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Relatos e experiências interculturais entre a tekoa Guyrapaju e a UFABC

Roberta Assis Maia

“Até agora fico dourando-me ao sol nesse rio da minha lembrança. Pelas aldeias do litoral, ouvia histórias de séculos, ouvia tristes cantigas guarani, rememorando descaminhos. Um labirinto de saudades que os caciques contavam. Da terra sem males.” Kaká Werá Jecupé¹

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“Agora não devemos lutar para resgatar aquilo que nós éramos antes, agora é hora de analisar o que fizeram conosco e pensar no que vamos fazer daquilo que fizeram de nós." Kaká Werá (Jecupé)²

"Deixei meu cocar no quadro, retrato falado escrevo daqui. Num apagamento histórico, me perguntam como é que eu cheguei aqui.

A verdade é que eu sempre estive. A verdade é que sempre estive." Kauê Guajajara³

Naquela tarde comum da rotina universitária, numa reunião com o bolsista Fábio de Santis Campos (cujo projeto é coordenado pelo Prof. Dácio Roberto Matheus), do Núcleo de Estudos em Agroecologia da Universidade Federal do ABC — do qual sou coordenadora adjunta —, jamais imaginei que estaria, dois anos depois, escrevendo este relato. Jamais imaginei, sobretudo, que teria tido a oportunidade de viver, nesse período, uma experiência coletiva profissionalmente tão enriquecedora e, pessoalmente, tão significativa.

O Fábio e o Leonardo Santos Salles Varallo, ambos mestrandos na UFABC e membros do NEA-UFABC, ficaram sabendo de um mutirão que seria realizado na aldeia guarani (tekoa) Guyrapaju, em São Bernardo do Campo, para a construção de banheiros secos.

O Núcleo de Estudos em Agroecologia estava organizando, na época, uma oficina de saneamento ecológico, proposta pelo Fábio e pelo Leonardo, e o local ainda seria definido. Houve interesse em articular a oficina do NEA-UFABC com a iniciativa em andamento na comunidade indígena. Conversamos com Dácio, que reforçou a vocação e responsabilidade da Universidade em ampliar políticas afirmativas, e recomendou avaliação das perspectivas, em acordo com o compromisso metodológico do núcleo.⁵

A tekoa Guyrapaju faz parte da Terra Indígena Tenondé Porã, que abriga ao todo oito tekoa (Tenondé Porã, Krukutu, Guyrapaju, Kalipety, Yrexakã, Kuaray Rexakã, Tape Mirĩ e Tekoa Porã), distribuídas numa área de aproximadamente 15.969 hectares, localizados no extremo sul do município de São Paulo (região de Parelheiros e Marsilac), abrangendo partes dos municípios de São Bernardo do Campo (região do pós-balsa, onde se localiza a tekoa Guyrapaju), no ABC paulista e em parte dos municípios de Mongaguá e São Vicente, no litoral sul paulista. Uma área do território possui trechos em sobreposição com duas unidades de conservação: a Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos, do município de São Paulo, e o Parque Estadual da Serra do Mar. O reconhecimento da Terra Indígena Tenondé Porã se deu em maio de 2016, pelo Ministério da Justiça (portaria MJ/GAB nº 548), após 30 anos de reivindicações das lideranças indígenas por reconhecimento. A área, que é uma das maiores Terras Indígenas do Estado de SP, é apenas parte do que restou, desde a devastação iniciada no período colonial, de um importante território ancestral para os Guarani, o qual se estende, originalmente, no mínimo: em áreas de Mata Atlântica no litoral e interior do sudeste (SP, RJ e ES) e sul, e em parte do centro-oeste (áreas de transição com a Mata Atlântica no MS) do Brasil, além de extensas regiões no Uruguai, Argentina e Paraguai.

No dia 30 de junho de 2018, nos reunimos (Roberta Assis Maia e Fábio de Santis Campos) com algumas lideranças indígenas

no espaço da escola da tekoa Guyrapaju, e vimos que o tipo de fossa séptica que estava sendo proposta no NEA-UFABC não era tecnicamente compatível com o projeto de banheiro seco que estava já em início de implantação na tekoa. Por isso decidimos não participar institucionalmente do mutirão. Ará Iracema, uma das lideranças de Guyrapaju, convidou-me para conhecer uma pequena trilha sombreada, que ia até um riachinho próximo. Algumas crianças acompanharam nossa caminhada. Fazia muito calor na área central da tekoa, onde estávamos, até então.

