O Professor sob pressão

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O professor

sob pressao PREVENÇÃO E ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DE TRABALHO Cecília Maria Martins Farias [org.]





O professor sob pressão Prevenção e enfrentamento da violência no ambiente de trabalho © 2012, Sinpro/RS Publicação do Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência – NAP, do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul – Sinpro/RS. www.sinprors.org.br Equipe do NAP: Cecília Maria Martins Farias, Celso Floriano Stefanoski, Glória Celeste Pires Bittencourt, Luciane Lourdes Webber Toss, Roséli Maria Olabarriaga Cabistani Organização: Cecília Maria Martins Farias Projeto gráfico, edição gráfica, capas e diagramação: Gilson Camargo | Carta Editora – agenciacarta@agenciacarta.com.br Revisão: Clea Motti Impressão e acabamento: Gráfica Evangraf – Porto Alegre, RS CIP-BRASIL. CA TAL OG AÇÃO NA FFONTE ONTE CAT ALOG OGAÇÃO T O NA CIONAL DOS EDIT OS, RJ SINDICAT NACIONAL EDITORES LIVROS, SINDICA ORES DE LIVR P958

O professor sob pressão : prevenção e enfrentamento da violência no ambiente de trabalho / Cecília Maria Martins Farias (org.) ; [fotografias de Igor Sperotto]. -1.ed. - Porto Alegre, RS : Carta Editora & Comunicação, 2012. 104p. : 21 cm ISBN 978-85-61899-06-6

12-1432.

1. Sindicatos - Professores. 2. Violência na escola. 3. Professores - Estatuto legal, leis, etc. 4. Ambiente escolar. 5. Ambiente de trabalho 6. Professores - Brasil. I. Farias, Cecília Maria Martins. CDD: 371.100981 CDU: 37.011.3-051(81) 09.03.12 14.03.12 033698

Todos os direitos de edição reservados ao Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul – Sinpro/RS.


Sumário Apresentação .......................................................................................................................................... 09

NAP a serviço dos professores Cecília Maria Martins Farias .......................................................................................................................................... 11

Desamparo na educação Roséli Maria Olabarriaga Cabistani .......................................................................................................................................... 23

O mal-estar na educação em análise Aidê Ferreira Deconte, Ana Cristina Teixeira, Marlene Rama Fiorini e Márcia Vitorello .......................................................................................................................................... 35

A violência simbólica e as condições de trabalho do professor do ensino privado Fátima Áli .......................................................................................................................................... 43

Do exercício do poder diretivo e o respeito à dignidade do empregado Luciane Lourdes Webber Toss .......................................................................................................................................... 51


O assédio moral Eduardo Mendes Ribeiro .......................................................................................................................................... 71

A adolescência empoderada Rose Gurski .......................................................................................................................................... 81

O princípio da dignidade Rubens Fernando Clamer dos Santos Júnior .......................................................................................................................................... 91

Memória de professor Fabio Bortolazzo Pinto .......................................................................................................................................... 99

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Apresentação Esta publicação apresenta o trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Apoio ao Professor contra a Violência – NAP, instituído pelo Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – Sinpro/RS, em 2007. O Núcleo tem como principal objetivo acolher os professores que chegam ao Sindicato em sofrimento por situações de constrangimento e violência nas instituições de ensino privado. O atendimento é feito por diretores do Sindicato que fazem a escuta da situação relatada e buscam, juntamente com o professor, os encaminhamentos para a resolução do conflito. Além do acolhimento aos docentes, o NAP desenvolve atividades que instrumentalizam o professor para o manejo de situações constrangedoras e atividades que subsidiam para ações preventivas aos fatos concretos que dificultam o trabalho pedagógico que os professores desenvolvem. Em relação a essas atividades preventivas desenvolvidas pelo Núcleo, cabe referir os Encontros de Professor, que abordam temas que auxiliam o docente no enfrentamento a situações recorrentes no ambiente escolar, como desconstituição da sua autoridade, assédio moral, agressões implícitas e explícitas, entre outros.


O Núcleo também promove, juntamente com a Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, o Roda de Conversas, evento em que profissionais ligados à saúde e à educação são convidados para debater temas relacionados à docência. Os textos apresentados neste livro foram escritos por profissionais que participaram das atividades promovidas pelo Núcleo e que, gentilmente, disponibilizaram seus artigos, contribuindo, dessa forma, para a qualificação dos professores na sua tarefa cotidiana na escola. Boa leitura! Equipe Multidisciplinar do NAP

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NAP a serviço dos professores Cecília Maria Martins Farias1

O Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência – NAP é um espaço de atendimento aos professores do ensino privado do Rio Grande do Sul com o objetivo de apoiar aqueles que sofrem violência implícita ou explícita no ambiente de trabalho. Criado no final de 2007, a partir das discussões sobre a violência contra o professor feitas durante o VIII Congresso Estadual dos Professores do Ensino Privado – CEPEP, o trabalho do Núcleo também teve como motivação a pesquisa realizada pelo Sinpro/RS, no mesmo ano de 2007. Nela foi apontada reiteradamente a solidão dos professores diante de agressões sofridas no ambiente escolar. Os relatos da violência contra professores nas instituições de ensino privado motivaram o Sinpro/RS a investigar as causas e os desdobramentos dessas situações para os docentes. Os resultados obtidos oferecem um panorama claro sobre os tipos de violência sofrida pelos docentes. Esses dados indicam ao Sinpro/RS a necessidade de continuar alertando aos atores de educação sobre os reflexos prejudi1

