oportunidades, mas por uma questão estrutural: numa sociedade tão sexista e patriarcal é ainda mais difícil para as mulheres acreditarem que a sua voz é importante, e decidirem ocupar posições de comando”.

Ainda que haja um avanço na representatividade feminina nas artes cênicas no Chile, para a diretora e artista Paula Aros Gho, diretora da Escola de Teatro da Universidade Mayor de Santiago do Chile, é preciso haver políticas públicas de fomento.

“Acredito que as mulheres que se dedicam à direção e à dramaturgia nas artes cênicas no Chile tiveram um avanço importante nas últimas décadas. Surgiram novas vozes e novos espaços de divulgação. De qualquer forma, é sempre necessário pensar na perspectiva da paridade. Há espaços em que este aspecto nem sequer é considerado. E claramente, estamos diante de um avanço que não tem muito tempo, portanto é necessário gerar políticas que o garantam”, enfatiza a diretora chilena.

NARRATIVAS PRÓPRIAS

No palco, os enredos de Hilda Hilst valiam-se de simbologias para falar sobre injustiças sociais e de gênero, violências, dogmas da religião, entre outros temas, assim como sua contemporânea Consuelo de Castro. Enquanto Renata Pallottini, também poeta, tratava das dores no cotidiano da mulher, Leilah Assumpção costurava as cicatrizes do feminino. Hoje, mais de meio século depois, dramaturgas e diretoras latinas e ibero-americanas tratam de forma ainda mais evidente esses temas, expondo com profundidade as feridas tocadas pelas gerações passadas. O espírito do tempo se encarregou de afiar a escrita de autoras como as brasileiras Grace Passô e Sílvia Gomez, a peruana Mariana de Althaus, a chilena Paula Aros

Crop
Cult Lampa
teatro

Granada, espetáculo da diretora e dramaturga Paula Aros Gho na programação do MIRADA 2024, é uma releitura do mito grego de Perséfone que coloca o público como testemunha de uma história que investiga a origem da violência patriarcal.

Gho, para citar algumas de tantas criadoras que partem de questões existenciais, sociais, políticas, econômicas e culturais espinhosas do século 21.

Apesar das particularidades de cada país, e das interseccionalidades presentes, tanto o Brasil quanto outros territórios latinos e ibero-americanos compartilham afinidades na esteira da produção dramatúrgica assinada por mulheres. Pavimentado por obras cujas temáticas trazem, cada vez mais para perto, os efeitos experimentados por sociedades ameaçadas pela polarização política, pela desinformação, pelo populismo, pelo racismo e pela violência de gênero, o teatro é esse espaço que possibilita a emergência de uma consciência coletiva para uma reflexão do momento atual.

Ao desenvolver as temáticas de suas obras, a diretora e atriz Grace Passô enfatiza que o teatro precisa pensar sobre a negritude no Brasil. Como na peça escrita por Zora Santos, a O fim é uma outra coisa, que esteve em cartaz no Sesc Avenida Paulista, em abril passado, cuja direção de Passô propõe o teatro como um chão coletivo de questionamentos acerca da colonialidade, mas também de celebração dos saberes da cultura afro-diaspórica. “Não me interessa nenhuma discussão que não se interesse ou que não passe por isso, que não fale sobre a negritude, sobre os povos originários

GOSTARIA QUE AS MINHAS OBRAS LEVASSEM

O ESPECTADOR A QUESTIONAR O SEU

PAPEL NAS QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS

QUE OS AFETAM, SEM DEIXAR

DE LADO

A FRUIÇÃO, A CELEBRAÇÃO DA VIDA

Mariana de Althaus, dramaturga e diretora peruana

brasileiros, que não pense sobre formação desse país, que não reflita sobre o que é um ‘país’”, disse em entrevista à Revista E, na edição de maio de 2024.

A peruana Mariana de Althaus também leva ao palco enredos que questionam o status quo de uma sociedade atravessada pelo colonialismo e pelo patriarcado. No MIRADA, ela apresentará dois textos de sua autoria e sob sua direção: Quemar el bosque contigo adentro [Queimar o bosque com você dentro] que reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico, e entrelaça natureza e relações sociais; enquanto La vida en otros planetas [A vida em outros planetas] traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de um grupo de professores e alunos. “Acredito que o teatro seja um espaço privilegiado para provocar questionamentos da comunidade. Gostaria que as minhas obras levassem o espectador a questionar o seu papel nas questões políticas e sociais que os afetam, sem deixar de lado a fruição, a celebração da vida e do que nos une. Sem perder o bom-humor, que é o que permite nos aproximarmos de nossas feridas”, acredita.

Com o espetáculo Granada, releitura do mito grego de Perséfone, contado sob diferentes ângulos, a diretora chilena Paula Aros Gho investiga a origem da violência patriarcal, e parte da luta contra a violência de gênero em manifestações de 2018. “Quando as mobilizações

feministas da quarta onda aconteciam com muita força aqui, no Chile, surgiram manifestações de estudantes universitários. Sou professora universitária, portanto, foi algo do cotidiano que vivi”, recorda. Biográficos e contextuais, os temas que inspiram as peças de Gho conversam, ainda, com outras inquietações. “Se olharmos para os temas específicos, podemos encontrar certas semelhanças em termos de questões bastante atávicas para a humanidade. Neste sentido, penso que tenho uma tendência filosófica e poética relativa às questões que coloco em meus trabalhos. De alguma forma, todos esses temas emergem de uma observação do meu contexto pessoal e social”, explica.

A violência contra a mulher, em Neste mundo louco, nesta noite brilhante, ou a maternidade compulsória e a supremacia do consumo em Mantenha fora do alcance do bebê, da dramaturga Sílvia Gomez, também dialogam com enredos escritos por outras autoras latinas ibero-americanas contemporâneas. Aliás, em agosto passado, Gomez foi a única brasileira convidada a participar da 5ª edição do Punto Caderneta Punto –Encontro Ibero-Americano de Dramaturgia, realizado pela dramaturga Carolina Vivas, em Bogotá, Colômbia.

No evento, a brasileira ministrou uma oficina, participou de um bate-papo e acompanhou a leitura de sua obra A árvore – em cartaz até 1º de setembro, com

Alessandra Negrini, no Centro Cultural São Paulo. Em cena, a história de uma mulher que ganha, da vizinha, um vaso de planta e acaba se vendo presa a uma pequena Mimosa pudica. Entre galhos e folhas, transforma-se aos poucos, expandindo sua consciência e existência para além das paredes do apartamento. A recepção da leitura, segundo Gomez, gerou um sentimento de identificação para outras criadoras presentes no encontro. Entre algumas, uma autora cubana disse, recorda a dramaturga, “somente uma mulher poderia tê-lo escrito”. Afinal, é a partir do corpo de uma mulher, cerceado, preso e solitário, que partem as indagações da protagonista de A árvore

Para a diretora chilena Paula Aros Gho, o teatro realizado por mulheres na América Latina, as artes cênicas ou performáticas, em geral, têm no corpo um ponto de encontro. “Na forma como os corpos são expostos, não apenas como uma corporeidade evidente, mas também em como penso que as corporeidades devem coexistir no mesmo espaço e tempo”, ressalta. “Penso que os milênios, os séculos que se passaram desde a inauguração da cultura ocidental androcêntrica e patriarcal, nos

fizeram esconder ou reprimir o corpo de uma forma poderosa. Por isso, acredito que as mulheres falam sempre a partir daí”, conclui a diretora chilena.

Herdeira de uma geração em que o corpo sofria ainda mais restrições fora e dentro do palco, a diretora e dramaturga Solange Dias também observa que essa nova geração transborda as questões do feminino, especialmente, sua corporeidade. “Ele está muito forte, presente e exacerbado. Não há vergonha de se mostrar onde dói e de escancarar, nesse sentido de afetar mesmo. Antes, talvez, a gente tivesse algum pudor ou usaria de estratagemas, coisas simbólicas. Tanto que eu sigo aprendendo muito com as dramaturgas que oriento hoje. É um círculo que não se fecha nunca”, celebra.

TODAS NOSOTRAS

A escrita de si em um determinado contexto social; regimes de opressão; o corpo atravessado pela violência de gênero; a reelaboração da maternidade. Esses são alguns dos temas que convergem em

AS MESMAS QUESTÕES QUE

Sílvia Gomez, dramaturga

Em A Árvore, peça escrita por Sílvia Gomez, a atriz Alessandra Negrini costura fatos do cotidiano a reflexões filosóficas enquanto atravessa um processo de metamorfose provocado por uma planta.

obras teatrais criadas e dirigidas por mulheres no contexto latino e ibero-americano. Características que não apenas saltam aos olhos do público, mas que também abrem espaço para trocas entre espectadores e, principalmente, entre criadoras cênicas.

Para Sílvia Gomez, essa troca intelectual e dramatúrgica entre países latino e ibero-americanos é essencial para um diálogo e proximidade entre os pares. “No encontro em Bogotá, percebi que temos as nossas questões e especificidades, mas, no fundo, somos todos ibero-americanos, latino-americanos com questões muito parecidas. Não só nos textos de mulheres, mas nos textos dos homens também.

A dramaturga brasileira também conta que se identificou com o texto de outras autoras latino-americanas presentes. “Por exemplo, o texto de Mariana de Althaus, que criou uma história sobre uma sereia chola (nome dado à mulher indígena peruana). Ela estava na beira do mar e não conseguia voltar. A população ficou chocada por se tratar de uma sereia que não correspondia à imagem mítica. Foi muito interessante ver como Mariana se apropriou do mito e trouxe a questão do racismo no país”, exemplifica.

A partir de uma diversidade de narrativas e contextos, a dramaturgia salta fronteiras geográficas e alimenta-se de diferentes pontos de vista, segundo Silvia Gómez. “Eu sinto que temos muito em comum, dramaturgas latinas e ibero-americanas: essa capacidade de abrir ventanas para que a gente possa vislumbrar outras formas de contar histórias. Lendo essas mulheres, me aproximo mais delas, me entendo como mulher, como mulher latino-americana e como mulher latino ibero-americana brasileira em um imenso território cercado por pessoas que falam castelhano, mas que ao mesmo tempo abraçam as mesmas questões, que transparecem no palco e na escrita. Porque o teatro também é a elaboração dos impactos do tempo. Então, essas escritas revelam muita identificação”, arremata.

Priscila Prade

FRICÇÕES TEATRAIS

A sétima edição do MIRADA – Festival

Ibero-Americano de Artes Cênicas ocupa o Sesc Santos e outros locais da cidade e região com 33 espetáculos de 10 países

Como um grande território para trocas e diálogos, o MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas chega à sua sétima edição com o objetivo de apresentar experiências cênicas dos países da América Latina, Portugal e Espanha, favorecendo diálogos entre seus criadores e apresentando ao público suas produções. De 5 a 15 de setembro, estão programados 33 espetáculos de 10 países, reunindo múltiplas linguagens em teatro, dança, performance e teatro de rua para todas as idades, no Sesc Santos e outros locais da cidade e região.

Nesta edição, o Peru será o país homenageado, e o festival propõe uma reflexão sobre questões indígenas, decoloniais, relações com a natureza, gênero e identidades, migrações e diversidade de corpos, temáticas presentes nas montagens. Do Brasil, apresentam-se um total de 13 trabalhos dos estados do Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo. Na programação haverá, ainda, atividades formativas e um encontro de programadores internacionais e nacionais de festivais cênicos espalhados pelo mundo.

De acordo com o Diretor Regional do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, “compreender o pertencimento ancestral enriquece a pesquisa nas artes performáticas, ampliando visões e criando novos contextos”. Dessa forma, complementa, “essa percepção pode superar supostas hierarquias entre povos e permitir novas aproximações simbólicas. O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas estimula essas confluências por meio de eixos sobre o sonho, a floresta e a esperança, incentivando trocas culturais entre os países convidados”.

Confira alguns destaques:

PERU

¿Dónde están las feministas? Conferencia performática de una falsa activista [Onde estão as feministas? Conferência performática de uma falsa ativista]

Com Liliana Albornoz Muñoz

A partir de uma perspectiva pessoal e crítica, a performer discute o feminismo e de que forma ele se mantém como força

para ver no sesc / teatro

transformadora para a sociedade.

Dias 12 e 13/9. Quinta e sexta, 21h. Local: Centro Espanhol de Santos.

COLÔMBIA

Historia de una oveja

[História de uma ovelha]

Com Teatro Petra e Centro Nacional de las Artes

Uma migração forçada é contada pela história fabular de uma ovelha que testemunha a expulsão dos habitantes de seu município e é compelida a vagar pelo país.

Dias 10 e 11/9. Terça e quarta, 21h. Local: Teatro Brás Cubas.

BRASIL

Azira’i

Com Zahy Tentehar (RJ)

A atriz narra sua relação com a mãe, primeira mulher pajé de sua reserva indígena, que deixou à filha o legado espiritual e as frustrações do processo de aculturamento.

Dia 15/9. Domingo, 17h e 20h. Local: Teatro Guarany.

CHILE / PORTUGAL

G.O.L.P.