Enquanto caminhávamos, dialogamos, espontaneamente, sobre naturezas, infâncias, maternidades. As crianças se divertiam e conversavam sobre aves, borboletas, barulho do vento nas folhas das árvores e o frescor que apenas uma área de Mata Atlântica preservada pode oferecer. Conversavam comigo em português e, entre si, em guarani. Seguiam animadas e se divertiam enquanto eu tentava repetir algumas palavras em guarani. Demonstravam atenção e hospitalidade: “Você tem filhos? São do meu tamanho? Olha o tucano, lá no alto! Você viu? Olha este besourinho colorido! Tem muitos aqui. Onde você mora tem floresta?”. A esta última pergunta seguiu-se um tempo de silêncio, que Ará Iracema interrompeu com uma demanda, então, inesperada:

“Lembre-se das nossas crianças e jovens. A gente quer oportunidades para nossos jovens conhecerem a universidade e aprenderem. Queremos, também, que os estudantes da universidade conheçam nosso modo de vida, nosso conhecimento, vejam quem somos. Aqui em Guyrapaju preservamos e valorizamos nossas tradições, nosso saber, muitos Guarani e outros povos indígenas fazem isso. Mas, na defesa do nosso território⁷ e do nosso modo de vida, os não indígenas não valorizam nosso saber, exigem muitos conhecimentos técnicos que ainda não temos e queremos

acessar. A maioria dos estudos feitos nas tekoa, em geral, pelo Brasil, são feitos por não indígenas. Queremos que os indígenas sejam reconhecidos como capazes de estudar e cuidar do território que restou para a gente viver, com o nosso saber e, também, quando necessário, com o conhecimento técnico, né, o conhecimento da ciência do juruá,⁸ e, sentimos, que, para isso, é importante construir parcerias, compromissos, que durem.” ⁹

Nesta demanda da Ará Iracema ecoava o peso de uma dívida histórica que se acumula no Brasil há cinco séculos. No seu pedido, havia também o direito incontestável dos indígenas se apropriarem, se e como quiserem, de um sistema de conhecimento do qual o colonialismo se utilizou para dominar a realidade e se impor de modo bastante violento no mundo todo. Mas, por outro lado, pairavam também as tensões existentes ainda hoje no tema da escolarização da educação indígena,, nos desafios e perspectivas presentes no encontro entre os saberes indígenas e os saberes científicos. E sobre como isso tudo se relaciona com a degradação socioambiental vigente nas sociedades industriais, e que ameaça as condições que possibilitam a existência de todas as formas de vida aqui na Terra.

As expedições colonizadoras traziam equipes técnicas, missionárias ou não, à serviço dos colonizadores. Inseriam-se, naquele momento e contexto, numa lógica de representação do “outro”, cujo propósito servia, ressalvadas raríssimas exceções, para afirmar e justificar o processo de invasão e dominação, enquanto produzia uma imagem distorcida e construía uma realidade “inventada” nos registros oficiais sobre os povos originários e suas culturas, seus territórios, seus recursos, enquanto os subjugava a uma condição inferior e silenciava seus verdadeiros modos de ser e estar no mundo. A perspectiva colonialista pretendia o branco

europeu como uma forma superior de ser vivo e humanidade, com aparência, cultura, visão de mundo e conhecimento superiores, capaz de dominar a natureza como bem entendesse, e julgar outras formas de humanidade como lhe fosse oportuno, com base em argumentos suficientemente problemáticos, como hoje sabemos.

Cinco séculos depois, a sociedade brasileira “independente” está apenas começando a descobrir suas verdadeiras histórias. E parece que temos um longo caminho ainda a percorrer para reconhecer o quanto temos perpetuado os erros cometidos desde que certas naus aportaram nas praias deste território, no século XVI.