Professora, Especialista em Ensino de Língua Portuguesa, Bacharel em Direito, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do NAP.


ciais da violência e reivindicando junto ao sindicato patronal maior atuação das direções de escolas para prevenir e reprimir essas atitudes desrespeitosas de alunos, pais e coordenadores que desqualificam o professor. Conforme os resultados da pesquisa, há uma relação direta da violência relatada com a desvalorização profissional. O sentimento de desvalorização do trabalho faz com que professores adoeçam e, o que é pior, trabalhem doentes por receio de que a falta ao trabalho, mesmo motivada, tenha reflexos em relação à sua permanência no emprego. Elaborada por meio de formulário-padrão, a pesquisa foi respondida por 440 professores do ensino privado de todos os níveis de Porto Alegre (54,5%), Região Metropolitana (13%) e do Interior (32,5%). A desconstituição da autoridade do professor foi o fato ligado à violência mais citado pela amostra (83,2%), seguido da atividade sem remuneração (76,8%) e a ingerência na avaliação dos alunos (64,9%) e na ação pedagógica (53,3%). A autoria da violência é atribuída a alunos em três casos: desconstituição da autoridade do professor, agressões físicas e agressões via Internet.

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Para 37% dos professores pesquisados, as direções de escolas são omissas em relação à violência no ambiente escolar e procuram responsabilizar os professores na maioria dos casos. O encaminhamento de soluções pela escola é insatisfatório para 8O%.

Já a ingerência da direção no trabalho docente é apontada como “eventual”, ao contrário do trabalho sem remuneração, classificado pelos entrevistados como “atividade frequente”. Além de apontar o trabalho sem remuneração como rotina em suas escolas, os professores atribuem a ele uma das maiores fontes de insatisfação profissional, ao lado da perda de autoridade em sala de aula. Três anos mais tarde, em 2010, a Federação dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino Privado do Rio Grande do Sul – Fetee/Sul, em parceria com o Sinpro/RS e demais sindicatos de sua base, publicou a pesquisa Condições de Trabalho

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e Saúde dos Professores e Técnicos Administrativos do Ensino Privado do Rio Grande do Sul, realizada pelo Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat) nos anos de 2008 e 2009. Os dados obtidos demonstram o crescente sofrimento dos docentes na relação trabalho – saúde, destacando-se situações de humilhação, de constrangimento e de pressão enfrentadas pelos professores. Dentre as informações da pesquisa destacamse os seguintes resultados: As principais fontes de assédio moral no trabalho docente indicadas pelos professores são: alunos (33%), chefes imediatos (31%), chefes superiores (31%), colegas professores (23%), pais de alunos (19%) e demais funcionários (10%). Merece destaque o alto índice de docentes que se sentem pressionados excessivamente no trabalho por chefes superiores (35%), chefes imediatos (32%), alunos (27%), colegas professores (14%) e pais de alunos (14%). Tarefas fora do horário de trabalho:

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Em 2011, novamente, a Fetee/Sul encomendou pesquisa, agora, sobre “Avaliação do Nível de Estresse em Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul”, realizada de outubro de 2011 a janeiro de 2012 e coordenada pela Dra. Janine Kieling Monteiro, professora do Departamento de Pós-graduação em Psicologia da Unisinos. Mantendo a tendência verificada na pesquisa anterior, já

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referida, realizada em 2009/2010 pelo Diesat, novamente foi constatado o alto nível de estresse dos professores em relação à tarefa docente (58,4%) e os sintomas que mais se destacaram foram o cansaço excessivo e a tensão muscular. A pesquisa revela que o acúmulo de trabalho, a multiplicação de tarefas burocráticas impossíveis de serem cumpridas dentro da carga horária contratada, salas de aula superlotadas, incapacidade dos alunos de respeitar limites e a crescente demanda de atividades extraclasse e on-line estão afetando a saúde dos professores do ensino privado e se constituindo em fatores de estresse. Segundo as pesquisadoras, “chama a atenção o alto índice de estresse entre os professores na comparação com outros estudos e com diferentes categorias profissionais. Entre os professores, além do alto índice de estresse, constata-se uma incidência de Síndrome de Burnout (esgotamento profissional) em 16,8% dos entrevistados”, um número bem elevado para o tipo de trabalho que precisa acontecer em ambiente que facilite o processo de aprendizagem.

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Os dados aqui apresentados confirmam a necessidade de que o Sindicato dos Professores continue e amplie o atendimento aos professores vítimas de violência para que os problemas detectados sejam de fato solucionados. A não solução desses problemas pode gerar graves consequências, com destaque para a irreversível falta de motivação para o exercício da docência.

