Poesia sempre

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Elza Beatriz Iêda Dias Roseana Murray Wania Amarante Wilson Pereira

Poesia Sempre POESIA

[ilustrações Cláudia Paoliello]

Coleção literatura em minha casa

Volume 1

Biblioteca da Escola FNDE Ministério da Educação

1 a edição - Belo Horizonte

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2002


Literatura em minha casa • Antologia poética brasileira - Vol. 1 Poesia Sempre Copyright © 2002 dos Autores Editor: Bartolomeu Campos de Queirós Coordenação editorial: Terezinha Alvarenga Rafael Borges Andrade Produção Editorial: José Luiz Domingos Projeto gráfico e editoração: Paulo Bernardo Vaz / Marco Severo Ilustrações: Cláudia Paoliello Revisão: Reler - Serviços Editoriais Ltda Fotolito: Multicromo Impressão e acabamento: Gráfica Editora Posigraf S.A. Conselho editorial: Terezinha Alvarenga Bartolomeu Campos de Queirós

P745 Poesia sempre / Elza Beatriz...[et al.]; ilustrações Cláudia Paoliello. - Belo Horizonte: Miguilim, 2002. 64p.: il.; 21cm - (Literatura em minha casa - Poesia; v.1) ISBN: 85-7442-083-2 1. Poesia brasileira. I. Beatriz, Elza. II. Paoliello, Cláudia. III. Série. CDD: B869.1 CATALOGAÇÃO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO

Proibida a reprodução total ou parcial. Todos os direitos reservados à EDITORA MIGUILIM LTDA Av. Bernardo Monteiro, 52 - Floresta BH - MG - Cep: 30150-280 Telefax: (31)3222-3397 e-mail: miguilim@brhs.com.br www.editoramiguilim.com.br

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Sumário

Prefácio Elza Beatriz Salão de beleza Banho Computador Pontuação Orquestra Concurso Iêda Dias Primavera Cena de jardim Canção da menina descalça Aquarela Lenda Teia de aranha Roseana Murray Classificados Poéticos Wania Amarante Fabricação caseira Quarto de costura Aprendendo a escrever Doméstica Marias Receita Wilson Pereira Poeminha Fuga Menino sem dono O menino Acidente O verbo Glossário

4 7 7 8 9 10 11 12 13 13 14 16 17 19 20 22 22 47 47 49 50 51 52 54 56 56 57 58 59 60 61 62


Prefácio

“Literatura em Minha Casa” é um projeto de iniciativa do Ministério da Educação. Ele oferece aos alunos das escolas uma coleção inicial com cinco livros. Esta coleção é também um convite para que todos comecem a organizar uma biblioteca em suas casas. O desenvolvimento do gosto pela leitura é um trabalho valioso das escolas, que compreendem a leitura, como peça fundamental na vida dos educandos. Este primeiro volume é uma coletânea de excelentes poetas basileiros, e foi elaborada, com cuidado, especialmente para jovesns leitores. É uma obra capaz de encantar a todos pelos diversos temas tratados. Wânia Amarante constrói a sua poesia observando os pequenos acontecimentos do cotidiano. Ela traz para o leitor uma bela

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contrução poética partindo de fatos simples, mas que são motivos para uma grande poesia. Elza Beatriz produz uma poesia carregada de humor e inventividade. Seu trabalho é capaz de encantar o leitor pelo que existe nele de fantasia. Já Iêda Dias, com rimas internas e ritmo bem musical, mostra bastante lirismo, presenteando o leitor com composições definitivamente cheias de beleza. Wilson Pereira acaricia os olhos e os ouvidos dos leitores ao buscar as lembranças da infância que permanecem a vida inteira como fonte de inspiração. É uma poesia carregada de sentimentos e saudades. Roseana Murray com a sua acuidade para revisitar o mundo sempre, faz uma leitura de seus acontecimentos, tomando as palavras como caminho para revelar seu deslumbra-

mento. Em “Classificados Poéticos”, a poeta tece considerações sobre o que poderiam ser as coisas do mundo, deixando para o leitor a escolha de seu destino. A poesia é tanto para ser lida como para ser ouvida. Reunir amigos, familiares, vizinhos, e inaugurar a sua biblioteca com a leitura de poesia é bastante significativo para tornar dinâmica e social sua coleção de livros. A poesia é uma maneira sensível de trabalhar as palavras. O poeta registra com um número pequeno de palavra sua emoções. Por ser assim, ele convoca o leitor a pensar e a participar da intuição poética existente no mundo. Bartolomeu Queirós

Préfácio

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Elza Beatriz SALÃO DE BELEZA A zebra encomenda tranças nas listras dos seus cabelos. Pede a lebre um penteado anelado feito ovelha. A leoa exige juba amansada num coquinho. A elefanta quer milagre que lhe esconda o narigão. Dona girafa, essa, é o terror do salão com peruca quilométrica no seu grande pescoção!