Cinco séculos depois, as sociedades que desembarcaram aqui nas Américas e em África, e todas as que se beneficiaram do modelo de exploração colonialista e das cadeias de exploração que se seguiram após o colonialismo até hoje, impuseram-se como único modo legítimo de ser, estar, sentir, pensar e agir no mundo. Estas nações agitam-se hoje em tentativas, ainda incipientes, de fazer acordos internacionais para reverter ou minimizar os efeitos socioambientais nocivos do modo de vida que achou por bem deslegitimar todas as outras formas de ser, estar, sentir, pensar e agir no mundo com as quais se deparou. Cinco séculos depois, mesmo estudos científicos mais conservadores reconhecem, veja só, que exatamente este modo de vida, que se pretendia superior, é o grande causador desta degradação socioambiental sem precedentes que enfrentamos em pleno século XXI, e que ameaça o equilíbrio dos sistemas terrestres que tornam possível a existência de vida neste planeta. Estes conceitos científicos têm trazido à tona inúmeras e consistentes evidências sobre como o modo de vida das sociedades industriais tornou-se a principal fonte de mudanças planetárias permanentes (causando aquilo que tende a ser um processo de extinção de espécies em massa, mudanças climáticas e alterações nos sistemas e superfície terrestres), tornando-se mais impactante do que todos os processos naturais combinados.¹⁰

Embora a datação do início desse processo de mudanças em curso ainda esteja em discussão, diversos indicadores ambientais e socioeconômicos evidenciam a década de 1950 como o início da “grande aceleração” desta mudança, período coincidente não apenas com o início da ampliação da urbanização em todo o mundo ocidental, mas, também, com a emergência de um novo tipo de imperialismo econômico, cultural e tecnológico ligado ao consumo. Ou seja, nos últimos 70 anos, os modos de vida das sociedades industriais urbanas (que também alterou profundamente os modos de vida fora das cidades), variante moderna do modelo de exploração econômica vigente no período colonial, têm sido o grande responsável pela degradação socioambiental, eliminando a diversidade natural e sociocultural, violentando os modos de vida humanos, deixando um rastro de vulnerabilidades e ameaçando as condições naturais de vida na Terra, como um todo. Ecossistemas estão sendo perturbados, alterados ou destruídos a um ritmo jamais atingido em qualquer outro período da história deste planeta, para satisfazer a procura crescente por alimentos, água potável, madeira, fibra, energia etc., que se tornam acessíveis a uma minoria, enquanto as cadeias de extração, produção, venda e descarte exploram e excluem os demais.

Enquanto as tentativas de um acordo climático internacional resultam em debates ainda impregnados de certo cinismo, evitando o peso das histórias extraoficiais e as causas estruturais desta crise socioambiental, os primeiros e mais atingidos são exatamente os que foram e continuam sendo vulnerabilizados pelo modo de vida que se impôs sobre os demais. Esse é, talvez, o aspecto mais cruel da “coisa” toda: os modos de vida menos causadores da degradação são exatamente os que sofrem mais diretamente e intensamente as consequências. A ironia é que, à medida que os riscos aumentam, as consequências se ampliam a todos. E, para minimizar ou, se possível, reverter os riscos todos os cenários apontam a necessidade de mudanças radicais no modo de vida vigente em

direção a modos de vida (advinhe!) mais semelhantes aos dos indígenas, dos povos originários, de tudo quanto é lugar do mundo. Estamos falando aqui não apenas sobre como cada pessoa vive, individualmente, mas, também, sobre como as sociedades se organizam e se relacionam com a natureza.

Em resumo, como consequência da degradação socioambiental, emergem evidências de que o modo de ser, estar, sentir, pensar e agir no mundo que se infligiu aos demais — e, sobretudo, o desprezo que este modo de vida impôs aos demais, limitando o potencial criativo e poder de transformação do mundo contido na diversidade —, está destruindo ao mundo todo e a todo o mundo.