Com Teatro Experimental do Porto e Teatro La María

Com tons de absurdo, o espetáculo imagina um Portugal comunista supostamente perfeito e um

Chile democrático em crise, numa reflexão sobre regimes ditatoriais.

Dias 10 e 11/9. Terça e quarta, 20h. Local: Sesc Santos (Ginásio).

Programação completa em: sescsp.org.br/mirada

entre a e a CIÊNCIA CANÇÃO

No centenário de Paulo

Vanzolini, a genialidade de quem conciliou o rigor científico e o lirismo boêmio

POR MANUELA FERREIRA

Ocompositor, zoólogo e professor, Paulo Vanzolini (1924-2013) vivenciou a urbanidade paulistana como poucos. Uma relação intrínseca iniciada na avenida Brigadeiro Luís Antônio, local de seu nascimento, e que floresceu na vida adulta, nas ruas, bares e noites desvendadas por sua singular paixão e olhar apurado. Nos versos de seus sambas memoráveis, que traduzem tão bem a alma da cidade, Vanzolini se esmerou em observar a natureza em seus detalhes – e a relevância de suas investigações o levou a dirigir, por mais de três décadas, o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), um dos centros de referência para estudos sobre a origem e a vida dos animais na América Latina. Como pesquisador, conduziu expedições que catalogaram dezenas de exemplares de anfíbios e répteis da fauna brasileira, e foi um dos mais importantes teóricos sobre a formação de novas espécies no continente, sob o ponto de vista biológico, evolutivo e ambiental.

No cerne dessas duas facetas, unindo arte e ciência, esteve um homem que, no ano de celebração de seu centenário, permanece provocando inspiração por seu legado de amor ao conhecimento, à criação e à poesia da vida. “Gostaria que o recordassem para além do homem público, como um grande humanista. Uma pessoa de cabeça aberta,

Paulo Vanzolini em pesquisa de campo na Mata Atlântica de Boraceia, município no litoral norte do estado de São Paulo, na década de 1950.
Acervo

sem preconceito algum e de grande senso ético”, revela a professora Maria Eugenia Vanzolini, filha do compositor, cuja vida e obra são homenageadas na exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio, em cartaz no Sesc Ipiranga [leia mais em A poesia das descobertas].

PONTOS DE PARTIDA

Entre os aspectos que melhor sintetizam a ligação do compositor com a pauliceia, Maria Eugenia Vanzolini destaca um show na Virada Cultural de 2005, realizado no Vale do Anhangabaú, região central de São Paulo. Na ocasião, Vanzolini tinha 81 anos e, acompanhado pela cantora Vânia Bastos, presenciou centenas de espectadores entoando suas canções como uma “segunda voz”. “Ele ficava feliz ao ver as pessoas interpretando suas músicas espontaneamente. Mesmo com as muitas homenagens que recebeu em vida, ter o povo cantando suas letras o emocionava demais”, recorda a filha, uma das idealizadoras da mostra que celebra o expoente do samba paulista.

A ligação do compositor com a natureza tem suas origens, por sua vez, em outro espaço icônico da cidade: o Instituto Butantan, instituição de pesquisa em saúde pública com enfoque nos estudos e produção de vacinas e soros. Um passeio de bicicleta pelo lugar, aos 10 anos de idade, acompanhado pelos pais, despertou no garoto o interesse pela biologia, e em especial pelos répteis. O desejo de estudá-los passou a tomar forma enquanto, paralelamente, cursava o ensino fundamental no Colégio Rio Branco.

Ao se formar em medicina na USP, em 1947, Vanzolini já era um pesquisador experiente, com passagem pelo Instituto Biológico de São Paulo. No ano seguinte, ingressou no doutorado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Não exerceu a medicina, pois seu foco sempre foi se aprofundar na herpetologia (estudo dos répteis e anfíbios), área na qual se especializou. Mas, a faculdade lhe rendeu familiaridade com as disciplinas de anatomia, fisiologia e patologia, importantes para a finalização da pós-graduação em solo estadunidense.

Acervo
Família
Vanzolini
A bordo do Garbe, barco que Vanzolini utilizava nas expedições fluviais na Amazônia, em expedição científica realizada na década de 1960.
Gostaria que o recordassem para além do homem público, como um grande humanista.
Uma pessoa de cabeça aberta, sem preconceito algum e de grande senso ético.
Maria Eugenia Vanzolini, filha e professora

DISCIPLINA E VOCAÇÃO

De volta ao Brasil, o cientista realizou, nas décadas seguintes, cerca de 30 viagens expedicionárias à Amazônia, que somaram cerca de 12 mil quilômetros de navegação nos rios da região. Em entrevista à edição número 56 da Revista E, em janeiro de 2002, Vanzolini detalhou as incursões pela floresta. Realista, enfatizou o caráter sério e pragmático do trabalho de campo. “Pesquisa é uma questão de rotina bem-feita. Fico meio chateado quando falam da 'aventura' da expedição. Expedição que acaba em aventura é malfeita. A expedição competente acontece para pegar o bicho; além disso, ninguém fica doente, ninguém se machuca, ninguém passa fome. Os profissionais pegam os bichos e fazem as observações. Isso é uma boa expedição. As pessoas sabem para onde estão indo, elas têm prática. O resto é coisa de televisão”, analisou.

Embora seus objetos de pesquisa estivessem, sobretudo, em áreas tropicais, Vanzolini se orgulhava de ter explorado o Brasil inteiro, sempre com a mesma linha de investigação. Tal feito resultou, por exemplo, na atualização, pelo brasileiro, da Teoria dos Refúgios, do geólogo alemão Jürgen Haffer (1932-2010), que explica o surgimento de espécies na Amazônia e na Mata Atlântica. “Trabalhei em todos os estados. Só não trabalhei muito em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, porque estão fora do trópico. Mas, já trabalhei muito no Brasil Central, na Amazônia e no Nordeste.

(...) Eu conheço o Nordeste como o fundo do meu bolso. Se você quiser saber como faz para ir de tal lugar para tal lugar, é só falar”, relatou à publicação. O cientista redigiu, ainda, o anteprojeto de criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), entidade ligada ao governo paulista e um dos mais importantes órgãos de fomento à ciência no país.

SEMPRE ATENTO

A música e a atmosfera da noite ganharam espaço na vida de Vanzolini enquanto ainda era estudante universitário. “Houve uma época em que todas as noites ia ao Jogral, o bar mais importante de São Paulo naquele tempo, e que pertencia ao [cantor e compositor] Luís Carlos Paraná (1932-1970), um amigo muito querido. Ali se tocava música de qualidade excepcional. Se o garçom faltava, punha a jaquetinha dele e servia as mesas”, rememorou Vanzolini, em conversa com o médico e escritor Drauzio Varella, seu ex-aluno, publicada no Portal Drauzio Varella, em 16 de fevereiro de 2012. Reflexões sobre amores, dores e esperanças frustradas, entretanto, tiveram impulso quando Vanzolini serviu como cabo da cavalaria do Exército, entre 1944 e 1945. Eventualmente, ao patrulhar, a pé, a região central de São Paulo, em especial os bairros do Bixiga, Bom Retiro e Luz, ele presenciava episódios de desentendimento entre amantes, muitas vezes potencializados pelo álcool. Assim

nasceu, por exemplo, o samba-canção “Ronda”, obra-prima do cancioneiro popular, gravado pela amiga e cantora Inezita Barroso (1925-2015) no disco Marvada Pinga, de 1953.

A música rapidamente se tornou um hino informal de São Paulo, com mais de 30 regravações, entre elas as clássicas versões de Maria Bethânia e Cauby Peixoto (1931-2016). Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, de 22 de abril de 2009, Vanzolini falou sobre a motivação que o levou a escrever a antológica letra. “Cansei de ver mulher chegar na frente do bar, olhar para dentro como se procurasse alguém e ir embora. Não foi uma só que vi. Escrevi sobre isso”.

EM VERSO E PROSA

Outro sucesso, “Volta por cima”, foi gravado pela primeira vez em 1963, pelo cantor Noite Ilustrada, pseudônimo de Mário de Souza Marques Filho (1928-2003). De tão marcante, um de seus versos consta no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: “dar a volta por cima” se tornou sinônimo de “superar adversidades e sair fortalecido”. A canção continua presente em rodas de samba. “Paulo tem uma particularidade em seu modo de compor que

me chama muito a atenção. Um cronista de mão cheia. Começa e termina o enredo de forma clara, não deixando dúvidas de que o fim é o fim. As letras se encaixam na melodia de forma que o ouvinte rapidamente abre o seu imaginário e é impactado pela história que está sendo contada sobre notas musicais, de suspensão e resolução muito bem escolhidas”, avalia o músico Henrique Araújo, consultor para o conteúdo musical da exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio.

Sua proximidade com o cancioneiro do autor de “Na Boca da Noite” foi intensificada a partir de 2012, ao participar, como instrumentista, do álbum Paulo Poeta Cientista Compositor Boêmio Vanzolini (Biscoito Fino), do cantor e compositor Carlinhos Vergueiro. “Me chamou a atenção a versatilidade de sua obra, letra e música muito bem construídas, com a curiosidade de terem sido feitas sem o auxílio de nenhum instrumento melódico ou harmônico”, relatou Araújo. Irreverente, Paulo Vanzolini afirmava desconhecer a teoria musical e não saber ao menos a diferença entre tom maior e menor. Algo que não o impediu de assinar alguns dos sambas mais importantes da história da música popular brasileira, ao passo que contribuía, também de forma gigantesca, para o avanço científico.

Chorei, Não procurei esconder

Todos viram, fingiram

Pena de mim, não precisava

Ali onde eu chorei

Qualquer um chorava

Dar a volta por cima que eu dei

Quero ver quem dava

Versos de “Volta por cima”, canção de Paulo Vanzolini

gravada pela primeira vez em 1963

para ver no sesc / bio

A POESIA DAS DESCOBERTAS

Exposição em cartaz no Sesc Ipiranga revisita as contribuições científicas e musicais de Paulo Vanzolini, um mestre da observação

Entre melodias e répteis, recordações do universo criativo de um homem que de dia se vestia de zoólogo e à noite de sambista, são celebradas na exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio, em cartaz no Sesc Ipiranga até março de 2025. “A expectativa é mostrar para o maior número de pessoas um pouco do universo desse brasileiro interessado e interessante. Meu pai ficou mais conhecido pelo público por essa definição de cientista/compositor, e a ideia da mostra é apresentar um pouco mais do universo plural e diverso dele. Será uma oportunidade para o público vê-lo como um homem que viu, ouviu, pensou, pesquisou, traduziu, escreveu, cantou e compôs o Brasil”, define o cineasta Toni Vanzolini, filho e um dos idealizadores da homenagem.

A vertente musical do autor de mais de 70 composições divide espaço com, entre outros itens, fragmentos dos diários de campo redigidos pelo cientista. Nos escritos, é possível atestar seu absoluto rigor e meticulosidade na tomada de dados dos exemplares estudados. “Paulo Vanzolini é um exemplo de

Ilustração de Alice Tassara faz parte de exposição que percorre vida e obra do cientista e compositor Paulo Vanzolini.

como fazer ciência, e sua atuação promoveu o avanço científico no país. Nos registros podemos ver o quanto ele era respeitoso com o dinheiro público, como ele observava a vida das pessoas, como interagia com os demais, e como os dados levantados em campo seriam usados em seus artigos científicos, posteriormente”, explica a zoóloga e pesquisadora Renata Moretti, consultora para o conteúdo de ciências da exposição.

IPIRANGA

100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio

Idealização: Maria Eugenia Vanzolini e Toni Vanzolini.

Curadoria: Daniela Thomas.

Até 16/3 de 2025. Terça a sexta, das 9h às 21h30. Sábados, das 10h às 20h30. Domingos e feriados, das 10h às 18h30. GRÁTIS. sescsp.org.br/ipiranga

CAMADAS DO REAL

Luminária neobarroca no ateliê. Série O ateliê de São Paulo (2004-2006). Óleo sobre tela. 140 x 240 cm.

Com mais de três décadas de produção entre Brasil e Alemanha, artista José De Quadros interpreta, em suas telas, questões urbanas, conflitos históricos e injustiças sociais

Acervo Sesc de Arte
Ateliê-Tensão. Série O ateliê de São Paulo (2004-2006). Óleo sobre tela. 180 x 190 cm.

Desenhar árvores, paisagens e outros elementos da natureza era atividade constante na infância de José De Quadros, nascido em Barretos (SP), no fim da década de 1950. Mas a vida o distanciou das artes visuais, com exceção de rápidas visitas a museus, nos intervalos de almoço, quando o rapaz trabalhava em um banco e estudava administração, no Rio de Janeiro (RJ). Chegou a atuar no mercado financeiro em São Paulo (SP), até que, em 1985 resolveu deixar o universo de dividendos e ações para trás e perseguir o sonho de criança: ser artista. A decisão não foi bem-vista pela família, porém, De Quadros acredita ter contado não só com o talento, mas com a sorte – “foi um tiro no escuro”.

