INÉDITOS
PAULLINY TORT
CAREIRO
Ilustrações: Luyse Costa
O barco rasga o rio Negro em linha reta, como a tesoura de uma costureira cortando de um só golpe uma peça grande de tecido. Pedro nunca deve ter visto uma costureira na vida, Letícia se dá conta, menino de cidade grande não conhece costureira. O nariz prateado da proa embica e desce, embica e desce, quicando num ritmo que ela já apreendeu e reproduz mentalmente, até notar que a água se tornou barrenta – alcançaram o Amazonas. Para ver melhor o encontro entre os rios, ela pendura a bolsa no ombro, se levanta e vai para perto da cabine, onde um homem jovem com traços indígenas pilota a embarcação. São águas túrbidas e agitadas, impenetráveis. Quando ela se vira para voltar ao seu lugar, percebe-se observada por dois homens que bebem cerveja, uma mãe que amamenta e uma velha que limpa as unhas com um palito de churrasco. Sacolas, caixas e bolsas cheias de frutas e mantimentos se espalham pelo chão e em cima dos bancos. Só ela não leva quase nada, apenas uma maleta de viagem. Constrangida, Letícia enxuga a testa com o dorso da mão e tira os óculos escuros Ray-Ban antes de se sentar de novo. Como Pedro veio parar aqui? Pensa em pegar na bolsa uma pastilha de menta, mas é uma lata de Altoids, importada, cara, que ela comprou na sala de embarque do aeroporto. Pode ofender a humildade dessas pessoas. Desiste. Careiro. Por que o nome do lugar é Careiro? Ela se lembra de quando Pedro tinha quinze anos e tomou uma cartela de diazepam. Na ocasião, ele explicou que seu desejo não foi morrer, mas conhecer outro mundo, melhor que este em que vivemos. Letícia é psiquiatra, então seguiu a cartilha, providenciando psicólogo, antidepressivos, ansiolíticos e um personal trainer para prática de atividade física regular. Mas Pedro continuava a repetir: não tenho fome de viver. Mesmo depois, na universidade, apesar da namorada e dos amigos, afirmava não gostar de nada. Por fim, Letícia sugeriu a eletroconvulsoterapia. O pai tinha outra mulher, outros filhos, não se envolvia muito, no entanto, quando soube disso, reprovou: quer dar choque na cabeça do menino? Você fala como se eu estivesse
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