BANHO

O céu se olhou na lagoa e se achou de cara suja, ensaboou-se depressa na espuma de uma nuvem. A nuvem se viu na água e quis se pôr mais bonita, enrolou-se em mil cachinhos que viraram carneirinhos carneirinhos, carneirões. Os peixinhos da lagoa de tanto contar carneiros ficaram com muito sono e mergulharam na cama. Na lagoa adormecida ficou limpo o céu branquinho num espelho de algodão.

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COMPUTADOR

Com um cabo de vassoura fabricamos cavalinhos, com carretéis e barbantes estendemos telefones que conversam além do fio. Com pés de meia já velhos fazemos bolas novinhas, com chuchus, grandes boiadas, e com caixas de sapatos, muitos carros de um trenzinho. Quem quiser nossos serviços não busque fadas, nem mágicos, aperte o botão da infância programe apenas meninos. Elza Beatriz

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PONTUAÇÃO

Na interrogação me enrosco num caracol sem saída? Na vírgula me sento um pouco e descanso, pensativa. Na exclamação dou um pulo fico na ponta dos pés! No ponto e vírgula escorrego e quase paro; mas ando. Marco passo nos dois pontos: e nesta pausa me explico. No travessão me espreguiço - deitado presto serviço. Na reticência me espalho vou muito além do que falo… Mas é do ponto que gosto, termino nele e me encosto.

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ORQUESTRA

No dia em que a flauta cisma de brigar com o violino cada um toca mais alto cada um toca mais fino. No seu canto o violoncelo, bonachão, escuta sério, enquanto o piano aberto ri seu riso compridão. Aí o trombone acorda e acaba com a folia ensurdece todo mundo com seu grande vozeirão.

Elza Beatriz

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CONCURSO Faz regime a melancia para ficar elegante feito a magrela banana. A laranja passa cremes para ter pele de pêssego e a pêra passa rouge para ficar, coitada, corada feito maçã. No concurso “Miss Fruta” abacaxi, jaca, pinha - espinhentíssimo júri entre uma branca goiaba e uma uva roxinha talvez acabe escolhendo jabuticaba pretinha.

Elza Beatriz Von Dollinger de Araújo, nasceu em Belo Horizonte e formou se em Direito pela UFMG. Escreveu também uma primorosa obra poética para adultos. Em 1980 começou editar para criança: são seis obras já publicadas. Apenas uma em prosa – Sol com Chuva, narrativa marcada pelo lirismo.

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Iêda Dias PRIMAVERA Abriu-se em flor todo o jardim: rosas vermelhas branco jasmim. Pairam bailando os colibris beijando dálias e bogaris. Vinheta bela as borboletas pintam com saltos e piruetas. Um bem-te-vi e um sabiá cantam na rama do manacá. Brisa suave pelos caminhos leva a canção dos passarinhos. Iêda Dias

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CENA DE JARDIM

Rede traiรงoeira na linda roseira aranha deixou. Joaninha faceira ligeira, brejeira na rede pousou. Teimoso girassol olhando sempre o sol nem a cena notou. Moroso caracol nem sol, nem girassol, caracolando olhou. Ligeiro passarinho de bico bem fininho a teia desmanchou.

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CANÇÃO DA MENINA DESCALÇA Menina do campo nascida descalça em berço macio de verde capim. Menina do campo vestida de rosa brinca de roda no meu jardim. Menina do campo nascida descalça. Da terra, flor. Do céu, querubim.

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AQUARELA

Da minha janela a favela é bela. Parece pintura aquela mistura. É palheta de pintor cada traço de uma cor. Do mar vem ligeiro um vento brejeiro e a pipa pula e dança brincando de criança. Vem à noite o luar outro quadro pintar. A favela é bela. - Da minha janela.