“Somos nós que precisamos representar a nós mesmos” — entre tekoa e juruás

É importante reconhecer que ainda há muita incompreensão sobre o que os interlocutores indígenas pensam a respeito da concepção de mundo do homem branco ocidental, e por isso havia muitas perguntas e considerações que senti vontade de fazer:

Roberta:

“Sabemos que muitos povos indígenas também vêm percebendo que a natureza entrou em descompasso. Inúmeros estudos, de várias áreas das ciências, evidenciam muito fortemente que temos muito mais a aprender com os saberes de vocês do que vocês com os nossos. E sei que o modo de vida de vocês vai muito além do exemplo que vou dar, mas o pessoal que cresceu criando galinhas, cultivando hortas, pomares e ervas medicinais no quintal, sentindo a conexão entre a terra, o sol, os rios, uma ave, o vento, a gente, as estrelas, também percebe isso. Na agroecologia, especialmente aqui na América Latina, já faz

Tekoa Guyrapaju

Tenondé Porã

Fonte: Instituto Socioambiental

um tempinho que a gente vê as nossas ciências como uma forma de conhecimento complementar, mas não superior ao de vocês ou ao de um agricultor familiar, por exemplo, mas como conhecimentos que se somam. Mas nem tudo nas universidades é dessa forma. Ainda existe muito preconceito e algumas formas de ciência que não valorizam o pensamento indígena e que podem acabar confundindo um adolescente indígena, fazendo-o pensar que o que ele sabe não tem valor e que o mundo do juruá é melhor. É o que muita gente dentro e fora das universidades ainda pensa. Considerando o quadro geral da situação atual da inserção indígena nas universidades brasileiras, receio que, na prática, tenha tido muito pouco avanço, em direção ao acolhimento das diversidades indígenas. Como vocês acompanham o andamento dessa questão? Os indígenas que conseguem entrar nas universidades conseguem terminar os cursos? Os que se formam, voltam para a aldeia numa boa? Ou têm dificuldade de se adaptar novamente?”.

Por mais que eu soubesse da existência de indígenas na região metropolitana de São Paulo, inclusive indígenas urbanos que não vivem em aldeias (seja por circunstâncias adversas, seja por escolha), por mais que eu tenha ascendência e proximidade com culturas e realidades indígenas e tivesse crescido no Mato Grosso do Sul, um estado brasileiro onde a violência contra os indígenas ainda é uma realidade sangrenta, aquela resistência invisibilizada, ali, a apenas cerca de 40-60 minutos da minha rotina cotidiana, demandando aproximação institucional mais ampla e imediata com a universidade, me surpreendeu.

Levando em consideração questões bastante sensíveis a respeito da inserção indígena nas universidade, é possível compreender como a escolarização da educação indígena foi, historicamente, um projeto de desarticulação étnica, ora declarado, ora disfarçado,

ora desapercebido. Até que ponto este efeito nocivo ainda está simbolicamente presente até nas melhores intenções? Esta era (e não deixa de ainda ser) minha principal preocupação ético-política a este respeito.

A resposta da Ará Iracema me mostrou o quanto precisávamos indigenizar nossas referências e conhecer em maior profundidade o pensamento indígena a partir de sua própria voz.

Ará:

“Sabe, o Guarani encontrou o juruá já há mais de 500 anos.. Durante muito tempo o juruá entendeu e ainda entende coisas sobre os indígenas, que não são bem como eles entenderam/ entendem. Não estou dizendo se foi/é por mal ou não. Acho que algumas pessoas que fizeram isso, e ainda fazem, não fizeram por mal, mas por desconhecimento, mesmo. Mas fizeram. Daí, até hoje, as pessoas não sabem direito nem que nós existimos aqui e nos imaginam, como vocês costumam dizer, como folclore. Às vezes, a gente encontra pessoas dizendo que sabem isso e aquilo sobre os Guarani, que leram que os Guarani são isso, são aquilo. Algumas coisas estão certas, outras não tem nada a ver. Apenas quando lideranças de diferentes povos indígenas dominaram a língua do juruá e aprenderam como o Brasil funciona para o juruá, como o juruá pensa, e começaram a falar diretamente pelos povos indígenas, lá em Brasília, e nos jornais, na televisão, nos livros, também, e até fora do Brasil, daí que começou a melhorar um pouco para nós e para outros povos indígenas que hoje ainda estão numa situação mais difícil que a nossa. Por isso é que nós, indígenas, pelo menos aqui, estou falando por nós Guarani Mbya da tekoa Guyrapaju, mas sei que outras lideranças também pensam assim, achamos bom os indígenas irem para as universidades. Nós sabemos que

