Jornal Extra Classe, ano 19, número 187 | Especial doação de órgãos e tecidos | setembro de 2014
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Em setembro de 2012, o Jornal Extra Classe publicava a primeira edição do Caderno Especial Doação de Órgãos e Tecidos, por ocasião do lançamento do projeto Cultura Doadora, da Fundação Ecarta, com apoio do Sinpro/RS. Desde então, muita coisa aconteceu, e cá estamos, novamente em setembro, com um novo caderno. Afinal, no dia 27 deste mês é celebrado o Dia Nacional de Doação de Órgãos, período em que são intensificadas as campanhas e a conscientização da sociedade sobre esse tema. E este especial tem por objetivo mostrar o quanto a doação de órgãos e tecidos, literalmente, não apenas muda vida das pessoas, mas também devolve a condição de viver a quem necessita dessas doações. Para tanto, ouvimos especialistas, pacientes, transplantados, organizações e pessoas engajadas no propósito de conquistar corações e mentes em prol desta causa.
Foto: Igor Sperotto
Ecarta: dois anos promovendo a cultura doadora A coordenadora do projeto Cultura Doadora, Glaci Salusse Borges, faz um balanço do período e considera um marco a aceitação da Cultura Doadora nas instituições de ensino superior. “Este ambiente revelou uma receptividade maior, o que é muito positivo, pois traz a perspectiva de ganhos entre futuros professores, sabidamente um público que, além de multiplicador de informação, é formador de opinião”, justifica. Já foram feitos trabalhos com alunos e professores da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Ulbra de Guaíba, Universidade de Caxias do Sul (campus Vacaria), IPA e Colégio Militar. “Em termos de audiência, já ultrapassamos a marca de 5 mil pessoas. Muitos, nesse universo, nunca tinham ouvido falar do assunto”. Segundo Glaci, falar sobre o tema morte ainda é um tabu em nossa sociedade. O assunto é muito pouco presente na cultura do imediatismo em que vivemos. “Muitas pessoas são resistentes ao debate, daí a obrigatoriedade de uma abordagem sistemática. Há ainda muito preconceito. É importante tratar o tema desde muito cedo e o ambiente escolar é propício para isto”. Em 2015, o projeto Cultura Doadora pretende sensibilizar mais gente para esta causa, “que é de vida”. Estamos estreitando cada vez mais as relações com o mundo médico, com especialistas que podem falar com propriedade sobre o tema doação de órgãos e tecidos. O próximo passo é reunir intermediários do mundo da escola com esses protagonistas para que o assunto seja disseminado no meio escolar. “É preciso deixar claro que não se trata de uma campanha pontual, com prazo de validade. Trata-se de um projeto de fôlego, sem prazo para terminar. Estamos falando de mudança de cultura, em quebra de preconceitos e de paradigmas e isto deve durar o tempo que for necessário”, destaca. No site da Ecarta, informações sobre o assunto e propostas de abordagem em sala de aula: www.ecarta.org.br/doadora
Jornal Extra Classe, ano 19, número 187 | Especial doação de órgãos e tecidos | setembro de 2014
E o relógio voltou a funcionar! ria de alegria pela chance renovada de vida, ou chorava de emoção pela dor da família que fez a doação. “Descobri que meu coração veio de um rapaz de 19 anos que teve morte encefálica após levar um tiro na cabeça quando saía de uma boate, por causa de uma briga no outro lado da rua”, conta. Dois anos depois do transplante, Barros diz Erni Barros ganhou um novo coração em 2012 que sua meta agora é “viver bastante”. Faz a biópsia de controle a cada três ou que as pessoas falem com suas famílias e se manifescinco meses, controla a alimentação, e, de resto, cui- tem a favor da doação de órgãos. da do jardim, capina, corta grama, anda de bicicleta e Ao final desta entrevista, Barros aponta para o brinca com o enteado. Não teve depressão pós-ope- relógio pendurado em cima da porta principal de enratória como é comum, diz Barros, porque não se trada e saída do Instituto de Cardiologia e sorri: “No permite ficar parado “pensando em bobagem”. Vive dia em que entrei aqui, antes da primeira entrevista em torno da família, e seu trabalho agora é ajudar (e do transplante), olhei para cima e pensei... tá paraos que estão na fila esperando por um transplante, do. Outro dia, reparei que havia voltado a funcionar. para não deixá-los desanimar. Em Rio Pardo, segue Sempre que chego aqui, penso: agora está funcionandistribuindo adesivos e conselhos na campanha para do, como eu. Tomara que nunca mais pare”.
