Texturas: ensaios

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Faculdade de Letras da UFMG Programa de Pós Graduaçã em Letras: Estudos Literários PUC Minas

Belo Horizonte 2002

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Copyright Vera Casa Nova

Projeto gráfico e capa Marco Severo Ilustração de capa Wilson de Avellar Formatação Marco Severo Revisão Vera Casa Nova

Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias da FALE/UFMG C334

Casa Nova, Vera Lúcia de Carvalho Texturas : ensaios / Vera Casa Nova. – Belo Horizonte : Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós Graduação em Letras, Estudos Literários / PUC Minas, 2002. 128 p. : il. ISBN: 85- 87470-46-9 1. Semiótica. 2. Semiótica e artes. 3. Imagem –Interpretação. I. Título. CDD : 412

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS DA UFMG COLEGIADO DO PROGRAMA

Representantes docentes titulares Maria Zilda Ferreira Cury (coordenadora), Eliana Lourenço de Lima Reis (subcoordenadora), José Américo de Miranda Barros, Thaïs Flores Nogueira Diniz, Haydée Ribeiro Coelho, Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa e Ruth Silviano Brandão. Representante discente titular Mércia Fernandes. Representantes docentes suplentes Sérgio Alves Peixoto, Luiz Fernando Ferreira Sá, Myriam Corrêa de Araújo Ávila, Teodoro Rennó Assunção e Lucia Castello Branco. Secretária Letícia Magalhães Munaier Teixeira

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Sumário

Texturas: ensaios ......................................................................................................... 6 Bêbados de fim-de-século ......................................................................................................... 8 O corpo em movimento: Lygia Clark e Hélio Oiticica ...................................................................................................... 24 O corpo-objeto de Hélio Oiticica ...................................................................................................... 35 Lygia Clark e a arte na era de sua reprodutibilidade técnica ...................................................................................................... 42 Lygia Clark: arte e vida ...................................................................................................... 50 Objeto escritural ...................................................................................................... 59 A foto(grafia) como leitura ...................................................................................................... 65 Da máscara à face negra ...................................................................................................... 74 Da topografia à escritura: o gesto de bordar ...................................................................................................... 88 O gesto de gravar: xilosignos ...................................................................................................... 98 Letra, traço e olho: Guimarães Rosa, Arlindo Daibert e Mauren Bisilliat ................................................................................................... 103 O branco do espelho - o espelho do branco ................................................................................................... 114

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A Foto(grafia) como Leitura

Texturas: ensaios

Le dehors,ici,n’ est qu’une mue du dedans. (G.Didi-Huberman)

Um título direciona a leitura de um livro. Isto posto: Texturas é uma forma de ver textos de arte. Textos que incitam e solicitam a leitura. Textura, misto de texto, tecido e leitura. Sempre que possível próximo às coordenadas da semiologia barthesiana, entre outras vias por onde tenho trilhado. O que me interessa aqui é o traço, o olho, a letra. Na tela, no bordado, na foto, na literatura, na xilogravura, na escultura. A visualidade e/ou a legibilidade possível nesses suportes ou meios. São ensaios, pois antes de aqui estarem foram voz em congressos, seminários, simpósios, fruto de minhas pesquisas junto ao CNPq. Os textos sobre os bordados e as xilogravuras são produto da reflexão, a partir do projeto Bordadeiras de estórias da Vila Mariquinhas e gravadores de estórias do Zilah Spósito, desenvolvido junto a leitores de periferia, coordenado pelo desenhista Wilson de Avellar. Chamo a atenção para projetos que dialogam com textos: textos bordados e textos xilografados. Texturas realizadas a partir da interação texto-leitor (a) através de diversas veredas, trilhas, tanto

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TEXTURAS:

ensaios

de Guimarães Rosa, quanto de Clarice Lispector e de Maria Gabriela Llansol, entre outros caminhos do literário. As texturas-ensaios sobre Helio Oiticica e Lygia Clark partem do conceito de leitura das artes visuais, na percepção do corpo performático, isto é, corpo-objeto, objeto-corpo nas artes contemporâneas, abrangendo o corpo do leitor/ espectador, enquanto receptor de sentidos. O ensaio sobre Arthur Omar decorre de pesquisas sobre imagem, especificamente a imagem fotográfica, além do estudo sobre o rosto e máscara a que me dedico ultimamente, formas que me interrogam. Bêbados de fim-de-século é uma textura em que exercito o fragmento, possibilidade de uma escrita, que venho desenvolvendo há alguns anos, como pensamento inacabado, interrogante e plural, sempre em movimento. Enfim, essas texturas, resultados de pesquisa, escritos entre 1999 e 2001, ainda bastante incompletos, abrem, no entanto, a possibilidade de outras formas de abordagem do objeto artístico. Talvez tenha sido essa a razão de tê-los publicados. Boa leitura. Vera Casa Nova

casanova.bh@terra.com.br

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TEXTURAS:

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Bêbados de fim-de-século

Je n’attribue à la nature ni beauté, ni difformité, ni ordre ou confusion. C’est seulement du point de vue de notre imagination que nous disons que les choses sont belles ou désagréables à voir, ordonnées ou chaotiques. (Baruch Spinoza)

Penso aqui, em fragmentos, uma metáfora do universo poético, onde os acordes harmônicos perdem seu lugar e as relações não se estabelecem dentro de uma ordem, e onde tonalidades se dissolvem. Boulez, Cage. Um universo que rompe e tem nas sucessivas rupturas com a tradição, com a História, seu lugar de sentido. Onde os versos coexistem em síntese disjuntiva e as séries são impossivelmente fundadas. ————————————————————————— Abalando os princípios logo-etno-fonocêntricos da grande construção metafísica, o movimento do caos no interior da poiesis, datado do final do século XIX, possibilita e faz eclodir acontecimentos durante um século, e mais, para o atual XXI. —————————————————————————

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Bêbados de fim-de-século

O verso escapa a si mesmo. As linguagens se precipitam umas nas outras. As imagens são devoradas e devoram-se umas às outras. Os sentidos se perdem. Vão e voltam refazendo percursos da letra. Os sentidos deixam o território do significado, aderem às multiplicidades, criam e recriam significâncias. O imaginário solta suas amarras do real, que passa a ser somente cintilação, e possibilita “voyages” de verso a re-verso. ————————————————————————— O poeta se inventa, inventando signos que se descolam, se deslocam em livros que não são mais livros, são fendas de criação. Caos livre, pairando na eterna possibilidade de um jogo incessante de dados-signos. Mallarmé - un coup de dés...... jamais....... n’abolira le hasard........ Um pêndulo. ————————————————————————— Je est un autre - Rimbaud. Outro pêndulo. Sustentado não pode tornar-se caótico; mas incessantemente se embebeda - Bateau Ivre - conceito-signo de extrema adaptabilidade aos lugares, os mais variados. Lugar do poético. Ainda que acertemos um relógio pendular (que funcione corretamente) com um (inevitável) pequeno erro, esse erro não se agravará dramaticamente ao longo do tempo. —————————————————————————

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TEXTURAS:

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Le cocher ivre

-

Cocheiro bêbado

Pouacre

Álacre

Boit

Vai

Nacre

Nacre

Roi (ou voit?)

Rei (ou vê?)

Acre

Acre

Loi

Lei

Fiacre

Fiacre

Choit!

Cai!

Femme

Dama

Tombe.

Tombo.

Lombe

Lombo

Saigne

Dói

Clame!

Clama:

Geigne (Rimbaud)

Ai! (Augusto de Campos)1

————————————————————————— Variáveis dos pêndulos. A representação dos movimentos no espaço da poiesis é complexa, ainda mais quando o verso se projeta além da página. Poiesis/Arte/plasticidade. A tradução é uma leitura deslocada. No regime caótico, a divergência das trajetórias vizinhas e seu confinamento no interior de um volume restrito acarretam sérios vínculos topológicos. A folha, a página vira tela: paisagens imaginárias. ———————————————————————— 1

CAMPOS, A. Rimbaud Livre. p. 40.

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Bêbados de fim-de-século

Ainsi, toujours vers l’azur noir Où tremble la mer des topazes, Fonctionneront dans ton soir Les Lys, ces clystères d’extases! (Rimbaud)2 ——————————————————————— O olho segue vestígios, rastros de sentidos. O acaso faz o leitor. Como ler o verso nesse jogo de possibilidades das pulsações e das pulsões erráticas, que insistem na desconstrução da episteme poética? Entra o leitor por um buraco feito no esgarçamento do tecido. Protocolos de leitura. Posições estratégicas. O leitor percorre os fluxos, as inflexões do corpo do poeta e se espelha no espelho quebrado das representações. Outro pêndulo. ——————————————————————— A arte capta um pedaço de caos numa moldura, para formar um caos composto que se torna sensível, ou do qual retira uma sensação caóide enquanto variedade. (Deleuze)3 O leitor/ espectador experimenta o limite de obras - limite: Joyce, Blanchot, Bataille, Celan, Artaud, Borges, Calvino, Rosa. Jogo de enunciações que confere legibilidade, visibilidade, multiplicidade. Estranhamento, desconforto na dodecafonia da orquestração de vozes. Ressonâncias e ecos da embriaguez: vestígios sem fundamento, abismo e ruínas. ———————————————————————

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RIMBAUD. A. Poésies Complètes. p. 66.

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DELEUZE, G. O que é a filosofia? p. 47.

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TEXTURAS:

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Sonnet du trou du cul Obscur et froncé comme un oeillet violet Il respire, humblement tapi parmi la mousse Humide encor d’amour qui suit la fuite douce Des fesses blanches jusqu’au coeur de son ourlet (Rimbaud) 4

————————————————————————— Cem anos depois: - um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas azul era o gato azul era o galo azul o cavalo azul teu cu tua gengiva igual a tua bucetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco. (Ferreira Gullar)5

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RIMBAUD, A. Poésies Complètes. p. 79.

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GULLAR, F. Toda poesia. p. 218.

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Bêbados de fim-de-século

A leitura e a releitura possibilitam a leitura e a releitura. O polo leitor nasce (ou renasce?) com a famigerada morte do autor (ou vida?). Comemos, antropofagicamente, o autor, dono das verdades. A despoesia faz a doçura dos idiotas (Rimbaud), as traduções/ transcrições/transduções exercitam os perfis poéticos. Alguns querem tudo, pós-tudo, extudo, mudo 6, outros o drama, o desespero, as teatralidades da língua, formas do cogito: eu sou como eu sou pronome pessoal intrasferível do homem que iniciei na medida do impossível ——————————— eu sou como eu sou vidente e vivo tranqüilamente todas as horas do fim 7 (Torquato Neto)

————————————————————————— Profetas do caos, simuladores, dissimuladores, esquisos, psicógrafos e tutti quanti, as máscaras, os desejos são arpejos nessa polifonia.

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CAMPOS, A. Despoesia. p. 22.

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NETO, T. Cogito. p. 65.

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TEXTURAS:

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Também eu saio à revelia e procuro uma síntese nas demoras cato obsessões com fria têmpera e digo do coração: não soube e digo da palavra: não digo (não posso ainda acreditar na vida) e demito o verso como quem acena e vivo como quem despede a raiva de ter visto. (Ana Cristina César)8

————————————————————————— A assinatura do verso é a assinatura do afeto, da libido fazendo a ressingularização e a ressignificação dos modos poéticos. A poiesis assume um lugar sem suporte físico. É a pregnância de enigmas. Enigmas? Recriando subjetivações e interagindo com o outro na suite infinita do jogo de dados, a arte/ o poema se dá como coisa da lingua(gem) que se reencontra a cada vez como um evento e que aguarda como um leque que apenas nosso olhar desdobra.9 ————————————————————————— Topological Ready-made landscape no.3, Helio Oiticica. Poética das multiplicidades simbióticas, das interseções, das modulações de sentido. Fabricação incessante do acontecimento poético. Parangolés. ————————————————————————— 8

CESAR, A. C. apud HOLLANDA, H. B. Poetas, hoje. p. 140. 9

BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito. p. 76.

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Bêbados de fim-de-século

No meio do caminho: entre o platonismo do múltiplo e o platonismo do virtual. O poema transcende. O silêncio do poema não é referencial. O objeto está destituído de suas funções dentro da poiesis. ————————————————————————— A fórmula é simples, a imagem é complexa. Resta o fractal em sua complexidade. O poema deve ser considerado como objeto simples ou complexo? ————————————————————————— A complexidade ideal é a da curta mensagem contendo a mesma informação. Redução ou condensação de uma complexidade: o verso no ato de sua leitura poética. Redução-valor; redução-sentidos. Lugar de efeitos. A Estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota. A anedota, pela etmologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual não de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência 10 (G. Rosa). 10

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ROSA, G. Tutaméia. p. 7.

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————————————————————————— Disseminação. Os sujeitos são outros e o poder do poema ilimitado. Pêndulos. Atratores caóticos que subvertem as instituições, as percepções e as subjetivações. O mallarmaico verso: Toute Pensée émet un Coup de Dés sidera ad infinitum o pensamento-signo. Ready-made poético. ————————————————————————— Mesmo nos fluxos, o poema emancipado dos dogmas simplificadores espera em silêncio os novos paradigmas, somente iniciados em suas articulações. Resistindo aos reducionismos, espreita a autonomia do ser e a construção de relações (?) entre as culturas científica e literária. O pensamento-signo de apreender ou pensar a complexidade apenas se insinua. ————————————————————————— A poesia é a assunção estelar desse puro indecidível que é, sobre fundo de vazio, uma ação que só podemos saber que teve lugar à medida que apostemos em sua verdade. (A. Badiou)11

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BADIOU, A. O ser e o evento. p. 157.

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Entre o vazio e o excesso, o teorema poético se inscreve histórica-socialmente e revela o drama: Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve. É o desconhecido que trazemos conosco; escrever, é isto que se alcança. Isto ou nada... (M. Duras)12 ————————————————————————————————————————

Dobradura sobre si mesmo. O poeta se pensa escrituralmente. Máquina de signos cujo significante não tem seu suporte definido, mas determinado por matemas, máquinas sociais, mass-mediáticas e lingüísticas. Fractais e cartografias universais remetem a novas topologias. Escher e suas bandas ou fitas de Moebius ou as Peles de Onça de Siron Franco. A presença da poesia é uma presença por vir: vem para além do futuro e não cessa de vir quando aí está. (Blanchot)13

————————————————————————— O corpo é uma criação fractal: If you like fractals, it is because you are made of them. If you can’t stand fractals, it’s because you can’t stand yourself. It happens. (Hommer Smith) 14

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DURAS, M. Escrever. p. 47.

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BLANCHOT, M. Livro por vir. p. 251.

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SMITH, H. apud BRIGGS, J. Fraetals. p. XX

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TEXTURAS:

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Caos instaurado pela língua, pelo traço. Quando a escrita não é o escrito, e as vias indiretas da enunciação fazem o corpo fractal modular e fulgurar o verso. Forcener le subjectile. Che cosa è la poesia. Khora. Traições sugeridas por Derrida. Ready-made teórico. Intraduzibilidade e paradoxos. A palavra, o traço, o gesto enlouquecem camadas dos ‘plateaux’, fractais que são. A letra em movimento na tela do computador configura camadas de sentido. O poeta deixa vestígios, rastros, traços nos novos papiros. O subjétil, tela ou suporte da representação deve ser atravessado pelo projétil.15 Pictograma, ideograma, fotograma, videograma ... gramas são. Lá onde reside o poético e o sujeito olha e escuta. O acaso insiste, é a matéria do sujeito. Se matéria, ela também é múltipla. Um topos remete a outro topos e assim sucessivamente. Multiplicidade dos estados do acaso. ————————————————————————— Rapidez. Velocidade.Tempo. Complexidade e Caos no movimento da poiesis. Da logosfera, passando à grafosfera, a videosfera, a outras esferas. A aparência é de que tudo se vê, mas reduzido pela própria imagem, nada se vê. Visão oniscópica. O cérebro de uma

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DERRIDA. Enlouquecer o subjétil. p. 45.

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coletividade em uma tela de terminal a domicílio desafia a poiesis. As letras desenham no vídeo, no cyberspace, na homepage o Drummond de Farewell. A Internet joga e há sites hipertextuais romanescos; Twilight, a symphony de Michael Joyce em CDRom ou Mac. Its name was Penelope.16 ————————————————————————— Como um Parangolé ou um Bicho a poiesis desenha possibilidades ao signo errante. Nunca foi tão contemporâneo o paradigma fractal, em que resta ao leitor ser capturado e capturar nessa persistente inquietação. O imprevisto significante faz o poema. A diversidade, o plural, as passagens são re-definidas ad nauseam. Benedito Nunes diz sobre Haroldo de Campos movimento errante da escritura - movimento que se amplia. Vagabundos, bêbados de fim-de-século participam dos grandes saltos da História – nessa vagabundagem iniciática, onde a pulsão de errância procura outros suportes e reinventa o livro: um livro por vir? um verso por vir? —————————————————————————

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CUNHA, L. A. O hipertexto como um novo espaço para a narrativa literária.

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TEXTURAS:

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escritura puída onde se lê far falha 18

fala... ou ainda: um rítmo

os casos do acaso

este poema pende

aceso friso de gerânios ocaso como um ... (Haroldo de Campos)18

————————————————————————— Delito de iniciados. Somos todos assassinos Você já contou sua mentira hoje? (Tião Nunes) 19

————————————————————————— As bordas do vazio interagem com outras bordas possibilitando a encenação do drama desse sujeito poético, que se exercita em dizer singularidades insólitas e faz acontecer o poema – uma pureza dobrada sobre si mesma. O verso – pensamento – signo se 18

CAMPOS, H. Signantia quasi coelum. p. 95 e 82.

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NUNES, S. G. Somos todos assassinos. p.143.

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faz topos das forças de dentro e de fora. Diversidades, anamorfoses. Bordas e conexões entre linguagens cada vez mais possíveis, compondo novas topologias que se dobram e se desdobram como potência de sentidos. ————————————————————————— o poeta... o caminhante sem téssera Desorientado pelos blocos superpostos apela em vão para Kafka Intérprete (sem chaves) deste enigma. Tudo é secreto, alusivo ao caos. Tudo deriva do signo manifestando A força em espiral ou pirâmide Do verbo que pronuncia o ato Noturno de existir, sonho do avesso no reino da murocracia (Murilo Mendes) 20 ————————————————————————— Qualquer literatura não tem fim __ mesmo a do livro?... ————————————————————————————————————————

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MENDES, M. Poesia Completa e Prosa. p. 652.