Iêda Dias

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LENDA

Estrela de renda um dia furtei. Na Fonte dos Sonhos estrela atirei. Águas cantando segredo rolando brisa passando palavras voando rio correndo sussurro crescendo vento soprando história espalhando… menino riu poeta ouviu. A estrela de renda virou lenda!

Iêda Dias

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TEIA DE ARANHA

Uma aranha atarefada, trabalhando como fada, fabricava fino fio pra sua rede tecer antes de o sol nascer. Trabalhava com presteza e tamanha ligeireza que s贸 pude imaginar ser preciosa encomenda de rei de terras de lenda.

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Não era encomenda não. Toda aquela afobação era apenas por beleza. O sol, novelo de cores, de sua teia faria Renda de ouro e pedraria!

Iêda Dias da Silva nasceu em Carmo da Mata, Minas Gerais, educadora especialista em ensino de leitura. Mestre em literatura infantil e escritora. Canção da Menina descalça foi indicado para o prêmio Jabuti de literatura infantil e juvenil. Recebeu o Prêmio Alexandro Cabassa, pela União Brasileira de Escritores (UBE), como o melhor livro de Poesia infantil. Publicou ainda Francisco, Reflexo e Girassóis, todos prêmios pela (FNLIJ) e (UBE). Iêda Dias

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Roseana Murray

CLASSIFICADOS POÉTICOS Atenção! Compro gavetas, compro armários, cômodas e baús. Preciso guardar minha infância: os jogos da amarelinha, os segredos que me contaram lá no fundo do quintal.

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Preciso guardar minhas lembranças: as viagens que não fiz, ciranda, cirandinha e o gosto de aventura que havia nas manhãs. Preciso guardar meus talismãs: o anel que tu me deste o amor que tu me tinhas e as histórias que eu vivi. Roseana Murray

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Procura-se um equilibrista que saiba caminhar na linha que divide a noite do dia que saiba carregar nas m達os um fino pote cheio de fantasia que saiba escalar nuvens arredias que saiba construir ilhas de poesia na vida simples de todo dia.

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Por favor, reservem dois lugares num disco voador, um pra mim, outro pro meu amor que eu tenho sede de cĂŠu, tenho fome de estrelas e uma vontade louca de mastigar violetas. Roseana Murray

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Prefiro partir nas primeiras horas do dia quando as nuvens ainda são suave carícia. Levarei comigo uma bagagem tão pequena que ninguém nem mesmo notará: uma bussola feita de vento e um embrulho de sonhos mais leve que a luz.

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Quero encontrar um planeta onde os homens tenham as mãos de tal modo azuis que ninguém saiba direito se são mesmo homens ou se são anjos ou pássaros. Minha nave descerá suavemente num campo de girassóis e os homens acenarão sorrindo sem medo nenhum. Quando vejo numa noite escura alguma estrela solitária semeando o céu, sinto pressa de partir. Roseana Murray

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Quero asas de borboleta azul para que eu encontre o caminho do vento o caminho da noite a janela do tempo o caminho de mim.

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Colecionador de cheiros troca um cheiro de cidade por um cheiro de neblina um cheiro de gasolina por um cheiro de chuva fina um cheiro de cimento por um cheiro de orvalho no vento. Roseana Murray

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Troca-se um homem-aranha de mentira por uma aranha de verdade. Uma aranha competente que teça belas teias transparentes, que pegue moscas, mosquitos e não entenda nada de bandidos. Uma aranha que seja uma aranha simplesmente.

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Menina apaixonada oferece um coração cheio de vento onde quem quiser pode soprar três sementes de sonho. O coração da menina ilumina as noites escuras como se fosse um farol. É um coração como todos os outros: às vezes diz sim às vezes diz não às vezes diz sim às vezes diz não e tem sempre uma enorme fome de sol. Roseana Murray

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Procura-se vivo ou morto um sapo de estimação que morava no jardim em frente. Puxa vida ! Era um sapo tão sabido que até piscava o olho pra gente. Mas o jardim acabou, virou supermercado, e o sapo, coitado... Será que alguém come sapo enlatado?