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Atividades do Núcleo de Apoio ao Professor a) Atendimento aos professores Atuando de forma incipiente, desde 2007, o Núcleo intensificou, a partir de 2009, a estrutura para o atendimento de professores que chegam ao Sinpro/RS relatando as situações de constrangimento/violência por que passam no ambiente educacional. Em qualquer momento em que o professor recorre ao Sindicato um dos integrantes da Equipe Multidisciplinar o recebe. Na trajetória do NAP diversas são as situações relatadas frequentemente pelos docentes, entre elas a desconstituição da sua autoridade representada por casos envolvendo conflitos relativos à agressão verbal, comportamento inadequado de alunos, conflitos envolvendo a metodologia dos professores, pressão por alteração de avaliações dos alunos por parte de superio

Encontro de Professores, em 3 de junho de 2011, abordou o tema Assédio Moral, que contou com painéis de profissionais de diversas áreas | Foto: Igor Sperotto

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res, ingerência de pais na atividade pedagógica e encaminhamentos feitos pelo professor em relação aos alunos. Outra situação recorrente é o assédio moral, ações principalmente de superiores hierárquicos, situações em que o professor é humilhado, maltratado, pressionado psiquicamente, tem suas funções alteradas, é retirado do convívio de colegas, passa a enfrentar uma postura de indiferença dos seus superiores. Também são comuns os relatos de professores atingidos por atitudes de discriminação de gênero, idade, raça, religião, ou, ainda, casos envolvendo a condição física do professor e a ameaça física, gerando risco de dano físico e moral. Ainda motiva o sofrimento do professor o assédio via Internet, caso em que o docente é exposto através de blogs, de redes sociais ou ainda de e-mails e, em menor escala, o assédio sexual – tipo de coerção de caráter sexual praticada por pessoa em posição hierárquica superior em relação a um subordinado. Uma equipe interdisciplinar (diretores e assessor jurídico do Sindicato) faz a escuta dos professores e, juntamente com esses, propõe o encaminhamento mais adequado para a busca da solução dos conflitos. Desde 2010, o Sinpro/RS incrementou essa equipe com um assessor da área da saúde. b) Reuniões da Equipe Multidisciplinar A equipe multidisciplinar do NAP reúne-se quinzenalmente para discutir os atendimentos feitos aos professores que relatam situações de constrangimento/violência, bem como para definir os encaminhamentos cabíveis. Também tem se dedicado a divulgar, entre os professores, os serviços do NAP que são disponibilizados para os professores. Nessas reuniões é feito o acompanhamento do planejamento do NAP e das atividades propostas.

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c) Roda de Conversas A atividade Roda de Conversas, realizada em parceria com o Instituto APPOA, tem como objetivo o aprofundamento dos temas recorrentes nos relatos dos professores e observação dos diretores do sindicato nas instituições de ensino. A primeira Roda aconteceu no dia 05 de outubro de 2010 com o tema “Ambiente escolar e mecanismo de fortalecimento do Professor”; em 09 de novembro de 2010, “Desautorização docente na contemporaneidade”; em 25 de maio de 2011, “Adolescentes empoderados”, coordenada pela psicanalista Roselene Gurski; em 13 de agosto de 2011, “Quebra da solidariedade no Ambiente Escolar”, coordenada pela Dra. Jacqueline Oliveira Silva; em 26 de outubro de 2011, “O sujeito do Bullying”, coordenada pelos psicanalistas Gerson Pinho e Angela Becker e, em 07 de dezembro de 2011, “Psicopatologia do trabalho do professor e da desocupação”.

Roda de Conversas realizada no dia 5 de outubro de 2010, no auditório da sede estadual do Sinpro/RS, em Porto Alegre | Foto: Igor Sperotto

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Oficina Pedagógica realizada no dia 9 de julho de 2011 sob o tema Pedagogia da Memória, na programação do Encontro de Professores | Foto: Igor Sperotto

d) Encontro de Professores O Núcleo promoveu, em 2011, dois encontros para oferecer subsídios para os professores no manejo de conflitos: um encontro no primeiro semestre, com o tema Assédio Moral, e outro no segundo semestre, oficina com o tema Pedagogia da Memória. Essas atividades propuseram a reflexão sobre a ressignificação do papel do professor na sociedade, na escola, no mundo, constituindo-se em um espaço, uma pausa na atribulada rotina do professor, com o intuito de um olhar diferenciado para suas histórias profissionais e memórias dos momentos mais marcantes da sua jornada. e) Encaminhamentos NAP Dependendo da situação apresentada, o NAP define com o

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professor o encaminhamento adequado. Desde 2010, as ações mais frequentes foram: agendamento de consulta com o advogado trabalhista conveniado com o Sinpro/RS (42,86%); avaliação psicológica (9,52%); reunião com a direção da instituição de ensino onde ocorreu o conflito (23,80%); ofício à direção da instituição de ensino, cobrando providências (11,90%); denúncia ao Ministério Público do Trabalho (7,14%); agendamento de consulta com advogado cível e/ou penalista (9,52%). Somente em 7,14% das situações não houve encaminhamento por decisão do professor ofendido. A Equipe Multidisciplinar do NAP avalia positivamente o resultado do trabalho desenvolvido, seja na escuta ao professor, que tem como consequência a reflexão mais serena sobre o acontecimento, um olhar que vislumbra um importante aprendizado, seja nos resultados das ações sindicais e jurídicas que revitalizam a concepção do seu direito à dignidade profissional.