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TEXTURAS:

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Referências Bibliográficas:

BADIOU, A. O ser e o evento. Rio: Zahar/ UFRJ, 1996. BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito. Rio: Relume - Dumará. 1994. BLANCHOT, M. Livro por vir. Lisboa: Relógio d’água. s/d. BRIGGS, J. Fractals. The patterns of chaos. New York: Touchstone book. 1992. CAMPOS, A. Despoesia. São Paulo: Perspectiva. 1994. CAMPOS, A. Rimbaud Livre. São Paulo: Perspectiva, 1992. CAMPOS, H. Signantia quasi coelum. São Paulo: Perspectiva. 1989. CESAR, A. C. In: BUARQUE DE HOLLANDA, H. 26 Poetas, hoje. 2ª ed.. Rio: Aeroplano, 1998. CUNHA, L. A. O hipertexto como um novo espaço para a narrativa literária. Análise de obras de Hiperliteratura. UFMG/ Escola de Biblioteconomia, 1998. DELEUZE, G. O que é a filosofia? Rio: 34.1992. DERRIDA. Enlouquer o subjétil. São Paulo: Unesp. 1998. DURAS, M. Escrever. Rio: Rocco, 1994. GULLAR, F. Toda poesia.Rio: José Olympio, 1991. MURILO MENDES. Poesia Completa e Prosa. Rio: Aguilar. 1994. NUNES, B. In: CAMPOS, H. Signantia quasi coelum. São Paulo.: Perspectiva. 1989. NUNES, S. G. Somos todos assassinos. Belo Horizonte: Dubolso, 1980.

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Bêbados de fim-de-século

RIMBAUD. A. Poésies Complètes. Paris: Gallinard.1960. ROSA, G. Tutaméia. Rio: Nova Fronteira, 1985. TORQUATO NETO. Cogito. In: H. Buarque de Hollanda. 26 Poetas hoje. 2a. ed. Rio: Aeroplano, 1998.

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O Corpo em Movimento: Lygia Clark e Hélio Oiticica (por uma teoria da leitura na arte contemporânea) Sans la lecture proprement dite, nous ne sommes même pas capables de voir ce qui nous regarde, ni de considerer ce qui apparaît et paraît.(Heidegger)

A concepção (inédita?) das relações entre obra, artista e público apresentada por esses dois artistas da década de 60 tem suscitado enorme interesse para o que se tem chamado de performance nas artes, devido à mediação do corpo, que tanto Lygia quanto Hélio sinalizam em seus trabalhos. Esses autores tentam, cada um a seu modo, através de suas obras, reconceituar o corpo dentro da(s) arte(s), ao mesmo tempo que a imagem que se faz dele. Presença ou ausência de corpo, os objetos esculturais parecem indicar metáforas, cujos signos (visuais) estabelecem relações entre a matéria e sua virtualidade, favorecendo experiências de recepção pouco conhecidas. O corpo, sujeito à temporalidade, a fluxos e intensidades – que se transforma ao se conectar com outros corpos e outros dispositivos. O corpo a corpo, o face a face constroem as relações de objeto a sujeito. O objeto olha o espectador. E nesse olhar refletido e refratado a experiência da estrutura – cor no 1

espaço1 , entre outras experiências

OITICICA, H. Catálogo. p.115.

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O corpo em movimento

relacionadas pelo artista, faz do trajeto teórico, com suas propostas de exploração dos limites da arte, um exercício semiológico. Se a chave de um texto é um corpo, como afirma Jacques Rancière em seu livro Políticas da escrita 2 , é mesmo avant-lalettre que Lygia e Oiticica se apresentam, em termos de uma semiotização. A questão da leitura, do ponto de vista semiológico, de construção dos sentidos, é assim colocada no meio das teorias de arte brasileira: O problema da participação do espectador é mais complexo, já que essa participação, que de início se opõe à pura contemplação transcendental, se manifesta de várias maneiras. Há, porém, duas maneiras bem definidas de participação: uma é a que envolve “manipulação” ou participação sensorial – corporal, a outra que envolve uma “participação semântica”. Esses dois modos de participação buscam como que uma participação fundamental, total, não-fracionada envolvendo os dois processos, significativa, isto é, não se reduzem ao puro mecanismo de participar, mas concentram-se em significados novos, diferenciando-se da pura contemplação transcendental.3 A visada semiológica é aqui contundente; a proposta de participação é a de abertura para uma teoria de leitura da arte, em que o espectador tome parte 2

ativa do processo.

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RANCIÈRE. p. 142. OITICICA, H. Catálogo. p. 115.

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Inventar um novo objeto para um corpo popular e mediado por ele. Um trabalho concebido através do corpo que estabeleça uma outra forma estética e política. Mudar o objeto, tanto quanto a forma mudou na poesia concreta, o objeto, visto pelos neoconcretos (manifesto neoconcretista, 22 de março de 1959, suplemento de domingo – Jornal do Brasil, RJ) é visto como um quasi -corpus. Ou seja, uma relação entre o trabalho artístico como quasi-corpus e o conceito da arte como expressão, gesto, como signo de aparição na superfície da tela ou no espaço escultural, como cena de sua subjetividade. Seria a procura interna fora e dentro do objeto, objetivada pela proposição da participação ativa do espectador nesse processo: o indivíduo a quem chega a obra é solicitado à contemplação dos significados propostos na mesma – esta é pois uma obra aberta.4 A obra de Lygia estaria aí inserida, enquanto a de Hélio levaria adiante um outro projeto, decorrente, no entanto, desta proposta – o gestus social. Paulo Sérgio Duarte, comentando a obra de Hélio Oiticica, diz: O alvo é o sujeito passivo da contemplação que teria que ser convertido no sujeito ativo da participação. Essa visão que está defendendo é de natureza emi4

OITICICA, H. Catálogo. 1967. p.115.

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nentemente política e ditada por uma

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O corpo em movimento

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conjuntura histórica. O palco e o cenário imediatos são o museu e a galeria, mas o pano de fundo é o país inteiro. 5 Sujeito ativo da participação: parangolés, intercessores, perceptores sensoriais. 6 Tratando-se de presença corporal na escultura instaura-se o jogo. Aí a performance, o espetáculo, o happening tão caro aos anos 60. Bólides, Parangolés e Penetráveis, presença do corpo em movimento. É preciso estar junto, fazer junto, acontecer junto. Sentido objetivo do objeto: gestus social e argumento político. Parangolé – síntese Não é conciliação tese – antítese de conflitos de criação. Nem retomada. Capacondição. Extensão concreta do vestir – incorporar. Feitas pro vestir (não mais como procura de não – condicionamentos sensoriais erigindo experimentalidade nova). Capas feitas no corpo eram / pertenciam como estado 7 Parangolés,um outro ready-made for wearing (feito pro vestir) o corpo e o movimento do corpo dentro do saco, que se transforma em objeto – evento, experimentos sensoriais e espaciais. O Parangolé é uma imagem complexa. A mediação do corpo faz com que o espectador procure tocá-lo. Mas esse tocar é tão efêmero quanto o próprio Parangolé mediado pelo corpo

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DUARTE, P. S. Anos 60. Transformações da arte no Brasil. p.60. 6 Termos usados por Deleuze em DELEUZE, G. Conversações. 1997. 7 OITICICA, H. op. cit.p.66.

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de Nildo da Mangueira ou do próprio Hélio. A proposta de leitura em Hélio se realiza na performance do objeto. Assim, performance e conhecimento do que é mostrado estão ligados, no que a natureza de performance afeta o que é conhecido. Ela modifica o conhecimento, logo, a arte. Cada performance nova de um Parangolé, de um bólide coloca tudo em causa. Interessado na relação entre os signos e seus usuários, Hélio se preocupa com a percepção do objeto. Toda a minha evolução que chega aqui à formulação do Parangolé, visa a essa incorporação mágica dos elementos da obra como tal, numa vivência total do espectador, que chamo agora “participador” (...) 8 Percutindo uma na outra, as obras de Hélio e Lygia interferem nos processos e fazem seu próprio movimento. Lygia Clark, por sua vez, coloca-nos, em termos de uma teoria de leitura do objeto artístico, o psíquico do espectador. Trata-se também de um processo, em que o corpo do espectador participa da leitura, sobretudo recriando-a. Mario Pedrosa chama a atenção para o aspecto vital dessa nova atitude: Desde que recomendou que se 8

tocasse nas suas “obras de arte”, isto é,

OITICICA, H. op. cit. p. 66.

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nos seus “bichos”, seu ideal ou seu compromisso não é mais formal – artístico, mas estético – vital. 9 O objeto é doador de sentidos. Ninguém lê da mesma maneira, da mesma forma que ninguém corta ou recorta (Caminhando). Ler é uma experiência feita com a mão. Tocar o objeto, cortar as superfícies, metamorfosear as formas, os espaços. Transgressão à la G. Bataille , ou seja, mudança nas perspectivas do corpo, ruptura do substancialismo, ou como Didi-Huberman comenta sobre Bataille em seu texto: Bataille avait suggéré que les yeux humains n’ont rien de mieux à faire que d’être frappés, frappés par le monde visuel qui les entoure, quelquefois les devore, et que de ce contact violent peut naître “non seulement la connaissancedes relations entre les divers objets, mais aussi bien tel état d’ésprit décisif et inexplicable”. 10 Chocar, transformar o pensamento. Cada Bicho é uma espécie de “coup de dés” mallarmeano. Lance de possibilidades a serem despertadas no espectador – leitor, onde o acaso (“le hasard”) é uma das faces do objeto. Face dos senti9

dos e dos não-sentidos. Será sempre necessário mudar a lógica do olhar histórico e iconográfico. A imagem dos Bichos ou a subjetividade como imagem plena. O sujeito

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PEDROSA, M. Acadêmicos e modernos. p. 350. DIDI-HUBERMAN, G. La ressemblance informe. p.38. Bataille sugeriu que os olhos humanos devem ser tocados pelo mundo visual que os cerca, às vezes os devora, e que desse contacto violento posssa nascer não somente o conhecimento das relações entre os diversos objetos, mas também um tal estado de espírito decisivo e inexplicável (Tradução da autora)

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incluído na linguagem; dentro do código artístico. Os Bichos de Lygia se abrem, propõem em sua leitura o lúdico que se seleciona assim a uma pluralidade que a competência do espectador – leitor poderá fazer acontecer. A antiarte propunha essa realização do jogo. Uma proposta em que o jogo afirmaria as intensidades, as forças do desejo, o prazer. Isto sim, é importante: a obra é prazer, e como tal só pode ser livre (joga-se quando se quer ou se sabem as regras do jogo, etc.). A participação não é a da “vida real”, como dói pensar, mas uma participação livre no prazer.11 Assim se refere Hélio Oiticica à construção do jogo, construção que se dá durante a leitura da obra, do texto, e que Lygia realiza ao pé da letra, aliás, ao pé do objeto. Enquanto Lygia Clark pensa a imanência, a importância do ato imanente realizado pelo participante: cada Caminhando é uma realidade imanente que se revela em sua totalidade durante o tempo de expressão do espectador – autor 12 . Hélio propõe vertigens Esses, entre outros exemplos, mostram a importância atribuída por esses dois artistas a seu espectador – leitor. O trabalho de leitura das obras proposto por eles envia à pluralidade, à virtualidade. Falar do plural significa que o sentido é potencialmente múltiplo, 11

OITICICA, H. Da antiarte às apropriações ambientais de Oiticica. p. 30. 12 CLARK, L. Lygia Clark. Livro – obra. Catálogo Tapies.

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que há uma infinidade virtual de sentidos.

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Não interessa o sentido, mas o jogo, a “construção” do jogo em que o corpo é “casa” (L.C.) e se desloca como numa cena teatral. Esse trabalhar junto – produtor e espectador –, essa dinâmica é que constrói a “significância”, regime de signos (e sentidos) que não se fecha sobre um significado, mas está sempre em aberto; liberação dos sentidos. Trata-se, assim, de um ultrapassamento das intenções do autor, do monologismo. Cada objeto é uma produção perpétua, pois os corpos em movimento deslocam o autor do centro da produção e a disseminação que aí ocorre faz do objeto um feixe de sentidos virtuais. Os trabalhos de Hélio e Lygia colocam o trabalho do espectador – leitor como primordial no que concerne à multiplicidade. Se o objeto é plural, sua leitura também. Plural de virtualidades, o corpo do espectador – gestos, respiração, ritmo – entra em relação com o objeto e com o “autor”. Deslocamentos, descentramentos que afetam os processos de representação, colocam a presença, o tempo e o espaço do corpo dos produtores e dos espectadores – leitores que se fundem com as imagens virtuais, ampliando a expressão, os limites sensoriais. Os objetos criados por Lygia e Hélio são volumes polifônicos nos quais os sentidos se diferenciam, que não cessam de e articulam-se infinitamente. “Inverte-se”, assim, a indecidibilidade, pois não há determinação unívoca de códigos, nem de sentidos. Os objetos desses artistas mostram como na arte contemporânea a tradição metafísica falha. Depois desses dois artistas fica difícil

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para o espectador – leitor, ou o crítico, erigir um sentido último e único para a arte. Essa participação efetiva, requerida por esses artistas, coloca a leitura como um objeto epistemológico, assim como Roland Barthes faz em seus escritos quando nos diz: Ler é fazer trabalhar nosso corpo 13 / a leitura seria o gesto do corpo / pois, lê-se com o corpo (...) na leitura todas as emoções do corpo estão presentes 14 Afirmando em toda a sua obra crítica de semiólogo que a leitura compromete o corpo, Barthes sinaliza a fonte do desejo: o corpo está na origem do desejo, e o fim dele é de ser satisfeito. Assim, o desejo sendo movimento do corpo, a participação do sujeito – espectador leitor alimenta e satisfaz por um tempo esse desejo. Lygia Clark com seus Bichos, por exemplo, mostra algumas das modalidades dessa satisfação; a liberação de fantasmas e a satisfação de certas pulsões inconscientes; daí a arte-terapia que se enuncia no objeto relacional: O objeto relacional não tem especificidade em si. Como seu próprio nome indica é na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define. O mesmo objeto pode expressar significados diferentes para diferentes sujeitos ou para um mesmo sujeito em diferentes momentos. Ele é alvo da carga afetiva, agressiva e 13

BARTHES, R. Ecrire la Lecture In: Oeuvres Complètes. vol. 11. p. 962. 14 BARTHES, R. op. cit. p. 379.

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passional do sujeito, na medida em que o sujeito lhe empresta significado,

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perdendo a condição de simples objeto para, impregnado, ser vivido como parte viva do sujeito. A sensação corpórea propiciada pelo objeto é o ponto de partida para a produção fantasmática.15

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CLARK, L. Lygia Clark. p. 49.

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Referências bibliográficas: ARANTES, O. (org.) - PEDROSA, M. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. São Paulo: EDUSP, 1998. BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes. vol. II. Paris: Seuil, 1994 CLARK, L. Lygia Clark. RJ: Funarte, 1980. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DUARTE, P. S. Anos 60. Transformação da arte no Brasil. Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1998. DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon G. Bataille. Paris: Macula, 1995. OITICICA, H. Esquema geral da nova objetividade. In: Catálogo de exposição Nova Objetividade Brasileira. Rio de Janeiro: MAM, 1967. _____. Catálogo Hélio Oiticica. São Paulo: Ed. 34, 1992. _____. Da antiarte às apropriações ambientais de Oiticica. Rio de Janeiro: GAM nº 6, 1967. RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.

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O Corpo-Objeto de Hélio Oiticica

O Corpo-Objeto de Hélio Oiticica

O corpo como sistema de signos é considerado aqui na sua acepção de construção artística e no impacto de uma escultura movente em processo de espetacularização. Corpo vivo construído como objeto público que se dá a ver através da arte. Esse corpo-objeto é o Parangolé poético de Hélio Oiticica, cuja aparição se dá em julho de 1965 no MAM – RJ na mostra “Opinião 65”, uma manifestação de subjetividade que “grita de revolta”. Nildo da Mangueira desfila seu Parangolé e grita frases de protesto tal qual Hélio: “Seja marginal, seja herói”; “Estamos com fome”, etc. Laranja, Vermelho, Amarelo – as cores dos tecidos das capas. A dança, uma mistura de samba e balé. Rompia-se, assim, uma estrutura de museu, galeria, o programa da exposição. A partir dessa ruptura, Hélio Oiticica inaugurava uma arte (?) antiburguesa por excelência. Considerado pelos críticos como artista neoconcreto, Hélio rompe também com a superfície bidimensional, buscando a cada peça uma unidade maior entre forma e cor e entre a forma – cor e

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espaço: o suporte tomaria a forma exigida por uma visão dinâmica da cor no espaço.1 O próprio Hélio em seu texto Bases Fundamentais para uma definição do Parangolé (novembro/ 1964) afirma que o Parangolé marca o ponto crucial e define uma posição específica no desenvolvimento teórico de toda a [minha] experiência da estrutura – cor no espaço, principalmente no que se refere a uma nova definição do que seja a obra.2 A noção tradicional de obra é aqui sinalizada. Hélio pretende um objeto novo, produzido pelos deslizamentos de antigas categorias. O conceito de obra impõe um limite, que é o do sentido. O corpo – objeto artístico em Hélio é um caso de devir (Deleuze), pois o objeto é inacabado, sempre a se construir e que mostra uma matéria tangível. É sempre um processo. Nildo da Mangueira é um devir parangolé, zona de vizinhança, já que não se pode distinguir parangolé, Nildo e Mangueira. Nesse movimento tanto Nildo, quanto a Mangueira viram outra coisa – daí devir. O Parangolé está entre outros parangolés – cada Parangolé tem sua língua – cada Parangolé é um signo. E como signo opera um deslizamento no processo de significância. Sem nenhum recurso tecno1

GULLAR, F. Etapas da arte contemporânea. p. 260. 2 OITICICA, H. Catálogo. p. 85.