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Procura-se algum lugar do planeta onde a vida seja sempre uma festa onde o homem não mate nem bicho nem homem e deixe em paz as årvores na floresta. Procura-se algum lugar no planeta onde a vida seja sempre uma dança e mesmo as pessoas mais graves tenham no rosto um olhar de criança. Roseana Murray

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Troco um fusca branco por um cavalo cor de vento um cavalo mais veloz que o pensamento. Quero que ele me leve pra bem longe e que galope ao deus-darรก que jรก me cansei deste engarrafamento...

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Perdi maleta cheia de nuvens e de flores, maleta onde eu carregava todos os meus amores embrulhados em neblina. Perdi essa maleta em alguma esquina de algum sonho e desde então eu ando tristonho sem saber onde pôr as mãos. Se andando pelas ruas você encontrar a tal maleta por favor me avise em pensamento que eu largo tudo e vou correndo… Roseana Murray

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Aluga-se um lugar onde se possa montar um bazar para atender aos mais variados desejos! Lá quem quiser poderá encontrar um farol em alto-mar e dele fazer a sua secreta morada. Lá quem quiser poderá encontrar pequenos frascos de essências silvestres para perfumar a alma em dias de festa e sonhos miúdos, muito úteis para as segundas-feiras.

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Haverá, também, caminhos cobertos de musgo invisíveis a olho nu e carretel de fio de teia ideal para aprisionar segredos. Um pouco de tudo terá esse bazar e quem quiser participar precisa apenas saber sonhar. Roseana Murray

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Troco um passarinho na gaiola por um gavi茫o em pleno ar Troco um passarinho na gaiola por uma gaivota sobre o mar Troco um passarinho na gaiola por uma andorinha em pleno v么o Troco um passarinho na gaiola por uma gaiola aberta, vazia...

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Compro um barco feito de vento com velas cor de firmamento e uma bússola que aponte sempre para as luas de Saturno. Compro um barco que conheça caminhos secretos de mares desconhecidos. Um barco feito de vento onde caibam todos os meus amigos. Compro um barco que saiba decifrar os segredos escondidos no coração das noites sem luar. Roseana Murray

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Vende-se uma casa encantada no topo da mais alta montanha. Tem dois amplos salões onde você poderá oferecer banquetes para os duendes e anões que moram na floresta ao lado.

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Tem jardineiras nas janelas, onde convĂŠm plantar margaridas. Tem quartos de todas as cores que aumentam ou diminuem de acordo com o seu tamanho e na garagem hĂĄ vagas para todos os seus sonhos. Roseana Murray

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Menino procura com urgência um vale azul para morar. Um vale onde a aurora desperte as coisas suavemente e as manhãs tenham gosto de jabuticaba. Um vale onde todos andem de mãos dadas e onde toda fome seja saciada. Um vale onde os riachos cantem enchendo tudo de azul, inclusive o coração do menino.

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Precisa-se de uma bola de cristal que mostre um futuro grรกvido de paz: que a paz brilhe no escuro com o brilho especial que algumas palavras possuem, mas que seja mais do que palavra, mais do que promessa: seja como a chuva que sacia a sede da terra. Roseana Murray

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Menino que mora num planeta azul feito a cauda de um cometa quer se corresponder com alguém de outra galáxia. Nesse planeta onde o menino mora as coisas não vão tão bem assim: o azul está ficando desbotado e os homens brincam de guerra. É só apertar um botão que o planeta Terra vai pelos ares… Então o menino procura com urgência alguém de outra galáxia para trocarem selos, figurinhas e esperanças.

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Habitante de outra galáxia aceita corresponder-se com o menino do planeta azul. O mundo desse habitante é todo feito de vento e cheira a jasmim. Não há fome nem há guerra e, nas tardes perfumadas, as pessoas passeiam de mãos dadas e costumam rir à toa. Nessa galáxia ninguém faz a morte, ela acontece naturalmente como o sono depois da festa. Roseana Murray

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Os habitantes não mentem e por isso os seus olhos brilham como riachos. O habitante da outra galáxia aceita trocar selos e figurinhas e pede ao menino que encha os bolsos de esperanças, e não só os bolsos, mas também as mãos e os cabelos, a voz o coração, que a doença do planeta azul ainda tem solução.