Painelistas do Encontro de Professores sobre Assédio Moral, em junho de 2011, na sede estadual do Sinpro/RS: juiz do Trabalho, Rubens Clamer dos Santos Junior; procuradora do MPT/RS, Márcia Medeiros de Farias; diretora do Sinpro/RS, Cecília Farias; e Eduardo Mendes Ribeiro, da APPOA | Foto: Igor Sperotto

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Desamparo na educação1 Roséli Maria Olabarriaga Cabistani2

Hanna Arendt3 escreveu vários ensaios, publicados em 1954, que tratam do tema da crise na Educação, da crise de autoridade e do fim da tradição. Esses ensaios demonstram a estreita vinculação entre os três conceitos e suas transformações. Uma crise sinaliza que as respostas que tínhamos às questões se tornaram insuficientes. Na letra de Arendt: Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo, julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão.³

Ocorre que face a outras formas de configuração do laço social, tendemos a enrijecer nas respostas, buscando nos juízos 1 Versão modificada deste texto foi publicada no livro Autoridade e Violência, APPOA, Porto Alegre, 2011. 2

Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Educação (UFRGS), Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFRGS, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. 3

ARENDT, 2002.


pré-formados as certezas, diante da falta de garantias que a ameaça de desmoronamento traz. Temos considerado que, com a perda da tradição, a autoridade perdeu sua eficácia na vida pública e que esta perda invadiu o que Arendt chamou de domínio privado, ou pré-político, a saber, a família e a escola. Quais são os sintomas dessas mudanças? Muitos, podemos responder, como o aumento da violência em vários âmbitos, a dificuldade de pais e professores em bancar uma palavra educativa, as dificuldades com relação ao reconhecimento da lei, isto é, com relação ao reconhecimento da dívida simbólica com aqueles que nos antecederam; a intolerância com relação às faltas que nos impedem de gozar sem limites. Vou recortar aqui uma experiência que gostaria de compartilhar, para fazer o exercício de pensá-la tentando avançar com relação às análises que fazem coro ao discurso comum e dizem respeito à falta de autoridade e de lei. Análises essas que acabam promovendo uma espécie de clamor por mais autori- Professores participam da Oficina Pedagógica Pedagogia da Memória, em julho de 2011, no dade, mais lei e mais pai, auditório do Sinpro/RS | Foto: Igor Sperotto

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uma vez que no âmbito privado o pai é visto como responsável por fazer valer a lei e a autoridade. Desde 2010 venho realizando um trabalho de assessoria ao Núcleo de Apoio ao Professor (NAP), do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS). Esse núcleo foi criado há quatro anos, mas em maio de 2010 o registro do relato dos professores sobre constrangimentos e violências sofridas no ambiente escolar indicou um aumento significativo desses casos nas escolas particulares gaúchas. Os docentes sentem-se sem coragem de buscar auxílio, mesmo de seu sindicato, temendo que o seu problema torne-se público. Vivenciam tais situações, na maioria das vezes em silêncio “... pelo receio de que possam ser apontados como responsáveis pelos tensionamentos no ambiente educacional, com destaque para os que acontecem na sala de aula.”4 São relatadas várias formas de desrespeito ao professor, como agressões verbais ou através da Internet, agressões físicas, por parte dos alunos e também de pais de alunos. Outro fato frequente nesses relatos é a falta de respaldo que os docentes sentem por parte da instituição escolar que, preocupada em manter os “clientes” frente à concorrência, não contraria os alunos, mesmo quando isso se faz imprescindível. Frente a essas situações, o discurso dos professores é unânime em afirmar que o professor perdeu a autoridade. Uma conexão frequentemente estabelecida é a de que se nem os próprios pais têm mais autoridade com os filhos, o professor é que não vai conseguir bancá-la. Muitas são as situações em que os professores buscam o NAP e essa procura ocorre após algum episódio de constrangimento que leva o docente a não querer voltar à escola. Com frequência essas situações acontecem, envolvendo alu4

Cabistani e Farias, 2011, p17.

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nos adolescentes, e não raro os conflitos vão parar na coordenação pedagógica da escola. Um desses acontecimentos, envolvendo alunos de terceiro ano do ensino médio e uma professora, apresentou algo curioso. Após um conflito, chegaram todos juntos ao serviço de coordenação pedagógica e foram ouvidos, no mesmo espaço e hora, alunos e professora... Diante desse quadro, a professora sentiu-se muito desvalorizada. Segundo suas palavras, retirou-se e foi ao departamento de pessoal da escola pedir demissão, o que foi acolhido sem nenhum questionamento. A busca pelo NAP aconteceu no mesmo dia e foi quando a professora foi questionada se não havia se precipitado. Esse questionamento produziu uma dúvida e a oportunidade de reflexão, o que permitiu então que V. pudesse retornar à escola, da qual gostava. A instituição aceitou reverter sua demissão, após intervenção do NAP. Faço esse recorte para recolher, a partir desse acontecimento, os efeitos de uma experiência, que pode trazer algo a mais para pensar a autoridade, a crise na educação e na tradição. Não é novidade que adolescentes enfrentem os professores, que os desafiem. A novidade aqui parece ser que a resposta da professora seja, tão impulsiva e sem reflexão, a defesa de alguém encurralado em posição muito desfavorável. Tal resposta tem sido observada com bastante frequência entre os professores que buscam o NAP e percebe-se que essa situação é sobredeterminada, está constituída de uma “teia” complexa, que começa a ser tecida pela falta de diferenciação entre a palavra da criança, do adolescente e do adulto. Ao adentrarem na sala da coordenação pedagógica da escola, professora e alunos, todos ocupam o mesmo lugar. Os laços imaginários dominam a cena, onde especularmente trata-se do que diz a professora e do que dizem os alunos, sem distinção de lugares. A verdade está