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lógico, o Parangolé amplifica e ramifica o corpo. A capacidade de expressão

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de Nildo, Hélio ou qualquer outro encontra-se potencializada. O ritmo é o do corpo, e o corpo é música, movimento, orquestração de formas. O Parangolé explora uma nova forma de ser, de expressão, e de uma saída do cotidiano do museu, da galeria, da exposição. Não é só no olho que a imagem do Parangolé é formada, mas nos gestos, nos movimentos, na cor. Reconfigura-se o objeto. Ressemiotiza-se o objeto. Modulação de capas, estandartes. O Parangolé situa-se como que no lado oposto do Cubismo: não toma o objeto inteiro, acabado, total, mas procura a estrutura do objeto, os princípios constitutivos dessa estrutura, tenta a fundação objetiva e não a dinamização ou o desmonte do objeto. 3 Participação coletiva, participação dos outros artistas e dos espectadores. É o que ele chama de “arte ambiental” por excelência, modulação de nossa capacidade sensório – motora e cognitiva, a superfície do corpo objeto transforma o espectador de alguma forma. Este é o efeito procurado – através da “dialética do Parangolé”. O “achar” na paisagem do mundo urbano, rural etc, elementos “Parangolé” está também aí incluído como o “estabelecer relações perceptivo – estruturais” do que cresce na trama estrutural do Parangolé (que representa

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aqui o caráter geral da estrutura – cor no espaço ambiental) e o que é “achado” (no mundo espacial ambiental). Na arquitetura da “favela”, p. ex., está implícito um caráter do Parangolé... 4 (...) Desde o primeiro “estandarte”, que funciona com o ato de carregar (pelo espectador) ou dançar, já aparece visível a relação de dança com o desenvolvimento estrutural dessas obras da “manifestação da côr no espaço ambiental... A idéia de “capa”, posterior à do estandarte, já consolida mais esse ponto de vista: o espectador “veste a capa, que se constitui de camadas de pano de cor que se revelam à medida em que este se movimenta correndo ou dançando... 5 Corpo como plasticidade, com suas múltiplas possibilidades. Corpo-objeto como escultura, uma outra escultura – a que coloca o objeto em movimento – cuja participação do espectador é inevitável. Nesse mesmo aspecto, Lygia Clark coloca seu objeto no espaço e o espectador também se transforma em “participador”. Não só a experiência dos Bichos e Caminhando mas todo o conjunto de objetos que Lygia criou e expôs. Recusamos o artista que pretenda emitir através de seu objeto uma comunicação integral de sua mensagem sem a participação do espectador. (1966) 6 4

OITICICA. op. cit. p. 87. Idem. op. cit. p. 93. 6 CLARK, L. Catálogo Arte Brasileira Contemporânea. pp.30-31. 5

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E mais contundente ainda nesse texto de 1968:

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Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro, no interior desse molde: o sentido de nossa existência... Somos os propositores: enterramos “a obra de arte” como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação. 7 Dessa época é a obra A casa é o corpo em que Lygia inicia um trabalho sensorial em sua radicalidade. Em 1969, O corpo é a casa, fase do trabalho que diz ser a nostalgia do corpo, onde o objeto ainda era “um meio indispensável entre a sensação e o participante”. Em 1993, em experiência bem arrojada, Lygia faz o Túnel – e diz: Este trabalho consiste em um túnel de pano de 50m de extensão. Entrando pelo túnel, as pessoas muitas vezes se sentem sufocadas. Então eu abro frestas no pano com uma tesoura que trago à cintura. As pessoas “nascem” através desses buracos. É a sensação de um nascimento verdadeiro, com a pessoa de fora ajudando a de dentro a sair.8 O objeto relacional estabelece uma nova concepção de arte, abrindo-se para o que se chamou de arteterapia. São verdadeiros exercícios de subjetividade, aliás o que é constante no processo de significância em Lygia. O ato engendra a poesia. O fazer que é já poético faz viver um ritual que engendra significação para o artista e para

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7 CLARK, L. Catálogo Arte Brasileira Contemporânea. pp. 30-31. 8 CLARK, L. op. cit. p.45.

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o espectador – artista. O espectador deixa de ser estático e passa a ser cinético como o objeto de arte.9 O espectador, leitor em ato, abole ou diminui a distância entre o fazer artístico e sua leitura. Lygia e Hélio colocam para nós o jogo. Jogo em seu sentido lúdico de participação de corpo, de brincar, sentir, dançar, movimentar o Parangolé; o jogo de “colaboração” prática, onde a obra é um espaço social. As obras de Hélio Oiticica, assim como as de Lygia se interpenetram, se atravessam, se intersemiotizam. Nos Parangolés, Bólides ou Penetráveis (entre outros) existe Bichos, Caminhando, Objetos Relacionais ou Baba Antropofágica. Os dois criadores fazem do corpo – objeto de arte um vir a ser do corpo que se potencializa ou se atualiza em corpo – leitor / espectador. Performances in progress.

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CASA NOVA, V. Objeto escritural. p.10.

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Referências Bibliográficas: CLARK, Lygia. Catálogo da Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. CASA NOVA, Vera. Objeto Escritural In: Revista Orobó, no3, Belo Horizonte, Ed. Orobó, 1999. GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte contemporânea. Do cubismo à arte neoconcreta. Rio de Janeiro: Renan, 1999. OITICICA, Hélio. Catálogo. Centro de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, 1997.

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Lygia Clark e a arte na era de sua reprodutibilidade técnica

Fotografar uma objeto escultural é deslocá-lo no tempo e no espaço, é torná-lo eternamente atual. Pensando nisso escrevi esse texto que pretende somente ampliar as discurssões sobre o discruso histórico sobre a arte em Walter Benjamin, a partir dos objetos de Lygia Clark – Bichos e Caminhando, de 1960 a 1964. A técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muitos extintos e com tanta eloqüência que podemos descobri-lo, olhando para trás.1 A foto do objeto artístico ins1

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. p.94.

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taura o acaso dos sentidos mesmo

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quando o referente (coisa real diante da objetiva) adere e exige do espectador / observador o objeto desejado. A foto autentica existência do objeto. O objeto de Lygia parece atravessar o espaço e o tempo de sua significação. Mário Pedrosa constata em 1963 ao olhar as galerias, que a escultura estava decadente, acentuando um esgotamento generalizado nas artes. Da descrição do objeto, feita por Pedrosa, pouco resta ao observarmos a foto. O olhar da foto é de outra natureza. Diz Benjamin: A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar: é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. 2 Beto Felício, assim como Sergio Zalis e Alair Gomes, fotografam os objetos artísticos para mostrá-los a um público sem acesso a esses objetos. Testemunhos históricos das rupturas dos objetos esculturais, eles tentam marcar a existência única do objeto de arte, mesmo que reproduzida em série pelo celulóide. A foto em sua existência serial encerra a atualização de um olhar – a do espectador. A percepção do objeto Bichos é sobredeterminada historicamente e revela o “inconsciente ótico” do fotógrafo. Cada banda fotografada se multiplica, abrindo a possibilidade de se pensar também aí a magia no ato da recepção. O

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BENJAMIN, W. op. cit., 1985. p.94.

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objeto fotografado não tem máscara, ele fala diretamente, conduz sentidos, “faz pensar” no tempo e no espaço. Para Benjamin o decisivo na fotografia era a relação entre o fotógrafo e sua técnica. Para Lygia Clark, Bichos é um organismo vivo, uma obra ativa. Uma integração total, existencial, estabelecida entre ele e nós. É impossível entre nós e o Bicho uma atitude de passividade, nem de nossa parte, nem da parte dele. 3 Lygia em vários momentos se deixou fotografar junto a seus objetos: assim como seus objetos, ela joga com o fotógrafo, com o espectador. Suas construções espaço-temporais plasmam o movimento e a fotografia tem que acompanhar. Barthes em seu trabalho sobre a fotografia - A câmara clara – afirma que os fotógrafos se movimentam no mundo, dedicando-se à captura da atualidade, não sabem que são agentes da morte.4 Da morte do sujeito, da crise da morte. Mas qual a relação entre a arte e a morte? e mais – entre a morte e a vida que existe no ler a foto do objeto? Com a imagem reproduzida do objeto artístico (mesmo que pensando nas massas) estamos diante do tempo. Na foto da obra de arte o “Isso foi” permanece e a ele acresce-se o “Isso é” – é o tempo de agora com seu olhar testemunho da História. Por isso fica cada dia mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão de perto quanto possível, na imagem, ou melhor, na sua reprodução.5 3

CLARK, L. Catálogo. p. 121. BARTHES, R. A câmara clara. p. 137. 5 BENJAMIN, W. op. cit., p. 101.

Na imagem (reprodução do

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objeto) a duração é dada pelo olhar,

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pelo sentido do olhar. Essa polissemia relativiza a duração. Transportamo-nos a um outro tempo – passado – momento da produção do objeto escultural – momento de exposição na galeria de arte – e presente – através da foto. Há movimento e conseqüente deslocamento. A materialidade do suporte é a base espacial do espaço e a base temporal do tempo. Assim, mesmo vendo a foto dos objetos de Lygia – estou diante de uma reprodução, através da foto, que plasma a existência única do objeto escultural. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra. (...) O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica.6 Os objetos de Lygia Clark são de existência única, mesmo quando o filme ou a foto a reproduzem. Bichos são desdobramentos do dentro e do fora, Caminhando é o exemplo, sob forma de objeto, da virtualidade. São dobras sobre dobras. As dobras do objeto escritural produzem relações com ele mesmo. Os objetos de Lygia Clark são, em sua produção, obras inacabadas desejantes de interação com o espectador. Não importa a direção dos sentidos. O objeto fotografado se recorta, se distribui conforme as subjetividades ou o lastro da história

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individual e social de cada espectador. Olhar o objeto na exposição ou objeto reproduzido, via foto, é lê-lo, não importando aqui o suporte. Objeto amarrotado por si mesmo, as significações recortam-no e atravessam-no. Simples vetor da História corroborando a autenticidade dos objetos. A percepção dos objetos Bichos, Trepante, Caixa, Obra Mole, Crescente Gigante ou Caminhando realiza o acontecimento, o dinamismo criador do ato da leitura do objeto. Volto a Benjamin: O que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais; a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja... fazer as coisas ficarem mais próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade... retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o semelhante no mundo é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até o momento único.7 Esse conceito em Benjamin pode ser operacional na relação objeto escultural com sua foto. O objeto-objeto ou o objeto não-objeto de Lygia Clark carrega a luminosidade da nova aura construída 7

pela história sintomal da escultura

BENJAMIN, W. op. cit., p. 170.

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brasileira. Se a força do rosto humano é a última trincheira da aura, o objeto-objeto de Lygia Clark guarda um valor de culto, pois fotografada recoloca a aura no objeto escultural – único objeto com a materialidade capaz de suportá-la. Guarda assim certo valor de culto que esse reserva à imagem do objeto artístico, mesmo com a inserção da mesma. A fotografia multiplicando o objeto, possibilita outros efeitos estéticos e semiológicos. Ao ver fotos de objetos de arte não nos impressionamos mais – o hábito faz com que deixemos de perceber a mágica. Mas ao estar aqui diante de uma lâmina de retroprojetor que reproduz uma foto, que reproduz Bichos se instaura uma percepção, que diríamos virtual, do objeto. Essa virtualidade mágica faz com que contemplemos o objeto fotografado tal qual ele estivesse na Bienal – e o mágico instaurado é de uma outra espécie de magia – a magia da imagem. O culto da ruptura tanto quanto o da tradição e a mística das vanguardas engendram a autenticidade, a singularidade do objeto escultural, fazendo reaparecer a sua aura. Uma outra aura é instalada, não a de cunho religioso, mas aquela que faz surgir o objeto em outro aqui - agora; não a que está ligada ao objeto original, dito autêntico, mas a que a leitura refaz. A reprodução acaba com a autenticidade, segundo Benjamin. A multiplicação das cópias acaba com o acontecimento, mas o movimento da arte ressuscita o morto. Assim como na Biblioteca revivemos a obra morta na estante, quando a lemos.

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O valor da exposição do objeto escultural tal qual o valor de culto à imagem resistem na reprodução. Fazemos exposição com fotografias de objetos de arte, porque não podemos ter a obra original, a “aura mitológica” se institui. Cabe, assim, à leitura dos objetos de arte, e Lygia Clark assim o percebeu, que ao espectador - leitor cabe o olhar virtualmente inquieto, louco – “ao mesmo tempo efeito de verdade e efeito de loucura”.8 Eternos, sempre virtuais, podendo ser lidos no “aqui e agora”, reatualizando-os, os objetos de Lygia Clark, mesmo que reproduzidos, são um desafio à história e à teoria da perda da aura, pensada por W. Benjamin. Tridimensional, o objeto escultural de Lygia Clark é cinético e obriga o espectador a redimensionar conceitos como os de aura, fazendo com que as dobras, os desdobramentos das configurações latentes nos objetos participem da própria obra. Assim os investimentos que possam ocorrer no ato de leitura fazem parte da ação do sujeito que “abandona o repouso inerente à escultura tradicional e adquire uma quase vitalidade ao incorporar a mutação como dado ontológico.” 9

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BARTHES, R. op. Cit., p. 167. MILLIET, M. A. Lygia Clark. Obra-trajeto. p. 75.

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Referências Bibliográficas: BARTHES, R. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENJAMIN, W. Obras escolhidas. vol.1 Magia e Técnica Arte e Política. São Paulo: Brasiliense. 1985. CLARK. Lygia. Oiticica, Hélio. Cartas (1964-1974). Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. MILLIET, M. Alice. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Edusp, 1992.

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Lygia Clark: arte e vida Toda visão efetua-se algures no espaço tátil (Merleau-Ponty)

Me sinto sem categoria, onde meu lugar no mundo? Tomo horror a ser catalizadora de minhas proposições. Quero que as pessoas as vivam e introjetem o seu próprio mito independente de mim (Lygia Clark) 1

O pensamento sobre arte em Lygia Clark revela-se na série Bichos. Tudo o que essa escultura metaforiza, pode e sabe dizer. Concha, marisco. Dentro e fora. Não há nessa artista a proposta do absoluto, de uma verdade na arte do espaço. Esculturas feitas em papel ou alumínio. O leve, o flexível, ao lado do duro, mas refletível. O tato indispensável ao fazer bandas/ fitas em Caminhando, o movimento das mãos tocando o objeto. Itinerários variados. A arte de Lygia Clark – absolutamente humana – é o pensamento que se deseja mudo, pois é a escultura que diz, não sua autora. Sonho. Me vi nua, enorme. Eu era a paisagem, o continente, o mundo. Em torno do meu púbis, pequenos homens construíam uma barragem. Barragem de contenção ou grande lago para todos nele mergulharem 2 1 CLARK, L. Pensamento mudo. In: Lygia Clark – textos de F. Gullar e outros. p.5 2 Idem, p.5

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A paisagem do corpo. Escultura de um corpo que se propõe espelho,

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labirinto, potência e ato dos contactos. A natureza dos corpos que se nutrem de sentidos uns dos outros. Sonho. Estou fazendo minhas experiências com os plásticos dentro do oceano. A água era o elemento que preenchia todo o vazio do espaço. Acordo e choro todo o oceano.3 Conceitos, imagens, sensações no jogo da criação. Criar é promover disjunções (falta de conjunções, separação) entre os elementos. Do código de signos cotidianos Lygia desloca os limites, as demarcações entre o dentro e o fora. A instância falante sobre a própria arte é denegada. O pensamento mudo de Lygia se choca com a cultura do museu, da galeria – ver de longe o objeto? Tocar o objeto, manusear, fazer dele um espelho. Refletir-se. Fazer, refazer o objeto. O objeto, um vazio a ser ou não preenchido pelo olhar do espectador. Nela mesma a experiência acontecida – o que me falta para complementar todo esse vazio 4 A conceituação psicanalítica do desejo, das pulsões é convocada por Lygia Clark a ser revelada pelo toque, pelo olhar. Um olhar, um sentir, afeto e percepção que fazem a pele delirar, os sintomas pulsarem. Paralelamente a Joyce – Fecha os olhos e vê 5, Lygia parece dizer: Abra os olhos e veja, toque, sinta. Se há o vazio, que vazio é esse a não ser a “inelutável” moCLARK, L. Pensamento mudo. In: Lygia Clark – textos de F. Gullar e outros. p. 5 3

dalidade do visível que se inscreve no corpo todo?

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CLARK, L. op. cit. p. 5.

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JOYCE, J. Ulisses. pp. 41-42

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Lembrando uma passagem de Merleau-Ponty em Le visible et l’invisible: Precisamos nos habituar a pensar que todo visível talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele. 6 A escultura de Lygia Clark efetua uma experiência do pensamento sobre o espaço que coincide com uma investigação concernente ao ser da linguagem. Metonímia do mundo, da psyché: jogo da própria linguagem da escultura. Sinto-me grávida. Num táxi em direção à praia, tenho a percepção de um sonho antigo: e me vejo no cosmos, assentada na garupa de um diabo em cima de um pacote vermelho vendo a terra embaixo. Perco o sentido do tempo e percebo a terra que continua o mesmo processo, se fazendo e se desfazendo continuamente. 7 A configuração do vazio chama a do pleno. Do vazio anterior, ao pleno da gravidez, a viagem do corpo. O poético se instala nas visões, nas aparições. Idéias que a autora vê e sente. 6

MERLEAU-PONTY. Le visible et l’invisible. p. 177. (Tradução da autora) 7 CLARK, L. op. cit. p.5. 8 DELEUZE, G. Crítica e Clínica. p.16.