Foto: Igor Sperotto
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s 6 horas do dia 1º de agosto de 2012, pouco depois de ter dado uma entrevista para o 1º caderno da Campanha Cultura Doadora do Jornal Extra Classe, o motorista aposentado Erni Sebastião Paiva Barros, então com 50 anos, entrou no bloco cirúrgico do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul para receber um transplante de coração. Às 9h54, seu novo coração começou a bater. A precisão do relógio é confirmada pelo médico. Desde que se descobriu com problemas cardíacos, cada segundo em sua vida é precioso. Dois infartos, uma ponte mamária, duas safenas, 14 cateterismos, uma angioplastia, uma tentativa de tratamento com células-tronco e um marca-passo com desfibrilador, anteriores ao transplante, não haviam sido suficientes para evitar que a bomba-relógio dentro do peito de Barros ameaçasse explodir a qualquer momento, como aconteceu com seus pais, um filho e um irmão que morreram com problemas cardíacos. Ainda assim, ele relutava em entrar na fila para transplantes. Foi convencido pela vontade de ver nascer o neto e acompanhar a educação do enteado que tem o nome de seu filho. Tudo isso agora é passado. Ao despertar da cirurgia, já com o coração novo, Barros não sabia se
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Atenção permanente e agilidade zada e setorizada. Ela está preocupada com a equipe médica, que atualmente está em número reduzido. Há dez vagas, mas hoje são apenas oito que se revezam em plantões de 24 horas por dia, sete dias por semana. “Hoje é difícil fechar uma escala da magnitude que temos”, diz. O restante é considerado suficiente: quatro enferCentral de Transplantes do Rio Grande do Sul segue a lógica de rede do sistema nacional meiros, um dentista, O processo de transplante requer atenção per- um psicólogo, dois assistentes sociais, um assessor manente e coordenação ágil. Em função disso, a Cen- técnico, 13 estagiários de Medicina (foram abertas vatral de Transplantes do Rio Grande do Sul, que inte- gas em processo seletivo específico), dois auxiliares gra o Complexo Regulador do Estado, funciona 24 administrativos e dois auxiliares de regulação. Os médicos coordenam e assessoram todos os horas por dia, nos sete dias da semana. A médica Rosana Nothen, que coordena a Central, informa que, processos e avaliam as condições das instituições e atualmente, a dinâmica de trabalho está bem organi- equipes. Eles atuam na orientação, revisão, vistoria
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e fiscalização. As assistentes sociais são responsáveis pelo controle das listas de espera e relacionamento com profissionais e pacientes. A psicóloga gerencia as revisões das doações efetivadas, com posterior contato com as famílias doadoras para avaliação do processo. Também coordena os estágios oferecidos pela Central para a qualificação de estudantes de Medicina e outros cursos. A assessora administrativa organiza os cursos de formação para profissionais ligados ao transplante no RS e gerencia toda parte administrativa demandada pelo processo doação/transplante. Rosana informa que, atualmente, os serviços de transplantes estão dentro da lógica de rede, que parte do Sistema Nacional de Transplantes. Porto Alegre e Passo Fundo são referência para fígado e a capital é a única que transplanta coração e pulmão. E rins, além da capital, podem ser transplantados em Pelotas, Santa Maria, Passo Fundo, Caxias do Sul e Lajeado. “Não temos transplante de intestino e nem a intenção de fazer, pelo menos tão cedo. A procura é considerada baixa e São Paulo dá conta da demanda. Talvez seja este um bom exemplo de trabalho em rede”. A médica comemora que, hoje, a lista de espera por córneas está zerada no estado.
Pouso e hospitalidade para quem vem de longe
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Foto: Leonardo Savaris
rancisco tem apenas sete anos e, apesar da pou- 2004, a pousada já abrigou mais de 800 pessoas, pré tro em um avião porque preciso ajudar minha filha. ca idade, já se acostumou a viajar com sua mãe, e pós transplantados. “Nossa demanda é bem maior Se fosse para ir à Disneylândia, certamente eu não Socorro de Cássia Costa, da Paraíba (PB) para do que se pode oferecer”, diz. Os hóspedes desem- faria. Moro no interior da Paraíba, são 6 horas de tratamento no Hospital da Criança Santo Antônio, bolsam R$ 1,00 por dia como contribuição para o ônibus até a capital e depois ainda tem o voo”. A em Porto Alegre. Ele nasceu com insuficiência re- gás, mas o custeio mesmo vem de doações de pessoas mãe conta que só quem passa pela situação consegue nal e necessita de transplante. Em seu estado natal físicas e empresas privadas. ver a dimensão que é o ato de doar. “Quem não coeste procedimento não é oferecido nhece, tem medo de doar, mas quem para crianças. Os rins ainda não vive isto sabe a importância de ser perderam a função totalmente, mas um doador. Antes, eu também tio menino se submete a sessões de nha medo, mas é preciso entender hemodiálise e, há dois anos, teve que, por conta de um órgão que não de enfrentar uma trombose. “Ele funciona, não tem uma vida, como perdeu o peritônio (membrana que no caso da minha filha e de muitas recobre a parede abdominal e as crianças e jovens”. vísceras) e, em função disso, não O comerciante Cid Souza de pode fazer diálise peritonial”, diz Melo, 55 anos, não tem mais conSocorro. Francisco ainda não foi dição de trabalho. Ele frequenta a para a fila do transplante porque pousada desde 2012, por suas idas está com muitos anticorpos e o rise vindas para hemodiálise. Cid é de co de rejeição é grande. Macapá (AP) onde não há tratamento Para conseguir se manter com para os rins, que pararam de funcioa criança tão longe de casa e em um nar há sete anos. E ainda tem cegueilugar onde não conhece nada nem ra irreversível, devido a diabetes. Ao ninguém, a mãe encontrou auxílio lado da esposa, Ana Maria Almeida, ONG Via Vida mantém pousada para pacientes provenientes de localidades distantes na Organização Não Governaele comenta que “se não fosse esta mental Via Vida, em Porto Alegre, que possui uma De dois em dois meses, Martha Jerussa da Costa, casa, não teria como me sustentar aqui, pois não tenho pousada para atender crianças e adultos que estejam 33 anos, precisa vir do Amazonas (AM) para prosse- recursos”. na fila − ou pós-transplantados − e seus acompa- guir seu tratamento. O primeiro transplante de rim A doméstica paraibana Carmélia Lino da Silva nhantes. A maior parte dos hóspedes são de fora do ela fez aos 14 anos, quando se tornou a segunda pa- se reveza com familiares para acompanhar a sobriestado. Geralmente são pessoas encaminhadas por ciente a ser transplantada em Manaus. Quando tinha nha Jéssica, de 23 anos, que aguarda um transplante assistentes sociais, principalmente das regiões Norte dez anos, seus rins pararam de funcionar. “O início de rim. “Tentei por quase um ano na Paraíba. Como e Nordeste. de tudo foi uma infecção urinária. Meus rins atro- não consegui, resolvi vir para cá”, revela a jovem. Ela Minéia, de 11 anos, também é paraibana. Sua fiaram. Conforme eu crescia, eles diminuíam”. Com já está na lista de espera e, enquanto aguarda, segue mãe, Socorro Rodrigues, conta que, desde bebê, a 24 anos, teve de transplantar o segundo rim, este em fazendo hemodiálise no Hospital Santa Casa três vemenina apresentava infecção urinária. Aos seis anos, solo gaúcho. Ao lado do marido, Carlos Marcos da zes por semana. “Soube da pousada pela minha méela foi diagnosticada com lúpus, doença que paralisou Silva, ela diz que quem é transplantado renal sofre dica, em João Pessoa. É uma ajuda e tanto”. seus rins. “Ela ficou um ano fazendo hemodiálise na com o cansaço extremo e o inchaço. “Imagina estar Para Lucia, presidente da Via Vida, conhecer e Paraíba. Ano passado, transplantou um rim aqui no longe de casa, ficar horas e horas dentro de um avião, divulgar casos de doação de órgãos e tecidos faz parRio Grande do Sul e, por conta disto, de dois em dois tudo incomoda”. Para ela, é gratificante fazer amiza- te de um processo de educação em saúde. “Precisameses, temos de vir para cá para fazer revisão”. de com outras pessoas que estão na mesma situação, mos investir e muito para chegarmos a uma cultura Lucia Elbern, presidente da ONG que existe especialmente na pousada. doadora”, diz ela, que teve a ideia da ONG quando há 15 anos, informa que, desde que foi aberta, em Socorro, mãe de Minéia, pensa parecido. “Só en- um dos filhos precisou entrar na lista de transplantes.