Roseana Kligerman Murray é carioca e reside no Rio de Janeiro. É formada em língua e literatura Francesa. É tradutora e autora de livro de poesia para adultos. Recebeu vários prêmios de literatura infantil e juvenil. Dentre suas obras encontramos Classificados Poéticos, O Circo, No Mundo da Lua, O mar e os sonhos. Faz também prosa.

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Wania Amarante FABRICAÇÃO CASEIRA Para D. Stella Libânio Christo

Amor amassado com farinha de pão e cerzido nas meias, amor frito em gordura de porco, tempero caseiro e muito alho picado, amor assado em banho-maria recheado de ameixas pretas em calda de caramelo. Amor bordado em matiz e aplicado em ponto Paris, amor rendado e engomado.

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Amor tecido em linho branco cobrindo camas macias e travesseiros de paina nos quartos de sonhar, flores no jarro e capim cheiroso no armário. Amor subindo pela chaminé do fogão, guardado em caixas de costura, enrolado em meadas de seda cor-de-rosa. Amor de piaçaba varrendo o chão de andar, amor que mora na cozinha e no quarto e cheira a casa inteira de cafezinho novo. Amor que mantém o fogo aceso o dia todo, amor entremeado de sorrisos e quitutes, amor caseiro.

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QUARTO DE COSTURA Minha mãe me ensinou a costurar meu pai me ensinou a escrever, escrevo as costuras dela e costuro as palavras dele. Costuro na máquina de escrever escrevo na máquina de costura cada babado e vírgula, cada bainha e dois pontos franzidos ou nervurados. Minha caixa de linhas é colorida minha memória é de ponto de sombra, atrás, cheio de histórias. Escrevendo costuro cada ponto e desaponto, costurando escrevo minha roupa e minha lembrança, vivendo me lembro das palavras do meu pai e das mãos da minha mãe. Sendo sou matiz bordado no entremeio dos meus pais. Wania Amarante

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APRENDENDO A ESCREVER Para meu pai que me ensinou a escrever. “Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce. Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce!” Eu não me chamava Lili nem tinha comido muito doce, mas papai me ensinava que isso era ler. Eu pegava o lápis e desenhava no caderno pautado montinhos, perninhas e pingos, uma figura complicada chamada dáblio, um desenho que copiava da palma da minha mão. E papai me ensinava que isso era escrever. Eu desenhava no caderno sem pauta muitos bichinhos que saíam da caixa de aquarela. Papai me dizia que isso era inventar. Eu menina, aprendia a escrever, ler, inventar. Mais tarde aprendi a arte de contornar.

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DOMÉSTICA Para Marly

Nada como uma pitadinha de paixão pra vida ficar mais picante e uma gotinha de lágrima pra fluir a emoção. Uma colher de sobremesa de alegria pra dissolver a tristeza um punhado de faz-de-conta e um doce de alegria pra aumentar o encanto dos segredos do fogão. Cebola ralada e cebolinha picada, cheiro de alho nas mãos, mulher que cozinha um jantar e se orgulha do ensopado que fez não carece de perfume francês!

Wania Amarante

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MARIAS Para minha Maria

Maria frita pastel, engordura o fogão. Maria limpa a cozinha liga o forno e assa um bolo põe a mesa tira a mesa e vê televisão. Maria dorme. Maria acorda e faz o café. Lava a roupa passa a roupa cozinha e come senta e pensa sem pensar vai levando a vida a comida pronta a roupa lavada o carinho escondido. Um dia Maria se deita não se levanta. Lá longe no céu Maria lava Maria passa a túnica de Jesus.

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RECEITA Para minha amiga Marta Janete

Descasque o chuchu e observe a tonalidade da sua casca o verde da sua polpa o branco da sua semente. Corte o pimentão lá dentro as sementes solidárias juntinhas como irmãs as sementes do tomate são duas famílias morando em parede-meia. A cebola tem vestido, anágua combinação, calcinha e sutiã.

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Como usa roupas, a cebola! e tudo de seda fina. O alho também usa roupa de seda, que transparência bonita a da banha de porco. Tudo picado, carninha moída e um tanto de tempero caseiro na banha quente, aquele cheirinho bom de almoço de vizinho faz do ensopadinho poesia de comer.