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Paragens. É a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias 8

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O oceano, o mar, a praia – o cosmos. A questão do volume e do vazio se coloca inelutavelmente a nosso olhar 9 Processos que se tocam: a criação escultural e escritural. O corpo é transdutor de signos. Bichos: transmutações de energia. Passam-se horas que na realidade são segundos. Chego à praia. Passo a noite num estado alucinatório total, o tempo continua elástico, enorme, num minuto tenho a percepção de séculos. Visão constante de uma forma que me parece ser a soma dos dois sexos, feminino e masculino. Dentro de mim uma criança chora de pavor.10 Vaivém rítmico no jogo dos olhares. Soma dos dois sexos – dimensão andrógina do humano. Vaivém do aparecer e desaparecer das formas. Perda do objeto. Dissolução do eu. Vou ao banheiro – vejo minha cara no espelho, deformada, a pele está solta, os ossos por baixo estão tortos, sou uma velha de 5000 anos de idade.

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O espelho e a face deformada. O espelho em alumínio anodizado do Bicho, do Dentro é o fora (1963). O espectador se reflete e se vê numa outra dimensão – a deformação. Sou eu ou não sou eu? O aço inoxidável é o espelho que mostra o rosto, a face, a máscara. No aço, o corpo diz seu bem ou mal – estar

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9 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. p. 37. 10 CLARK, L. op. cit. p.5. 11 CLARK, L. op. cit. p.5.

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e quer se fazer “compreender” por intermédio de uma linguagem de signos. Esse código de signos estampados pelo aço ou pelo alumínio inverte e/ ou filtra aquilo que se exprime através do corpo. O corpo é efêmero. O espelho ali visto é o lugar da junção e da disjunção de um conjunto de pulsões que perdem ou fazem perder o “eu” fixo, rígido. O espelho sem aço existe? Lygia coloca no aço de O dentro e o fora o espectador em perda. O pensamento e o corpo cinético. Volume no espaço. Inquietação. Não somente uma forma mas um processo em curso. Lygia trabalha na escultura, como afirma Maria Alice Milliet, a relação sujeito/ objeto, não como dominação de um sobre o outro, mas enquanto dialética. Ação, transformação, vivência

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Escritura permeada por essa escultura, o texto de Lygia Clark Pensamento mudo mostra a invasão do inconsciente. Tal como veria acontecer em sua proposta de arteterapia e o efeito desejável no espectador de sua obra. O espectador se deixando surpreender pelo inconsciente. Engatinhando desço o morro, pego na água, na areia, na terra e aspiro o ar. Penso em arrolhar dentro de uma garrafa esses elementos para num rótulo dar-lhes outra vez identidade.13 12 13

MILLIET, M. A. Llygia Clark: Obra-trajeto. p. 79. CLARK, L. op. cit. p.5.

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A experiência supra-real continua:

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Como alguns calamares: é como se engolisse a paisagem, é algo sensacional. Três noites, três dias sem dormir. Na quarta começo a chorar e a bocejar até que, caindo na exaustão, dormi. Ao acordar me vejo no espelho e redescubro a minha cara, o meu eu que me fora negado e dissolvido por tanto tempo.14 Entre-lugar: território de circunscrição. Um estado entre consciente e inconsciente. Ensaios de descobertas e invenções propiciadas pela arte. Estados de vigília, sonhos. Palavras de estranhamento relatadas. Acordar é voltar aos signos cotidianos ou a recolocação do real em termos de vida, como afirma Lygia Clark em seu texto. O inconsciente como um dos grandes móbiles de seu percurso artístico possivelmente seria metaforizado na Obra Mole, cujos recortes de borracha laminada entrelaçados lembram platôs. Segundo Milliet ainda: Os corpos mutáveis, elásticos e deformáveis, presentes na obra clarkiana a partir de 1960, constituem “signos topológicos” nos quais as mudanças de estado são privilegiadas em detrimento de formas estáveis e distâncias fixas. 15 Caminhando, Obra Mole, Trepante e Caixa distinguem-se pelo material. A escolha é significante. Cada um deles percute no outro. O movimento da madeira e do cobre (Trepante, 1964); o metal e a caixa de papelão (Caixa, 1964); a 14

borracha (Obra Mole, 1964); e o

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CLARK, L. op. cit. p. 5. MILLIET, M. op. cit. p. 86.

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papel (Caminhando). Numa linguagem da matéria no contacto, no toque do corpo do espectador, gerador de sentidos e de fluxos. Pensamento mudo, o se calar, a consciência de outras realidades, do meu egocentrismo que de tão grande me fez dar tudo ao outro, até a autoria da obra. 16 Pensamento mudo é assim um texto nuclear da obra de L. Clark, sobretudo pela construção de significados dos objetos relacionais, como Caminhando, entre outros. A morte do autor, estratégia de leitura, compartilhada por Barthes e Foucault, seria possível de ser lida na prática artística de Lygia Clark, em sua expansão de sentido. O silêncio, a interação no coletivo, a recomposição do meu eu, a procura de um profundo sentido de vida no grande sentido social, o meu lugar no mundo. A consciência de que o entregar-se no fazer amor não existe, mas sim uma apropriação do pênis como parte integrante do meu corpo, o sentir-me através do outro como se copulasse comigo própria. O outro passa a ser eu, o inverso do conceito expresso e vivido por tanto tempo como eu sendo o outro. 17 Deslocamento do pólo autor para o pólo espectador/ leitor. O título desse texto envolve também os sentidos da a escultura em sua virtualidade. O virtual apareceria aqui como uma dimensão do real, envolvendo os sentidos 16 17

CLARK, L. op. cit. p.5. CLARK, L. op. cit. p.5.

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em expansão e em extensão, como

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camada de possibilidades não somente imaginárias, mas também um pensamento mudo, mas concreto. Entre o projeto de Lygia Clark e o objeto criado, a trajetória mostra o escritural como núcleo – objeto ideal – maquete virtual em seu devir de objeto produzido – a escultura – que passaria a ser uma forma de percepção do objeto real – numa conjunção em que as duas entidades, o objeto real e o objeto virtual, são simultaneamente requisitadas.

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Referências bibliográficas: CLARK, L. Pensamento mudo. In: Lygia Clark Textos de F. Gullar e outros. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. JOYCE, J. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: 34, 1997. DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34, 1998. PONTY, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964. MILLIET, M. A. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Edusp, 1992.

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Objeto escritural

Objeto Escritural

Os objetos esculturais de Lygia Clark são um traço/rastro diferenciador da artista, escritura do corpo. Entre o traçado e o movimento da obra, os objetos de Lygia Clark estão além da comunicação e da expressão artística, inseridos no espaço/ tempo em que são produzidos e contemplados pelos espectadores. Objeto que produz cena, se aventura no espaço, acontecimento. Objeto que obriga a significação acontecer, segundo as possibilidades do espectador. Objeto escritural múltiplo que direciona a presença e a ausência e que rasga ou abala a consciência de um sujeito racional, cartesiano. O objeto escritural de Lygia é lacunar todo o tempo. O alumínio anodisado de Bichos (1963) é um objeto amarrotado, fractal. É o nome que dei às minhas obras desse período, pois suas características são fundamentalmente orgânicas. Além disso, a charneira de união entre os planos me faz lembrar uma espinha dorsal. 1

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CLARK, L. Catálogo. p. 121.

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Bichos é o reencontro do espaço vazio e do cheio do espaço. Cada face tem uma correspondência que atualiza o gesto. Nada é intencional – só a interação com o espectador. Percurso realizado pelos olhos e com a mão imaginariamente. As faces e interfaces levam ao espaço vazio, circulam dentro e fora em indicação que Lygia baliza. O objeto escritural, cinético, faz circular os sentidos. No acaso da mão e do olho repousa esse corpo em expansão. O imaginário como fato e surpresa – jogo do efeito do espaço, efeito no jogo da significância. Percorrendo as bandas de uma margem à outra, o corpo frio do objeto envia a uma virtualização do imaginário. Bandas: partes laterais que como paralelas não se encontram. Barras, bandas de energia. Alumínio que vira cristal. Cristal embrião: nascendo da terra, da rocha: transparência como exemplo da união dos contrários. Alumínio que espelha o espectador. Cristal que representa o plano entre o visível e o invisível. Imagens do inconsciente. Poética gravada em alumínio – Bichos (1960 – 63) e O dentro é o fora (1963), Crescente Gigante (1964), Trepante (1964), Caixa (1964) e Obra Mole (1964). O tempo é o novo vetor da expressão do artista. Não o tempo mecânico, é claro, mas o tempo vivido que traz uma estrutura viva em si. Sinceramente eu acho que os Bichos são isto, sem modés2

tia e sem exageros.2

CLARK, L. op. cit. p. 155.

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Tempo e espaço vividos que apresentam uma estrutura que busca outras como para fazer/ construir uma rede rizomática entre corpos e objetos: Baba Antropofágica (1973). O objeto escritural ou o poema clarkiano – lugar de um acontecimento que se lê a partir do traçado ou do rastro deixado pela mão ou pelo olho. Entre vazios e cheios, o leitor/ espectador se encontra na(s) borda(s). De fora para dentro ou de dentro para fora? O objeto Bichos se refaz no objeto O dentro é o fora em aço inoxidável que aponta para um movimento maior. Os ângulos se infletem, se dobram, se abrem no espaço movimentando a folha do aço. O dentro é o fora – nova leitura e jogo de luz e sombras. A percepção da luz no objeto de Lygia Clark é passagem de uma percepção a outra. A curvatura do lado côncavo, enquanto define o jogo de luzes e sombras, do fora e do dentro, e o ponto de vista do espectador, segue uma perspectiva que se diferencia a cada momento, fazendo com que cada percepção do objeto seja singular. Les petites perceptions sont le passage d’une perception à une autre, autant que les composantes de chaque perception. Elles constituent l’état animal ou animé par excellence: l’inquiétude

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A pulverização da Razão que o objeto de Lygia Clark encerra abre uma outra percepção ou mesmo pequenas percepções que compõem

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3 DELEUZE, G. Le pli. p. 115. As pequenas percepções são a passagem de uma percepção a outra, enquanto componentes de cada percepção. Elas constituem o estado animal ou animado por excelência: a inquietação. (Tradução da autora)

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o objeto e o instauram em novas relações diferenciais no sujeito, e o objeto que era empírico torna-se o produto das relações na percepção consciente. Singularidade do objeto = inflexão. Os objetos/poemas clarkianos são dobras que infletem-se e produzem a inflexão sempre no movimento do olhar que se faz e se desfaz nas superfícies justapostas. Duplo circuito. Microscopia e Macroscopia da percepção. Inflectir, dobrar, curvar, inclinar: topologia do objeto e do sujeito. Desdobramento da banda de Moebius – geometria da borracha ou do papel. Faça você mesmo um Caminhando: pegue uma dessas tiras de papel que envolvem um bicho, corte-a em sua largura, torça-a e cole-a de maneira que obtenha a fita de Moebius. Em seguida, tome uma tesoura, crave uma ponta na superfície e corte continuamente no sentido do comprimento. Preste atenção para não recair a faixa em dois pedaços. Quando você tiver dado a volta na fita de Moebius, escolha entre cortar à direita e cortar à esquerda do corte já feito (...) a obra é seu ato.4 Passe de mágica – o espectador se torna autor, produto do objeto escultural Caminhando – o lúdico se estabelece no ato de ir cortando 4

a folha de papel, movimentando o

CLARK, L. op. cit. p. 151.

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direito e o avesso da tira. O “cara ou coroa” cartesiano implode, subverte-se. O direito e o avesso estão contidos um no outro – tal qual o espectador e o autor. O fora é o dentro. O dentro é o fora. O objeto é tridimensional. E o corte, a ruptura, um real que não encontra seu sentido. Salto topológico na arte. Intuição geométrica: a obra é o seu ato (sic). Na obra sendo o ato de fazer a obra, você e ela tornam-se totalmente indissociáveis 5. O ato engendra a poesia. O fazer que é já o poético faz viver um ritual que engendra significações para o artista e para o espectador – artista. O espectador deixa de ser estático e passa a ser cinético como o objeto de arte. É o corpo de Lygia encontrando-se poieticamente com outros corpos. Escritura do objeto – objeto escritural. Desdobramentos dos sentidos, abertos pelas bandas, pelas luzes. Impossível circunscrição. O objeto fala ao espectador – leitor e olha.

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CLARK, L. op. cit. p. 152

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Referências bibliográficas: CLARK, L. Catálogo. Rio de Janeiro: 1999. DELEUZE, G. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Minuit, 1988.

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A Foto(grafia) como Leitura

A Foto(grafia) como Leitura

A imagem é lida como um texto em que se citam e se representam objetos. Persuadindo e/ou seduzindo dentro de uma retórica especial e sem que o leitor-espectador perceba os argumentos ali contidos, a foto, em geral contém e direciona um pensamento, apontando sentidos. Lírica, épica ou dramática como um poema, a foto é uma escritura, é um graphos (gr. graphein) e se instala como tal a partir de um olho, de um ponto de vista em que a irredutibilidade da imagem-texto se desfaz como fronteira que marcaria a diferença entre uma folha de papel e a celulose. Tirar uma foto implica uma relação (qualquer relação) do sujeito com o outro. Um encontro do sujeito e do objeto. Um encontro de olhares que permite construir jogos em que sujeito e objeto, em mão dupla, interagem. Exceção feita ao fotógrafo Antonioni em Blow up, que fotografa um crime que não viu, somente a máquina registra. O que o fotógrafo cria? Há diferenças entre o documental e o propriamente artístico? Ou as fronteiras se desfazem a cada olhar? São múltiplas as vias da atividade estética. Por isso as fotos me enviam

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para as bordas do pensar artístico, para as interfaces e as travessias dos objetos instalados ali. Corpo, imagem e espaço: todos envolvidos pelo tempo. O espaço dos corpos ocupa a memória, e a luz movimenta a sombra. O traçado de luz e sombra, brilho/ textura/ angulação/ volume são o movimento da escritura da foto. Forma discursiva, narrativa, logo retórica, a foto me instala no universo da representação, mas também no afeto, nos ritmos e nas intensidades. Criar uma foto é também inventar o tempo e o espaço. Sempre me pergunto quando vejo alguém fotografar: por que ir de um lado para o outro? A luz sobre o objeto, como está? Incide mais ou menos sobre ele? E a técnica? O fotógrafo parece mesmo tentar apreender o objeto em seu espaço inteiro, vivendo essa ilusão de totalidade. A construção de uma foto se assemelha à urdidura de um roteiro, de um romance ou conto. Por outro lado, a constituição dos espaços-tempos coloca o signo na fotografia distinto de outras imagens. Trata-se de um outro regime de imagem, de uma outra dynamis. Seja do ponto de vista empírico, retórico ou estético, em sua produção ou recepção (ver uma foto, ler uma foto, viajar numa foto), a foto acontece como rastro.Rastro do tempo e do espaço vivido. Contingência, tique, ocasião, real, vazio. Essas palavras talvez devessem qualificar a fotografia e sua arte. Barthes em A câmara clara pensa-a como arte universal e ao mesmo tempo como arte singular. E o fotógrafo?

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Poeta da imagem, o fotógrafo olha seu objeto, que o olha, construindo um espaço singular de olhares. São fragmentos do mundo em seu vai-e-vem. Mas são esses fragmentos do espaço visual, as fotos, que estabelecem por meio do olhar um diálogo dialogos, um atravessamento do pensamento, da palavra, do pensamento. A foto é então um signo-pensamento, signo-palavra, ícone e símbolo ao mesmo tempo. Ponto de vista, composição, perspectiva, luz, forma, tom, textura, cor, detalhe, tema, coisas que ocupam o fotógrafo durante a sua produção. Revelação do desaparecimento. Não há retorno. Resta o olhar para acionar possibilidades dos sentidos ao leitor-espectador. Percepção e afeto, regras básicas no processo criativo, abrem ciclos que não se fecham, estando sempre em devir. Um devir-poiesis cujo processo de pensamento interno e dinâmico absorve e reconhece o acaso como norteador da criação. Acaso que o olho e a máquina, na aventura da câmera, retrabalham para o olhar do outro. A foto é assim um exercício do olho, tanto no lugar do fotógrafo quanto no do leitor-espectador. Possibilitando a construção de um discurso arqueológico, não só porque constitui um lugar privilegiado de visibilidade que se presta a descrições, mas também porque retém em suas redes de signos , a imagem, a fotografia é um lugar perceptível onde se distribuem jogos de aparição, a fotografia revela ao revelar-se a arte do tempo. Como a pintura permite uma certa organização do visível sobre o modo de representação que orienta o olhar. Os ensaios de

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Sebastião Salgado mostram isso. As escolhas dos grandes temas (Êxodo, Terra, por exemplo) feitas pelo fotógrafo revelam um processo de representação determinado pelo social. Uma foto de um indivíduo revela o social, uma foto do coletivo revela o indivíduo. Planos da subjetividade de um fotógrafo que se objetivam na película. A quem se destina uma foto? A um leitor que nunca é um receptor passivo. Há sempre uma interação, qualquer que seja ela, pois haverá sempre uma emanação do referente, mesmo que somente um traço, um rabisco de luz, resto do objeto. O referente fotográfico, assunto de comentaristas de fotografia, é a “coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia”.1 Difícil falar de fotografia sem nos referirmos ao referente fotográfico. Por que a foto precisa de um primeiro texto, ou seja, uma primeira imagem que lhe sirva de referente? Desdobramentos de textos que são construídos no laboratório: oficina de criação. Olho ou mão na experiência fotográfica são relevantes, mas pouco explicitam o processo criativo na imagem fotográfica. Muito mais instigante é essa busca do acontecimento, com ou sem planejamento, o descobrimento da cena nas frações de segundo que se instalam diante do olho-objetiva.Depois o laboratório onde a química e a física fazem seu papel. Grafo da luz e da sombra, o espectro, visível-invisível, aponta a invisibilidade de um corpo que não 1

BARTHES, R. A câmara clara, p. 114.