O criador autodidata, então, no fim da década de 1980, conseguiu uma vaga na Faculdade de Artes Plásticas de Kassel, na região central da Alemanha, onde se especializou em pintura. “Meu professor, adepto do realismo, não entendia bem o que eu fazia, mas gostava. Não sou um artista clássico ou comercial. Meus trabalhos são híbridos, têm muitas influências. Gosto da mistura, da simbiose, de criar fotos com cara de pinturas e quadros que parecem imagens”, resume De Quadros, que vive em Kassel, a 400 quilômetros de Berlim, há 35 anos. Entre os nomes que o inspiram estão Vincent Van Gogh (1853-1890), Claude Monet (1840-1926), Almeida Júnior (1850-1899), Iberê Camargo (1914-1994), e os contemporâneos Anselm Kiefer e William Kentridge.

O artista já participou de diversas mostras coletivas e individuais nos dois lados do Atlântico, além de ter obras em coleções como o Acervo Sesc de Arte. Mesmo com a vida estabelecida na Europa, o pintor ainda cultiva suas raízes no Brasil, que visita todo ano e onde mantém um segundo ateliê, numa antiga mercearia no Itaim Paulista, na zona Leste de São Paulo. Em mais de três décadas de intensa produção, De Quadros coleciona séries de pinturas sobre seus ateliês, de mãos de trabalhadores, florestas, animais desenhados sobre jornais de propaganda nazista e outras obras que sobreviveram a um incêndio criminoso, ocorrido em seu primeiro estúdio na Alemanha, em 2006.

A partir de diferentes técnicas, suportes e materiais, os desenhos e pinturas do artista abordam questões urbanas, sociais e humanitárias, além de períodos e acontecimentos trágicos da história, como o nazismo,

os genocídios armênio (na obra ARARAT) e indígena (no trabalho Réquiem para Maria Rosa ou Maria Rosa encontra-se com Hans Staden), e a situação de indivíduos refugiados, perseguidos ou segregados. “Contemplo o mundo e vejo as pessoas. Tento me colocar no lugar do outro. Busco refletir sobre o que nos rodeia para a construção de novos olhares, contra preconceitos étnicos, raciais, de gênero etc.”, destaca.

Algo que atrai o pintor, e pode ser observado em inúmeros trabalhos, é um processo chamado “pentimento”, palavra de origem italiana que significa uma “pintura com várias camadas sobrepostas”. “É como um arrependimento, algo que você pinta e, com o tempo, aparece o que está atrás. Assim como faço palimpsestos (reutilização de um material-base que revela traços da obra anterior) com bulas de remédios e jornais alemães do período nazista, dandolhes novas simbologias”, explica. Segundo a historiadora da arte e curadora Tereza de Arruda, que acaba de organizar um livro sobre vida e obra de José De Quadros [leia mais em Sobre o viver], seu projeto com jornais, por exemplo, é uma forma de garantir a sobrevivência de histórias e memórias. São desenhos que parecem banais, mas que escondem uma grande tragédia da humanidade. “Todo o trabalho dele está respaldado na realidade, no cotidiano, em experiências que as pessoas vivenciam. São questões emergenciais que não perdem a atualidade e demandam uma imersão, um entendimento com confrontação”, avalia.

Para Arruda, a vasta produção de De Quadros se potencializa, ainda mais, com sua vida (e seu olhar) dividida(o) entre dois continentes. “Esse distanciamento geográfico e físico é produtivo, pois ele consegue enxergar tanto o Brasil quanto a Alemanha com um filtro, sob perspectivas diferentes, por meio de uma estética que caminha ao lado de ideais de liberdade e explora espaços de convivência, trabalho, discussões, conflitos e disputas de poder”, analisa. Na visão do artista, existem paralelos entre pessoas periféricas no Brasil e imigrantes ou refugiados na Alemanha. “Gostaria que todos tivessem paz e condições básicas de vida (moradia, alimentação, saúde e estudos), oportunidades de se realizar, de se desenvolver e perseguir seus sonhos, como eu tive. Na Alemanha, as pessoas se perguntam por que vivem. No Brasil, muitos só pensam em sobreviver. Precisamos viver, e não apenas sobreviver”, finaliza.

Incêndio criminoso. Série Hannah Arendt (2006-2009). Técnica mista sobre tela. 145 x 150 cm.

Ateliê expandido. Série O ateliê de São Paulo (2004-2006). Óleo sobre tela. 150 x 300 cm.

Na página a seguir: Çoba Mongatironçaba. Série Maria Rosa encontra-se com Hans Staden (1999-2023). Técnica mista sobre papel. 120 x 170 cm.

gráfica

Piromania 3 Série Fênix (1997-2006). Óleo sobre tela. 200 x 190 cm.
Tamarutaca I. Série A beleza do inusitado (2017). Técnica mista sobre placa de acrílico. 195 x 250 cm.

A metamorfose dos sapos. Série Jogos de armar (2006-2014). Técnica mista sobre jornal. 47 x 32 cm.

para ver no sesc / gráfica

tela. 160 x 200 cm.

SOBRE O VIVER

Pela primeira vez, pintor José De Quadros tem repertório artístico reunido em livro com entrevista e artigo inéditos, além do registro fotográfico de mais de 80 obras

Em 2010, José De Quadros ganhou uma exposição individual no Sesc Pompeia, intitulada sobreVIVER. O nome tem duplo significado: “sobre o viver” e “sobreviver”, pois o artista visual resgatou obras que resistiram a um incêndio na Alemanha, em 2006, e saiu vivo de um acidente grave no interior de Sergipe, onde, aos 50 anos, foi atropelado por um motociclista alcoolizado, fraturou o crânio e chegou ao hospital em estado grave.

A partir da mostra no Sesc Pompeia foi gestada a ideia de um livro que reunisse obras e informações sobre o artista, natural de Barretos (SP) e cidadão alemão há mais de três décadas. Ainda neste ano, as Edições Sesc São Paulo lançam José De Quadros –sobreVIVER ainda, organizado pela

historiadora e curadora de arte Tereza de Arruda. “Esse livro é a grande monografia do artista, um produto coletivo, fruto de muitas trocas e colaborações. Inclui uma entrevista inédita com ele, feita a várias mãos [pela educadora Bel Santos Mayer e pelo coletivo Vozes Daqui de Parelheiros], além de um artigo da arte-educadora Rita de Fitas. O objetivo é multiplicar as perspectivas sobre seu trabalho”, destaca Arruda. Segundo a organizadora, a publicação faz um recorte de várias fases do pintor, interligando fatos históricos e globais a suas vivências pessoais. “Selecionamos mais de 80 obras, de 1990 até 2023. Mas, esse não é um trabalho acabado, definitivo, pois ele continua em atividade”, acrescenta.

Segundo Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo, o repertório visual do artista tem figurado em diversas exposições realizadas pela instituição. “Apesar da extensa colaboração com o Sesc e outras organizações culturais brasileiras, José De Quadros ainda não havia sido contemplado com uma publicação dedicada ao conjunto de seu trabalho, o que reforça a pertinência do livro, que chega para preencher essa lacuna”, ressalta.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

José De Quadros –sobreVIVER ainda (2024)

Organização: Tereza de Arruda sescsp.org.br/edicoes

Alemanha, um conto de fadas de inverno (a partir de H. Heine). Série Florestas (1993-1998). Óleo sobre

negritudes

Moradores do Quilombo São Pedro, no Vale do Ribeira, durante um puxirão para colheita de arroz. A mobilização coletiva para a realização de tarefas é uma das práticas da cultura local.

ANCESTRAL cultivo

Comunidades quilombolas do Vale do Ribeira preservam e disseminam sabedorias tradicionais em suas práticas agrícolas, com roça de coivara, trocas de sementes e produção de alimentos orgânicos POR LUNA D’ALAMA

Muitos são os saberes que se revelam nos fazeres cotidianos da vida na roça. Cultivar a terra, preparar o solo, plantar e colher reúnem conhecimentos e práticas culturais milenares. Comunidades quilombolas presentes em diferentes pontos do território brasileiro veem nas atividades da roça não apenas uma forma de subsistência, mas de resistência e de manutenção de seus fundamentos ancestrais.

Atualmente, existem 7.600 quilombos no Brasil, somando 1,3 milhão de pessoas, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quase 64% desses grupos estão concentrados na região Nordeste, com predominância nos estados do Maranhão e da Bahia, onde a população negra chega a 80%. No Sudeste, o Vale do Ribeira – que

abrange 22 municípios paulistas e nove paranaenses – reúne 35 comunidades quilombolas, sendo 13 na região de Eldorado (SP).

Uma dessas comunidades, o Quilombo São Pedro, está localizada a cerca de 100 quilômetros da cidade de Registro (SP). É lá que vive Luiz Marcos de França Dias, conhecido como Luiz Ketu, liderança comunitária e doutorando em educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “No século 21, o que define um quilombo é a garantia do território. Trata-se, portanto, de uma questão geográfica, que diz respeito às terras e aos seres (pessoas, bichos e plantas) que habitam esses espaços. Nos organizamos em associações, estabelecendo relações sociais e políticas com o exterior e instituições parceiras”, resume.

QUESTÃO DE DIREITO

Na visão de Luiz Ketu, o quilombo é um museu vivo, um laboratório a céu aberto que mantém florestas da Mata Atlântica em pé e preserva conhecimentos tradicionais em diversos campos. “Mais de 90% do nosso território é coberto por vegetação nativa. Ou seja, utilizamos apenas 10% para cultivo de alimentos diversos (como banana, milho, mandioca, arroz, feijão, abóbora, batata-doce, chuchu, jaca, laranja, limão, pepino, palmito pupunha e hortaliças)”, destaca a liderança do quilombo que abrange uma área de pouco mais de 4.600 hectares e abriga mais de 50 famílias. Luiz Ketu, que também ministra oficinas de iniciação a percussão, capoeira, jongo, samba de roda, ciranda e coco para crianças e adultos em um projeto social, cita ainda o artigo

68 da Constituição Federal ao falar sobre o direito de quilombolas existirem e coexistirem nesses espaços: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Além de lutarem para que seus territórios sejam reconhecidos oficialmente e registrados em cartório, as comunidades quilombolas têm resistido contra diversas ameaças, como megaempreendimentos imobiliários, garimpos, invasões para extração de palmito-juçara, e a intenção de se construírem usinas hidrelétricas ao longo do Rio Ribeira de Iguape. “Estamos em permanente estado de alerta”, conta. Para fortalecer o movimento, foram criados espaços de discussão de direitos,

frentes de defesa e estruturas como o Grupo de Trabalho (GT) da Roça e a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale).

O GT da Roça foi fundado por comunidades quilombolas no Vale do Ribeira e inclui representantes de vários quilombos, além de organizações parceiras da região. O grupo é responsável pela realização anual da Feira de Troca de Sementes e Mudas. A 15ª edição do evento ocorreu entre os dias 16 e 17 de agosto, em Eldorado. Já a Cooperquivale tem, desde 2012, o objetivo de escoar a produção de alimentos dessas comunidades, comercializando itens in natura, sem agrotóxicos, em municípios vizinhos. A cooperativa já chegou a administrar 70 variedades de produtos.

negritudes

PATRIMÔNIO CULTURAL

O sistema agrícola tradicional quilombola foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2018, como patrimônio cultural brasileiro. Segundo o professor Luiz Marcos de França Dias, essa medida ajuda a fortalecer as instituições e os processos coletivos quilombolas. O reconhecimento do Iphan diz respeito à roça de coivara, uma técnica milenar (no Brasil tem mais de 300 anos) que inclui o uso do fogo (e não de tratores) para renovar o solo – o que, no passado, já foi considerado perigoso e ambientalmente prejudicial. “Utilizamos o fogo em pequena escala, de maneira controlada. Ele não adentra as matas. É muito

diferente do que ocorre no Pantanal e na Amazônia, por exemplo, onde há incêndios criminosos. A nossa técnica não agride o meio ambiente, nem as camadas inferiores do solo ou o lençol freático. E sua segurança foi comprovada, inclusive, por pesquisas científicas da Universidade de São Paulo (USP)”, explica.

As cinzas que restam desse processo, de acordo com Luiz Ketu, agem como defensivos agrícolas naturais. E os troncos mais grossos da vegetação, que não queimam, entram em estado de decomposição, contribuindo para a fertilidade do solo. “Além disso, trata-se de um processo rotativo de culturas, que não usa a terra de forma exaustiva. Fazemos

o pousio, isto é, completamos o ciclo daquelas culturas e, então, deixamos o solo descansar para que a área se regenere e recupere sua vitalidade. Só retornamos àquele local específico depois de uma, duas ou até três décadas”, ressalta. O professor lembra que, por conta da proibição – e até criminalização – da roça de coivara, com consequente aplicação de multas a quem a praticasse, houve um grande êxodo de quilombolas do Vale do Ribeira, nas décadas de 1980 e 1990, para cidades da Baixada Santista e da região metropolitana de São Paulo. “A flexibilização e a liberação das licenças ambientais só ganharam força a partir da pandemia de Covid-19, ou seja, é algo muito recente”, reforça.