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com um ou outro e não há alguém em posição de dizer dessa diferença. O recuo da professora se justifica pelo lugar que é dado aos alunos nas escolas particulares hoje. Aí sim há diferença, conferida pelo poder de consumo dos alunos e pais, vistos como clientes, em detrimento do lugar do professor, guindado à situação de objeto de consumo. Encontrar-se em posição indiferenciada com relação às crianças e adolescentes não é exclusividade dos professores, pois trata-se de um sintoma comum ao âmbito do público e do privado. Esse sintoma é correlato do individualismo contemporâneo, onde a satisfação dos desejos pessoais se sobrepõe ao laço com o outro semelhante, fazendo resistência à assunção da responsabilidade que os mais velhos deveriam ter em relação às novas gerações, conforme afirma Arendt5 ao tratar da crise da educação. Credita-se muitos desses problemas às novas configurações familiares, o que não seria suficiente para justificar a questão. É mais viável pensar que as mudanças no exercício das funções parentais sim estão vinculadas a tais sintomas, quer dizer, que mais além das recomposições encontradas nas famílias contemporâneas, as funções necessárias à constituição da subjetividade das crianças e jovens não estejam sendo realizadas pelos adultos, sejam eles os pais biológicos ou outras pessoas encarregadas do cuidado e educação dos pequenos. Assim como a professora do exemplo citado anteriormente, a experiência clínica nos permite escutar como está mais difícil sustentar a posição de adulto frente aos filhos, num mundo onde não temos mais os recursos que a tradição oferecia para fazer frente ao desamparo constitutivo humano. Referimo-nos ao desamparo psíquico inicial desenvolvido por Freud (1895)6 5 6

ARENDT, 2002. FREUD (1980 [1895]).

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desde o Projeto, onde esse afirmava que “... o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte inicial de todos os motivos morais.” 7, e também ao desamparo existencial que acompanha nossa condição humana, noção essa encontrada em toda a obra freudiana. A falta de amparo do homem moderno produziu a necessidade de um fiador imaginário, conforme afirma Mário Eduardo Costa Pereira8 em sua tese sobre o tema do desamparo na obra de Freud. Desenvolvi em minha tese de doutorado9, sobre o tema da função paterna na educação, que o ressentimento do sujeito moderno com relação à falta de garantias incide sobre esse “fiador”, identificado no pai de família, na versão da novela familiar escutada pela psicanálise. Ocorre que o pai hoje está submetido à mesma falta de garantias, encontra-se em estado de desamparo muito parecido ao do filho, o que o torna um quase semelhante, participando da mesma fratria órfã10, parafraseando o título do livro de Maria Rita Kehl. O desamparo na educação corresponde a uma crise ética que implica pensar para o que educamos, quais os princípios que nos guiam e, consequentemente, nos colocam a questão do reconhecimento da Lei. Na afirmação de Kehl, tratase da lei “... que impõe uma renúncia ao excesso de gozo, presente em todas as sociedades humanas na forma de interdição do incesto.”11 Tal lei é de origem mítica e é transmitida pela tradição, pela educação, pelas religiões, que são formações culturais que: 7

Idem, p. 336. PEREIRA, 1999 9 CABISTANI, 2007 10 KEHL, 2008 11 KEHL, 2002, p.13 8

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...tentam garantir uma certa estabilidade (simbólica) e uma credibilidade de base imaginária no que concerne à transmissão da lei de geração a geração. A transmissão, assim como a origem da lei, se inscrevem no inconsciente; sua inscrição subjetiva se dá por meio da linguagem, mas sua consistência imaginária é preservada pelas grandes formações da cultura. A incidência da lei sobre os sujeitos rouba-lhes uma parcela de gozo que é tributada à linguagem e à vida em sociedade.12

A autonomia individual, a liberdade e a valorização narcísica do indivíduo constituem-se em formas de alienação que impulsionam o sujeito ao gozo e ao consumo. Na nossa sociedade, constituída por tais pontos de ancoragem, Khel13 afirma que o sujeito acredita-se pai de si mesmo, nada devendo a seus antepassados. Isso o impede de fazer o reconhecimento do laço com seus semelhantes. Nesse sentido, a autora faz um apontamento importante ao objetivo deste trabalho, ao afirmar que a crise que se refere ao reconhecimento da lei se deve à dificuldade do reconhecimento da dívida simbólica, isto é, àquilo que pagamos por nossa condição humana, marcada pela linguagem e pela existência em sociedade. Se a sociedade tradicional, pensada por Freud em textos como O mal-estar na civilização14, caracterizava-se pela renúncia à satisfação pulsional imediata, a sociedade contemporânea é movida pelo imperativo do gozo. O que não implica no acesso pleno ao gozo, mas produz mais angústia, mais violência, como resposta ao imperativo. O que está em questão aí é nossa relação com o objeto e a dificuldade em suportar a castração. Lacan15, no seminário da 12

KEHL, 2002. p.13 KEHL, 2002 14 FREUD, (1980[1930]) 15 LACAN, (1956-57) 13

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Relação de objeto, apresenta três formas da falta de objeto – privação, frustração e castração – e no quadro rapidamente traçado anteriormente, podemos dizer que o sujeito confunde castração com privação e se crê privado pelo Outro, de um objeto que imaginariamente lhe falta. Daí a passagem ao ato violento – buscando recuperar o que supostamente lhe foi tirado, mesmo que seja destruindo o corpo do outro –, não há mais que um passo. E talvez um passo seja um intervalo muito grande, uma vez que poderia então fazer-se espaço para o pensamento, que fica abolido no agir do sujeito violento. Retornando à interrogação proposta no título deste texto, podemos pensar que as queixas atuais pela falta de autoridade dos pais, dos professores, dos governantes, perderam sua potência de oferecer alguma resposta ao sintoma contemporâneo de desamparo. Trata-se da demanda por um fiador/pai imaginariamente forte, que ninguém está em condições de sustentar sozinho hoje. Seria uma posição mais produtiva tomar o que Arendt e outros filósofos, preocupados com o tema da ética e da política, propõem tematizar como responsabilidade e aproximar esse conceito ao de dívida simbólica pensado pela psicanálise. A dívida simbólica concerne a todos os sujeitos, homens e mulheres, mães e pais, educadores e cidadãos em geral, por sua condição de adultos falantes. Costa16 argumenta que é a transmissão da experiência que confere autoridade ao vivido. É preciso o endereçamento a um outro, o que justamente aponta à insuficiência do sujeito que enuncia e à insuficiência do Outro. Ao pensarmos na função do professor e de seu aluno, podemos argumentar que ao transmitir conteúdos curriculares, para que o conhecimento produza efeitos de sentido, que marque o aluno, se faz necessário que o 16