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está presente em carne e osso, que

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não é tangível e que acontece como metáfora ou metonímia, condensação ou deslocamento. Efeito que fascina e não se esgota é o efeito de uma foto artística. Revisão do tempo passado, certificado de presença e possibilidade de sentidos, a foto desinstala a aura, criando ou instalando outras formas auráticas. A fonte de Marcel Duchamp só poderia ter sido vista por uma população mínima de espectadores. No entanto, a foto da obra fez a sua reprodução acontecer, multiplicando as possibilidades de acesso. Fotografo e o acesso se multiplica. Outra espécie de aura aí se envia. A que se liga à reprodução, à multiplicidade em outro modo de existência da arte. Na fotografia tudo é sempre risco 2, diz Pedro Martinelli. Risco é acaso, e é transformação. Uma imagem produz outras sem cessar. Daí essa aventura, a experiência dos ensaios. O ensaio das imagens é uma homenagem ao ato fotográfico. Observo o ensaio de Maureen Bisilliat sobre a obra de Guimarães Rosa Grande sertão: veredas. Maureen preserva a memória do texto roseano filtrado por seu olhar sobre o sertão e os homens que lá habitavam. Fotografia e literatura: máquinas diferentes para a revelação dos arquivos preservam o graphos. Sebastião Salgado lê o êxodo, Maureen lê Jorge Amado, Euclides da Cunha e Mario de Andrade; Walter Firmo lê paisagens urbanas – os pés, por exem2 MARTINELLI, P. In: Persichetti, S. Imagens da fotografia brasileira, p. 51

plo. Lembro-me dele:

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Fotografia é uma investigação, posse e cerimônia. Sebastião Salgado vive investigando como andarilho em seus memoráveis projetos. Posse no sentido de apreender, aprisionar, fixar, deter em tempo tombado por uma fração de segundo. Cerimônia para aqueles que têm na imagem perpétua a iluminação no sentido de grandeza do ato, mérito do tombamento e resguardo, na crença de que o homem é bom, veio viver na fantasia e no paraíso. 4 Fotografar para que os objetos se transformem em signos e para que uma rede infinita de signos se faça telas. Telas sem molduras, sem limites. Que ela desvele o olhar 5 dirá Elza Lima, quando perguntada sobre o que realmente vale numa imagem. Puro movimento de ficar procurando com os olhos alguns pontos de ancoragem, nesse universo infinito de possibilidades e sentidos que a foto delimita. O homem fotográfico produz fotos lacônicas em sua representação visual de conceitos. Como um ideograma, a foto conceitua em sua impressão. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um diagrama, pois se expõe semioticamente, por meio de relações sígnicas , um ícone de relações inteligíveis. A foto traduz diagramaticamente o objeto. Mantendo-se próxima ao referente, é testemunha do objeto. Passa a seu efeito sígnico, no ponto de fuga que é a semiose infinita, 4

SALGADO. S. In: PERSICHETTI, S. Imagens da fotografia brasileira, p. 106. 5 Idem, p. 138.

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na qual cada interpretante possível é um novo signo. Desdobramentos

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das experiências do fotógrafo e do leitor da foto, que se situam nas interseções de teorias e práticas discursivas. A arte da fotografia é da ordem de uma experiência negativa (e vem do negativo!), um sentido incomunicável, mesmo que aparentemente comunicável, uma impossibilidade e uma ausência. M. Blanchot afirma que escrever não é mostrar, ou fazer aparecer, mas é, pelo contrário, testemunhar pela inelutabilidade de uma desaparição das coisas e de si no que se escreve e, portanto, valer-se de todas as maneiras possíveis para se desprender, sob a forma de um inexpiável distanciamento.6 A citação se aplica também à fotografia e amplia o modo de pensá-la como um graphos, como testemunha dos objetos e suplemento de sua ausência. Além de uma forma de expressão artística, estética, é um espaço de experimentação e de pesquisa. Um lugar onde se deve, também como na literatura, efetuar uma experiência do pensamento e dos sentidos, podendo ou não coincidir com uma investigação concernente ao ser da linguagem fotográfica. Para terminar, gostaria de lembrar aqui um texto de Ítalo Calvino - Uma aventura de um fotógrafo – em Os amores difíceis, em que o personagem Antonino, dobrando as pontas dos jornais num enorme embrulho, quer fotografá-lo. Dispõe as pontas de modo que se vejam bem duas metades de fotos de jornais diferentes. Queria, enfim, que em sua foto pudessem reconhecer as imagens

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BLANCHOT, M. A parte do fogo, p. 298.

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meio emboladas e despedaçadas. Queria também que ao mesmo tempo se sentissem sua irrealidade de sombras casuais de tinta e sua concretude de objetos carregados de significado... Enfim, Antonino “entendeu que fotografar fotografias era o único caminho que lhe restava, aliás, o único caminho que ele havia obscuramente procurado até então. 7 Antonino revela o que o fotógrafo desvela: a dimensão fractal do mundo.

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CALVINO, I. Os amores difíceis, p. 64.

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Referências Bibliográficas: BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BISILLIAT, M. A João Guimarães Rosa. São Paulo: Branner, 1969. BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. CALVINO, I. Os amores difíceis. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990. PERSICHETTI, S. Imagens da fotografia brasileira. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.

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Da máscara à face negra

Une photographie ne vaut que si l’on désire (fût-ce dans le refus) ce qu’elle représente (Barthes)

É na galeria de retratos que podemos contemplar os estados ancestrais e inumeráveis, em relação aos quais parecemos, hoje, ter perdido o fio (Arthur Omar)

Olhos vasculham a rua. Tomada fotográfica. Captação do instante e sua sentença de morte1. Fotos de máscaras e de faces. Qual seria a diferença? Faces que são máscaras, máscaras que são faces — fotografias. Insistência da morte, contingência pura 2 de faces que se tornam máscaras pelo “clic” da máquina de Arthur Omar. Antropologia da face gloriosa 1 é o livro de Arthur Omar em que a face adquire o poder de máscara. Da mesma forma que pela foto as máscaras africanas adquirem feição de faces. Minha câmera, minha máscara negra.3 As fotos, os poemas:

. Leite Zulu para Harmonia Química Nacional . Procissão de raízes conduzindo o brilho da consciência . O Gêmeo das jóias . Antropologia da face gloriosa . Pintado para pensar 1 BLANCHOT. “L’arrêt de mort”, apud BELLOUR, R. Entre-imagens. p. 13. . Oftalmologista da divina luz 2 BARTHES, R. La chambre claire. In: Oeuvres Completes p. 1127. . O minotauro Idem. O zen e a arte gloriosa da fotografia. p.13. 3

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São os versos - legendas das fotos, que recorto nesse estudo. Versos ou títulos de fotos - poemas que constroem uma verdadeira poética da imagem. Poética que não admite a inércia. Segundo o autor: Um bom título tem que valer por si mesmo, e não se referir a nenhuma outra imagem, a não ser as imagens verbais que ele mesmo carrega dentro de si. O título já é uma obra. Quando junto um título a uma fotografia, estou combinando uma obra com outra obra, quase como se pendurasse um quadro ao lado do outro (...) Ou ainda: Os títulos nesta Antropologia da face gloriosa, funcionam como uma fantasia carnavalesca que as fotografias vestem no momento de serem olhadas.4 Movimento do rosto, máscara teatral. A relação verso / título / legenda e imagem acontece no movimento dos sentidos. O que a imagem diz não é o que a legenda necessariamente oferece. Assim, verso / título / legenda possibilita ao leitor / espectador uma viagem aos territórios poéticos e míticos da cultura afro-brasileira. O que são as faces gloriosas? São aquelas que vivem atitudes de passagem. Porque não duram mais que breves instantes, frações de sentimentos alterados entre a alegria e a tristeza, o amor e o ódio, o

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OMAR, A. Antropologia da face gloriosa. p.31

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entusiasmo e a retração. Não são nem uma coisa, nem outra, mas tudo ao mesmo tempo. Evocação de períodos míticos e selvagens. Faces que vivem sentimentos gloriosos, e gloriosos tormentos.5 Glória de esfinges, máscaras que se dobram, criam-se e re-criam-se no tempo e no espaço, sublinhando o mito em sua função de ligar o social e o sagrado. A máscara que a foto revela inquieta o espectador, por sua força estética, crítica, ou como observa ainda R. Barthes: Le masque, c’est le sens, en tant qu’il est absolument pur.6 O sentido puro é, então, a significância, os outros sentidos que não os denotados ou conotados cotidianamente. Tal qual um poema, um signo poético – que só possibilita a pluralidade, a máscara é um estado superlativo da negritude. O olhar se apóia bruscamente – e se concentra no punctum escolhido consciente ou inconscientemente pelo leitor / espectador. Em Leite Zulu para a Harmonia Química Nacional percute o movimento, soa ou ressoa essa face – máscara de um negro que brinca o carnaval na rua, na escola. Corpo vivo em ritmo, cuja vibração bate numa freqüência próxima à do autor da foto. Diz A. Omar: Um coincidir, um incidir no mesmo ponto 7. Há uma dicção de voz negra, como a do puxador de samba, nessa foto. 5

OMAR, A. Op. cit. p. 7. BARTHES. op. cit. p. 1132. “a máscara ± é o sentido, enquanto é absolutamente puro. (Tradução da autora) 7 OMAR, A. op.cit. p. 19.

O riso é louco, no sentido do

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ritmo carnavalesco, da dança que sacode o corpo, a face. Voz do corpo,

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dicção negra. Cabelos brilhantes, olhos e bocas multiplicando-se. É como a escritura negra de João Antônio, no conto Eguns: E um chega ansiado, longamente esperado, e, no fundo, alegre entre o povo ketu e seus eguns, apesar dos temores. Mulheres e homens, filhos de fé, olham reconduzidos para os eguns que baixam. Senzala inteira canta para eles, com harmonia, com uma amizade, como num reencontro. Coisas da boa terra, que é toda pra fora, franca, devocional. Aqui se gosta da beleza, do ritmo e do que é corporal, musical e vem de dentro.8 Vem de dentro para fora e de fora para dentro: movimento do leite, o leite que não é apenas a bebida, mas o lugar da imortalidade, cuja energia é capaz de causar o crescimento, também, o espiritual, tendo o poder de fazer a vida crescer. Leite Zulu para a harmonia química nacional: emblema de vigor e força. Face – cristal, brilhante, o retoque da luz. A vida tanto quanto a morte como trabalho psíquico, cristalização do instante para deixá-lo ser olhado. Procissão de raízes conduzindo o brilho da consciência: A foto é pensativa, como nos diz Barthes. Ela não é reflexiva, como o signo poético (verbal) induz a ser. Ela pensa o objeto em sua instantaneidade. Todos os vazios estão preenchidos nessa “procissão de raízes conduzindo o brilho da consciência”. Os óculos da face refletem as luzes da festa, da cidade e o flash da câmera. Tudo é reflexo,

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ANTÔNIO, J. Abraçado ao meu rancor. p. 155.

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até mesmo o brilho da pele negra e o lenço, cujo pano recebe a luz. Os olhos – pelos óculos, cujas lentes estão brilhantes, mostram uma austeridade. A lente recebe a luz e a reflete. Em contraste com Leite Zulu, o rosto é sério e não se encontra neste a fulguração anterior. Raízes – o signo não é gratuito. Ele envia imediatamente a face à máscara ou de uma a outra máscara. Faces totêmicas. O olho avança. Arthur Omar em entrevista afirma que é guiado por uma idéia messiânica das máscaras e que acredita que um dia todas as máscaras vão cair, revelando o Rosto que tem que ser revelado, e talvez o verdadeiro Nome. Enquanto isso não acontece, eu sou o guardião das máscaras. 9 Máscara que se reveste de enigmas do arquétipo do rosto humano. Máscaras sexualizadas pelas faces. Esse guardião das máscaras aponta e se conecta com as raízes africanas, cuja arte das máscaras mostra a importância milenar dos mitos e do poder mágico. As máscaras reavivam os mitos que explicam a vida e a morte, o tempo e o espaço em sua dimensão cotidiana. A aproximação feita aqui entre a face e a máscara é considerada desde que cada face fotografada parece captar as forças de uma máscara ritualística. Como máscara teatral, em que o portador representa inconscientemente a face gloriosa e a face de Luz que é atravessada pelos reflexos de luz da câmera que fotografa e da cidade à noite. Arthur Omar humaniza a face 9

divina sem que o esquecimento dos

OMAR, A. op. cit. p. 54.

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símbolos se realize. Faces e máscaras se atravessam no ritual carnavalesco. Faces catárticas, reveladoras de máscaras africanas, que se associam a ritos diferenciados. Máscaras, que são “esculturas em movimento”. O poder mágico das máscaras é transferido às fotos que atualizam esse poder, sob forma de fascínio. Como afirma M. V. Beïer, Certas máscaras iorubas manifestariam a expressão de um ser vivo já reunido através do êxtase aos bazimus. Traços do rosto, proeminentes e inchados (particularmente os olhos), formas redondas e turgescentes como que brotando sob o efeito de um impulso interior, poder-se-ia dizer que são expressões da concentração e da receptividade, semelhantes àquela que aparece no rosto de um fiel em estado de adoração (...).10 O Gêmeo das jóias. Olhos, nariz e boca brilham em contraste com o restante do rosto que oscila entre o negro escuro e o negro claro. Efeitos da luz no face a face, na “caligrafia” fotográfica. Um lado escuro e outro luminoso. Na mesma face se instaura a bidimensionalidade do gêmeo, ou seja, a dualidade em um só corpo, em uma só face. O duplo, o jogo de espelho. Ambivalência do mítico, os gêmeos representam o valor intenso – “as jóias”. O brilho das jóias

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CHEVALIER E GHEEBRANT. Dicionário de símbolos. p. 597. 11 Na África Ocidental são adorados e mágicos.

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segundo leitura do autor: Temos Gêmeo, que significa idêntico. E temos jóia, brilho, fulgor. Há algo de metálico nessa foto. Algo que talvez venha da ponta do chapéu segurando o rosto, como o anel que segura uma pedra preciosa. Esse rosto é absolutamente transtornado, amarrotado como uma chapa de metal espancada, mas conservando uma interioridade ébria de extrema fragilidade, como um camafeu, pois ele está num estado glorioso especial, que não se parece com nenhum outro estado, e só aconteceu no mundo uma vez: aqui, não encontro termo melhor que jóia, e, não sendo uma jóia de verdade, mas o último dos homens, ele é o gêmeo das jóias.12 A Antropologia da face gloriosa, foto que dá nome ao livro,é um instante de pura magia. A careta mais comum torna-se impactante, transgressiva, transgressora. A língua branca é a língua do branco. A língua da comunicação entre negros e brancos. Órgão da palavra, língua faca, navalha e chicote. Uma língua de fora, paisagem explicitadora de que Uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou

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um avesso que consiste em Visões e

OMAR. A. op. cit. p. 42.

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Audições que já não pertencem a língua alguma... Elas não estão fora da linguagem, elas são o seu fora.13 A intensidade dessa foto oscila entre a expressão de um certo erotismo e a momice. Esse negro truão brinca diante da lente fotográfica. Estampa a caraça que é o avesso da pose. Vou direto aos olhos. A complexidade de um espanto diante da câmera revela a luz que se imobiliza e me seqüestra para dentro dela. Máquina de olhar, no sentido de que faz múltiplas conexões com os olhos que olham, esses olhos me olham, tal qual olharam a objetiva. A repetição se faz aqui necessária. Trata-se de um jogo entre o rosto / máscara do fotógrafo, do fotografado e do leitor / espectador. O olhar é em si mesmo a glória. Glória que ultrapassa o significado do signo – enquanto a definição do autor de “corpos gloriosos”. Por analogia com a noção de “corpos gloriosos”, que segundo a doutrina católica são os corpos existentes no céu e prontos para a Ressurreição, os sentimentos gloriosos são todos aqueles situados levemente acima do normal. Embriaguez, fascinação, paixão, comoção, desvario, frenesis...14 Trata-se da passagem da linguagem à significância e à obtusidade (Barthes). A imagem traz em seus traços (o brilho da pele, os contrastes p&b) um processo de significância que confunde os limites que separam a expressão e a 13

representação.

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DELEUZE. G. Crítica e Clínica. p. 16. OMAR. A. op. cit. p. 42.

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O sentido obtuso nessa imagem rompe com seu referente (a figura negra, a máscara, a careta) e instaura o fotográfico – o que não pode ser descrito, é a representação que não pode ser representada15. O que posso situar mas não descrever e que poderia ser caracterizado como o ato fundador do próprio fotográfico. A face / máscara resta entre o esquecimento e a reminiscência dos ancestrais. A face se preenche de uma expressividade e de uma significância humanista que se impõe com um excesso de intensidade. Pintado para pensar é o verso – título da foto. O rosto de um menino é um texto, uma tela. Um rosto ainda sem marcas da vida, mas marcado pela tinta branca do ritual iniciático. Trata-se de uma foto – citação. No corpo do noviço as marcas da religiosidade. O fotógrafo “acerta seu alvo com perfeição”. Pensar, talvez seja, o gesto do olhar. Olhar arcaico. Il retient vers le dedans son amour et sa peur: c’est cela, le Regard 16. O punctum reside aí. E esses olhos não são os do êxtase místico, que percebem a divindade. Esses olhos olham o fotógrafo e o espectador da foto e os tornam gloriosos. Esse olhar do menino é uma fulguração. Fixo e pensativo, encarando a vida e a morte. Pintura, escultura e fotografia se friccionam através desse olhar do menino. Relembro Barthes: Ah, se houvesse somente um olhar, o olhar de um sujeito, se 15 16

BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. p. 56. BARTHES, R. La chambre claire. p. 1186.

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alguém na foto me olhasse! Pois a fotografia tem esse poder – que ela perde

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cada vez mais, a pose frontal sendo ordinariamente julgada arcaica – de me olhar direto nos olhos (...)17 Pensar sua cultura, suas tradições transformadas pela História. Alguma coisa mais forte, mais aguda é aí delineada: uma espécie de relação voluntária humana entre os olhos e a boca. Entre essas duas zonas da face, a máscara sublinha as linhas pintadas de branco. A face do menino representa esse momento de glória, em que a fotografia extrai uma beleza existencial de uma beleza essencial. Tal a complexidade das funções morfológicas que aí se apresentam: essas faces são de ordem conceitual ou de ordem substancial? O rosto de cada uma das fotos seria idéia ou acontecimento? Oftalmologista da divina luz re-cita a Antropologia da face gloriosa. Mais um truão da galeria de A. Omar. Um saci–pererê - ou um Exu? – brinca com o samba no rosto. É uma máscara de dança que se abre em outras para mostrar outras faces, umas por trás das outras – dobras múltiplas. Todas marcadas pelo mistério da loucura, dos exus incorporados, de eguns: O egum se aquieta, toma o ritmo e começa a dançar. Canta também, em ioruba, sua voz empastada, rouquenta, como vinda de um fundo misterioso qualquer. Mas que não viesse de dentro dele mesmo. Rouquenta, devagar, monocórdica (...) Um homem até matreiro de despachado, que tem uma falha nos dentes de cima e faz carretos na sua Kombi

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Barthes, R. op. cit. p. 1188.