nosso modo de vida não é sempre bem entendido e respeitado como deveria, fora da tekoa. Sabemos que ainda tem muito preconceito. Mas somos nós que precisamos representar a nós mesmos. Então, os anciãos e as lideranças, a gente entende que os jovens precisam aprender os códigos, né, da língua falada pelo juruá, também - isso eles já estão aprendendo nas escolas das tekoa, para aprender nas duas línguas: Guarani e Português - e do conhecimento técnico, né, científico. Aqui, na Terra Indígena Tenondé Porã, nas tekoa todas, estamos muito próximos de cidades grandes... As lideranças das tekoa, a gente entende que não adianta a gente querer esconder o mundo dos jovens, porque é muito comum projetos de fora nas tekoa e todos chegam com a intenção de ajudar, mas nem todos chegam dispostos a nos ouvir de verdade. Também não adianta a gente querer esconder os jovens do mundo porque eles podem ir com as próprias pernas. Então, que seja para aprender coisas que a gente acha que também são importantes para a gente viver.

O guarani sempre gostou de aprender com outros, mesmo antes do juruá chegar. A gente sempre incorporou conhecimentos que achou bons, de outros povos. Quando o juruá chegou aqui, disse que estava tudo errado, que a gente tinha que se transformar em algo que a gente não era, segundo contam nossos ancestrais há muito tempo. Agora, querem que a gente volte a ser como era antes do juruá chegar? Isso não é possível. Aqui em Guyrapaju, por exemplo, a represa ao lado está poluída, muito poluída. Os nossos saberes são para viver numa terra sem este tipo de poluição que o juruá causa. E agora? Como a gente faz para ter água limpa aqui na tekoa? A gente teve que buscar uma fonte de água, teve que vir uma equipe analisar a água. Nossa tekoa é tão pequena perto das cidades que estão aqui em volta... Não foi a gente

que poluiu a água... Mas precisou das tecnologias do juruá para ter água limpa. Os riscos que você falou, a gente conhece. Mas a gente vai ter que conviver com eles. A gente já está convivendo com estes riscos, de alguma forma. As decisões, vocês avaliam de um jeito bem diferente do nosso. Aquilo que o juruá chama de intuição, nós temos isso muito forte, mas, para nós, é uma sabedoria espiritual. Nossos anciãos, nossas lideranças, a gente vem sentindo que este é o momento para buscar este espaço para os nossos jovens e, no futuro, para nossas crianças. Não podemos mais adiar.”

Ará Iracema trazia, a partir da vivência do seu povo, dois aspectos que vários pensadores indígenas também enfatizam. Um dele, trata da importância de reconhecer o protagonismo e um lugar de fala, que é do indígena, conforme reúnem e reconhecem Danner, Dorrico e Danner (2019, p. 75):

“Não espanta, aqui, que, ainda conforme nos contam diferentes pensadores/as indígenas brasileiros/as, em geral os/as indígenas foram representados/as de modo extemporâneo, se falou deles/as e sobre eles/as, mas eles/as não falaram, deles/as quase não conhecemos a voz, o que significa que tivemos pensamento indianista e indigenista, mas não efetivamente pensamento indígena, por causa da recusa da voz, da negação do protagonismo e do não-reconhecimento da voz-práxis indígena.” (MUNDURUKU, 2016, p. 190-192; KRENAK, 2015, p. 33, p. 166; TUKANO, 2017, p. 26-28; JEKUPÉ, 2009, p. 09-22)

O outro, diz respeito exatamente à estratégia que os indígenas passaram a utilizar para assumir o protagonismo em nome de seus povos, como nos conta o pensador indígena Kaká Werá (2017, p. 119-120):

“Os povos indígenas, num determinado momento, principalmente a partir da década de 1960, desenvolveram certo pensamento: ‘Agora não devemos lutar para resgatar aquilo que nós éramos antes, agora é hora de analisar o que fizeram conosco e pensar no que vamos fazer daquilo que fizeram de nós’. E, quando começamos a pensar o que podemos fazer daquilo que fizeram de nós, veio a estratégia, [...] de aos poucos tomar as ferramentas da sociedade chamada civilizada, seus códigos, tecnologias, pedagogias, e utilizá-las de modo a veicular os valores e a visão do mundo das matrizes ancestrais do Brasil. Afinal, embora sufocada, a essência e o espírito de cada cultura nativa continuam presentes sob o disfarce da colonização.”