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Jornal Extra Classe, ano 19, número 187 | Especial doação de órgãos e tecidos | setembro de 2014
Santa Catarina lidera o ranking de doações fez sua especialização na Espanha. Andrade está convencido de que, antes de investir em publicidade sobre doação de órgãos, é preciso preparar os profissionais de saúde. As técnicas de comunicação com as famílias no momento da doação, difundidas em cursos, são fundamentais para alcançar os resultados atuais”. A gente não pede órgãos, a gente oferece a possibilidade de doação e a doação é um consolo de que outros deixam de morrer, dá um sentido à vida”, diz. Os cursos ensinam como o médico pode ajudar uma família Joel de Andrade, coordenador do SC Transplantes, de Santa Catarina a tomar a decisão e permitem diminuir também a tensão do profissional de saúde. “A principalmente em relação aos transplantes hepáticos. doação é quase um efeito colateral da boa comunica- A lista de espera por órgãos ainda é grande, é preciso ção”, reflete. Postura, tom de voz, comunicação não avançar mais, analisa Andrade. Falta uma política naverbal, sem julgamentos: é preciso ouvir o familiar, cional de Coordenação de Transplantes, assim como entender que há um primeiro momento de negação existe a coordenação de órgãos, e é importante introda morte, esperar a assimilação da dor. duzir o tema nos currículos das escolas de Medicina e Atualmente, a SC Transplantes atende a deman- Enfermagem. “Doação de órgãos não é uma causa, é da de Santa Catarina e também de outros estados, uma questão de saúde pública”, afirma.
Foto: Igor Sperotto
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estado de Santa Catarina é líder nacional em doações de órgãos para transplantes nos últimos oito anos. Até junho de 2014, a Central de Transplantes daquele estado atingiu a marca de 29,4 doadores por milhão de população, índice que se aproxima da Espanha, referência em todo o mundo (veja artigo sobre o modelo espanhol na página 6). Os bons resultados podem estar relacionados a dois fatores: a capacitação dos profissionais de saúde para oferecer a doação de órgãos no momento doloroso em que uma família é comunicada da morte de um parente, e a portaria ministerial que prevê a profissionalização dos coordenadores de transplantes em nível hospitalar. Desde maio de 2013, cerca de cem coordenadores recebem uma gratificação por desempenho da atividade através de um fundo administrado pelo Conselho Municipal de Saúde. A Central de Transplantes de Santa Catarina, conhecida como SC Transplantes, ligada à Secretaria Estadual de Saúde, começou a funcionar em 1999. Em 2008, passou por uma reestruturação e investiu em educação e formação com médicos como Valter Garcia, da Santa Casa do Rio Grande do Sul, e a sanitarista Selma Loch. “É impressionante os picos de doação que ocorrem após um evento de educação”, observa Joel de Andrade, médico intensivista e coordenador do SC Transplantes, que
Estudantes aprendem a cultura da solidariedade Foto: Igor Sperotto
cadastramento de doadores de medula óssea. “Fizemos um curso de capacitação para os alunos disseminarem a cultura doadora. Profissionais do Hemocentro deram palestras para professores, funcionários e estudantes”, conta Mariluce. No Laboratório de Informática da escola, os próprios alunos tiveram a ideia de criar um folheto com os dizeres: “Você pode ser a peça que está faltando”. Em 2011, Atividade desenvolvida por alunos para doação de cabelos foram para o Parque da Redenção divulgar e sensibiA ideia surgiu na aula de Ciências, em 2009, com lizar doadores. E desde então a história se repete, ala turma da 7ª série. A professora Mariluce Campos, da ternando campanhas de doação de sangue e medula. Muitos pais e mães foram pegos de surpresa. Escola de Educação Básica Rainha do Brasil, em Porto Alegre, estava ensinando os tipos sanguíneos e um aluno No início, diziam que não tinham tempo para “tirar comentou que tinha lido no jornal uma notícia sobre a a medula”. Foi preciso explicar o que é a medula, e dificuldade de conseguir doadores de sangue porque as que, num primeiro momento, para se cadastrar basta pessoas não queriam doar, ou tinham medo. “Pior do doar sangue. Como a idade mínima para doação de que isso, pensou Mariluce na época, há um agravante que sangue é 16 anos de idade, desde que acompanhado é a falta de doação de órgãos para transplante”. As aulas por um adulto, e para medula é 18 anos, os jovens, continuaram com a análise da tipologia de sangue doado estimulados pelas campanhas, agora ficam ansiosos voluntariamente por professores. Na amostragem, ficou esperando para contribuir. Desde 2013, uma nova ideia sugerida por duas claro que o tipo O, universal, era o mais raro. A turma decidiu então promover uma campanha de conscienti- alunas começa a tomar forma. O desafio é ampliar a zação na escola e na comunidade para estimular a doa- cultura doadora. Até o final de 2014, elas vão mobilição. Fizeram uma parceria com o Hemocentro, e quan- zar o Grêmio Estudantil, a banda da escola, imprimir do, no segundo evento programado, a unidade móvel de camisetas e fazer vídeos para engajar o maior número coleta de sangue estragou, ampliaram a proposta para o de pessoas no desenvolvimento da consciência de que