Luiz Ketu
Em 2018, o sistema agrícola tradicional quilombola foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Doutora em educação, professora do ensino fundamental e aquilombada no Quilombo São Pedro desde 2017, Márcia Cristina Américo acrescenta que os conhecimentos da roça de coivara foram trazidos de países africanos, por pessoas negras escravizadas. “Não fazemos monocultura, tem muita diversidade. Nossos ancestrais nos ensinaram o que podemos cultivar e o tempo certo de cada plantio. Além disso, semeamos não só para nossas famílias, mas também para os animais, que se alimentam disso. A roça é a base do nosso trabalho, da nossa sobrevivência, da nossa vida”, avalia Américo, que é casada com Luiz Ketu e leciona, dentro da comunidade, para crianças do primeiro ao terceiro ano do ensino fundamental. “A maior referência para os pequenos são as pessoas da roça. São exemplos inspiradores”, completa.

Para fortalecer as comunidades quilombolas e divulgar seus conhecimentos, representantes

dos quilombos São Pedro e Ivaporunduva – que compõem o GT da Roça – solicitaram aos educadores locais a criação dos livros Roça É Vida (Iphan/GT da Roça, 2020) e Na companhia de Dona Fartura – Uma história sobre cultura alimentar quilombola (GT da Roça/Cooperquivale/Instituto Socioambiental, 2022). Em parceria com o Museu Afro Brasil, também foi produzido o documentário Quilombo São Pedro: Modo de ser e viver (2023), dirigido por Luiz Marcos de França Dias e Paulo Pereira. Todo esse material compõe a exposição Roça É Vida, que o Sesc Registro inaugura no dia 21 de setembro [leia mais em Viva a roça!].

SABEDORIA DISSEMINADA

Segundo Viviane Marinho Luiz, aquilombada do Ivaporunduva e uma das autoras dos livros, as publicações são um registro e salvaguarda do sistema tradicional quilombola. “São como diários que detalham a rotina da roça,

NOSSOS ANCESTRAIS NOS ENSINARAM O QUE PODEMOS CULTIVAR E O TEMPO CERTO

DE CADA PLANTIO

Márcia Cristina Américo, doutora em educação, professora e aquilombada do São Pedro

além de um tributo às mulheres quilombolas e aos mais velhos. Cada personagem tem um nome (Fartura, Experiência, Tradição, Esperança, Legado, Resistência, Luta, Território etc.) que traz simbologias africanas e nos conecta a esse grande território ancestral, que está no centro das narrativas e não envolve apenas a roça, mas ritos religiosos, festas e outras manifestações culturais”, explica. As publicações contribuem ainda, na opinião de Viviane Luiz para a luta antirracista e para a representatividade quilombola, pois as histórias são escritas e narradas por seus próprios integrantes. “Gosto de citar dois escritores nigerianos, Chinua Achebe (1930-2013) e Chimamanda Ngozi Adichie. Achebe falava sobre a importância do equilíbrio de narrativas, enquanto Adichie alerta sobre o perigo de uma história única”, pontua.

Marido de Viviane Luiz e um dos autores dos livros, o quilombola e agricultor familiar Laudessandro Marinho da Silva afirma que as publicações são uma parceria entre quatro representantes quilombolas e dois ilustradores. “Buscamos traduzir nossa vida em palavras. A maior dificuldade foi amarrar a escrita, trazendo-a para a linguagem infantojuvenil. Nossa principal bandeira é o reconhecimento territorial, a regularização fundiária, e essa luta foi transposta para as obras”, enfatiza. Viviane Luiz concorda com Silva e diz que, se hoje mandarem alguém para a roça, isso será visto como um elogio, pois é lindo mexer na terra. “Que a nossa perspectiva de futuro não exija uma mudança para a cidade, pois queremos continuar no nosso território e viver bem dentro dele”, enfatiza.

para ver no sesc / negritudes

VIVA A ROÇA!

De 21 de setembro até 2 de fevereiro de 2025, o Sesc Registro apresenta a exposição Roça É Vida, que esteve em cartaz no Museu Afro Brasil

A cultura, o modo de vida e as técnicas ancestrais de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, em São Paulo, compõem a exposição Roça É Vida, que o Sesc Registro inaugura em 21 de setembro, e que se estenderá até 2 de fevereiro de 2025. Concebida em parceria com a Associação dos Remanescentes do Quilombo São Pedro e o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, a mostra esteve em cartaz no Museu Afro Brasil de junho de 2023 a março de 2024. Serão apresentados objetos (como artefatos, artesanatos, cestaria e sementes crioulas), aquarelas dos livros Roça É Vida (Iphan/GT

da Roça, 2020) e Na companhia de Dona Fartura – Uma história sobre cultura alimentar quilombola (GT da Roça/Cooperquivale/ Instituto Socioambiental, 2022), além do documentário Quilombo São Pedro: Modo de ser e viver (direção de Luiz Marcos de França Dias e Paulo Pereira, 2023).

Segundo Márcia Cristina Américo, uma das autoras dos livros, a exposição permite que as pessoas do Vale do Ribeira conheçam a grandiosidade que é estar e viver naquele território, além da contribuição das comunidades quilombolas para a sociedade. “Apresentamos a estética e a poética da roça, reforçando a importância de mantermos vivas essas tradições ancestrais que nos atravessam com muita fartura de alimentos e saberes ligados à coletividade. Dessa forma, moradores da região poderão conhecer a potência do sistema agrícola tradicional e uma cosmopercepção que privilegia sentidos baseados em matrizes africanas. Numa relação muito próxima com a natureza e com o que provém dela. Nossas comunidades reivindicam o direito de existir, e não apenas de sobreviver”, ressalta.

Para Débora Rodrigues Teixeira, gerente do Sesc Registro, a mostra celebra a riqueza do Quilombo São Pedro e dos demais territórios do Vale do Ribeira. “A vinda da exposição

Roça É Vida é mais um passo na contínua colaboração, construção e manutenção da cultura local, destacando a importância da roça como símbolo de resistência, identidade e sustentabilidade. Assim, sempre comprometido com a valorização das tradições locais, o Sesc São Paulo reforça seu vínculo com as comunidades quilombolas a partir de iniciativas que promovem o conhecimento, a valorização social e o respeito mútuo”, finaliza Teixeira.

REGISTRO

Roça É Vida

Curadoria da Associação dos Remanescentes do Quilombo

São Pedro e do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. De 21 de setembro de 2024 a 2 de fevereiro de 2025. Terça a sexta, das 13h às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. GRÁTIS.

sescsp.org.br/registro

Vanderlei
Ribeiro
Ilustração de Vanderlei Ribeiro no livro Na companhia de Dona Fartura – Uma história sobre cultura alimentar quilombola (2022).

33 ESPETÁCULOS

ATIVIDADES FORMATIVAS

PONTO DE ENCONTRO

PERU [país homenageado]

ARGENTINA

BOLÍVIA

BRASIL

CHILE

COLOMBIA

ESPANHA

MÉXICO

PORTUGAL

URUGUAI

5–15 setembro 2024

INGRESSOS À venda on-line no aplicativo Credencial Sesc SP, no portal Sesc São Paulo e nas bilheterias das unidades.

SESCSP.ORG.BR/MIRADA

IBERO-AMERICANO tablado

Ainda que a geografia aponte para um distanciamento, os 23 países que compõem a Ibero-América, como Argentina, Brasil, Chile, Peru, Portugal e Espanha, aproximam-se por águas que confluem nas artes cênicas. É por meio do teatro, da performance e da dança que diferentes povos e culturas dessa região expressam, ao longo dos séculos, formas particulares de existir e de pensar o mundo. Hoje, uma convergência de temas e formatos torna possível esse encontro no tablado. Não só pela proximidade entre as línguas portuguesa e espanhola, mas principalmente pelas trocas decorrentes de um crescente número de festivais – a exemplo do MIRADA, Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, realizado neste mês, no Sesc Santos –, pelo intercâmbio de pesquisadores e criadores e pelo fomento à produção artística nesses territórios. Além das semelhanças, as particularidades dos contextos histórico, social, político, econômico e cultural de cada nação possibilitam um diálogo cênico.

Segundo a doutora em pedagogia do teatro pela Universidade de São Paulo (USP) Maria Fernanda Vomero, as condições de produção em cada país ibero-americano são muito distintas. “A começar pelas dinâmicas de financiamento e estímulo às ar-

tes, considerando o papel e a atuação do Estado e das instituições oficiais de cultura. Destaco outras diferenças importantes a se considerar: o contexto de formação de artistas, as modalidades laborais, as circunstâncias locais de acesso aos bens culturais e, sobretudo, a percepção social sobre o valor do teatro como expressão artística de interesse coletivo. A distribuição de recursos simbólicos e materiais é desigual mesmo internamente, em cada país”, destaca.

Ou seja, “são muitos os desafios ao se pensar um teatro latino-americano”, como aponta a pesquisadora e dramaturga Helena Vieira. “Há uma imensa diversidade no interior do continente, a despeito de todas as semelhanças históricas, sociais, políticas e mesmo religiosas, as questões que a realidade suscita não são as mesmas e, portanto, a resposta que o teatro é capaz de ofertar não será a mesma. Cada país encontrará uma forma de abordar suas questões. Ainda nesse sentido, penso que há um desafio de intercambiar conhecimentos, práticas e modos de fazer entre as diversas experiências teatrais latino-americanas”, conclui.

Neste Em Pauta, Vomero e Vieira compartilham suas reflexões e apontam semelhanças e singularidades do teatro ibero-americano em cena.

Lampejos sobre a cena ibero-americana

Poderíamos imaginar, tal e qual o escritor português José Saramago em A Jangada de pedra (1986), que não só a Península Ibérica se desprende da Europa e navega pelo Atlântico, como a América Latina se desgarra da porção norte do continente, rachando na altura do Rio Bravo [no México], e se lança também à deriva. Embora não se grudem, ambas as jangadas permanecem sempre próximas. Saramago era crítico da entrada de Portugal e Espanha no bloco econômico europeu, argumentando que ficariam subordinados às potências do continente; no livro, o autor fabula outros horizontes. A metáfora da jangada nos permite alinhavar alguns elementos que confluem na complexa e diversa cena teatral ibero-americana.

Outrora metrópoles coloniais, os países ibéricos talvez tenham hoje mais sintonia com os territórios deste lado do Atlântico, suas ex-colônias, que com os vizinhos geográficos – e parece que isso também acontece no âmbito das artes da cena. Não só pela afinidade idiomática e por ações de cooperação, como a realização de festivais internacionais (entre eles, o MIRADA) e iniciativas de fomento à criação artística, a exemplo do Iberescena – o Fundo de Apoio para as Artes Cênicas Ibero-Americanas –, mas também pelo constante intercâmbio acadêmico entre pesquisadores e universidades das áreas de teatro, dança e performance dos territórios latinos e ibéricos.

No entanto, o contexto sociocultural e as condições de produção em cada país são muito distintos, a começar pelas dinâmicas de financiamento e estímulo às artes, considerando o papel e a atuação do Estado e das instituições oficiais de cultura. Destaco outras diferenças importantes a se considerar: o contexto

de formação de artistas, as modalidades laborais, as circunstâncias locais de acesso aos bens culturais e, sobretudo, a percepção social sobre o valor do teatro como expressão artística de interesse coletivo. A distribuição de recursos simbólicos e materiais é desigual, mesmo internamente, em cada país.

Fora dos grandes centros urbanos e dos circuitos artísticos tradicionais, são as iniciativas teatrais comunitárias em regiões periféricas ou rurais que contribuem – e muito – para manter a experiência teatral viva e próxima da população, como uma atividade pública de fato. Nessas iniciativas, as linguagens cênicas e os temas trabalhados estão em consonância com os modos de vida do território. Muitos coletivos teatrais oriundos dessas experiências se profissionalizam posteriormente, mas não perdem o vínculo nem o diálogo com suas comunidades. Na academia, em especial no Brasil e em Portugal, pesquisas a respeito dessas práticas têm revelado abordagens instigantes e inspiradoras.

No contexto das grandes cidades, onde o cenário artístico é mais consolidado, o posicionamento crítico diante da realidade continua a orientar as práticas artísticas do chamado teatro de grupo – forma de organização e produção surgida durante os anos 1960 na América Latina e caracterizada pela pesquisa cênica continuada, pelo enfoque nos processos criativos e formativos e pela aposta em um projeto estético próprio. O teatro de grupo, mais que reunir um conjunto de artistas que fazem teatro, apoia-se na expressão coletiva e numa dinâmica de trabalho colaborativa. Por isso, tem uma inserção político-cultural e uma sustentação econômica bem diferentes das companhias nacionais/institucionais, mantidas por uma entidade governamental ou privada, ou dos elencos de montagens comerciais, contratados por obra.