Além da literatura, atualmente, há também uma crescente representatividade no cinema, com cineastas indígenas documentando e retratando o modo de vida do seu povo. Para citar alguns: Patrícia Ferreira Mbya, Germano Beñites, Graciela Guarani, Caimi Waiassé, Isael e Sueli Maxakali, entre outros. As novas gerações ocupam espaços ainda mais “contemporâneos”, como o youtuber xavante Cristian Wariu,¹¹ o rapper guarani Kunumi MC e a cantora Kaê Guajajara, entre outros. Basta conferir os vídeos destes cineastas, youtubers e músicos indígenas para perceber que se trata do mesmo esforço empregado na literatura indígena.

Vários pensadores indígenas, como Ailton Krenak, Kaká Werá, Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Marcia Kambeba, reconhecem os desafios presentes no encontro entre os saberes indígenas e o aspecto institucional do conhecimento científico, mas, como pioneiros do movimento indígena desde si mesmo, admitem a importância de se apropriarem do conhecimento “do branco” como parte da estratégia de resistência para seguir existindo em um mundo onde o conhecimento “do branco” se impõe, seja

para se defender politicamente com representação direta, seja para desmistificar sua imagem para a sociedade brasileira.

Demarcar o território escola

Pude perceber, na narrativa da Ará Iracema, a importância de reconhecer o protagonismo indígena e confiar em sua capacidade de avaliar e decidir por si mesmo, mais do que buscar respostas em artigos, dissertações e teses sobre indígenas, escritas por não indígenas.¹² Assim, conversamos sobre quais seriam as expectativas mais específicas deles, revelando naquele momento os enfoques iniciais que tinham em mente.

Quanto aos participantes da parceria, preocupavam-se com a inserção dos jovens na universidade e esperavam que a aproximação pudesse ser um incentivo à continuidade dos estudos aos poucos adolescentes que já tinham concluído o Ensino Fundamental em Guyrapaju. A escola da tekoa Guyrapaju é, na verdade, conforme ressaltam as lideranças, uma sala de aula improvisada, construída pelos próprios indígenas e reconhecida oficialmente pelo município de S. Bernardo do Campo apenas em 2018. É multiseriada e atende, oficialmente, ao Ensino Fundamental, 1º ao 9º anos, e não atende ainda o Ensino Médio. Os jovens que concluem o Ensino Fundamental devem se dirigir à escola estadual à qual a escola da aldeia é subordinada, ou à escola da tekoa Tenondé Porã, na área central da Terra Indígena Tenondé Porã. Seja pelo preconceito, em um caso, seja pela distância, em outro, tanto as famílias, quanto a maioria dos adolescentes relutam em sair da tekoa Guyrapaju para cursar o Ensino Médio.

Segundo as lideranças indígenas, a escola de Guyrapaju está subordinada à Escola Estadual e se vê obrigada a funcionar como se fosse um anexo da mesma.

Karaí Mirim (Elson) esclarece:

“Sobre a educação, acho que essa é uma das maiores dificuldades que a gente passa, porque a gente não é atendido como a gente quer. São Bernardo (referindo-se à escola e à diretoria de ensino) não entende, não tem experiência com a educação indígena, como é educação indígena, como que tem que ser feito na sala de aula e como queremos trabalhar com a educação indígena. Podemos falar que aqui temos uma sala de aula. Uma salinha de aula que a gente conseguiu através dos nossos esforços. A gente mesmo construiu essa salinha pra gente ter um espaço para nossas crianças. Então, é uma sala anexada. É como se fosse uma sala lá da escola estadual, como se fosse uma sala que funciona lá mesmo, mas, dentro da aldeia, para as crianças não saírem.”