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é importante doar órgãos e tecidos. “Queremos que os alunos sejam os protagonistas e participem de todo o processo”, incentiva Mariluce. Ao que tudo indica, a lição está sendo bem aprendida. No colégio com uma população de 1 mil estudantes, até as crianças do turno integral estão engajadas no espírito de solidariedade. Isabela Silva da Cunha, 11 anos, viu uma reportagem na televisão sobre doação de cabelos para quem tem câncer, e comentou na aula da professora Luciana Ribeiro do Carmo. A professora gostou da ideia e resolveu cortar seu próprio cabelo. Em seguida, 11 meninas e outra colega a imitaram. Descobriram que cortar cabelo não só não dói, e cresce rápido, mas principalmente que uma mecha de apenas 10 centímetros unida a outras mechas pode virar peruca e colorir com um sorriso o rosto de quem sofre com uma doença cujo medicamento pode provocar a perda dos pelos. DOAÇÕES – Os cabelos doados pelas crianças que estudam na Escola Rainha do Brasil são recolhidos pela ONG Cabelaço (https://pt-br.facebook.com/cabelacors). Unindo mechas, esta ONG propicia a criação de perucas que são doadas a jovens com câncer cujos cabelos caíram com o tratamento. A foto que abre a página do Cabelaço no Facebook dá uma ideia de como um ato solidário simples como esse pode ser tão gratificante para quem recebe a doação.
Dois poemas de Márcia do Canto serviram de base para o início do trabalho na escola Hermes da Fonseca:
Ninguém
Alguém (nome escolhido)
Meu nome é ninguém / Sou ninguém porque Ainda nada sou / Não tenho cabelos Nem boca nem olhos / Falta um coração para amar O que você pode me doar? / Não ando, não falo Me calo e nada escuto / Não escolhi ser assim Mas é sua escolha / Dar algo para mim Me faça alguém / Me dando o que tem Pouco ou muito /O que lhe convém!
Uma boneca contente fiquei Até um nome ganhei / Você que doou Forte assim me deixou Mas o que não pensava É que forte também ficaria Doar é um ato de gratidão A todos que participaram Obrigado/a de coração
Cultura doadora começa na escola
Doar é superar medos
“Meu cabelo é melhor que doce”, diz uma das mensagens das placas de papelão escritas a mão e mostradas com orgulho por um grupo de meninas com cabelo na altura dos ombros. Para Ana, Maria Fernanda, Isabela, Maria Julia e Mariana, que estudam na Escola Rainha do Brasil, cabelo é só cabelo, que pode mesmo dar tanto prazer para outras crianças como doce e beijinho. “Precisa de muitas mechas para fazer uma peruca”, explica Isabela, a mentora da ideia de doar para outras crianças,
Para Fernanda Minuto, 17 anos, fazer parte do projeto Cultura Doadora é tão natural como aprender Português, Matemática, História. Fernanda já fazia doações de roupas e objetos de higiene aos moradores do Asilo Padre Cacique, em Porto Alegre, atividade na qual se engajou desde a 2ª série. Com o tempo, passou a participar periodicamente de bingos e chás no local. Neste ínterim, cultivou amizades e um carinho pelas pessoas com quem interage. Este ano, entrou para o projeto de doação de sangue e medula óssea da Escola Rainha do Brasil. Quando surgiram as campanhas para doação na escola, Antonio Garavello Neto e Lucas Sica, ambos com 17 anos, logo se engajaram. “Estava no Grêmio Estudantil e resolvi participar, primeiro auxiliando com lanches, depois vi que era um gesto simples que podia auxiliar tanta gente que precisa...”, conta Antonio. “Não tem dinheiro que pague a sensação de ser solidário”, completa Lucas. “Quanto mais se falar no assunto, mais se vence os tabus”, acredita. No dia 24 de julho de 2014, Betina D’Ávila mal completou 16 anos e doou sangue pela primeira vez. Fez questão de mandar uma cópia do comprovante para a professora. “Tinha vontade de doar desde os dez anos, porque sempre fiz trabalho voluntário no colégio e sei que é um gesto pequeno, mas muito importante, salva uma vida”, argumenta. Juliana Moras, 16 anos, tinha medo da agulha. “No Hemocentro é legal, eles ficam conversando, brincando, ajudou”, conta. Ela venceu o medo e o desconhecimento.
Foto: Igor Sperotto
inspirada pela mãe, que trabalha num hospital. Dela, foram cortados 35 centímetros de cabelo. Ana Carolina Leal da Silva, cinco anos, pediu para cortar bem curtinho. No salão de beleza, outras moças viram e quiseram também doar, conta Ana, que pretende repetir no ano que vem. Maria Fernanda, dez anos, doou suas tranças de dread, feitas na viagem para Porto Seguro, na Bahia. Maria Julia La Rocca Felqe, sete anos, conclui: o mais bacana disso tudo é poder ajudar quem tem câncer.