A cena teatral pode ser um espaço profícuo para o exercício da imaginação política, por meio da criação de utopias ou ucronias [recriações da história como poderia ter ocorrido], da representação de conflitos ainda não domesticados (ou não institucionalizados) no âmbito social e de fabulações sobre outros modos de existir. Boa parte da produção teatral ibero-ame-

Boa parte da produção teatral ibero-americana contemporânea vem incorporando as demandas e urgências de seus territórios tanto em termos poéticos quanto estéticos

ricana contemporânea vem incorporando as demandas e urgências de seus territórios tanto em termos poéticos quanto estéticos. Corpos dissidentes têm ganhado a cena, mobilizando teatralidades diversas, trazendo novas performatividades e demolindo certas hegemonias representacionais. Outros discursos se estabelecem, desmontam-se hierarquias.

As dramaturgias, pensadas de modo expandido (em diálogo com os demais elementos criativos), têm incorporado questões espinhosas – porém, nada novas –, em contestação às estruturas do poder. Estão, entre essas questões, relatos das violências contra as mulheres, povos indígenas e afrodiaspóricos, além de outros grupos sociais historicamente subalternizados; a visibilização de populações marginalizadas, como os encarcerados ou os refugiados; os dilemas diante das mudanças climáticas, para citar algumas. Embora as peças dramáticas, com seus personagens em um mundo à parte, ainda se mantenham atrativas para muitas plateias ibero-americanas, outros públicos dos mesmos países têm apreciado obras nas quais se veem representados e se reconhecem.

Não podemos desconsiderar que a fruição opera na dinâmica entre entretenimento e reflexão –por isso, as escolhas estéticas são fundamentais para traduzir em cena os conteúdos tematizados. Em um panorama geral, a experimentação com a linguagem tem convivido com a opção por formas cênicas tradicionais. O trabalho com o arquivo ou o documento, às vezes combinado a um tratamento ficcional, tem sido bastante presente, sobretudo em trabalhos que lidam com o enfrentamento de questões em aberto da história recente de um país. A cena se torna espaço de produção de memória e corporificação de “presenças ausentes”. Por outro

lado, há um interesse cada vez maior em obras fincadas na autoficção: a “escrita cênica de si”. Recordações familiares, vivências traumáticas ou experiências singulares tornam-se matéria de criação em primeira pessoa.

Muitos artistas têm incorporado uma dimensão participativa, relacional e performativa em seus processos e produções em um provável intento de reestabelecer uma esfera de convívio e vínculo. Também observamos a aposta, cada vez maior, em uma perspectiva situada – ou seja, que leva em conta a singularidade territorial, política e vivencial daqueles e daquelas que estão na cena (artística e pública) – em oposição ao ideário falsamente universal, que durante séculos condicionou discursos e representações.

Nas pontes que se estabelecem entre as jangadas latina e ibérica, fica evidente o desejo comum de não permitir que a atividade teatral sucumba às lógicas mercadológicas dominantes. E a disposição de manter o teatro como um local de encontro, convívio e partilha visando a um devir conjunto, onde seja possível fabular outros mundos – como os “navegantes” da narrativa de Saramago.

Maria Fernanda Vomero é jornalista, performer e doutora em pedagogia do teatro pela Universidade de São Paulo (USP), com uma investigação sobre artes cênicas, processos artísticos e experiência política na América Latina. Tem especialização em Documental Creativo pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB), e atua como provocadora cênica em diversos coletivos da cidade de São Paulo.

Aproximações e distanciamentos com o mundo ibérico

Qualquer consideração sobre cultura e arte ibero-americana deve ter em conta o processo colonial, que é marca fundante das formas de ser e pensar daqueles que vivem na América Latina. A ferida colonial segue aberta e é uma poderosa força que afeta desde as formas de organização política, até o fazer artístico e o “ser”. A esse fenômeno e a esses processos hierarquizantes que seguem existindo mesmo após o fim do domínio colonial, com as independências, autores como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Ramón Grosfoguel o chamam de “colonialidade”.

A colonialidade, nesse sentido, diz respeito à permanência de uma lógica hierarquizante que abrange todas as dimensões da vida, e seus produtos, que nasce na modernidade, estrutura o período colonial e sustenta o paradigma moderno, eurocêntrico e capitalista de funcionamento do mundo e das relações. O campo das artes, como o teatro, não escapa dessa hierarquia, do imaginário de que a “boa” ou “alta cultura” se faria na Europa, enquanto na América Latina fazem-se trabalhos amadores ou cópias ou apenas folclóricos, tomados como menores ou negativos, na perspectiva eurocêntrica de “alta cultura”.

Obviamente é importante reconhecer as semelhanças que atravessam as trajetórias do teatro e das artes cênicas, de modo geral, quando pensamos em Portugal, Espanha e América Latina de maneira ampla. As importantes influências do teatro popular ibérico no teatro popular e de rua latino-americanos, o que se pode ver nas ricas adaptações do monólogo de Segismundo [personagem da peça A vida é sonho, do século 17] de Calderón de La Barca (1600-1681), texto marcante do teatro popu-

lar espanhol. Ou ainda, as relações estéticas quanto a cores, à tendência dramática etc. Contudo, mais importante que as semelhanças, penso que o desafio de fazer um teatro que dê conta das próprias questões é ainda mais central.

Nesse sentido, destaco o comentário feito pela professora e pesquisadora Ileana Dieguez em entrevista ao MIRADA, realizado pelo Sesc São Paulo: “(…) desde os tempos em que Barletta criou El Teatro del Pueblo, na Argentina, passando pelos aportes da criação coletiva, a partir, especialmente, da Colômbia, pelo chamado teatro colaborativo no Brasil, até as teatralidades expandidas que vemos hoje, a investigação de linguagem tem a ver com as perguntas dos criadores sobre como falar, habitar e dar vida a situações que não sejam ilustração da realidade imediata, mas também tenham a ver com a busca ou o reconhecimento de outro tipo de espectador, como o faz La Candelaria [grupo teatral de Bogotá, Colômbia] desde os anos 1970. (…)”.

Dieguez aborda, nesse excerto, a questão da investigação das linguagens no teatro independente na América Latina. É importante levar em consideração os exemplos que ela traz, da urgência da construção de um modo de contar e dar conta da realidade que responda a cada um dos países da América Latina. Ela continua: “(...) a realidade também desafia a criação, e há que se estar com o olhar atento para não perder a possibilidade de o real também nos transformar – e não somente como se tem dito tantas vezes, que é a arte que transforma o real. O modo como Yuyachkani [grupo teatral peruano] assumiu esse desafio foi decisivo no desenvolvimento estético e na complexidade cênica que esse grupo tem nos mostrado. Como falar de tempos tão difíceis produzindo cenas que dimensionem a complexidade daquilo que ainda se vive, parece inexplicável, e que no âmbito das imagens cênicas constitui potentes alegorias que nos permitem entender o vivido e o sofrido?”.

É muito simbólica a referência ao Grupo Cultural Yuyachkani, que desde os 1970 atua na experimentação teatral e na performance política, encontrando no teatro formas de falar sobre questões que vão

da memória até a etnicidade e violência no Peru. Seu trabalho é fundamental porque é um marco na construção de um teatro latino-americano. Tenho apostado nos últimos tempos em trabalhos teatrais que mobilizam, não necessariamente no âmbito de seus temas, mas também no que diz respeito às suas metodologias. Outro aspecto ressaltado por Dieguez é não tomar o teatro latino-americano uma sequela de influências europeias ou paradigmas europeus. Isso é muito importante porque, obviamente, existem e são fortes as influências do teatro europeu, de Brecht (1898-1956) e outros, por exemplo. Mas aqui, tais influências chegam capturadas pela lógica da colonialidade, ainda que se vejam modificadas, torcidas, transculturalizadas. Mesmo nesse processo de influência, há uma criatividade cultural que está imersa na lida.

São muitos os desafios ao se pensar um teatro latino-americano, isso porque há imensa diversidade no interior do continente, a despeito de todas as semelhanças históricas, sociais, políticas e mesmo religiosas. As questões que a realidade suscita não são as mesmas e, portanto, a resposta que o teatro é capaz de ofertar não será a mesma. Cada país encontrará uma forma de abordar suas questões.

Ainda nesse sentido, penso que há um desafio de intercambiar conhecimentos, práticas e modos de fazer entre as diversas experiências teatrais latino-americanas. Quanto a fazer conhecer as experiências de outros países, cito o esforço de Gustavo Geirola, André Carreira e Cristián Cortez na coletânea, publicada em 2010, Arte y oficio del director teatral en América Latina: Bolívia, Brasil y Ecuador. A obra – a quarta publicação de uma série – reúne entrevistas de diretores teatrais da América Latina, em um intento sistemático. Geirola privilegia a escuta do diretor teatral, o que é bastante interessante e nos ajuda a considerar processos de criação e montagem.

Escrevo desde o Brasil e, obviamente, não poderia deixar de abordar a distância construída entre o meu país e o restante da América Latina, distância essa que existe como resultado da presença da Família Real portuguesa no país, da constituição de uma monarquia imperial, a única do continente e, com isso, o nascimento da ilusão europeísta que acomete muitos brasileiros: os olhos que se voltam para a Europa, mas desconhecem a realidade e a produção artística dos demais países da América Latina. Isso tem mudado e a construção de espaços de intercâmbio e de trocas artístico-culturais se torna cada vez mais relevante.

Ocorre este mês no Brasil mais uma edição do MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, um dos espaços mais importantes de intercâmbio, diálogo e trocas no campo das artes cênicas entre artistas e criadores da América Latina e da Península Ibérica. Este é um espaço de potência política e artística ilimitada e que, certamente, colabora para a descolonização das artes. Se por um lado é muito importante encontrar formas de tratar as questões que são próprias da vida e da política na América Latina, por outro, temos o desafio de fazê-lo sem nos intoxicar com o excesso de identidade e com a redução do teatro à identidade. Essa, penso eu, é uma das questões centrais do presente e dos próximos tempos.

Helena Vieira é transfeminista, escritora e dramaturga. Foi professora da pós-graduação em Gestão Cultural Contemporânea do Itaú Cultural. Como dramaturga, dedica-se à pesquisa de teatro e memória, na busca de novas formas de contar e compartilhar histórias. Tal trabalho culmina, mais recentemente, no espetáculo Jango Jezebel: Onde estavam as travestis na ditadura, cuja estreia se deu no Memorial da Resistência de São Paulo, em 2022. Atualmente, é colunista da Revista Cult.

A construção de espaços de intercâmbio e de trocas artístico-culturais se torna cada vez mais relevante

SENSÍVEL NARRADORA do

Autora de Holocauto brasileiro, jornalista Daniela Arbex

persegue o compromisso de honrar as histórias que descobre, ajudando a construir a memória coletiva do país

POR RACHEL SCIRÉ

Quando escolheu ser jornalista, Daniela Arbex não tinha ideia de que se tornaria uma repórter investigativa. “Eu só sabia que era uma profissão para servir a sociedade e, mais do que isso, uma ponte para o coração do outro”, conta. As palavras da premiada jornalista revelam, entre outras características, o olhar empático que faria dela, também, uma escritora de sucesso. Recémformada, ingressou na Tribuna de Minas, jornal de Juiz de Fora (MG), sua terra natal, onde trabalhou por mais de duas décadas. Como repórter, acumulou prêmios nacionais e internacionais, entre eles o Troféu Mulher Imprensa, dois prêmios Vladimir Herzog, três prêmios Esso, o Knight International Journalism Award e o Prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe.

O primeiro livro publicado, Holocausto brasileiro (Geração Editorial, 2013), tornou-se um

best-seller e foi reconhecido como melhor livro-reportagem do ano, em 2013, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), além de inspirar documentário, série e filme. Em 2015, lançou Cova 312, pela mesma editora, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de 2016, na categoria Livro-Reportagem. A autora de não ficção também publicou, dessa vez pela Intrínseca, Todo dia a mesma noite (2018) – sobre a tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria (RS) –, Os dois mundos de Isabel (2020), Arrastados (2022) – que conta a história do rompimento da barragem de Brumadinho (MG) – e Longe do ninho (2024) – que investiga o incêndio no centro de treinamento do Flamengo.

Neste Encontros, Daniela Arbex compartilha capítulos de sua trajetória e reflete sobre temas como ética no jornalismo, disputa de narrativas e a cultura da impunidade no país. A jornalista

ainda destaca o exercício de acolhimento frente ao relato de vítimas de tragédias e o privilégio que é acessar memórias afetivas. Ela também ressalta o que considera essencial na profissão: gostar de gente. “Eu não tenho dúvida de que o jornalista tem que estar ao lado de quem sofre.”

JORNALISMO COMUNITÁRIO

Tive a sorte de começar em um jornal local, do interior de Minas Gerais [Tribuna de Minas], mas muito importante para o estado. Isso me permitiu entender a relevância desse jornalismo de base comunitária, em que você está na rua, vê as demandas da população. Mesmo fazendo jornalismo diário, sempre voltei aos locais, e aprendi algo essencial para o jornalista, que é gostar de gente. Aliás, se você não gosta de gente é melhor escolher outra coisa, não dá para ser jornalista! O exercício do jornalismo

diário me ensinou muito, e eu fui aprendendo a entrar na casa das pessoas, que é um lugar sagrado.