COSTA, 2000

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professor transmita algo da ordem do vivido, da experiência mesmo. É nesse esforço que o professor transmite sua própria insuficiência, isto é, que sua autoridade não está dada, mas que pode vir a se sustentar graças a essa experiência de compartilhamento. Ele transmite então sua falha e possibilita que seus alunos questionem os limites de seu saber. Ao fazê-lo, o aluno encontra a possibilidade de inserir-se nesse encontro como alguém que, estando em formação, também pode produzir saber, um saber sempre incompleto, como todo o saber humano. Trata-se de uma posição ética a ser resgatada, para não ficarmos a repetir que a autoridade do educador está em crise. Essa queixa é ouvida frequentemente nas instituições escolares e as preocupações com a ética, tomadas desde tal perspectiva, acabam inevitavelmente provocando intervenções autoritárias corretas do próprio desamparo, na tentativa de resgatar a autoridade da tradição, que na contemporaneidade não é mais possível. A consequência de tais intervenções é a produção de atos violentos por parte dos educandos, que respondem especularmente ao autoritarismo das instituições educativas, sejam elas escolares, agências socioeducativas, de natureza governamental, jurídicas ou mesmo intervenções do próprio grupo familiar. O diálogo entre psicanálise e educação pode abrir um importante campo de reflexão, que vá mais além da constatação da falta de autoridade – que para nada parece ser produtiva e faz coro a uma resistência em trabalhar com as mudanças na nossa cultura, ancorando-se numa espécie de nostalgia de um tempo, que por efeito de alienação, é lembrado como feliz e onde tudo andava bem. Essa posição vem produzindo verdadeiras previsões apocalípticas sobre o futuro da educação, geradoras de uma paralisia estéril e ignorância nas intervenções junto às crianças e jovens. Se o discurso psicanalítico possibilita pensar a

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questão da diferença e a necessidade de quem educa responsabilizar-se pela educação dos pequenos, isto é, reconhecer a dívida simbólica, parece-me que este poderia ser o foco para pensar o ato educativo. Na experiência do Núcleo de Apoio ao Professor temos testemunhado que o fato de haver uma instância capaz de intervir e fazer alteridade entre a direção e serviços da escola, a partir de uma questão trazida pelo professor, faz toda a diferença na forma como este pode se reposicionar diante de seus alunos, dos pais de seus alunos e da própria instituição escolar. Os laços sociais, tão modificados na modernidade, ainda são imprescindíveis para que possamos dar conta daquelas funções onde a convivência com o outro não pode ser abandonada e a educação é uma delas.

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Referências ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva,2002. CABISTANI, R. e FARIAS, C. Violência contra o professor, violência contra a educação de qualidade. P.16- 21. in: Revista Textual / Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul. V.1, n. 13 (abril/2011) – Porto Alegre: Sinpro/RS, 2011 CABISTANI, Roséli Maria Olabarriaga.(2007) Sentidos da função paterna na educação. Tese de Doutorado – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre. COSTA, Ana M. M. Autoridade e legitimidade. In: KHEL, Maria Rita. et al. Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895). In: FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 1. ______. O mal-estar na civilização (1930). In: ______. Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 21. KHEL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______.A fratria órfã: conversas sobre a juventude.. São Paulo: Olho d’Agua, 2008. LACAN, J. Seminário 4: A relação de objeto (1956-57). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. PEREIRA, Mário Eduardo. Pânico e desamparo:: um estudo psicanalítico. São Paulo: Editora Escuta, 1999.

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O mal-estar na educação em análise1 A proposta deste texto é pensar a cena educativa a partir das histórias narradas por professores, escutados num momento tão particular e delicado, qual seja, o tempo de elaborar sua demissão da instituição de ensino a que pertencia e pensar uma necessária reinserção profissional. Essa escuta também foi permeada pelo discurso da instituição escolar que, em alguns momentos, estabeleceu uma relação de distanciamento e negação do sofrimento causado no ato de rescisão contratual, pois o fazer do professor envolve afetividade, desejos e realizações que vão além de uma simples atividade burocrática. Outro personagem desta história é o Sindicato dos Professores do Ensino Privado – Sinpro/RS, que possibilitou a realização dessa intervenção. No período de dezembro de 2010 a março de 2011 foi realizado um acompanhamento psicológico dos professores em processo de rescisão no Sinpro/RS. Durante este período, em que foram atendidos aproximadamente mil professores, uma escuta foi feita por uma equipe de psicólogas e psicanalistas e ao final, ao reunir toda essa experiência, bem como os discursos dos professores, uma questão se sobressaiu, a do mal-estar na 1