Estudantes do Rainha do Brasil incentivaram doação de cabelos para confecção de perucas para pacientes com câncer
“Ninguém” não tinha cara, não tinha corpo, não tinha identidade. Foi sendo construído coletivamente pela professora, pelas crianças, por pais e mães que doaram um pouco de seu tempo, sua atenção, suas roupas, seus afetos. Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente Hermes da Fonseca, em Novo Hamburgo, “Ninguém” era um menino e uma menina feitos de meia-calça de nylon recheada de papel que, depois de meses de construção, sendo levados para a casa de um e outro, e por votação, receberam o nome de Marina e Michel. A proposta de transformação de “Ninguém”, criada pela psicopedagoga, atriz e escritora Márcia do Canto e disponível no site da Fundação Ecarta dentro do projeto Cultura Doadora, inspirou de tal forma a professora Lisiane Hoffman Allet, que ela se emociona ao contar a experiência. “Nunca havia pensado em falar com minha família sobre doar órgãos, agora vou falar”, avisa. A emoção contagiou os familiares das crianças de sete e oito anos que adotaram os bonecos e a ideia. “Desde pequenos, eles aprendem que pequenas ações
podem ajudar o próximo”, diz Cristina Gatelli Blume, professora e mãe de Beatriz, sete anos, aluna de Lisiane que participou do projeto. Juntas, as duas fizeram o cabelo e o charmoso chapéu da boneca Marina. O nome foi sugestão de Beatriz. Ganhou na votação. Não por acaso, é também o nome de sua irmã, de um ano de idade. “O mais legal foi ver nascer, cada um colocar algo”, disse o pai, João Batista Blume. Quando Beatriz recebeu a boneca para contribuir com algo seu, ela só tinha os olhos. “Não tinha boca”, explica a menina. A ideia é justamente esta: dar (boca) e voz às crianças, observa Márcia do Canto. “Quando se trabalha regras, moral e ética, principalmente nas séries iniciais, a generosidade e a educação com o outro é sempre frisada”, explica a pedagoga. “Trabalhar de forma mais ampla a doação de uma parte nossa, como olhos e rins, é uma tema natural. Os adultos têm mais dificuldade para lidar com isso porque significa falar de morte, mas falar de morte é falar de parte da vida, também é importante conversar sobre isso com as crianças”, orienta.
Foto: Leonardo Savaris
“Ninguém” ganhou vida
Recurso pedagógico para formar consciência Um boneco que traz a voz da doação de órgãos e pele pode ajudar a levar esta discussão para as famílias. A criança introjeta a informação de forma não racional. A pedagoga propõe outras brincadeiras, como um hospital de bonecos: “Temos uma cultura de jogar fora os brinquedos estragados. Há também um ideal de um ser humano ‘perfeito’. Numa turma, começamos a consertar bonecos e a conversar sobre como é ter uma só mão ou uma perna diferente da outra. Pode-se trabalhar ética e estética”, sugere.
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ARTIGOS
Modelo espanhol é referência no mundo
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m 2014 celebramos o 25º aniversário de criação da Organização Nacional de Transplantes (ONT) da Espanha. Antes de a ONT ser criada, a taxa de doação de órgãos no país não chegava a 15 por milhão de população. A partir da ONT, foram colocadas em prática uma série de medidas organizativas que se consolidaram no que se chamou de Modelo Espanhol de Doação e Transplantes. Não se trata de uma estratégia única, mas de um conjunto de ações. Isto permitiu alcançar cifras de doação entre 34 e 35 doadores por milhão de população, taxa mais alta do mundo. A criação e consolidação deste sistema organizativo foi facilitada por uma legislação adequada, que define morte encefálica e uma série de condicionantes técnicos, econômicos, políticos e também médicos. O principal ponto é a figura do coordenador de transplantes. A coordenação tem três níveis, inter-relacionados: nacional, do qual faz a parte a ONT como escritório central; regional, em cada uma das 17 comunidades autônomas da Espanha; e hospitalar. O Modelo Espanhol conta com uma auditoria contínua e um programa de qualidade da morte encefálica que permite entender que fatores hospitalares podem influir na perda de doadores e como estabelecer mecanismos para melhorar a captação. Prevê uma compensação econômica para cobrir os gastos do hospital e a dedicação do pessoal quando há uma doação de órgãos. É um tipo de subvenção para formação e fomento de todo o processo.
Ivo Nesralla
Nos 25 anos de trabalho da ONT foram desenvolvidas estratégias para conscientizar a população e aproximar-se de setores considerados “chaves” através do Plano Estratégico para Redução de Negativas para a Doação de Órgãos. A ONT, em colaboração com a Universidade Autônoma de Madri, realizou pesquisas com a população para identificar fatores psicossociais que influenciam na tomada de decisão das famílias, o grau de conhecimento, o poder de influência das notícias e a eficácia das campanhas de divulgação. Além disso, foram feitas campanhas específicas para promover a doação. ESTRATÉGIA – A campanha Doação sem Fronteiras, realizada entre 2008 e 2011 com as comunidades de imigrantes na Espanha, permitiu estreitar as relações com as organizações de imigrantes, levando em conta as variedades linguísticas, o fato de que não existe a cultura de doação nos países de onde procedem, a religião e a crença de que o processo interfere nos ritos funerários. Folhetos informativos em espanhol, chinês, francês, inglês, árabe e romeno foram distribuídos em centros de saúde, em associações do povo cigano, em organizações não governamentais como a Cruz Vermelha, e na Comissão Espanhola de Ajuda a Refugiados. Ainda como parte do plano estratégico, a ONT mantém um telefone 24 horas disponível para contato. Anualmente faz uma reunião com jornalistas para anunciar campanhas, prestar esclarecimentos e comentar alguma situação de crise ocorrida na área da comunicação.