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de aluguel (...) E vem de olhos sorrindo, uns olhos crioulos que bem sabem do meu espanto. 18 Qual a especialidade dessa alucinação? Pânico, medo, olhar drogado? Qualquer um desses aponta para a dionisíaca glória. Humanas ou não humanas essas paisagens lunares com os poros, o brilho, as luzes e os olhos esburacados pelo branco vão constituindo essas faces / máscaras em grandes planos, atravessando momentos líricos ou dramáticos. Arthur Omar realiza na prática artística, a semiótica de eixo de significância. O minotauro Carl Einstein definiu a máscara como um “êxtase imóvel”. Arthur Omar define a face gloriosa como captações extáticas, momentos em que o sujeito sai de si mesmo, do seu torpor, para atingir um estado fulminante e brevissimamente superior. 19 Essa foto re-cita outras do livro, mas retoma especificamente a primeira aqui mostrada: Leite Zulu... e também Antropologia da face gloriosa. Todas enviam ao sentido do êxtase, já observado anteriormente. Elas apresentam uma concepção do mundo muito importante nas sociedades negro-africanas: a da força vital – força fundadora da metafísica e da ontologia negro-africana. O efeito de luz e sombra realça a figura negra cuja face, verdadeira máscara, lembra a cabeça de um touro. Como na Grécia esse monstro simboliza um estado psíquico, inconsciente. Esse minotauro criado pela foto de A. Omar, numa 18 19

ANTÔNIO, J. Abraçado ao meu rancor. p. 153. OMAR, A. op. cit. p. 41.

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“irrupção da forma”, parece estar num

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transe extático – Deus não te vejo com a pupila, mas com o branco dos olhos 20; a boca entreaberta dá a entrever os dentes. É uma boca que simultaneamente é brilhante e opaca. Boca da embriaguez, dos instintos, da desrazão, que sublinha o êxtase, a antropologia estática, e que permite ao profano a revelação dos segredos das origens através das cosmogonias, onde surgem os ancestrais míticos. O Minotauro é uma face antiga, uma máscara arcaica cuja expressão traduz sentimentos que não conhecemos mais ... Rostos que vinham de um abismo que se parece mais com o meu inconsciente do que com a memória do carnaval carioca.21 A aproximação que faço aqui entre a face e a máscara se justifica também pelo rito do carnaval – temporada de desordem – espaço da rua com todos os seus momentos cotidianos que faz emergir dos corpos carnavalescos um devir animal, um devir samba, além do processo de atualização da própria máscara. Seria possível pensar essa obra como uma grande epopéia negra, mesmo que em seu conteúdo nem todas as máscaras guardem a feição de uma máscara afro. A poética de Arthur Omar não é só da imagem visual, é também a dos títulos – versos que fazem deslizar a fixidez do sentido, do título do verso, do poema, do fato. O título não adere, em termos da sua representação, à foto. Resta a significância possibilitadora de outras imagens poéticas. Arthur Omar consegue também mostrar o carnaval do Rio de

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20 Título do ensaio de Ligia Canongia. In: OMAR, A. op. cit. p.7. 21 Apud CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. p. 597.

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Janeiro através do corpo apresentado como face / máscara. Traduzindo um modo de percepção, uma possibilidade sempre aberta para uma antropologia de cultura visual em que o passado e o presente se cruzam no mito, Arthur Omar dá a ver uma das formas da cultura afro-brasileira - mostrando que a cultura contemporânea, mesmo que centrada no visual, não dissolve o nexo histórico dos fenômenos culturais, podendo mesmo resgatá-lo através do fotográfico. A história contada por essas sete imagens me proporcionou uma perplexidade (num oh!), e imediatamente se instalou um fascínio, que me fez entrar e não mais sair de cada foto. Quanta cultura ali se instaura, se manifesta. Numa primeira leitura – o corpo, a face, a máscara, mas aí também a cultura afro-brasileira, cujo recorte é o carnaval, é a rua, é o homem com a dança, o ritmo no corpo. Depois dessa viagem pelas faces / máscaras, acredito como Barthes que a foto é como a palavra: uma forma que quer imediatamente dizer alguma coisa. Nada a fazer: eu me sinto constrangido de ir ao sentido – ao menos a um sentido. O estatuto desses sistemas é paradoxal: a forma se propõe somente para se ausentar em proveito de um real suposto: o da coisa dita ou da coisa representada. Esta fatalidade une o escritor e o fotógrafo, face ao pintor, mais livre.22

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BARTHES. R. Óbvio e obtuso. p. 14.

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Referências bibliográficas: ANTÔNIO, J. Abraçado ao meu rancor. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. BARTHES, R. La chambre claire. Oeuvres Complètes. v. 3. Paris: Seuil 1995. _____. O óbvio e o obtuso. Porto: Edições 70, 1982. BELLOUR, R. Entre imagens. São Paulo: Papirus, 1997. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. _____. Mille Plateaux. Paris: Éditions de Minuit. 1980. OMAR, A. Antropologia da face gloriosa. São Paulo: Cosac & Naify, 1997. _____. O Zen e a arte gloriosa da fotografia. SP: Cosac & Naify, 2000.

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Da topografia à escritura: o gesto de bordar

De um pólo ao outro do mundo os homens transcreveram sua história sobre a pedra, a argila, o papiro, o pergaminho, o papel. Estilete, cana, prego, pena: o instrumento dita a forma. Dos sumérios (5000 anos) na Mesopotâmia (país entre os rios), com suas tabuinhas, aos livros impressos, inúmeras pesquisas são feitas para descobrir a arte dos escribas, dos copistas, dos tipógrafos e dos gravadores. Tantos signos, quantos símbolos! Diante da arte escritural, a memória dos homens vem de uma caverna em Lascaux, onde os homens traçaram seus primeiros desenhos. A escrita acompanhou a imagem como “aide-mémoire”, a fim de guardar traços da língua falada, e alternar a comunicação, o pensamento e a expressão. Não é o caso aqui de contar a história da escrita, mas observar como o gesto escritural se realiza e acontece de variadas formas. Escritores escrevem sobre o papel, pintores pintam... Bordadeiras bordam. Gravadores gravam. Escrita cuneiforme, xilogravura dos tempos sumerianos.

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Dando um grande salto na História, vamos a Bayeux, na França do século XI (1064). A tapeçaria de Bayeux, considerada única no mundo, é um documento histórico. Trata-se de um bordado executado sobre uma tela de linho, um pano com linha de lã de cores variadas. A execução foi provavelmente confiada a um atelier (anglo-saxão) sob a direção de Odon de Conteville, bispo de Bayeux, irmão de Guilherme, o conquistador (marechal). O pano tem mais de 70 metros de largura e 50 cm de altura. Esta peça conta a história da conquista da Inglaterra por Guilherme, o conquistador. A leitura feita pelos anglo-saxões naquela época obedecia às informações trazidas ao povo – e no atelier realizava-se a narrativa. Despertava em cada bordadeira ou bordador uma Penélope, uma Mnemosine ou uma Sherazade. Não importa. O que importa é a vitória da narrativa sobre a morte e a memória do vivido. Topografia é aqui usada no sentido de uma configuração do relevo de um terreno com a posição de seus acidentes naturais ou

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Extrato da tapeçaria de Bayeux

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artificiais. Muitas vezes, ao observar os bordados das Mariquinhas faço uma descrição anatômica de um pedaço de pano. O pano é de morim (malaio muri), de algodão, branco como a folha do papel. Pedaços de tudo, restos de saco, roupa velha, flor, renda, brocado. A linha é de bordar. O desenho traçado é o bordado. O bordado é o grafo dos traços de uma prática – a de bordar. Um bordado que faz florescer uma linguagem, que fratura o mundo e o refaz através de signos que indicam os caminhos. Gesto manual, registro de marcas, prática em que cada bordadeira faz triunfar o tempo, o esquecimento, a vida. Daí esse bordar se assemelhar ao gesto escritural, resposta ao gesto leitural, a leitura que se faz do mundo, ou do texto literário escolhido. A relação leitura/escritura é vista aqui a partir de minha experiência como leitora dos panos das bordadeiras – mariquinhas. Como se borda a partir de uma leitura do texto literário? Esse re-contar é uma forma de ler, reler o que está sendo lido? Lendo as histórias de Guimarães Rosa, Clarice Lispector ou de qualquer outro autor, uma mariquinha descobre a força que tem em seu trabalho de simples bordadeira. Sem talvez ter a consciência de que é um sujeito, mas tendo a consciência de que diz algo em seu bordado, a mariquinha rediz com sua linha e agulha sobre a superfície do pano versos que têm reversos. Estórias e seus avessos, pois o pano bordado borda um avesso das coisas. Um avesso que é a enunciação, ambíguo, de sentidos indetermináveis, onde citar ou re-citar Guimarães Rosa, Clarice ou Llansol funciona como parceria.

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Não há aspas – há uma linha que percorre o pano, recorta flores e outros panos, também num processo já em si mesmo, intertextual, intersemiótico. Não há desvio na enunciação desse sujeito – há um jogo de identificação. O tipográfico – o bordado escreve, re-escreve, re-cita o léxico íntimo, da experiência de cada um, um dicionário pessoal e social, uma biblioteca que cada um guarda em seu arquivo íntimo. Cada texto literário lido passa à memória. Ele solicita à mariquinha e ela superpõe ao texto literário (o da solicitação) uma

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Extrato escaneado do bordado original

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rede de outros sentidos. O processo de disseminação acontece intensamente, a partir dessa manifestação de gesto arcaico de recortar e aplicar do bordado. Pouca citação e muito texto vivido pela mariquinha, que vai deslocando a cada ponto bordado, armando seu ergon (força em ação), o seu dizer e o seu fazer. Pano-texto em cuja mão-de-obra o sujeito ativo, transitivo coloca seu trabalho, seu labor. Trabalhar o texto literário e trabalhar no bordado, o texto do outro e o meu texto. Dar sentido, operação trabalhosa. Fazer aparecer a voz, talvez para contar num pedaço de pano esse desejo. E as coisas são contadas. Escritura-vida, a vida escrita através da escrita de Rose ou Clarice. As escrituras se equivalem. Escutar a escritura de Rosa na 3a margem do Rio ou Sinhá Secada ou O Espelho – escutar a estória e escutar o que eu tenho a dizer – tempo de suspensão – para dar lugar à floração, ao risco e ao bordado. O pano é virgem, a linha é virgem, mas os outros materiais não o são necessariamente. Sianinha, brocado, retalhos surrados pertencem a outras estórias, ou melhor, a outros bordados ou costuras. Intermateriais. A estória está presa ao papel e se desloca para o pano. Começo o meu canto – canto de bordadeira. Um poema bordado, lugar de memória(s), de identidade(s), do pensamento e da(s) recusa(s) e objeções. Lugar de todos os desafios. Timbres variados, músicas cantadas em suas singularidades, de ressonância(s) diferente(s),

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mas todas inscritas na vivência, na experiência das leituras, seja do mundo, seja da literatura. O pano-texto traça as linhas de um poema que quer ser ouvido/ visto. Para vê-lo é preciso, no entanto, passar a mão, ler com a mão, com os olhos, com o corpo as cenas que cada corpo borda. Leitura das leituras. Da letra à imagem. Ou as duas juntas: Letra e imagem de um corpo para outro. Experiência radical, onde a interioridade da linguagem se exterioriza. O pano como literatura a ser lida que não escapa à sua dupla relatividade: conta-se uma história, a cada pano bordado, faz-se ficção; e borda-se intencionalmente para vender um pano-colcha, um pano-livro (por vir). A experiência da palavra (Blanchot) e a experiência do traço a bordar interagem. Dicções que se misturam no processo de criação. Outra forma de escrita, o bordado-narrativa se encontra com a própria escrita, pois a escrita é o nome de uma disjunção que identifica ao traçado material da mão o traçado de sua própria significação. E essa significação é a de uma partilha. A escrita sempre escreve ao mesmo tempo uma relação da ordem dos corpos e das palavras, ela define uma posição do corpo que é uma posição de sua ‘alma’, qualquer que ela seja 1 O bordado é uma outra língua. Língua de paisagens individuais que se misturam aos textos literários lidos.

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RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. p. 97.

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Não de nosso pai não se podia ter esquecimento. (G. Rosa); ao lado uma figura representando de corpo inteiro o Pai. Em outros bordados o fogão a lenha com as panelas e a bica rendada, a casa, a construção da casa, corações e figuras de mulher, homem e Jesus Cristo, que nunca falta nas expressões populares. Desemprego também é violência – mostra uma figura em destaque com uma carteira de trabalho em riste, numa das mãos. Melhor que descrever é ver. Os processos de apreensão, mesmo que dependendo das subjetividades, partem de um real particular. Essa apreensão é acompanhada de uma organização dos objetos, de uma recomposição de signos de acordo com o processo de analogias diversas. O momento presente e a necessidade de cada um constroem a imagem que vai para o pano, criando formas. Em P. Zumthor, encontro que a imaginação faz funcionar no nosso espaço lúdico o objeto que capturou.2 O espaço lúdico das mariquinhas, sendo o bordado, é aí que elas vão, depois de capturado o objeto, transforma-lo em signo. Se o objeto é um texto literário, ele vai ser desdobrado, vivificado, re-criado pelas imagens que cada um fez do que ouviu ou leu. Ouvir/ler textos literários é tentar apreender o que o texto diz e faz no vivido de cada bordadeira. Na troca de historicidades que aí encontramos outros processos de significação acontecem. Apropria-se da estória, mistura-se com o vivido de cada um, ultrapassa-se as 2

ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. p. 125.

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significações possíveis do texto e lhes dão outros sentidos.

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Da topografia à escritura

O bordado é a procura da história da bordadeira, em sua singularidade e na dos objetos recriados. Elas se encontram ali e ali se tornam poetas. O discurso poético das bordadeiras é por excelência narrativo. Há um saber narrativo (Lyotard) que percorre cada pano bordado, cada colcha, construindo assim uma poética do bordado. Uma poética que não oferece nenhuma dificuldade, pois é como o bordado. Fios sobre o tecido, largura e altura intuitivas, formando no limite do quadrado do pano com rendas e pontos ou um esgarçamento, como que um esquecimento do limite. Morei na barraca de lona onde fui feliz (Lurdes) Minha vida antes de vir Para o Mariquinha era só chorar. Vivia no aluguel Rezar faz bem à alma Paulo com ele conseguimos moradia A tristeza de ter vindo neste mundo tão pobrezinha Se eu pudesse acabaria com o racismo Ser negro e velho Coisa ruim. Drogas! Aids, doenças, violência, fome As letras bordadas explicam ou completam segundo elas, os desenhos, considerados mal jeitosos e simples, mas feitos com muito prazer. Exigindo cuidados e paciência, o bordado exige um trabalho regular para que se tenha a mão hábil. Exige tempo e disposição.

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TEXTURAS:

ensaios

Tempos que se interelacionam. Tempo de bordar, tempo do bordar e tempo do viver. A narrativa traz a memória do vivido. Página de escritura, o pano bordado é também exercício de desenho. Assim fazem, assim dizem Façons de dire, façons de faire 3 , citando o título do livro de Yvonne Verdier sobre as profissões de lavadeira, costureira e cozinheira. Sempre a dança das mãos revelando e afirmando o humano. O pano, o desenho, a linha e a agulha para bordar estórias. Recortar pedaços de pano, reunir elementos vários, como a colagem, de natureza heterogênea, a constituir um texto, cuja beleza vem a mais, como uma graça. Mas da presença gera-se um prazer. E o prazer é o mais alto valor do espírito, pois é ao mesmo tempo alegria e signo: o signo de uma vitória de e sobre a vida, esta vitória que nos faz humanos 4. Essa é minha leitura do bordado das mariquinhas: Sonia, Terezinha, Maria, Norberta, Ivone, Lourdes, Tina, Lú, Lucimar, Dilurdes, Bethânia, Marlene, Lena e Lurdinha, mariquinhas que trazem no nome – o avesso do pano, o traçado da vida e da luta de cada uma.

3

VERDIER, Y. Façons de dire, façons de faire. Paris: Gallimard, 1979. ZUMTHOR, P. op. cit. p. 128.

4

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Da topografia à escritura

Referências Bibliográficas: RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: 34, 1995. VERDIER, Y. Façons de dire, façons de faire. Paris: Gallimard, 1979. ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

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TEXTURAS:

ensaios

O gesto de gravar: xilosignos

Do bordado – ato de verso e reverso à gravura xilográfica – ato de escavar, gravar – revela-se a escritura. Madeira escavada, tinta, papel, prensa – revelação da matéria; murmúrio. O branco do papel e o preto: contraste. Cada escavação encontra sua forma, que insiste no volume da gravura. Madeira – subjétil do entalhe. O graphos sobre a superfície da página de cedro; traço entalhado de um corpo, de flor, da casa; o gesto do auto-retrato. Revelação – negativo onde o que foi cavado fica em branco no papel, fica em branco no pano. Madeira, matéria, substância universal sobre o qual o calígrafo, o gravador traça, escava, entalha. Estampas onde a imagem fissurada mostra fragmentos de memória, cenários que modulam o riscado no subjétil (madeira como suporte). A mão desenha, cava, passa a tinta, pressiona. Da caligrafia à figuração – les calligraphes étant souvent poètes 1 – os signos se inscrevem com vigor e força sutis. Madeira, regeneração. Uma linha, 1

BARTHES, R. Le plaisir du texte, précédé de variations sur l’écriture. p. 76.