Texto escrito pela equipe que atuou no atendimento aos professores no momento da homologação das rescisões junto ao Sinpro/RS: Aidê Ferreira Deconte, Ana Cristina Teixeira, Marlene Rama Fiorini e Márcia Vitorello.


educação. O universo da educação é complexo e envolve alunos, professores, a instituição escolar e a própria sociedade, porém tomamos o recorte do mal-estar ali enunciado. Sendo assim, algumas questões foram propostas, como: O que acontece na educação contemporânea onde esse mal-estar é vivenciado por quase todos os professores? Que outros personagens permeiam esta relação? Sabemos que a escola é uma instituição onde circula um discurso social, é atravessada pela cultura e funciona como uma mediadora entre a família (vida privada) e a sociedade (vida pública). Então, qual seria o papel do professor na atualidade? A escuta de um discurso, o do professor, foi o que nos possibilitou uma leitura daquilo que estava sendo enunciado, assim como permitiu refletir sobre a palavra no contexto educacional/ escolar e no contexto educativo, como ideal familiar/social. Esta reflexão tem como objetivo pensar a conexão entre a psicanálise e a educação, sem pretensões de dar respostas ou de aplicar a teoria à pedagogia, mas de trazer reflexões, lançar questões em algo já constituído. A educação vem passando por transformações ao longo do tempo e essas não ocorrem sem conflitos, tanto em relação à função social quanto ao lugar de mestria. Estar no papel de educador significa assumir uma certa posição frente ao mundo, implica desejar o desejo de aprender do aluno. E isso também não ocorre sem produzir resistências, num mundo onde as instituições privadas fazem imposições ao trabalho do professor, comprometendo seu próprio desejo. Acreditamos que esse mal-estar vivido pelo educador é um entrelaçamento entre as condições subjetivas e as condições histórico-culturais. Segundo Freud, a civilização é construída a partir da renúncia à satisfação imediata dos desejos2, e isso não é sem efei-

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tos. O homem, ao abrir mão de parte desta satisfação para viver em comunidade, lida o tempo todo com uma certa tensão oriunda desse impasse. Num dos principais textos sobre a cultura, “O mal-estar na civilização” (1930), o pai da Psicanálise situa a principal causa do mal-estar justamente na relação com o outro. E através da escuta dos professores pudemos constatar que o trabalho também é uma fonte de sofrimento, pois coloca o professor diante de novas e contraditórias exigências. O papel do professor exige dele um certo posicionamento diante dos alunos em sala de aula, exige um equilíbrio psíquico, uma variedade de papéis a desempenhar como mestre, amigo e mesmo familiar. Estar nesse lugar convoca a uma exposição de suas emoções, mesmo os mais terríveis afetos. Sem falar na relação afetiva que se cria entre aluno e professor, sendo este último, segundo Freud, o herdeiro do lugar dos pais, do pai em particular. Esta relação, Freud denominou de transferência, a qual quando se instala torna o professor um depositário de algo que pertence ao aluno. O excesso de demanda endereçada ao professor, derivado da escola, dos pais e da sociedade, leva-o a assumir responsabilidades que vão além do seu métier. Quase tudo passou a ser responsabilidade do professor, gerando constante angústia. O espaço de troca com os alunos, com os pais, com a escola, com seus pares, vem sendo reduzido; o reconhecimento da sua profissão vem diminuindo gradativamente com o tempo, levando a um desestímulo, falta de energia, e instalando uma intranquilidade no seu fazer. As instituições escolares nem sempre disponibilizam um lugar de escuta, ou seja, um espaço onde a angústia do professor possa circular através das palavras e experiências de cada um, 2

O que em Psicanálise se chama pulsão.

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um tempo para refletir e elaborar um turbilhão de sentimentos vividos no seu dia a dia. Sem falar do trabalhar isoladamente de cada professor, situação imposta pela especificidade deste labor, e a falta de oportunidade de ressignificar sua angústia na troca com seus pares, o que pode levar ao adoecimento psíquico ou corporal. Debieux Rosa (2004), ao escrever sobre a contribuição da pesquisa em psicanálise, nos diz “Constata-se que, se na análise do sintoma deve-se escutar o não dito do discurso do sujeito, cabe acrescentar a força de determinação dos não-ditos dos enunciados sociais”. (p. 340). É no não dito que se instala o mal-estar, pela impossibilidade de dar novos significados aos acontecimentos e ao seu próprio desejo, fragilizando sua atuação. Incapacitando-o até mesmo de uma reação criativa e produtora de um novo fazer, além de inibir a (re)invenção de estratégias para enfrentar as diversas situações que se colocam no seu cotidiano profissional, impedindo o prazer de educar. Será que esse mal-estar tem alguma relação com a afirmação de Freud que “educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível”? Uma leitura superficial pode levar a pensar que haveria aí uma desistência do autor, um pessimismo, mas ela aponta, sobretudo, para os limites do ato educativo e da função do educador. E contemporaneamente, as demandas ao trabalho educativo são bem mais significativas, devido ao lugar que a Educação vem ocupando. Por outro viés, é possível pensar o mal-estar na educação como consequência da primazia do poder econômico. O mundo pós-moderno possui novas leis de mercado traduzidas na luta pela conquista do consumidor, o qual está agora no centro do cenário. Essa nova ordem alterou as formas organizacionais de instituições como a Escola, que sempre foram alicerçadas sobre a preocupação com a formação de pessoas. Desta forma, a demanda de como as