Outras tekoa próximas a Guyrapaju enfrentam problemas semelhantes, segundo as lideranças esclareceram. Desta forma, mesmo com poucos estudantes em Guyrapaju naquele momento indo para o Ensino Médio as lideranças estavam pensando no futuro (logo teriam mais adolescentes concluindo o Ensino Fundamental) e em oportunidades que pudessem ser estendidas a outras tekoa. Assim, Ará Iracema propôs articular com as tekoa mais próximas para formar uma turma com jovens que tivessem concluído o Ensino Fundamental ou estivessem cursando o Ensino Médio para participar da parceria.

Quanto aos temas para a parceria, a primeira preocupação das lideranças era com a degradação ambiental chegando tão perto e impactando a tekoa Guyrapaju e toda a Terra Indígena Tenondé Porã, o que lhes causa profunda tristeza, por ameaçar o equilíbrio da vida e a todos os seres, além de impactar diretamente a saúde e o modo de vida Guarani. Também se interessavam em reforçar aos jovens as conexões e sobreposições entre seu modo de vida e os modos de vida fora da tekoa, e a importância de buscar diálogo e reivindicar engajamento de todos.

Ará:

“Estamos preocupados em preparar futuros líderes, que se comprometam em buscar um mundo melhor para todos os seres, e para indígenas e não indígenas (não fomos nós que fizemos essa separação). Nossas preocupações são hoje também preocupações de muitos líderes não indígenas.”

Educação ambiental e biodiversidade foram temas reivindicados, neste sentido. Ará Iracema também reforçou o interesse em se apropriarem sobre o que são os saberes científicos, como funcionam, como se organizam e como podem dialogar com os saberes indígenas. Demonstrou interesse em conhecimentos técnicos para organização e gestão do território e, também, em oficinas previstas no NEA-UFABC que fossem práticas úteis ao cotidiano deles, como meliponicultura (criação de abelhas nativas sem ferrão) e bioconstrução.

A partir desse encontro, conseguimos reunir vários pesquisadores dispostos a participar do projeto e, após algumas reuniões na UFABC e conversas com a Ará Iracema, agendamos mais uma reunião na tekoa para alinhamento do projeto com os indígenas. Em 25 de agosto de 2018, nos reunimos na tekoa Guyrapaju: Roberta Assis Maia, Fábio de Santis Campos e Luis Roberto de Paula, acompanhados por lideranças indígenas de Guyrapaju e tekoa próximas. Ao chegar na tekoa, tivemos a honra de saber que a reunião aconteceria na Opy¹³ com a presença de líderes espirituais. Ao final da reunião, compartilhamos o xipá,¹⁴ chá mate e café, oferecidos por eles.

Este material que apresentamos agora é resultado desse processo de aproximação entre Universidade e Tekoa, onde selecionamos uma série de temas, elaborados com os indígenas, a serem abordados em oficinas para troca de experiências, e que

aconteceriam parcialmente na tekoa e em parte na universidade. Nossa proposta foi também viabilizada pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFABC que, junto ao SESC Santo André, viabilizou a publicação da presente Cartografia Social. Assim, o SESC Santo André e o NEA-UFABC realizaram a presente publicação em escuta à tekoa Guyrapaju, enquanto uma forma de apresentar o resultado das ações realizadas pela Universidade e pela PROEC.

Inicialmente, a proposta das oficinas priorizava os indígenas mais jovens, prestes ao ingresso no Ensino Médio, a pedido das lideranças indígenas, que, então, viam o projeto como uma forma de incentivar os jovens a concluírem a Educação Básica e promover aproximação com a Universidade. Apesar do recorte, quando a iniciativa foi aprovada, pessoas de todas as idades estavam interessadas em participar, entre eles, adultos que não tiveram a oportunidade de concluir a educação básica, crianças pequenas, adolescentes cursando o Ensino Fundamental e alguns jovens que já haviam concluído esta etapa de ensino. Assim, manifestaram interesse em não manter o projeto segmentado ao Ensino Médio, mas ampliá-lo a crianças e adultos.