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duas linhas percorrem a madeira e no

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O gesto de gravar: xilosignos

papel traço de desenho – peixe, flor, abelha, aquário, meninos – universo construído pela vivência, pela vida espelhada na matéria. Do campo para a cidade, o percurso se faz e na madeira é inscrito. Amores do passado e do presente, o simbólico fogão de lenha e o vaso de plantas. No entanto é o auto-retrato que constitui um pedaço do corpo e que se faz presença como a nos dizer – hoje, existo, antes era lixo, hoje significo. Simulacro de uma específica presença que se desloca, o traço na gravura em xilo constitui uma forma. Assim também no pano branco e fino de algodão gravado. Mudando o suporte, a leveza se instala. O morim é uma tela transparente, onde os traços naturais do pano complementam o desenho gravado. Superfície estriada, onde as linhas verticais e horizontais apresentam-se como fios tênues que suportam outros fios mais vigorosos e fortes – marcas trazidas pela madeira, matriz, protuberâncias e aderências 2. Mariquinha borda. Zilá grava e escreve. Dessas experiências, o texto escrito é a tentativa maior de representar ou de restituir pela língua a coisa que se tenta exprimir: o grito, a lágrima, a ternura, os suspiros, os sonhos – que envolvem os objetos aí enredados. A madeira percute o som da língua, faz vibrar a expressão calada, oprimida. As histórias coletivas são a partilha da exclusão. Sísifo. Corpos sofridos, esgotados procurando não deixarem as pedras rolarem. No mundo onde a energia dispensada deve chegar a ações reais que a conservem, mariquinhas e zilás são a imagem

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DERDYK, E. Linha de costura. p. 32.

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100 TEXTURAS: ensaios daqueles que se perdem, nessa troca sempre deficitária, de uma balança em perpétuo desequilíbrio 3. Textos ouvidos, textos recortados, distribuídos, lidos e revividos na literatura e na história de cada um. Vou começar pela minha vivença no interior. Sou lá de Araçuaí. Eu mudei mais ou menos umas cinqüenta vezes. Cada mudança eu só tinha 60 dias para ficar no lar de cada fazenda. Eu morava numa casa na beira de um córgo que chamava Calhauzinho. O dono do sítio se chamava Seu Manuel. Eu estava de dieta de uma filha segunda, chegara seu Manuel e falou para min: _”Você não vai mudar desse barraco?” Eu falei: _”Não tenho onde morar.” Ele deu um litro de cachaça a um homi para descobrir meu barraco. Ele ganhou o litro de cachaça para descobrir o meu barraco. O meu marido pegou um cobertor para cobri eu e minha filha – ela se chama Maria da Conceição – para não tomar sol e chuva. Ali se vê uma tempestade forte: relâmpago e trovãos. Saí com minha filha em direção a outro lugar para se morar. Entrei debaixo de uma árvore que se chama Aroeira, tirei umas folhas do mato e fiz uma cobertura e cobri em volta desses galhos dessa planta que se chama Carne de Vaca. Fiquei lá muitos dias. Meu filho adoeceu com gastrinterite, fazia mamadeira em lata de litro. Lata de óleo. 3

Dei a meu filho esse mingau, tinha

BLANCHOT, M. Faux pas. p. 66.

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O gesto de gravar: xilosignos

fumaça no mingau. Deixei meu marido olhando e fui lavar uns pano no córgo. Ele morreu com todo esse sofrimento. Encontrei ele morto no colo do meu marido. Perguntei: ”Como está o menino?” Ele falou: ”Ele tá bom, ele tá quetinho.” Coloquei meu dedo no olho do menino, ele não piscou. Saí desesperadamente gritando: ”MORREU MEU FILHO QUE SE CHAMA BELMIRO!” Seguiu todos amigos e vizinhos para ver essa criança que tinha morrido nessa árvore. Eles perguntaram ”Você quer ajuda?” Eu falei para eles que eu queria ajuda quando meu filho tava vivo. “Agora não preciso de ajuda. Só preciso de Deus.”Seguiu meu irmão e meu marido para Taboa. Lá, se fez a sepultura e sepultaram meu filho que se chama Belmiro. Depois, voltei para a árvore, eu e meu marido, e choramos 3 dias em desespero. Não tinha lugar para morar. Dona Francisca

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102 TEXTURAS: ensaios Referências bibliográficas:: BARTHES, R. Le plaisir du texte, précédé de variations sur l’écriture. Paris: Seuil, 2000. BLANCHOT, M. Faux pas. Paris: Gallimard, 1971. DERDYK, E. Linha de costura. São Paulo: Iluminuras, 1997.

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Letra, traço e olho

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Letra, traço e olho: Guimarães Rosa, Arlindo Daibert e Maureen Bisilliat O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber (Guimarães Rosa)

Do studium ao punctum 1. A imagem continua a ser, para mim, um grande enigma. Por isso mesmo, meu interesse pela tela e sobretudo pela foto, desde que Barthes apontou para ser o seu “em si”, para o seu “gênio” próprio, sua esquivez, tal a letra no escritural, tal o traço no desenho. Assim foi que me propus a leitura das gerais, das veredas em Arlindo Daibert e em Maureen Bisilliat a partir de alguns fragmentos de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Não se trata aqui de submeter a imagem (gravura, foto) a uma classificação, mas sim de um ir-e-vir que passa pela retórica, pela semiótica e por uma certa empiria, já que estou mediando esses olhares. A força escritural de Grande Sertão, através da poética roseana do sertão, permitiu a Daibert e a Maureen trabalharem intertextualmente, numa prática de segunda mão. A imagem

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1 “O studium é o campo muito vasto do desejo indolente, do interesse diversificado, do gosto inconseqüente: gosto/ não gosto (...). O studium é da ordem do to like”. (Barthes, R. A câmara clara. p. 83). “O punctum é um ‘detalhe, ou seja, um objeto parcial (...) o ponto do efeito’. (...), é o que acrescento à foto e que todavia já está nela” (ibid: p. 84).

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104 TEXTURAS: ensaios roseana solicita cada um desses autores diferentemente. É fortuita como os encontros levados pelo olhar. E cada excerto/fragmento roseano torna-se diferenciado, na medida da descontinuidade de tempo/espaço2. O texto roseano solicita o leitor pelas imagens que se desdobram, construindo outros signos/ícones, num exercício de produção de sentidos. “O sertão está em toda parte” é a grande soli-citação que cita Daibert, Maureen; ela está no princípio da leitura que esses dois autores fazem de Grande Sertão. Essa fulguração é geradora dos jogos artísticos possíveis, na foto ou na gravura. Maureen e Daibert, cada um com seu modo de leitura, reescrevem Rosa através de vestígios textuais roseanos (incipit). As fotos de Maureen não traduzem o isto da foto – do olha aqui – o referente sertão ou qualquer outro significante roseano. O que liga então o texto-legenda à foto? Vou lhe falar/ lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei./ Ninguém ainda sabe./ Só umas raríssimas pessoas.../ Sertão velho de idades.../ 2

“As marcas de solicitação no texto são as excitações , os grifos e os desmembramentos , sinais sempre aproximativos e insatisfatórios (...)”Compagnon, A. O trabalho da citação. p. 24. 3 Rosa, J. G. apud Bisilliat, M. “A João Guimarães Rosa”. Em: Fim de rumo... Terras Altas... urucuia..., p. 5.

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Sertão sendo do sol.../ Um espaço Para os de meia razão.3 Do significante literário ao significante fotográfico é o corpo-

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Letra, traço e olho

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sertão ou o sertão-corpo que aí se instala. Como spectator vejo o corpo do sertanejo sobre uma cruz e imagino (crio imagens outras) a câmara de Maureen. O jagunço posa para a artista. A pose existe. O imóvel corpo diante do olho. Do sujeito ao objeto da foto, o corpo morre no tempo e ressuscita no espaço da foto- revive tempo e espaço pelo olhar – o olhar de mulher em que Maureen reconhece (identifica) Nhorinhá: Nhorinhá – florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita! Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca 4. Olhar que não posa – é só o olhar. sem sutilezas desse corpo de mulher, olhar efígie que vai sendo significado se a leitura é também de Nhorinhá-lenda. Deste gosto bom ficado em meus olhos de Riobaldo narrador para a leitora Maureen. Nesse momento, a foto não é a morte, é a vida-imagem resgatada pela letra recitada pela fotógrafa. A foto existe, dá estatuto de existência. Em que sentido repousará a imagem? A foto de Manuelzão J. Ruiz é dura. O olhar não me olha – nem ao olho da fotógrafa – está distante, mas o corpo está bem próximo – resta a sombra – a do chapéu que acompanha esse corpo feito de sertão. - Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares.5 - Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio... 6

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4 ROSA, J. G. apud BISILLIAT, M. “A João Guimarães Rosa”. Em: Fim de rumo... Terras Altas... urucuia... p. 5. 5 ROSA, J. G. apud BISILLIAT, M. “A João Guimarães Rosa”. Em: Fim de rumo... Terras Altas... urucuia. p. 5. 6 Ibid. p. 8.

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106 TEXTURAS: ensaios O ar de um rosto é indecomponível, diria Barthes, pois a evidência é o que não quer ser decomposto. 7 O ar dessas fotos, desses corpos nos leva à alma, não à individual, mas à do universal-sertão. E mais do que mostrar, esse ar expressão desse corpo-sertão traz à foto um valor de vida circundado pela morte, sempre tão ali, tão presente. As sombras luminosas que acompanham os corpos são como que absorvidas pelo corpo, fazendo uma síntese homem-espaço-tempo. Daí a perpetuação de Rosa em Maureen e de Maureen em cada leitor-espectador, enquanto o tempo, em seu suporte papel, durar. Corpo-sertão: do sertão de todos os outros lugares – das Geraes, mas ao mesmo empo, dali – daquele sertão das Geraes. A sombra do corpo-jagunço: A sobra de meu corpo no chão, meu vulto... feito uma árvore de toda altura. O trabalho da imagem sobre a imagem é feito no laboratório – luz e sombra. Maureen re-escreve o claro-escuro de Rembrandt ou Vermeer: efeitos. Faz o retrato do sertanejo como Rosa o desenha, entre o dia solar e a noite lunar do sertão. Na luz do sol, a sombra incide sobre a significação da foto. Um corpo inteiro com sua sombra. Que informação haverá nessa sombra? A luz é o fluxo de unidades de massa-energia emitidas por uma fonte de radiação, pelo sol ou por uma vela [...]; a sombra é uma deficiência local, relativa, na quantidade de luz que incide sobre uma superfície, e é objetiva [...] é 7

BARTHES, R. A câmera clara. p. 58.

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uma variação local, relativa, na

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quantidade de luz refletida da superfície para o olho 8. A luz do sertão, a sombra do corpo. O texto roseano re-citado, re-escrito pela imagem fotográfica desse ensaio de Maureen se dobra e incessantemente se faz infinito no sentido de uma multiplicidade crescente. As imagens fotográficas advindas de Grande Sertão, por sua vez, apresentam essa multiplicidade como dobras que se atam e se desatam e reatam na medida das forças que se conjugam no ato do olhar. Como se cada corpo ali não olhasse nada, retendo em si o sertão que há nele, e assim o refletisse. Dos retratos desses corpos advém um olhar cuja intensidade é da vacuidade ou da plenitude – um olhar subjétil 9, tal qual como o sertão revelado e ao mesmo tempo latente em cada corpo. Para além da representação, a foto abre uma passagem, um “rond”, onde esses corpos “roseanos” se transformam também em personagens. Assemelham-se para sempre. A contingência da foto não se realiza de maneira igual à de uma foto comum; sendo um corpo/ uma máscara que é representado artisticamente sobre e/ ou a partir do literário, seu sentido estaria inicialmente colado ao texto primeiro pela própria legenda, mas seu movimento incessante acarretaria sentidos outros mais instigantes, perturbadores. O movimento dos sentidos do

8

B. BAXANDALL, M. Sombras e luzes. p. 18. DERRIDA, J. & Bergnstein, L. Enlouquecer o subjétil. p. 23. 9

texto literário acarretaria também

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108 TEXTURAS: ensaios o da foto. A partir do momento em que há punctum, cria-se um campo cego [...] 10. A poiesis roseana faz germinar outra poiesis através das fotos e por elas. A literatura as empurra para um entre-lugar; ou seja, como suporte de uma representação, a foto se deixa atravessar pela transitividade – pela morte, mas simultaneamente pelo meu olhar – e ressurge pela referência (a ordem fundadora da Fotografia), sua emanação (A foto é uma emanação do referente). 11 Caberia aqui pensar o noema percepto, como o fez Barthes em relação à foto de William Casby, realizada por Avedon. O noema aqui é intenso; pois aquele que vejo aí foi escravo; ele certifica que a escravidão existiu, não tão longe de nós; e o certifica, não por testemunhos históricos, mas por uma ordem nova de provas, de certo modo experimentais, embora se trate do passado [...]12 Aqueles corpos que vejo hoje certificam-me que o sertão existiu e existe, bem perto de mim, e certificam Rosa e Maureen como criadores, revelando-me e atestando, pela ação da luz, o corposertão e o sertão-corpo, persenças imediatas no mundo, co-presenças. Tanto um quanto outro, como artistas da luz ou da palavra, falam daquilo que foi, e daquilo que é. Entre a memória e a vertigem, 10

BARTHES, R. A câmara clara. p. 86. Ibid. p. 121 12 ibid. p. 86.

em que o autêntico e a incerteza, as

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poéticas vão se dizendo, ou seja, a

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poiética roseana vai sendo dita em outra poiética, aqui, nesse caso, na foto. O momento do encontro de Maureen com cada um desses corpos me é revelado, em cada cena tornada fotograma, como sendo de extrema felicidade; não há como repeti-lo. O sertão-corpo é contundente. O texto roseano me empurra para essa imagem granulada, desfeita em contornos – só no luscofusco solar: Redemoinho, Viver é muito perigoso, O sertão está em toda parte, O diabo no meio do redemunho, Sombra de sombra, foi entardecendo: fuscava. Na voz, na dicção de Riobaldo, esse sertão-corpo se revela a Maureen, e esta, ao revelar a foto, depara-se com ele. A mim, só resta a foto – onde a luz cega e a secura estão no ar – uma foto abissal diluindo referentes. Aqui não atravesso. Conservo somente os rastros, os vestígios de uma travessia, de uma incursão/ excursão na imagem. Ao Pouco-de-Imagem da leitura corresponde o Tudo-imagem da Foto; não somente porque ela já é em si uma imagem, mas porque essa imagem muito especial se dá por completo – íntegra, diríamos, fazendo jogo com a palavra. A imagem fotográfica é plena, lotada: não tem vaga, a ela não se pode acrescentar nada13. Na insistência do olhar, a virtualidade acontece na criação do desenho, traço, gravura de Arlindo Daibert. Atam-se os laços entre as imagens: letra, foto, traço, mas simultaneamente desatam-se no visível/legível. A escrita da letra literária e o traço

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BARTHES, R. A câmara clara. op.cit.: p. 86.

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110 TEXTURAS: ensaios se unem na obra de Arlindo Daibert, direcionando o gesto de artista. Seguindo a proposta de Mallarmé/ Baudelaire, o artista concebeu uma convergência das artes apontando para a poesia – a poesia da imagem. Nessa confluência, nesse lugar entre a poesia roseana de Grande Sertão: Veredas e a arte visual de Daibert, acontece uma das travessias. Segundo o ensaista Julio Castañón Guimarães, Em vários momentos, a escrita surge na obra de Arlindo Daibert como puro dado visual, ou seja, mesmo que se chegue a ler o que está escrito, essa leitura será, por assim dizer, imponderável. A escrita importa aí como fator gráfico, como literalmente desenho, sendo, de modo mais preciso, caligrafia, e, é claro, caligrafia do artista – surge então com seu traço gráfico, como os outros componentes do trabalho.14 Num processo semelhante ao de Maureen, em suporte diferente, Daibert fixa em suas imagens a leitura do texto roseano. Há um pouco do ilustrador Poty em cada cena de Daibert, e quem os ata é a escritura roseana no movimento incessante do intertexto e do vir-a-ser dos sentidos. A reescrita não acontece somente na escrita presente no desenho. Há que se pensar no processo escritural do ato de citar Rosa: Citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a experiência original do papel, antes que ele seja a superfí-

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GUIMARÃES, J,G. “V.E.A.D”. Catálogo para a mostra.

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cie de inscrição da letra, o suporte do

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texto manuscrito ou impresso, uma forma de significação e de comunicação lingüística.15 Seguindo a lição de Borges, Daibert reescreve infinitamente o texto roseano, as ilustrações de Poty, e os suplementa com suas marcas – as de sua arte. Daibert põe à prova sua leitura teórica com as manobras, as incorporações, os recortes e as colagens roseanas. Os deslocamentos se sucedem e enriquecem os sentidos que coexistem na complexidade do traço. Em Riobaldo, urutu branco , a tela desenhada pelo texto escrito faz surgir a serpente venenosa, a urutu. A forma emblemática que o ilustrador Poty reformartou passa pela releitura de Daibert, reforçando o sentido de infinitude. Agora em outra dimensão, por força do deslocamento. A força de Riobaldo narrador transcende, é infinita. Ele é o sertão-corpo e o corpo-sertão. A aquarela e o grafite sobre o papel descrevem Riobaldo no traço e na cor – o roxo. Serpente, macrocosmo-sertão, centro do mundo: Uróboro, serpente que morde a própria cauda; transmutação perpétua de morte em vida; dialética da vida e da morte, uma saindo da outra; movimento infinito: imago mundi; mãe de Satanás. Tal qual a escrita, a serpente é possuidora do veneno e de seu antídot; a escuta faria o mesmo papel. Phármakon. Diadorim, em aquarela, pastel, grafite e colagem de papel sobre papel, é traçada em círculos concêntricos e os pássaros fazem o

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COMPAGNON, A. O trabalho da citação. p. 31.