Cirurgião cardiovascular pioneiro nos transplantes cardíacos. Professor da Ufrgs. Diretor-presidente do Instituto de Cardiologia do RS. Membro da Academia Brasileira de Medicina
O transplante cardíaco é hoje uma rotina não só no Instituto de Cardiologia, mas em todo o mundo. E especialmente no RS essa história teve mais um impacto: os transplantes cardíacos alavancaram outros tipos de transplantes no estado como de rins de doador cadáver, e, posteriormente, fígado, pâncreas e pulmão. E tudo graças a esse primeiro doador de coração e a todo o engajamento da sociedade que veio a seguir. Um primeiro coração mudou o rumo da história de muitas pessoas. Falar sobre transplante de coração sempre mexe comigo, não só porque significa salvar vidas, mas também porque leva a um grande acontecimento para cirurgia cardíaca gaúcha e brasileira: a retomada dos transplantes cardíacos no Brasil. Nos anos 1960, o homem estava protagonizando grandes avanços. Em 1968, o cineasta Stanley Kubrick lançou o filme de ficção científica 2001 – Uma
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Beatriz Mahillo Durán
Médica adjunta da Organização Nacional de Transplantes (ONT), Espanha, responsável, entre outras atividades, pelo Observatório e Registro Mundial de Doação e Transplantes
Também são realizados cursos anuais para profissionais do meio jurídico e forense, porque há doações que requerem autorização judicial, como nos casos de traumatismo crânio-encefálico por acidente de trânsito, em mortes violentas, ou mortes súbitas em que é preciso descartar causa violenta. O objetivo é aproximá-los das novidades legislativas e técnicas e informar que na maior parte das vezes não existe problema ou interferência para o processo judicial se o falecido for doador. E, principalmente, há uma atividade permanente de formação de todos os envolvidos no processo. Trabalhamos com sociedades científicas e fazemos cursos de formação com profissionais de urgência, emergência e de cuidados intensivos. O Curso de Comunicação em Situações Críticas, ou o Curso de Comunicação de Más Notícias, é dirigido especificamente a coordenadores de transplantes para a entrevista de solicitação de doação à família. Cada país deve fazer uma análise de sua situação real, estrutura organizativa, condições sociais e econômicas para ver que aspectos de um modelo pode importar ou aplicar na sua realidade para incrementar as taxas de doação e transplante. Há muitas diferenças de uma região a outra, mas pode-se dizer que ao longo dos últimos anos se observou um incremento da atividade de doações e transplantes no mundo. Não é possível atribuir o crescimento a uma só estratégia: é o conjunto de todos os pontos do modelo organizativo de doações e transplantes que permitiram esse aumento.
30 anos de transplantes cardíacos no RS
Odisseia no Espaço. O homem pisou na lua em 1969. Pisar na Lua e trocar corações eram acontecimentos que faziam o homem acreditar que tinha poderes sobre-humanos. O primeiro transplante cardíaco foi feito por Christiaan Barnard em 3 de dezembro de 1967, na África do Sul. No Brasil, foi realizado em 1968, quando o professor Euryclides de Jesus Zerbini fez a cirurgia pioneira na América Latina, em São Paulo. Então, em 2 de junho de 1984, realizamos, no Instituto de Cardiologia, o primeiro transplante cardíaco no RS e quarto no Brasil, representando a retomada dos transplantes cardíacos, já que esse tipo de cirurgia havia tido uma pausa desde aqueles três primeiros transplantes feitos na década de 1960 pelo dr. Zerbini, em função do problema da rejeição do órgão pelo organismo do receptor. O próprio dr. Zerbini, a respeito deste feito do IC-FUC, chegou a escrever
no seu livro intitulado Operário do Coração: “Em junho de 1984, um cirurgião brasileiro fora do eixo paulista – o dr. Ivo Nesralla, de Porto Alegre – realizou o primeiro transplante sul-americano dessa nova era, com emprego da ciclosporina, o quarto da história do país. O paciente não sobreviveu, mas estava aberta a nova temporada de transplantes”. Comemoramos no dia 2 de junho deste ano os 30 anos desse primeiro transplante que tantas vidas mudou e me percebo emocionado. Estamos agora no transplante cardíaco número 199 da instituição e sinceramente espero que na publicação deste jornal Extra Classe estejamos festejando o txc nº 200. Olho para trás e vejo que valeu a pena não só para esses pacientes como para todos os transplantes de outros órgãos no estado. É o efeito locomotiva do transplante: puxando avanços científicos.
Os 3 Plantados: tributo à vida
Ser dono do próprio corpo Jimi Joe aponta que há uma falha de ordem legal no processo de doação de órgãos e tecidos. “Eu até queria registrar em cartório que sou doador, mas isto não adianta de nada porque, com a minha morte encefálica, se a família decide que não, acabou”. Ele defende que haja um projeto de lei que exprima a vontade de doar. “Atualmente, a família é dona do corpo de quem morre, muitos não querem porque vai mexer com uma pessoa querida, mas a gente tem que pensar que outras pessoas terão chance”.