RELAÇÃO COM AS FONTES

Quando comecei, não sabia que as fontes podiam tentar te manipular. Essa relação tem um limite ético muito tênue. Nunca me deixei manipular, nem quando as fontes me passavam informações privilegiadas. Quando a pessoa se propõe a ser uma fonte, ela também tem interesses. Várias vezes tive embates. No entanto, diante de pessoas que foram vítimas, a minha postura exige acolhimento e empatia. Talvez uma das coisas mais importantes que aprendi, ao longo do tempo, é oferecer uma escuta qualificada, ou mais do que isso, afetiva, porque a palavra e a escuta curam. Há psicólogos falando sobre isso que eu vejo, na prática, nas entrevistas que faço com pessoas atravessadas por várias dores e perdas.

SUCESSO LITERÁRIO

Quando lancei Holocausto brasileiro, foi uma surpresa enorme. O fato de o livro ter se tornado referência em saúde mental me deixa muito feliz, porque é uma vitória do jornalismo, no sentido de revelar e construir a memória coletiva do Brasil. Ele ainda reverbera até hoje porque é uma temática universal – todo mundo conhece alguém que teve algum tipo de sofrimento mental, inclusive nós mesmos. O controle de corpos e subjetividades consideradas desviantes é recorrente na história, principalmente dos corpos negros – 80% das pessoas encaminhadas para o Hospital Colônia de Barbacena (MG)

A jornalista e escritora Daniela Arbex já recebeu importantes prêmios nacionais e internacionais pelo seu trabalho no jornalismo investigativo e por seus livros-reportagens.

eram negras. Holocausto é um livro muito incômodo, indigesto, difícil, mas altamente necessário porque dialoga sobre temas muito sensíveis e que continuam atuais, já que a luta pela saúde mental no Brasil ainda está em disputa. É uma obra que tira do anonimato pessoas que passaram a vida na invisibilidade. Eu não queria que elas morressem da mesma forma que viveram, mas que tivessem um rosto, um sobrenome, uma história.

EXERCÍCIO DE ESCRITA

Nem sempre a jornalista escolhe a história que vai contar. Muitas vezes, eu sou escolhida pela história. Quando lancei Holocausto, ainda estava trabalhando no jornal, não

sabia nada sobre escrever livro. Só tinha certeza de que o texto não poderia ser o mesmo de um jornal diário. Fui aprendendo enquanto fazia, e percebi que a literatura permite uma liberdade. Não é preciso contar tudo no primeiro parágrafo, como em uma matéria de jornal ou revista, dá para guardar [informações] e fazer o leitor virar a página. Eu também escrevo respondendo às perguntas que faria como leitora ou espectadora. Sempre fui aquela pessoa que queria saber mais e a minha escrita é muito descritiva. Acho fundamental, porque tenho necessidade de entender o que se passou, preciso sentir o cheiro, viver o lugar. E, se eu preciso, acho que quem está lendo também precisa. Busco colocar o leitor ali. Quando

ele consegue deixar o seu lugar para entrar no do outro, é um baita exercício de empatia. Para mim, o mais importante do meu trabalho é despertar empatia no outro.

ARTÍFICE DA MEMÓRIA

Meus livros escancaram a cultura da impunidade no Brasil, que é o que alimenta a próxima tragédia. Não é por acaso. As maiores tragédias brasileiras não tiveram responsabilização. Então, a gente precisa falar disso. Vem daí o termo que uso: "todo dia a mesma noite” [título do livro sobre o incêndio da Boate Kiss]. A tragédia não termina, ela continua repercutindo. Eu entendi que um dos papeis mais importantes do jornalismo é o de construir a memória coletiva, porque ao esquecer ou negar a história, ela se repete. É preciso construir a memória, mas a gente não desenvolveu esse hábito. Tantas coisas acontecem e vamos virando a página. Uma tragédia supera a outra. Não deve ser assim, a gente precisa se lembrar do que aconteceu, se instrumentalizar para lidar com o presente e enfrentar o futuro.

MUNDOS DE ISABEL

Mesmo sendo muito diferente do que já escrevi, Os dois mundos de Isabel (2020) dialoga com o que eu venho fazendo, no sentido de construção da memória coletiva do Brasil, porque a gente está falando

Cena da série Todo dia a mesma noite, adaptação do livro homônimo de Daniela Arbex, para a plataforma de streaming Netflix.

QUANDO O LEITOR CONSEGUE DEIXAR O SEU LUGAR PARA ENTRAR NO DO OUTRO, É UM BAITA EXERCÍCIO DE EMPATIA. PARA MIM, O MAIS

IMPORTANTE

DO MEU TRABALHO É DESPERTAR EMPATIA NO OUTRO.

de uma mulher à frente do tempo, uma brasileira centenária que, aos nove anos, passou a ver e a ouvir coisas que ninguém compreendia. Ela fundou uma escola aos 14, tirou das ruas mais de 500 pessoas e transformou a vida de milhares. Se fosse só isso, já seria uma personagem maravilhosa. Meu receio de contar essa história era porque envolvia religião. Eu sou espírita, mas são coisas intangíveis, você acredita ou não. Mas, eu fiz o mesmo que em outros livros: uma investigação a partir da memória da Dona Isabel, para encontrar os personagens citados. O livro me ensinou que posso falar de outras coisas porque sou jornalista. Não tenho apenas um tema, nem preciso falar só de tragédia. Escrevo sobre aquilo que acho importante. Lidar com o bem, com coisas bonitas, foi muito importante para mim. Me reconstruiu também.

DISPUTA DE NARRATIVAS

O que me incomoda hoje é ver que a narrativa não é mais importante, e, sim, a guerra de versões. A gente precisa colocar a narrativa no lugar dela. Claro que ela é importante.

Cabe a nós, jornalistas, mostrarmos quem fez o quê, e não deixar as pessoas sem saber, nessa era da pós-verdade. O que nós fazemos com a nossa apuração, modestamente, é tentar nos aproximar ao máximo da verdade. Nunca será a verdade absoluta, não temos esse poder. No que estamos falhando, enquanto imprensa, é em permitir que a sociedade continue em dúvida. Os fatos não importam mais, só as ideologias, e a gente está sendo desinformado o tempo inteiro. A gente está abrindo mão do nosso exercício, o que me angustia muito. Isso também é um projeto de poder: descredibilizar a imprensa, enfraquecer o nosso papel, porque o jornalismo sustenta a democracia. Mesmo com toda a crítica que a mídia recebe, é importante valorizar instituições que têm uma trajetória de luta pela democracia, que são importantes na criação de políticas públicas.

ATUAÇÃO MULTIMÍDIA

Eu preciso continuar fazendo conteúdo relevante, seja em qual plataforma for. Tem público para tudo. Meu trabalho tem mostrado,

fora do jornalismo, o quanto o jornalismo é importante. É muito bom quando você consegue conversar com milhares de pessoas. Ouvi que os meus livros são roteiros prontos, mas nunca foi de propósito. É lógico que hoje já se cria uma expectativa de que meus livros sejam adaptados para o audiovisual. O sucesso dá um recado à indústria do entretenimento: nós queremos ver as nossas histórias sendo contadas.

Ouça a íntegra da conversa com a jornalista Daniela Arbex, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 31 de julho de 2024. A mediação do bate-papo é de Danny Abensur, analista de comunicação na Gerência de Difusão e Promoção do Sesc São Paulo.

ELEFANTE-BONSAI

POR ANDREA DEL FUEGO

Paula Picarelli

Luz numa mulher vestida com uma sobrepele branca, arfando, deitada de lado num chão coberto com cinzas, ouve-se a manada. Terminará sua fala tingida pelo pó, inteira com o tom de uma elefanta.

– Sozinha, sou equivalente a quinhentos cavalos. Se me puserem armadura, o resultado ainda é melhor. A armadura precisa ter mil placas de prata, maleáveis, há que aderir aos movimentos da garganta. Por ordem de um imperador hindu ou mongol, se possível mongol, entro no campo de batalha montada por três homens. Enquanto dois atacam e pensam na direção a seguir, outro propriamente me direciona e me vigia, caso eu me rebele, quebrará minha coluna com a lança. Claro que minha coluna foi golpeada, uma pilastra em queda fazendo descer abaixo minha solidez, as costas murchando até deitar-me de lado e memorizar o rosto de quem me matou. Os homens, os três, descem do cesto militar e correm para o abrigo o mais longe da batalha, há mais elefantes desertando. O imperador em pessoa desceu do seu elefante, vestindo armadura ungida antes da costura. Mas daqui vejo para onde foram os homens que eu carreguei, estão atrás da raiz exposta de uma árvore. A raiz é tão robusta e capilar que os três somem entre os tentáculos. Fui treinada para desmembrar um inimigo, com uma pata achato um pé, e com a tromba puxo a outra perna até que os nervos arrebentem. Inimigo rasgado ao meio, ergo a tíbia ainda vestida com a calça de sarja, o pé com sapato vai se esfriar, já morto num canto quando o atirar ao longe.

Deitada de lado, condeno as próximas sete gerações desse homem, condeno esse que encaixou a lança entre minhas vértebras, assim como os quinhentos que eu deveria pisotear em nome do império. Serão séculos nascendo deformados. A degeneração óssea vai ser exibida em

museu, a neurofibromatose múltipla chamada de elefantíase. O homem-elefante terá um fêmur maior e mais grosso, braços e rosto tentando crescer, mas podados pela carne dura, por isso, as sete gerações evoluirão como elefante-bonsai. Serão notados, cientistas ficarão intrigados, no laboratório os ossos serão lavados com detergente e cloro para análise. Nunca saberão que a mutação foi no primeiro folículo, no começo de tudo, na primeira pétala que gera pele e nervos, nunca saberão que ali já se programou um elefante no bípede.

Que a memória é maldição já foi falado no Egito quando a pirâmide ainda era um projeto. Aqui nesse corpo imenso cabe muita informação, cabe do acervo da história ao dia que nasceu o canino de um primo. Qual mamífero reconhece a arcada dentária de um finado? Eu reconheço a dos meus. Já reconheci ossos de parente numa planície onde só havia corpo de gente nômade, gente empurrada pelo vento até a desidratação. Se alguém escondeu um elefante num cemitério cristão, escavo até a pedra mais dura e não vou reconhecer os meus pelo tamanho não, é pelo som. Osso humano é poroso como esponja do mar, o meu também é esponjoso, mas ele vibra e humano nenhum pode ouvir. Osso enterrado irradia uma frequência que atravessa o lençol freático, ninguém tem ideia, mas todos os elefantes enterrados regulam o ph dos aquíferos.

Estou procurando minha tia.

Ela foi comprada por Pablo Escobar, ele possuía uma fazenda e sabia que um elefante era a gárgula mais eficiente para a catedral. Não faltou dinheiro para comprar cento e cinquenta quilos de frutas e raízes, o problema foi quando minha tia fugiu num descuido do administrador, com fome de outra grama. Minha tia

queria reencontrar a manada, liderada pela matriarca, uma senhora austera que orientava vinte elefantas. Ela ainda tinha os molares, porque é quando cai o último molar que começa a despedida, o elefante não mastiga mais, a morte natural começa com uma cólica gástrica.

Não tenho marfim.

Não temos presas, nem eu, nem minha tia, pois somos asiáticas. As africanas sim, aquele marfim que começa tímido na infância e cresce até a velhice. Essa esponja de mármore, esse marfim cobiçado, tão sólido quanto maleável, orna salões de cassinos numa ilha chinesa. Esculpiram a aventura de uma família de macacos no chifre de uma matriarca. Os macacos dóceis ainda nas costas da mãe, tornando-se agressivos conforme o crescimento, a vida completa esculpida no chifre de três metros. O relato fica disponível para os jogadores do Casino Lisboa: mesas privadas para jogadas mínimas de um milhão, mestiças andando entre as mesas de jogos menores sem receber sequer um olhar, os cigarros esmagados no tapete com tratamento antichamas. Antes de ir embora, o turista diante da peça de marfim sobre uma base de jade, a luz do saguão definindo a família dos símios e, já na ponta da peça, um macaco velho ensina os descendentes atravessarem o mundo com cuidado, fábula sobre a vigília como única coisa concreta a aprender.

Eu falava sobre Pablo Escobar.

Na fazenda de Pablo sobraram os hipopótamos, eles precisaram ser castrados porque ninguém controlou a reprodução na antiga propriedade. Pablo Escobar deixava ônibus lotado de criança visitar o zoológico da fazenda. O transporte atravessava um portal, cujo arco sustenta a réplica do primeiro avião de cocaína que atravessou o céu americano, a aeronave faz sombra no teto do ônibus escolar. Estacionava perto da sede, a fila de meninos uniformizados seguiam até o parque particular. Depois de tudo, a fazenda já sem prumo e dono, os hipopótamos fugiram e agora rondam a Colômbia. Alguém foi chamado para abater alguns animais, porque eles se multiplicariam em velocidade alarmante. Minha tia fugiu junto com os hipopótamos e não sabem como uma asiática daquele porte não pode ser vista.