É interessante ressaltar aqui o quanto este projeto, viabilizado com o incentivo do SESC Santo André, ampliou, também, a potência de outras ações previstas do NEA-UFABC. Este encontro aconteceu exatamente enquanto vencíamos desafios para materializar um espaço educativo ao ar livre para o NEA-UFABC, no campus de São Bernardo do Campo. O encontro entre as ideias das lideranças indígenas e o entusiasmo da equipe do SESC me trouxe inspiração para propor uma articulação entre o espaço educativo do núcleo, o projeto com Guyrapaju e a I Semana de Agroecologia da UFABC. A ideia de articulação foi acolhida com entusiasmo.

A partir daquele momento, passei a me comunicar semanalmente por WhatsApp com as lideranças indígenas (recurso sugerido por eles), Karaí Mirim (Elson) e Karaí Mirim (Maurílio), que,

na comunicação conosco, representavam decisões tomadas em coletivo, com as lideranças e com a comunidade. O almoço nos dias das oficinas realizadas na tekoa, seria feito em parceria. Eles elaborariam a lista de alimentos secos e frescos e indicariam pessoas para preparar a refeição. Com recursos do projeto, nós remuneraríamos o preparo e providenciaríamos os alimentos, priorizando agroecológicos, adquiridos com ajuda logística do Coletivo de Consumo Rural Urbano – Solidariedade Orgânica (Coletivo CRU-SOLO) e agricultores colaboradores do NEA-UFABC.

Foram os participantes do projeto, representados pelas lideranças da tekoa Guyrapaju — Karaí Mirim (Elson), Ará Iracema, Karaí Mirim (Maurílio), Karaí Nhamandu Mirim, Yva Mimbi Francisca — e pensadores indígenas (Ailton Krenak, Kaká Werá, Daniel Munduruku etc.) as principais referências para o replanejamento do projeto. Consideramos, também, perspectivas emancipadoras de Paulo Freire e des/decolonizadoras de Boa Ventura de Souza Santos e Catherine Walsh. Recursos construídos nas redes de Agroecologia, que reúnem práticas construídas coletivamente com camponeses, quilombolas, indígenas e inúmeros movimentos sociais, também serviram de inspiração. Da minha bagagem, trouxe recursos da educação não formal, que buscam atenção ao fato de que as palavras, os objetos, as imagens, os espaços são mais que meras representações de conceitos e ideias, são símbolos que carregam valores, crenças e ideologias, nunca neutros, sendo fundamental, portanto, refletir sobre suas possíveis representações e efeitos nos sistemas de significação de cada grupo e cada pessoa. E é claro que, com tanta gente vinda de tantas trajetórias diferentes, cada um que contribuiu trouxe um pouco de si. Assim, o redesenho geral do projeto serviu como espaço de criação, de encontro entre diferentes modos de ser, estar, sentir, pensar, agir e reconstruir, como espaço de esperanças, re-existências e rompimento com fronteiras e binarismos.

Por fim, este relato buscou compartilhar um pouquinho da enriquecedora aprendizagem vivenciada com nossos amigos Guarani da tekoa Guyrapaju:

Karai Mirim (Elson):

“A gente gostou muito dessas oficinas. O lugar, o espaço que vocês também deram a oficina na UFABC. Foi muito legal! Alimentação muito boa também, muito bom mesmo. Eu acho que essa parceria que a gente teve através do projeto foi uma das melhores que a gente podia ter. Gostamos muito. Na aldeia também vocês foram muito bons. Espero que a gente faça mais atividades e projetos com vocês”.

Karai Nhamandu Mirim:

“Este projeto foi muito importante porque aprendemos muitas coisas. Não só a gente (lideranças), mas, também, as crianças, os jovens. Foi importante para todos nós. E uma troca de conhecimento.”

Karai Nhamandu Mirim sobre como é modo de vida guarani:

“Nosso modo de vida é totalmente diferente das pessoas que vivem na cidade. Quem visita nossa aldeia sente na pele as dificuldades que passamos. Essa questão do sustento, de vestir, construir... Hoje em dia precisamos de trabalho (fora da aldeia). [...] Trabalhar fora é um desafio que enfrentamos quando vamos para as cidades, por causa dos preconceitos. Agora, quando tem uma vaga dentro da aldeia, é diferente. Nós, lideranças, sempre estamos unidos na questão da coletividade. Seja na política externa e interna. Isso ajuda no fortalecimento da cultura, mantendo

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