Foto: Igor Sperotto
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ebeto Alves, Jimi Joe e King Jim têm muitas coisas em comum. São músicos gaúchos, nasceram na década de 1950, começaram a trilhar os caminhos da arte na década de 1970. E os três foram transplantados em 2013. São sobreviventes. Eles também compartilham uma história de sofrimento e dor até receberem novos órgãos que lhe garantissem boas condições de vida. Bebeto e King Jim possuem agora novos fígados e Jimi Joe, após dez anos de espera, não precisa mais de hemodiálise, pois recebeu um novo rim. Além de músico, Jimi Joe, 59 anos, também é jornalista e radialista e, atualmente, é o coordenador de programação da Rádio Unisinos. Ele conta que os anos de hemodiálise foram de sofrimento. “No início, não conseguia trabalhar, estava muito fragilizado, apavorado”. Aos poucos, conforme ia se acostumando voltou a tocar, a fazer shows, entre outros trabalhos. Mas a grave doença renal era um sério limitador para suas atividades. A longa espera pelo transplante também minou sua confiança. “Quando chegou lá pelos oito anos de fila para o transplante, achei que nunca aconteceria e falei para o médico me tirar, que eu ficaria só com a hemodiálise. A resposta dele é que não iria me tirar e que era para eu aguentar firme”. Jimi ingressou três vezes na fila. A primeira vez não foi possível porque o órgão não estava íntegro. A segunda vez também deu complicações com o órgão doador. “Me chamaram umas quatro vezes, eu ficava em jejum de 12 horas, mas aí entrava alguém na minha frente ou o rim não era compatível”. Na terceira tentativa, ele pôde, enfim, ser transplantado. Não sem outra boa dose de sofrimento. “Eles me ligaram, dizendo que tinham um rim, que era para eu fazer as 12 horas de jejum. Era cedo, fiquei sem comer durante todo o dia e ninguém me ligava. Quando a noite chegou, minha mulher (Juliana Franzon) sugeriu que eu comesse e fosse dormir. Eu recusei. Quase uma hora da manhã, o médico me ligou dizendo que o rim era meu”, lembra, emocionado. Bebeto Alves, também de 59 anos, não sofreu
Jimi Joe, King Jim e Bebeto Alves, transplantados em 2013, comemoram com espetáculo musical na Ecarta com a espera, como Jimi Joe. Ele ficou na fila por três meses até conseguir um fígado compatível. Mas passou muitos anos tratando de uma Hepatite C que evoluiu para tumor. O tratamento foi doloroso. “Os remédios que servem para matar o bicho matam a gente junto”, diz, se referindo ao ressecamento do tumor. “Descobri que estava doente em 1998, tocando em um festival na França. Tive uma tontura e fui parar no hospital. Aqui no Brasil, fiz uma ecografia que apontou nódulos em todo o fígado e a investigação de um especialista indicou a Hepatite C”. Bebeto começou um tratamento medicamentoso. “Foi muito ruim, eu não me sentia bem”. Optou por abandoná-lo, substituindo por uma alimentação mais regrada e remédios naturais. Com isto, o músico passou quase sete anos sem ir ao médico. Até que, em 2012, trabalhando no Rio de Janeiro, sentiu que algo estava errado com sua saúde. “Fui fazer um tratamento dentário e os exames apontaram que eu tinha uma baixa plaquetária muito grande. Voltei ao médico e ele me xingou pra caramba. No exame visual deu fígado cirrótico. Quer dizer, nestes anos, eu desenvolvi uma cirrose”. Junto com a cirrose também vieram alguns nódulos e Bebeto foi diagnosticado com um tumor maligno. “Fui direto para a fila do transplante, com 11 pontos para cirrose e mais 21 em função do tumor”.
O saxofonista King Jim, nome artístico de Ricardo Weissheimer Cordeiro, de 57 anos, também teve de enfrentar o transplante de fígado. Ele começou a tocar o instrumento em função da asma, que o acompanha desde a infância. Cirrose e Hepatite C se apresentaram para ele em meados da década de 1980. “Na época, eu não sentia nada. Também, nem existia informação, eu nem sabia o que uma Hepatite C poderia fazer”. Com o tempo, o fígado ficou comprometido e só restou a King Jim lutar por um novo órgão. Só que, em vez de três meses na fila, como Bebeto, ele ficou três anos. “Quando a cirrose se manifestou, comecei a ter problemas. Os sintomas eram muito ruins, eu tive hérnia no umbigo. Tive de parar de tocar, pois toda hora eu ia para o hospital. Me internei para desintoxicação de drogas e álcool e aí o médico me disse que, se eu estivesse a fim mesmo, me colocaria na fila, para me salvar. Se não, eu teria apenas mais um ano de vida”. Hoje, ele diz que está comportado. “Não estou tocando, pelo menos até fazer a cirurgia de hérnia, em outubro”. Deprimidos em matéria de imunologia, Bebeto, Jimi Joe e King Jim são suscetíveis a todo tipo de doença. “Qualquer gripe vagabunda nos derruba”, diz Bebeto. Por causa dos problemas de imunidade, eles não saem de casa sem estarem abastecidos de máscaras cirúrgicas. “Precisamos delas para entrar no elevador, pegar um ônibus ou até ir ao hospital”, conta King Jim.
Show em agradecimento Em virtude do transplante, Jim Joe teve complicações e viveu um processo de idas e vindas do hospital. Em uma destas vezes, ficou internado por três meses. “Eu estava lá, chateado da vida, quando fiquei sabendo que o Bebeto e o King Jim também tinham sido transplantados. Aí a minha mulher deu a ideia de a gente fazer um show. Eu gostei, três pessoas conhecidas que podem fazer algo para que a doação seja mais visível. É uma forma de agradecer o que ganhamos e retribuir. É importante doar órgãos e salvar vidas. Somos sobreviventes, mas muitos parceiros não tiveram a mesma sorte”. Para Bebeto Alves, é preciso destacar o impacto
desta situação delicada na vida de cada um deles. “Percebemos que a finitude é real e séria. Ela chegou para nós, estivemos perto do fim e, neste momento, recebemos órgãos que nos dão a perspectiva de continuar vivos. É uma emoção indescritível e nós temos de retribuir”. Ele faz questão de salientar que os três foram atendidos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), tanto no transplante quanto na medicação pré e pós. “A gente sabe que é tudo muito caro, mas o atendimento tem sido da melhor qualidade”. O show já está marcado para 27 de setembro, Dia Nacional de Doação de Órgãos, na Fundação Ecarta.