Não encontrei minha tia na fazenda. Ela fugiu de lá, mas poderia ter voltado num arrependimento. Morta ela não estava, eu também saberia, reconheço qual frequência emite uma matéria viva ou morta. Percebo e emito na mesma força. Um elefante pode atingir, com suas ondas, quem estiver num raio de quinhentos metros, quer dizer, como não notei tia nenhuma, ela estava mesmo longe. A frequência também deixa rastro por onde passa, árvores gravam vozes. Fui tateando, até ouvir na casca de um

eucalipto o que alguém confessou: “nunca é um prazo, o meu esgotou”. Estranhei a falta de paciência num bosque tão cuidado. Talvez fosse de algum cuidador da fazenda, talvez Pablo Escobar tenha dito isso ao telefone para um concorrente, uma ligação clandestina feita na sombra da árvore, desconfiado dos mais próximos. Ou resolveu o que diria ao filho, caso descobrisse seu último plano, às vezes um espirro é o começo da avalanche.

Os dados da memória é um tablete de açúcar dissolvido na água do crânio, água que já esteve em algum leito de rio. A mesma chuva que lava telhado e encharca o chiqueiro, carrega a primeira frase de Adão, veio da chuva o leite de Eva. Minha cria, por exemplo, está encharcada de chuva em algum circo sem lona, com malabaristas jogando bolinhas num farol do Rio de Janeiro. Tenho uma filha, tenho uma tia, tenho o que procurar. Pelo menos da minha filha eu sei, vai fugir em algum momento sim, não sem antes carregar a mudança da cigana que faz questão da companhia de um elefante, a quiromancia exige boa memória.

Não é à toa que se memoriza melhor ao lado de um elefante, quanto mais próximo, mais infância e qualquer índice ficam nítidos como boa impressão fotográfica. Perto de um elefante, um tratador, uma

criança curiosa, um imperador mongol, Pablo Escobar, ninguém pode esquecer o que viveu até ali. Não é que tudo volte aos olhos num pulo só, é que os dados se descolam do fundo e podem, por distração, parar na retina como um bailarino agradecendo o aplauso.

Mas a minha tia.

Ela e o imperador mongol não saem da minha cabeça. Ele tão eloquente, ela também. Sei tanto de um quanto de outro, sei até o que não vi, porque quem estava lá era a célula que geraria a minha, uma história invade a outra. Tanto é que sou elefante-bonsai. Também me amaldiçoaram, porque minha praga para as sete gerações futuras do imperador pegou, mas numa das famílias do império a praga foi cortada e estornada. Não sei como os netos daqueles guerreiros de Akbar, o mongol, amaldiçoaram minha geração, como acertaram a origem da praga? Como são tantas, elas, as maldições, elas acabam se esbarrando na atmosfera. Escute aqui, não fui a única elefanta a morrer em batalha de gente que nunca amei. Como souberam que eu, deitada no campo de batalha, no último olhar vibrei ainda mais os ossos para que meu campo alcançasse a medula daqueles homens, de tal modo que a elefantíase tenha atuado, até pouco, entre eles? Entre a vida e a morte, o moribundo sente uma cascata energética comparável à

concepção, assim, eis aí outro som dos ossos, o estrondo da vida inteira num estalo, porque é sempre retomada a rebeldia do primeiro que morreu no mundo.

Akbar, o imperador mongol, subia no elefante pela tromba. Para que seu exército marchasse, abriu caminho na floresta usando cinco mil elefantes, cinco mil elefantes abrindo clareiras. Fora os quarenta mil espalhados por todo o território, todos ensinados a desmembrar os invasores. O lábio superior do elefante é também o nariz, o lábio leporino da minha filha taí para mostrar que o elefante tem uma cicatriz que liga olfato e o paladar. Minha filha já foi tão ingrata, que também acho que recebeu a praga dos guerreiros de Akbar. Ela não aceita sua marca, eu também não, mas não é isso que incomoda mais, a marca quem vê é a manada, a agressividade dela comigo é por puro temperamento.

Eu me livro de um cavalo como se fosse um coelho, mas não me livro da minha filha. Eu continuo depois de morta porque a filha vai seguir, atravessar a fazenda de Pablo Escobar, encontrar minha tia, pisotear um retrato de Akbar quando minha neta invadir um museu onde está a coleção de armaduras do século XVII. A descendência vai nascer antes de o circo fechar de vez, porque a cigana vai ganhar um macho asiático de outro circo que está em falência e precisa se livrar do peso. Depois, a cigana vai vender a família inteira para outro colombiano.

Nem os séculos separaram Akbar e Pablo Escobar, tempo nenhum dissolve minha tia, a elefanta ferida nas costas e minha filha. Nossas cinzas vão se somando, se as cinzas não se acomodassem, onde pisaríamos? Akbar e Pablo Escobar foram levados para uma indígena que manipula plantas como poucos vivos, algum antropólogo que não me lembro o nome, levou as cinzas dos imperadores, do mongol e do colombiano. Acredita-se que ambos foram cremados e até ali eram um polvilho solúvel. O antropólogo comprou os dois potes no mercado paralelo, e se as cinzas não são do corpo inteiro, são pelo menos das vísceras, havia um certificado confirmando exames do teor biológico daquele talco. As famílias dos imperadores optaram pela descida do corpo à terra para serem digeridos na mesma velocidade em que foram gerados. Mas num ritual íntimo, retiraram as tripas e o baço, puseram na pira e guardaram num pote, o material depois foi desviado pelos herdeiros e vendido no mesmo lote de duas pinturas modernas. Daí veio o antropólogo, que levou os dois potes numa negociação estranhamente fácil. Ele queria misturar duas culturas geracionais num só ritual, uma performance que ele anotaria num diário vaidoso.

Eis o andamento: a velha indígena sentou-se com os de sua idade, o antropólogo pode gravar tudo de um canto. Os jovens ralaram as espigas de milho e coaram o caldo numa lã crua. Beberam chá na madrugada e acenderam o fogo. O mingau de milho já fervia nas beiras do tacho, o mais velho de todos os velhos botou Akbar e Pablo Escobar, juntos, o talco dos dois, na panela. Engrossados ao mingau, comeram em cerimônia, cada velho uma tigela cheia: Akbar, Pablo Escobar e milho.

O antropólogo já havia presenciado o ritual onde os mais velhos comeram mingau de um parente. Por gratidão aos serviços prestados à tribo, o líder concordou em realizar um ritual com as cinzas que o antropólogo trouxesse, sem perguntar origem. A comilança servia para tirar o finado da lembrança para colocá-lo na memória. Quando o chá fez efeito, o fumo subiu a madrugada, um dos velhos berrou, tão longamente, que outro elefante respondeu na Ásia. O antropólogo não parou aí, ele achou o corpo da minha tia numa escavação, e desta vez fez outra experiência, juntou ela e uma estátua de Ganesha e outra de Dumbo vinda da Disney, as duas estátuas de gesso bem espatifadas, passadas em peneira de aço, sapecadas numa frigideira com milho enlatado, uma farofa que temperou com vinho do Porto. Comeu no apartamento, sem anotar nada.

Tanta carne misturada, a do elefante com a do homem, a do porco com o chimpanzé, duas da tarde misturada com oito da noite, a segunda com o sábado, meu pó com a água, para depois os resultados se misturarem outra vez, a ponto de a elefantíase, ou um elefante-bonsai, ainda serem o começo dessa história. Esta pata prestes a esmagar meu rosto é só mais um passo

Andrea del Fuego é escritora e mestre em filosofia. Autora de livros de contos, infantojuvenis e dos romances Os Malaquias (2010), pelo qual recebeu o Prêmio Literário José Saramago em 2011; As Miniaturas (Companhia das Letras, 2013); A Pediatra (Companhia das Letras, 2021); entre outras obras.

Chico França é ilustrador, cartunista e designer. Publicou Livro, isto (Terceiro Nome, 2014) e, além de ilustrar para editoras diversas, atua como artista gráfico para produções cinematográficas. É autor da HQ O Filme Perdido (Companhia das Letras, 2023), com roteiro de Cesar Gananian.

SUINGUE NO SANGUE

Pioneira do pop dançante, Fernanda

Abreu finca sua identidade na música brasileira em uma carreira de mais de quatro décadas

No ano em que a banda carioca Blitz se desfez (1986), Fernanda Abreu, até então conhecida como Fernandinha da Blitz, recusou o convite da gravadora para lançar um disco solo. O motivo? Precisava de um tempo para apresentar um repertório com a sua identidade e que marcasse a nova fase musical. Contrariando o que se esperava dela, uma jovem artista que iniciou a carreira como backing vocal de um grupo de rock, Fernanda voltou à gravadora quatro anos depois com um álbum pop fundamentado na disco music e turbinado de samples. Isso numa época em que o rock seguia em alta, e as gravadoras flertavam com a lambada e duplas sertanejas.

Pouco antes de ser lançado, o disco de estreia causou um impasse jurídico na gravadora: vinha recheado de trechos de fonogramas de outros

artistas. Madonna, Michael Jackson (1958-2009), Prince (1958-2016), Parliament Funkadelic, Caetano Veloso. “Fui salpicando minhas referências nas faixas. Naquele momento, samplear era uma novidade, sem legislação ainda, tinha um precedente gigante”, conta Fernanda, que convenceu o chefe do departamento jurídico, vascaíno fanático como ela, a lançar SLA Radical Dance Disco Club, uma abreviação de seu sobrenome (Sampaio de Lacerda Abreu), marcando a transição da Fernandinha da Blitz para a Fernanda Abreu.

Além da questão jurídica contornada, havia outro impasse. Os executivos da gravadora não entendiam aquela sonoridade, a “música de pista”. Nem eles, nem o mercado brasileiro. Porém, a jovem de 20 e poucos anos, cheia de argumentos, contrapôs: “Não tem mercado (para

o pop), mas vamos inaugurar!”. Lançado no inverno de 1990, o disco definiu sua carreira para sempre e a projetou no mercado musical. Três décadas depois, as letras e arranjos seguem atuais. Hits como “A Noite” e “Speed Racer” tocam nas pistas de dança mais diversas. Depois de SLA 1, vieram mais seis álbuns, muito diferentes entre si, mas todos carregados da assinatura inconfundível da “garota carioca, suingue sangue bom”.

Fernanda coleciona no currículo de 42 anos de carreira, parceiros

Abreu se apresentou na abertura da 14ª

no bosque do

de longa data, como Herbert Vianna e Fausto Fawcett e o pai da cultura hip-hop, Afrika Bambaataa. Com êxito, ela performa em vários papeis: intérprete, compositora, bailarina, produtora, diretora, empresária e pesquisadora musical. Concilia a vida de artista com a de mãe de Sofia e Alice, e o casamento com o baterista, produtor e arranjador paulista Tuto Ferraz. Neste mês, quando celebra 63 anos, Fernanda Abreu conta à Revista E episódios marcantes de uma trajetória de mais de quatro

décadas dedicadas à música, e fala sobre parcerias e novos projetos.

bailarina

A música entrou em mim pela veia da dança. Comecei aos nove anos: ficava imitando Michael Jackson, pequenininho, no The Jackson 5. Também me lembro do Toni Tornado nos festivais de música. O balé clássico me ajudou muito na vida. Aprendi não só os passos, a movimentação e o controle corporal, mas muito sobre valores como determinação, foco, disciplina e uma certa humildade

diante da arte porque, no balé, você nunca está pronta. Este ensinamento foi muito importante para minha carreira solo, para não perder o foco nunca.

raízes

Para criar o primeiro álbum, me dediquei a entender que tipo de música eu queria fazer, que repertório queria compor. Como eu fui criada em roda de samba – meus pais faziam parte de um grupo chamado A Patota –, tive a sorte de ter em casa um repertório extenso de música brasileira. Eu e

Fernanda
edição do Festival Sesc Thermas do Rock,
Sesc Thermas de Presidente Prudente, em julho deste ano.

meu irmão, Felipe Abreu, ouvimos muito MPB, bossa nova, jazz, os baianos, os mineiros. Quando fui para a carreira solo, eu queria uma assinatura autoral. Fui buscar na disco music, que eu adorava, no rap, no samba, no funk americano, no funk carioca que eu tinha acabado de conhecer com o DJ Malboro. Fui buscar minhas raízes e referências para criar minha identidade.

funk

Eu tenho uma conexão com o rock, samba, hip-hop e com o funk porque, realmente, essa é a minha formação. Existe a Fernanda, musicalmente, antes e depois do meu primeiro baile funk, em 1989. Por meio do Herbert Vianna, eu conheci seu irmão, o antropólogo Hermano Vianna. Ele tinha acabado de escrever um livro chamado O mundo funk carioca (1988). Ele me levou ao Baile do Mourisco, que era no asfalto, em Botafogo, e quem

estava tocando era o DJ Malboro. Eu fiquei muito impressionada, nunca tinha visto um sound system daquele tamanho, com aquele grave, e três mil pessoas dançando. Pensei: “Você é uma carioca com 20 e poucos anos e não sabia disso?”. Conheci o Malboro depois do baile. No dia seguinte, ele estava no estúdio comigo. Colocou uma batida e fomos criando uma letra em conjunto, que é o “Melô do Radical”. Naquela época, era tudo “melô”, depois que vieram os raps. Aquela estética musical entrou para sempre nas minhas músicas. Eu acompanhei essa trajetória de 40 anos de funk, começando pelo funk raiz, passando pelo sensual, entrando no funk das meninas, o funk melody, até o momento político em que os bailes no asfalto foram proibidos no Rio. O funk sempre foi marginalizado e criminalizado por conta do racismo estrutural. Não é pela letra, nem

pela música, é porque ele é feito por gente pobre, preta e favelada.

parcerias

Carlinhos Brown, Lenine, Herbert Vianna, Marcelo D2, Ivo Meirelles, Abujamra, Black Alien, Nação Zumbi. Tenho facilidade de trabalhar com outros produtores, músicos, compositores, arranjadores e, ainda assim, o disco ficar com a minha cara. No final das contas, quem está dirigindo musicalmente sou eu. O meu disco Raio-X, de 1997, é isso: cheio de parceiros. A minha parceria com Afrika Bambaataa foi algo inusitado e sensacional. Me ligaram dizendo que ele estava no meu estúdio. Quando cheguei, pude contar que a música “Planet Rock” foi a pedra fundamental do funk carioca, ela foi a base, durante três ou quatro anos, de todas as músicas de funk produzidas no Rio de Janeiro. Na gravação de “Tambor”, ele aprendeu umas palavras em

Adriana Vichi
A artista no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, onde apresentou, em maio, um repertório de sucessos, celebrando 42 anos de carreira.