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112 TEXTURAS: ensaios movimento dessa imagem. O pássaro faz a roda da vida, mas a letra, a escrita o limita ao círculo. A letra ilegível não pode ser decifrada, é código sem tradução. Restam os pássaros na dança, no meio da narrativa de Riobaldo. Quantos pássaros? Diadorim beleza – a dos pássaros – migração da alma, intermezzo terra e céu. União das almas! Alma-pássaro. O verde é do olho de Diadorim. Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim 16. Intertexto radical: Daibert cita Maureen Bisilliat (a velha rezadeira Maria Leôncia) desenho sobre fotografia. Punctum assinalado. Daibert reescreve Maureen e Rosa. desdobramentos do olho. Recorta o rosto a foto, recorta o texto literário. As letras são ilegíveis, mas visíveis em sua ilegibilidade. São enquadradas por outros sinais. Não há necessidade de aspas – só a fricção basta, pois é ela o próprio movimento “o fenômeno é a diferença, o sentido é a sua resolução”. “Satanão! Sujo!... S... – Sertão... Sertão... “ – a citação roseana está junto à moldura – é seu passe-partout. Entra como letra adentro do quadro – o mundo sertão-corpo: miniaturização de ícones/ signos onde buritis, cobras, cavalos, pássaros, espingardas traçam uma cartografia do Sertão, das personagens, do texto roseano citado. Tudo é ilegível. A imagem da cartografia do Sertão se dilui. Tal como a foto do sertão de Maureen. Amarelo-sol, diluição por excesso de luz solar. A travessia. Atravessar imagens, constituir poéticas, movi16

ROSA, J. G. “Grande Sertão: Veredas”. Em: Obras completas. RJ: Nova Aguilar, 1993.

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mento da letra, fricção da letra e da imagem.

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Letra, traço e olho

Referências Bibliográficas: BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1988 BAXANDALL, M. Sombras e luzes. São Paulo: EDUSP, 1997 CONPAGNON, A. O trabalho da citação. Belo Horizonte: UFMG, 1996. DAIBERT, A. Imagens do Grande Sertão. Belo Horizonte: Ed. UFMG/ UFJF, 1998. DERRIDA, J. S. Bergstein, L. Enlouqueceu o subjétil. São Paulo: UNESP, 1998. GUIMARÃES, J. C. “V.E.A.D.” In: Catálogo para mostra. Juiz de Fora, 1993. ROSA, G. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.

fotos das obras dos autores a que me referi estão na 1a versão desse texto. Revista Alea, V. 2, no 1; Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

OBS: As

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O branco do espelho - o espelho do branco Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínio e intuição. (G. Rosa)

Pode-se supor que uma coletividade que faz da narrativa a forma chave da competência, não possui, contrariamente a toda expectativa, necessidade de lembrar-se do seu passado. Ela encontra a matéria do seu vínculo social não apenas na significação dos relatos que ela conta, mas no ato de recitá-los. A referência dos relatos pode parecer que pertence ao tempo passado, mas ela é, na realidade sempre contemporânea desse ato. É o ato presente que se desdobra, cada vez, a temporalidade efêmera que se estende entre o Eu ouvi dizer e Vocês vão ouvir. (Lyotard)

O pano é de organza branco; como a folha do papel. Lantejoulas prateadas, filó, botões brancos e prateados. A linha que desenha é branca. O branco com sua pureza e sua impureza. Do fosco ao brilhante, do visível ao invisível, o branco, escolhido pelas bordadeiras para bordar O espelho de Guimarães Rosa percorre, em sua rede semiótica, um momento de passagem - em que se sublinha as mutações do ser - a morte, o renascimento. Branco lunar, branco feminino. O branco e o espelho, signos de revelação, da transfiguração que deslumbra e desperta o entendimento e até o ultrapassa. A vida

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da bordadeira mariquinha, seu mundo, sua luta, é o bordado. Um bordado que faz florescer uma linguagem que fratura o texto, o engole e o refaz, o recria através de signos que indicam caminhos da linha, do consciente, do inconsciente. Gesto de bordar. Gesto das mãos. Registro de marcas, prática de cada bordadeira, bordando Rosa, bordando a vida e a morte. Daí esse gesto se assemelhar ao gesto escritural, resposta ao gesto leitural - a leitura que a bordadeira faz do texto roseano d’O espelho.

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Extrato escaneado do bordado original

O branco do espelho - o espelho do branco


116 TEXTURAS: ensaios Como se borda a partir de uma leitura do texto literário? Esse recontar é uma forma de ler o que está sendo lido? Lendo O espelho, como outro texto literário, uma mariquinha descobre a força que tem em seu trabalho de simples bordadeira. Ela rediz com sua linha e agulha sobre a superfície do pano o texto de Guimarães Rosa e seu próprio texto - em letra ou imagem que a linha traçou. Estórias e seus avessos, pois o pano bordado borda um avesso das coisas que no branco transparente se revela mais intensamente. Um avesso que é a enunciação ambígua, de sentidos intermináveis, onde citar ou recitar Guimarães Rosa funciona como parceria. Partilha. A linha fica no pano, como a letra no papel - o tipo gráfico - o bordado escreve re-citante o texto - ou (re)inventa a partir do lido/ ouvido. Infletir-se, dobrar-se sobre o texto roseano que aponta para a existência humana, ou mesmo para coisas de sua essência. Dobras de Machado de Assis e de Guimarães Rosa, expansões de sentido. Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo...1 Duas mãos parecem querer se tocar, como no quadro de Da Vinci - ao lado de um anjo que a seu lado, pequenino, tem uma boneca. Quanta estória nesse bordado! O texto roseano desperta na bordadeira a memória. O texto solicita à mariquinha, e ela superpõe ao texto roseano uma rede de outros sentidos, outras imagens. O processo de disseminação, extensão e expansão dos sentidos acontece intensamente, a partir des1

sa manifestação de gesto arcaico de

ROSA, G. Obra completa. p. 438.

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recortar e aplicar do bordado. Pano - texto em cuja mão-de-obra o sujeito ativo, transitivo, coloca seu trabalho, seu labor. Trabalhar o texto literário e trabalhar, no bordado, o texto do outro e o meu texto. Fazer aparecer a voz, ter vez para contar num pedaço de pano esse desejo. E coisas são contadas. Escritura - vida; a vida escrita através da escrita de Rosa. As escrituras se equivalem. Escutar O espelho - escutar a estória e se misturar com ela e dizer o que ela tem para dizer - tempo de suspensão - para dar lugar à floração, ao risco e ao bordado. O pano é virgem, mas os materiais não o são necessariamente. Rendinhas, brocados, botões, vidrilhos, lantejoulas, retalhos variados pertencem a outras estórias, a outros bordados e costuras. Intermateriais. A estória está presa ao papel e se desloca para o pano. Começo o meu canto. Conto de bordadeira. Um texto bordado - uma prosa ou poema - lugar de memórias, e identidades do pensar, das recusas e abjeções. Lugar de todos os desafios. Timbres variados, músicas cantadas, cantaroladas em suas singularidades, de ressonâncias diferentes, mas todas inscritas na vivência, na experiência da leitura, seja do mundo, seja da literatura. Diz Norberta entre o sol, as árvores que emolduram o bordado de uma lagoa: Gosto de me ver no espelho. No desenho bordado uma figura feminina olha a água - espelho - lantejoulas brilhantes, prateadas, compõem o corpo da mulher. O intertexto mítico aparece citado através de contos populares e do

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118 TEXTURAS: ensaios próprio texto de Rosa (referência a Narciso) que se inscreve no bordado. Escrever, bordar, desenhar talvez seja mesmo rememorar. Ou ainda, com Lourdes, a re-citação do texto lido: Ver a minha feiúra no espelho - feiúra, pois se reconhece também como a personagem roseana, uma figura felina - uma onça - cujo corpo é de gente, vestida como gente, se olhando no espelho que revela a onça. Meu sósia inferior na escala era, porém - a onça. Conformei-me disso. E então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.2 Citado no pano com a linha somente parte desse texto. Ao lado da onça, um rosto de mulher, ela mesma retratada, e um vaso de flores. Outro momento do texto roseano fixado e citado pela bordadeira. Bordado de Tina. O título do bordado: Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes- citação de Guimarães Rosa - espécie de epígrafe para seu bordado. O bordado mostra quatro figuras: uma feminina e três masculinas. A feminina olha as três figuras masculinas emolduradas pelo espelho. Momento de identificação. A bordadeira repete o dito roseano, não nela, mas no outro. Ainda mostra três círculos que representam três espelhos sem refletir figuras. O 2

pano é brilhante.

ROSA, G. op. cit. p. 439.

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No mesmo processo intertextual, Marlene escreve: Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Aturdi-me a ponto de me deixar cair numa poltrona. No pano, uma figura sentada na poltrona ao lado de um espelho que nada reflete, um jarro de flores e uma outra figura feminina observando. De imagem escrita à visual. A representação é uma das formas de desenho. Signos e signos. No processo de leitura, a intersemiose. O panotexto traça as linhas da poesia surgida da poesia. Mistura poética. Para lê-la/ vê-la é preciso, no entanto, tocá-la, passar a mão, ler com as mãos, com os olhos, com o corpo - as cenas que cada corpo borda. Leitura das leituras. Da letra à imagem. Ou as duas juntas. Letra e imagem de um corpo para outro. Experiência radical, onde a interioridade da linguagem se exterioriza e torna a se interiorizar num processo ora contínuo ora descontínuo dos devires. O pano como narrativa, como literatura. Como literatura a ser lida, que não escapa à sua dupla relatividade: conta-se uma história; a cada pano bordado, faz-se ficção, poema; e borda-se intencionalmente para vender um pano-colcha, um pano-livro-por-vir. A experiência da palavra e a experiência do traço a bordar interagem. Dicções que se misturam no processo de criação. Outra forma de escrita, outro livro (por vir?). O bordado-narrativa se encontra com a escrita, pois a escrita é o nome de uma disjunção que identifica ao traçado material a mão o traçado de sua própria significação. E essa

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120 TEXTURAS: ensaios significação é a de uma partilha. A escrita sempre escreve ao mesmo tempo uma relação da ordem dos corpos e da ordem das palavras, ela define uma posição do corpo que é uma posição de sua alma, qualquer que ela seja.3 O bordado é uma outra língua. Língua de paisagens individuais que se misturam aos textos literários lidos. Na materialidade de língua literária, a bordadeira mariquinha apreende objetos; movimento de percepção, afeto e sensação. Torna objetos em signos, quando os borda. Desdobra-os, expande-os. Ouvir/ler o texto roseano é tentativa de perceber os signos cotidianos, que podem ser remanejados pela vivência, ou experiência da bordadeira. Na troca de historicidades que aí encontramos, os processos de significação acontecem. Apropria-se de pedaços de texto, mistura-se com o vivido de cada uma ultrapassando-se, assim, as significações colhidas no texto, dando-lhe outros sentidos. O discurso poético das bordadeiras é por excelência narrativo. Há um saber narrativo que percorre cada pano bordado, cada colcha, construindo assim, uma poética do bordado. Fios sobre tecido, largura e altura, formando no limite do quadrado do pano, com rendas e pontos, um esgarçamento, como que um esquecimento do limite. As letras bordadas explicam, ilustram, segundo elas, os desenhos, considerados mal feitos e simples, mas feitos com muito prazer. Exigindo cuidados e paciência, o 3

RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. p. 97

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bordado exige um trabalho regular para

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que se tenha a mão hábil. Exige tempo e disposição. Tempos que se interrelacionam. Tempo de bordar e tempo de viver. A narrativa no bordado traz a memória do vivido e da leitura. Página de escritura, o pano bordado é também o exercício de desenho. Façons de dire, façons de faire, usando as palavras de Yvonne Verdier em livro que tem este título. Sempre a dança das mãos revelando e afirmando o humano. Lucimar borda uma mulher diante do espelho e no pano escreve: Eu sou o espelho de minha casa e dos meus filhos. Espelho-cristal refletindo luz para todos. Super-mulher - a da luta, militante, dona-de-casa, mãe de família e bordadeira. Estória de uma assentada, a que foi sem casa, sem terra. Ou ainda Yvonne citando Rosa: Seria eu um desalmado? Representa-se uma cena onde uma mulher sentada vê televisão, e na tela outra figura aparece. A tela é um espelho? Atualização dos sentidos do texto roseano. A tv como espelho - sou aquilo que você deseja que eu seja. Sob rendas, outros signos se desenham: flores, coraçãoespelho, uma figura de mulher emoldurada com lantejoulas - uma mulher no quadro-espelho; flores e pássaro. Signos que constróem a cena, o espaço lúdico. Lena, surrealistamente borda estrelas junto do sol, ao lado de um espelho que nada reflete. Sentada numa poltrona, uma figura olha o espectador. Lê-se: Na nossa terra diz-se que nunca se deve olhar um espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Repercute aqui uma experiência antiga - o objeto que olha o sujeito. O olhar, pelo viés do objeto, a troca de olhares, a marca da

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122 TEXTURAS: ensaios intersubjetividade imaginária. O espelho reflete os sentidos da consciência, desnuda os corpos, as verdades. Em Platão, a alma e o espelho são comparados. O homem enquanto espelho reflete beleza ou feiúra. O espelho não tem como única função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação passa por uma transformação. Existiria, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que o contempla. A alma acaba participando da própria beleza à qual ela se abre. 4 Nestes panos espetaculares, elas próprias se refletindo e refletindo o texto roseano, notamos o jogo da esfinge. Decifra-me ou devoro-te - o enigma. Sônia mostra os olhos no seu bordado como nas cartas enigmáticas - do signo verbal olhos resta a imagem. As pupilas são dois botões bolinhas, um corpo sem cabeça, e uma cabeça (rosto) no espelho. A experiência do corpo fragmentado é mostrada como enigma. Ao lado, um corpo inteiro em filó (transparência) e uma máscara branca com olhos de brilhante. E as máscaras, moldadas nos rostos? Em cada pano a expressão da leitura do que o narrador chama de “fenômenos sutis”, o transcendente, mas também o de uma materialidade do corpo físico - Eu sou o espelho da minha casa e dos meus filhos (Lucimar) - a nos dizer das lutas, das conquistas e das perdas, de uma subjetividade sem4

GHEERBRANT & CHEVALIER. Dicionário de símbolos. p. 396.

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pre reprimida.

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Volto ao Rosa: Disse. Se me permite, espero, agora, sua opiniĂŁo, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciĂŞncia, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim? 5

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ROSA, G. Obras completas. p. 443.

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124 TEXTURAS: ensaios Referências bibliográficas: GHEERBRANT & CHEVALIER. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. SP: Ed. 34, 1995. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. IN;Obras Completas.v.2.Rio de Janeiro:Nova Aguilar,1994 VERDIER, Yvonne. Façons de dire, façons de faire. Paris:Gallimard, 1979.

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Publicações anteriores dos textos selecionados CASA NOVA, V. O corpo-objeto de Helio Oiticica. In: RAVETTI, G e ARBEX, M. (orgs.). Performance, exílio e fronteiras. Belo HOrizonte: Fale, UFMG, 2002. CASA NOVA, V. O corpo em movimentop: Lygia Clark e Helio oiticica. (inédito.) CASA NOVA, V. Lygia Clark e a arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: DUARTE, R e FIGUIREDO, V. (orgs.). As Luzes da Arte. Belo Horizonte: Opera aberta, 1999. CASA NOVA, V. Letra, traço e olho: Guimarães Rosa, Arlindo Daibert e Maureen Bisilliat. Revista Alea, No 2, Rio de Janeiro, UFRJ, 2000. CASA NOVA, V. Da máscara a face negra. In: Soares, M.N. (org.) Poéticas afrodescendentes. Belo Horizonte, MAZZA, 2002. (no prelo.) CASA NOVA, V. Da Topografia à escritura: o gesto de bordar. Mesa redonda do Congresso Internacional de Literatura. São Paulo, Unicamp, 2001. CASA NOVA, V. O branco do espelho - o espelho do branco. Mesa redonda do II Seminário Intrenacional Guimarães Rosa. Belo Horizonte, PUC-MG, 2001. CASA NOVA, V. O gesto de gravar: xilosignos (inédito). CASA NOVA, V. A foto(grafia) como leitura. Palestra no projeto Itaú - Cultural. Belo Horizonte, 2000. CASA NOVA. V. Bêbados de fim-de-século. In: Vasconcelos, M. & Ribeiro, H. (orgs.) Cultura e milênio. Belo Horizonte: Fac. Letras. UFMG. 2000.

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Direito à reprodução

Esse livro é sobre imagem, mas paradoxalmente, não apresenta as imagens que comporiam seu texto. A opção é da autora, pois ela não se dispõe, já que não tem editora, a participar da burocracia e idas e vindas de negociações que antecedem à publicação das imagens reproduzidas num livro. A lei 9610, que regulamenta os direitos autorais, no Brasil, nasceu caduca e usurpadora da cultura brasileira, em nome da propriedade privada e do capitalismo. As editoras se vêem sufocadas, e nós, meros pesquisadores ou professores de uma universidade pública que com seus parcos orçamentos para publicações se vêem diante dessa lei, reclamamos o direito à reprodução, para fins didáticos. Rodrigo Lacerda, editor da Cosac&Naify, que tem editado livros de arte, reclama que, além de pedir os direitos de imagem aos herdeiros, é preciso ir atrás do museu, ou colecionador, do fotógrafo, etc. Em entrevista ao cadernoT, número 15 do Instituto Tukano para pensar a política cultural, janeiro, 2002, Rodrigo Lacerda conta que, às vezes, para publicar 30 imagens,temos de pedir 90 autorizações

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128 TEXTURAS: ensaios e pagar por todas.De acordo com ele,o pagamento pelos direitos de reprodução das imagens costuma representar 10% do valor total do livro. Álvaro Clark, filho de Lygia Clark diz: “Considerando que um livro tem fins comerciais, cobramos 165 dólares por imagem e 250 dólares por texto...” Se um trabalho de pesquisa para ser mostrado tiver que pagar essa quantia, por imagem e texto de Lygia Clark, e se o dólar estiver em cotação alta no mercado, nada poderá ser reproduzido, o que é e será lamentável. A mesma família de Lygia impede a reedição de uma das obras básicas sobre a obra da autora Lygia Clark, obra-trajeto, da historiadora de arte Maria Alice Milliet (EDUSP). Essa lei precisa ser revista urgentemente, em nome do prejuízo cultural e artístico brasileiro que vem sendo cometido. Justifica-se assim a falta de imagens dos textos sobre Lygia e outros.

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