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Jornal Extra Classe, ano 19, número 187 | Especial doação de órgãos e tecidos | setembro de 2014
CONSCIENTIZAÇÃO
Cessam as campanhas, cessam as doações doação e diz que 72% das famílias se mostram sensíveis à causa. Explica que o sistema de doação possui dois pontos fundamentais: um é a sociedade, que deve ser sensibilizada, e o outro é a estrutura pública, responsável José Camargo é palestrante do projeto Cultura Doadora da Fundação Ecarta pela solicitação de doações. “Mas prir a vontade de uma pessoa em vida”. E critica o há aí um problema muito grave, não há sistematiza- fato de que ainda não haja uma estrutura para que toção da busca por órgãos. Em países mais desenvol- dos os casos de morte encefálica sejam comunicados. vidos há uma busca ativa constante”. Ele critica o Apesar das dificuldades, o médico acredita que fato de se apostar demais nas condições das famílias o desenvolvimento de uma cultura doadora pode-se para tomar a decisão. “É exigir muito de quem está dar nos ambientes escolares, ensinando as crianças a traumatizado pela perda. No momento de derrota e conviver com esta necessidade social. Vale lembrar de sofrimento, muitas famílias nem têm condições de que todo tipo de órgãos e tecidos podem ser doados, lembrar que existe a possibilidade”. como coração, pulmão, fígado, pâncreas, rim, córJosé Camargo lembra que doação de órgãos e neas, ossos, músculos e pele. Camargo noticia ainda tecidos é uma solicitação de generosidade em um que uma equipe da Santa Casa está se preparando momento em que a situação é de revolta, ou seja, é para efetuar um transplante chamado multivisceral, necessário mediar dois sentimentos opostos. “É co- onde está incluído o intestino, até o momento feito movente o esforço que as famílias fazem para cum- somente em São Paulo.
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“Todo mundo pode ser doador, porque algo sempre pode ser aproveitado, independente da idade”. Quem ensina é o diretor-médico do Centro de Transplantes da Santa Casa, o cirurgião torácico José Camargo, referência em transplante pulmonar na América Latina. Ele afirma que a base para uma cultura doadora de órgãos e tecidos está na educação. “Nós não temos ritmo quando o assunto é doação e ritmo deve ser uma constante. Aqui, no Brasil, dependemos de campanhas espasmódicas e generosas, desencadeadas pela mídia, uma conduta errática e que não tem durabilidade. Cessam as campanhas, cessam também as doações”. Camargo sentencia que a doação de órgãos e tecidos é algo muito sério para depender de processos episódicos. “Para se ter uma ideia, em abril foram feitos cinco transplantes pulmonares, mais de um por semana. Em seguida, não foi feito mais nenhum. E que ocorre, então? Começam a morrer pessoas na fila”. O médico observa que a sociedade gaúcha tem um desempenho “bastante razoável” quando solicitada a
Mitos comuns que prejudicam Rosana Nothen, coordenadora da Central de Transplantes do RS, observa que a conta de que cada doador pode salvar oito vidas é apenas um expediente publicitário. “Dificilmente encontraremos um doador tão completo, até por razões logísticas e de manutenção do órgão. Não é comum. Pode acontecer, mas não é exato”. Ela explica que, na Europa, a taxa não chega a três órgãos por doador. Nos Estados Unidos, é em torno de cinco por doador e, no Brasil, a média é de 2,5 por doador. Para que haja doação de órgãos, no Brasil, é necessária a constatação de morte encefálica, que é algo bastante sedimentado na literatura médica. A morte do cérebro faz com que a pessoa pare de respirar. Ausência de respiração provoca parada cardíaca. O coração segue batendo mais um tempo mas, aos poucos, há a falência. “A necrose vai se instalando na medida em que a circulação não chega mais”. A estatística médica aponta que a morte encefálica ocorre em 60 de cada um milhão de habitantes. No Rio Grande do Sul esta estatística é comprovada pois, em 2013, foram 579 notificações
por morte encefálica em um território com cerca de 10 milhões de habitantes. “Isto significa 32,5% do total. Não é um índice ruim, estamos entre os melhores do país, mas podemos melhorar muito. Há países que chegam a 60 ou 70% das doações”. Rosana informa que, em 2014, os níveis de doações caíram bastante. Ela ainda não pode dizer ao certo porque isto ocorreu, mas acredita que eventos como a Copa do Mundo e as ondas de calor podem ter interferido no processo. “O que posso afirmar é que nossa equipe segue seu trabalho obstinado pela captura”. Em 2013, havia 2 mil pessoas na lista de espera por um órgão e foram computados apenas 200 doadores. Para a médica, o principal empecilho para se chegar a níveis mais altos de doações é a recusa das famílias E o motivo é cultural. “As pessoas falam muito pouco da morte, é como se ela não existisse. Para viver mais feliz é necessário que se confronte, que se perceba que a vida é finita, que vamos perder quem amamos, que a morte é o fim de um processo”. E ela faz questão de lembrar que a morte ence-
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fálica é um dos diagnósticos mais bem estabelecidos da Medicina. “A Universidade de Harvard, uma das mais conceituadas do mundo, publicou uma diretriz sobre o assunto, quer dizer, são quase 50 anos de vigência deste conceito”. Esta diretriz aponta que a morte encefálica é irreversível, o desgaste dos órgãos é só uma questão de tempo. Morte encefálica é uma forma muito rara de morrer. Em torno de 2% a 4% ocorrem em ambientes hospitalares, que é onde o provável doador estará. Para diagnosticá-la são feitos dois exames clínicos mais um exame de imagem ou ainda um exame funcional do cérebro. Pelo menos três médicos estarão envolvidos neste processo. “Nunca se certifica a morte encefálica antes de 6 horas e é muito clara, tecnicamente, a diferença entre ela e o coma. Tudo é certificado e assinado. A médica faz um lembrete: a vida atribulada que se leva hoje, com o crescimento de casos de obesidade, poluição, diabetes, má alimentação/nutrição, sedentarismo... é mais provável que estejamos dentro da lista para transplantes do que fora dela. O problema pode estar mais perto do que se pensa.
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Coordenação: Valéria Ochôa
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Edição: César Fraga
Fotos: Igor Sperotto e Leonardo Savaris
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Redação: Clarinha Glock e Marcia Camarano
Revisão: Lígia Halmenschlager
Ecarta, Jornal Extra Classe, com o apoio do Sinpro/RS
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