ESTOU COMPLETANDO 63 ANOS E TENHO CERTEZA DE QUE, ATÉ O DIA DA MINHA MORTE, VOU APRENDER TODOS OS DIAS

português, soltamos a base e ele começou a fazer aquelas coisas maravilhosas que faz. Bambaataa gostou tanto do resultado a ponto de vir para São Paulo fazer um show comigo. Depois, fomos ao Rio, e ali ele entendeu como era uma figura importante para o funk carioca.

singularidade

Nunca estou exatamente na onda, na tendência. Quando o Da Lata (1995) ficou pronto, tivemos uma reunião com o presidente da gravadora que gostou do disco, mas disse que estava fora do que estava acontecendo no Brasil.

O Lulu Santos tinha lançado Assim caminha a humanidade (1994), uma referência à disco music, algo que eu tinha feito uns anos antes. Aí, eu cheguei com um disco que vai mais fundo no sambafunk. Só que a indústria fonográfica acha que é bom estar onde é seguro, e não um passo a frente. Enquanto eu acho que, se você segue a fórmula, você está um passo atrás. Hoje, se eu tivesse de fazer uma música pop, eu não faria. No meu futuro disco, eu uso alguns elementos de gêneros musicais como o trap e o funk, mas de uma forma diferente.

posicionamento

Na época da Blitz, a maior parte das bandas era composta por homens. Tinha eu, Paula Toller, Marina Lima, Virginie, da banda Metrô, e mais três

ou quatro. O meu posicionamento como mulher dentro da indústria fonográfica sempre foi muito firme. Por intuição, e até por experimentação, comecei a perceber que se eu não fosse firme nas minhas propostas, talvez não conseguisse fazer o trabalho que queria. Eram muitos homens me cercando no sentido de criação, mas também de pressão da indústria fonográfica, das TVs, das rádios, da imprensa. Nunca tive um episódio de assédio em que me senti machucada. Quando uma situação beirava o assédio, eu simplesmente a atropelava. Eu arcava com minhas decisões, e muitas vezes repensava se estava fazendo a coisa certa, mas acredito que, na carreira e na vida, nos guiamos um pouco pela intuição. Hoje escuto meus discos e tenho muito orgulho de todos.

aprendizados

Estou completando 63 anos e tenho certeza de que, até o dia da minha morte, vou aprender todos os dias. Na época da minha avó, diziam que os jovens tinham de aprender com os idosos e que eles eram grandes sábios. Existem, sim, pessoas que, por terem vivido mais, têm uma bagagem de conhecimento e de sensibilidade muito forte, mas que continuarão aprendendo. Como eu, que aprendo diariamente com minhas duas filhas. Essa abertura para o aprendizado é fundamental.

futuro

Quero fazer um álbum inédito, no qual já comecei a trabalhar e lançar um disco de samba porque esse gênero faz parte da minha infância. Gostaria de trazer isso para o meu legado. Quero também fazer um álbum de participações com outras mulheres, chamado Garotas sangue bom. E tenho pensado em fazer um show do meu primeiro disco. Ele é mais trabalhoso porque precisa resamplear e reprogramar tudo, mas tenho fãs que me pedem. Tenho todos esses projetos e, ao mesmo tempo, o meu dia a dia é muito produtivo. Shows, projetos paralelos, participações em shows de outros artistas, turnês fora do Brasil. Hoje sou a minha empresária. Tenho uma equipe grande, que cuida da minha gravadora, da minha editora e, da área de comunicação, mas ainda assim é muito trabalho. Eu adoro essa vida, não a trocaria por nada.

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com Fernanda Abreu, gravada em julho de 2024, no Sesc Pinheiros.

ALMANAQUE

Pé de quê?

Cambuci, araçá, grumixama... Conheça árvores frutíferas que fazem parte da flora paulistana

Você já caminhou pela cidade de São Paulo observando – e saboreando – as árvores frutíferas ao seu redor? A relação da capital paulista com sua flora é tão importante que a botânica está presente nos nomes de vários bairros e distritos: Pinheiros, Cambuci, Aricanduva, Ibirapuera, Pirituba e Sapopemba, entre outros. Só no Ipiranga, um dos bairros mais arborizados de São Paulo, podem ser encontradas diversas espécies nativas e não nativas, como urucum (Bixa orellana), aroeira-vermelha (Schinus terebinthifolius), jenipapo (Genipa americana), amora-branca

(Morus alba), pitanga (Eugenia uniflora), goiaba (Psidium guajava) e romã (Punica granatum).

Segundo o biólogo e educador ambiental Gabriel Brito, fundador do projeto Oloco Bichoo: Integração e Conscientização, passeios por áreas verdes ajudam a reforçar nossa memória biocultural. Isso acontece por meio da partilha de conhecimentos e da reconexão com a natureza. No mês em que se celebra a chegada da primavera, estação em que muitas das plantas ficam mais vistosas, conheça seis árvores frutíferas que colorem a flora da capital paulista.

UVAIA

Nome científico: Eugenia pyriformis

Origem do nome popular: Vem de iwa’ya ou yba’ia, que em tupi-guarani quer dizer “fruto ácido” ou “azedo”.

Nativa de onde?

Mata Atlântica. Ocorre principalmente nas regiões Sudeste e Sul.

Época de frutificação: De setembro a janeiro.

Frutos usados em:

Sucos, sorvetes ou in natura. Também têm grande potencial para a fabricação de bebidas e temperos fermentados, como vinho e vinagre.

M. H. Mathias / Wikimedia Commons

CAMBUCI

Nome científico: Campomanesia phaea

Origem do nome popular:

Em tupi-guarani, significa “pote d’água”, por conta de sua aparência semelhante a um vaso de cerâmica.

Nativa de onde?

Todo o território brasileiro.

Endêmica da região Sudeste. No estado de SP, há a Rota do Cambuci, que combina festivais gastronômicos e roteiros turísticos.

Época de frutificação:

De janeiro a abril.

Frutos usados em: Sucos, cachaças, geleias, sorvetes e doces em geral.

ARAÇÁ

Nome científico:

Psidium cattleianum

Origem do nome popular:

Do tupi-guarani, “planta que tem olhos”, em alusão às suas sépalas (folhas que formam o cálice das flores), que têm a aparência de olhos.

Nativa de onde?

Todo o território brasileiro.

Época de frutificação:

De setembro a março.

Frutos usados em: Geleias, doces, drinks ou in natura.

ALMANAQUE

GRUMIXAMA

Nome científico: Eugenia brasiliensis

Origem do nome popular: Em tupi-guarani, “o que pega na língua”, por seu sabor doce e ácido, um misto de pitanga e jabuticaba.

Nativa de onde?

Todo território brasileiro. Endêmica da Mata Atlântica. Ocorre desde o sul da Bahia até Santa Catarina.

Época de frutificação: De novembro a dezembro.

Frutos usados em: Geleias e outros doces, drinks ou in natura.

URUCUM

Nome científico: Bixa orellana

Origem do nome popular: Vem do tupi-guarani e quer dizer “vermelho”.

Nativa de onde?

Américas do Sul e Central.

Época de frutificação: De maio a dezembro.

Frutos usados em: Óleos e azeites, colorau (desidratado e triturado), tinturas naturais e protetores solares.

JABUTICABA

Nome científico:

Plinia cauliflora

Origem do nome popular: Em tupi-guarani, significa “fruto do qual se alimenta o jabuti”.

Nativa de onde?

Mata Atlântica. Ocorre nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. A cidade de Casa Branca (SP), a 230 quilômetros da capital, é considerada a capital estadual da jabuticaba, com cerca de 22 mil pés plantados, o que dá, aproximadamente, um por habitante.

Época de frutificação: De setembro a outubro.

Frutos usados em: Geleias, vinhos ou in natura.

Sempre estivemos aqui...

Meu primeiro contato próximo com a produção teatral latino-americana foi na Mostra Sesc Latinidades, onde, como parte da equipe, foi possível trazer nomes como Teatro de Los Andes, Yuyachkani, o uruguaio El Galpón e Daniel Veronese, já reconhecidos mundialmente, mas pouco conhecidos pelo público geral. Lá nos idos 2003, com uma internet precária, nosso conhecimento da produção teatral dos países “irmãos” era muito pequeno, bem menor que o das artes visuais, música, literatura e dança. Das mulheres no teatro, surgiram nomes como Griselda Gambaro e Sara Rojo, muito mais como pensadoras, do que efetivamente criadoras.

Vale dizer que a presença feminina em papéis de criação era pouco reconhecível aqui, seja brasileira ou dos demais países latino-americanos. Na universidade dos anos 1990, cursando bacharelado em cênicas, com exceção de poucas europeias, quase nada ouvi das mulheres criadoras brasileiras, isso vindo de muitos que estiveram na efervescência dos anos 1960 e 1970, quando a nossa presença era considerável. Destaques femininos no âmbito nacional estavam nos papéis de grandes atrizes (que aliás foram bem mais que isso – as Cacildas, Bibis, Dulcinas, Nydias, Ruths, Fernandas).

Consuelo de Castro, Leilah Assumpção e Renata Pallottini eram nomes citados rapidamente, sem grandes destaques (com exceção da última, desconfio que mais pela ligação com a academia, do que pela importante contribuição à dramaturgia brasileira). E, sim, preciso dar crédito a meus professores, a nossa Maria Clara Machado estava presente nas lembranças, mas em uma caixinha do teatro que, infelizmente, ainda não é valorizada como deveria. Falar da produção teatral feminina latino-americana, então, estava muito, muito distante.

Mas, a realidade é que sempre estivemos aqui, e ali do lado também, em algumas décadas com maior presença,

em outras, em funções “menos nobres”; muitas vezes em quartas ou quintas linhas de fichas técnicas, porém tantas vezes corresponsáveis pelo sucesso de “grandes” diretores, concebendo cenários, luzes, coreografias e construções de cena – perspectivas e profundidades. Também fomentadoras, educadoras e empreendedoras teatrais; envolvidas em manifestações político-sociais ligadas à arte ou transcendentes a esta. Muito além de dar vida, corpo, ou fornecer nosso olhar único para personagens sobre tablados.

Nosso olhar único, muito mais amplo, para o qual hoje conquistamos visibilidade aos poucos – e às duras penas – nas escritas e criações das Anas, Aves, Ayshas, Carlas, Carolinas, Claudias, Cibeles, Cristianes, Danielas, Diones, Graces, Georgettes, Janaínas, Julianas, Lucélias, Lucias, Luhs, Marias, Martinhas, Michelles, Narunas, Priscilas, Robertas, Silvinhas; e também Chelas, Cristinas, Gabrielas, Glorias, Isidoras, Julietas, Lilianas, Lolas, Luisas, Marianas, Marisóis, Patricias, Paulas, Reginas, Rominas, Teresas, Vivis, Violetas; entre tantas outras.

Um olhar que é cheio de camadas, como nós mesmas somos, multifacetadas. É o olhar que reflete como nunca e explode a partir de anos de silenciamento, violência e abusos, menores ou maiores, perceptíveis ou não, mas sempre abusos. As artes cênicas sempre foram um campo onde, mais ou menos, tivemos espaço para transitar. Porém mais ou menos não é nem nunca foi suficiente. Porque nós sempre estivemos aqui.

E, cada vez mais, acreditamos, seguimos e estaremos.

Cynthia Petnys é bacharel em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) e atua como técnica de programação no Sesc Santos.

sescsp.org.br

Matheus
José Maria (foto); Nortearia (colagem)
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