Wania Amarante é mineira. Seus textos são sempre prosas poéticas ou poesias, marcados pela construção simples de fino humor. Publicou também obras para adultos. Para criança escreveu Arco-íris, Cobras e lagartos e Quarto de costura. Wania Amarante

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Wilson Pereira POEMINHA Para o Thiago

Eu sei que tu sonhas, meu filho. E em teu sonho pasta um cavalinho branco. E te aproximas flutuando flutuando. Estás tão perto, saltas para montá-lo: – Mas que cavalinho esperto! Teus olhinhos já abertos ainda campeiam um cavalinho branco entre as nuvens do teto.

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FUGA O menino fugiu-me sem que eu visse por onde: foi atrás da estrela caída, foi colher uma flor do campo e se perdeu de mim que andava tão longe? Ou o menino subiu pelo arco-íris pensando que era ponte entre mim e o horizonte? Ou o menino fugiu-me só com medo de ficar grande? Wilson Pereira

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MENINO SEM DONO Coberto de nuvens dorme um menino, esquecido do frio e da fome dorme o bichinho sem dono. Que sonho o afaga? Que sonho o assombra? O sono o afoga num vago de sombras. Que m達o de fada o salva: a minha a tua? O sono apaga nos olhos o menino da rua.

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O MENINO O menino em mim ainda se comemora: hĂĄ um gosto de vento nos ombros, hĂĄ um cheiro de amoras no tempo, um engenho de sonho nos olhos; uma varanda namora o silĂŞncio das horas que caem. O menino em mim ainda cresce e me leva embora.

Wilson Pereira

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ACIDENTE Amanhece: o dia é um girassol de luz; Amanhece e as mãos se abrem em floração, a vida circula por todas as vias. Uma máquina em fúria perde os freios: fere o ritmo do dia.

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O VERBO À memória de Murilo Mendes

Que o verbo se faça paz e habite entre nós. Que o verbo se faça pão e se multiplique e se reparta por nós. Que o verbo se faça ação em todo tempo modo e lugar e seja hábito entre nós.

Wilson Pereira é mineiro, de Coromandel e reside em Brasília desde 1976. Poeta, contista, cronista, ensaísta e autor de livros infantis. Publicou os livros de poemas Escavações no Tempo; Menino sem Fim e Pedras de Minas; o livro de contos Amor de Menino e o livro infantil Pé de Poesia. Participa de diversas antologias de poemas e de contos. Recebeu alguns prêmios literários de âmbito nacional. Wilson Pereira

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Glossário

Afaga Acaricia Aquarela Tinta para pintar Arredias Que se afastam uma da outra Aurora Período antes do nascer do sol Banho-maria Processo de aquecer ou cozinhar qualquer substância mergulhada em água fervente Bazar Loja de comércio de objetos variados Bonachão Paciente Brejeiro Travesso Bússola Agulha magnética, montada geralmente em caixa, usada para orientação Campeiam Procuram; buscam Carretel Pequeno cilindro de madeira, plástico ou papelão, para enrolar fios

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Cerzido Costurado Dáblio Nome da letra W Decifrar Adivinhar Duendes Entidade fantástica que se acreditava aparecer de noite nas casas fazendo travessuras Enrosco Enrolo Entremeado Misturado Equilibrista Pessoa que se conserva em equilíbrio, em posição difícil Essência Perfume Firmamento Céu Franzido Pregueado ; enrugado Frasco Garrafa de vidro ou cristal Galáxia Sistema estelar ao qual pertencem o sol, o sistema solar, estrelas visíveis e invisíveis Galope Corrida mais rápida do cavalo


Graves Sérias Grávido Cheio ; repleto Matiz Combinação de cores diversas Meadas porção de fios enrolados Miúdos Pequenos Musgo Vegetal miúdo com caule e folhas Neblina Névoa densa e rasteira; nevoeiro Nervurado Com pregas finas e costuradas Orvalho Líquido que se espalha em pequenas gotas Paina Conjunto de fibras sedosas, parecidas às do algodão Pauta Linha Piaçaba Palmeira produtora de fibras empregadas no fabrico de vassouras

Presteza Ligeireza; prontidão Querubim Anjo Quitutes Bolos, biscoitos, doces Sacia Mata Saturno Planeta do sistema solar Talismã Objeto de formas variadas ao qual se atribuem poderes de magia Topo Parte mais alta Trombone Instrumento musical Túnica Roupa longa ajustada ao corpo Violoncelo Instrumento musical

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