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coisas tem que ser vem de fora, do cliente com um nível de exigência difícil de ser atendido. Então podemos pensar que somente as famílias, aqui colocadas como clientes, estariam ditando o novo funcionamento? Para alguns professores, escutados por nós, havia a constatação de que ao longo do ano a fala de algumas escolas era uma fala conservadora: “somos uma grande família”, mas no momento da demissão tudo isso caía por terra. Portanto, um discurso contraditório na medida em que enfrentaram frieza e indiferença por parte das escolas, naquele momento em especial, trouxe a sensação de serem invadidos por sentimentos de traição e descartabilidade. Sentiram-se como peças dispensáveis de uma engrenagem empresarial qualquer, aumentando consideravelmente seu sofrimento. Como adverte Baumann, “O controle sobre o presente e de seu próprio destino é o que mais falta às pessoas que vivem em nosso tipo de sociedade”. (2001, p. 191). O afastamento brusco sem nenhuma sinalização anterior pode colocar o professor, ou qualquer outro profissional, numa situação de desamparo. Podemos pensar que em certa medida foram afetados em sua identidade, tendo em vista o tempo que estavam na Instituição, na adesão àquela “família” e as dificuldades que encontrariam para se colocar novamente no mercado de trabalho. Ficaram sem um lugar de reconhecimento social, embora, para eles, o lugar de professor seja um lugar desvalorizado, mas ainda um lugar. Além disso, uma nova identidade não se constrói rapidamente. Numa sociedade que prioriza o individual e o descartável, os acessos aos projetos de vida, como nos diz Baumann (2001), estão derretendo com rapidez, ou seja, não são os indivíduos que estão em movimento, mas as linhas de chegada nas pistas em que correm. As identidades buscadas hoje precisam ser adotadas e descartadas como vestimentas.

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Nesta construção precária, a desconfiança e o medo da perda brusca do que já se conquistou, ou se almeja, persegue a todos. Quando o indivíduo não consegue lidar com as situações que por algum motivo são percebidas como ameaçadoras, são desencadeados processos inconscientes, que permitem à mente encontrar uma solução para estes conflitos, não resolvidos no nível da consciência. O trabalho proposto pelo Sinpro/RS teve como resultado positivo o suporte que foi possível oferecer à angústia dos professores que vinham ao Sindicato homologar sua rescisão de trabalho. Parece que conseguimos absorver em alguma medida durante estes encontros, embora de forma pontual mas com pressupostos psicanalíticos, a angústia direcionada ao Sindicato, até mesmo em relação aos representantes das escolas, pois ao ficarem “fora da cena” (pois esta foi uma das construções que fizemos: separá-los fisicamente de sala), de alguma forma teve efeito de corte necessário entre os professores e suas, até então, instituições de ensino. Corte simbólico que mediou o corte real sofrido pelos professores, da equipe da escola. Neste texto procuramos contar um pouco de nossa experiência junto ao Sinpro/RS, que, por permitir uma aproximação com a psicanálise, oportunizou uma transferência de trabalho, o que vem confirmar o que Freud afirmava em 1913: “... meu objetivo será atingido se eu tiver deixado claras as muitas esferas de conhecimento em que a psicanálise é de interesse e os numerosos vínculos que começou a forjar entre elas.” (pag.226). E, finalizando ainda com Freud (1913-14): “... como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente”. E assim, saímos todos certamente enriquecidos a partir desta experiência tecida com palavras e escutas.

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Referências Bibliográficas AGUIAR, Rosana Márcia A. ALMEIDA, Sandra Francesca Conte. Mal-estar na educação – O sofrimento psíquico dos professores. Juruá editora. Curitiba. 2008 BAUMANN, Zygmunt. Sociedade individualizada. Zahar. RJ. 2004. BAUMANN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Zahar. RJ. 1997. FREUD, Sigmund. (1913-1914) Algumas Reflexões sobre a psicologia escolar. Edição Eletrônica das Obras Completas. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (1930). In Obras completas. RJ. Imago. 1972. KUPFER, Maria Cristina. Freud e a Educação. Ed. Scipione. SP. 2005. RICKES, Simone Moschen. STOLZMANN, Marianne Montenegro. Do dom de transmitir à transmissão de um dom. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Psicanálise e Educação: uma transmissão possível. Nº 16. Porto Alegre. 1999. ROSA, Miriam Debieux. Pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos. Metodologia e fundamentação teórica. Revista mal-estar e subjetividade, Fortaleza, V. IV, n 2, p.329-348/set.2004.

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A violência simbólica e as condições de trabalho do professor do ensino privado Fátima Áli1

Introdução Este artigo propõe uma leitura do conceito de “violência simbólica”, de Pierre Bourdieu2, aplicada às relações de trabalho e ao cotidiano profissional do professor. Em sua obra3, cujo objeto de investigação são as instituições escolares francesas, Bourdieu apontou um jogo de dominação e reprodução de valores dentro da escola, espaço onde – segundo ele – as desigualdades sociais se reproduzem e se perpetuam. Tal tese, criticada por muitos pelo seu tom demasiado pessimista, derruba a imagem da escola como um espaço neutro, democrático, onde as diferenças “lá de fora” são eliminadas para dar lugar à igualda1

Professora, Mestranda em Letras (Ufrgs, 2012) e ex-diretora do Sinpro/RS.

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Pierre Félix Bourdieu (Denguin - França, 1o de agosto de 1930 – Paris - França, 23 de janeiro de 2002), sociólogo, professor do Collège, conhecido pelas críticas à mídia, aos governos de esquerda da Europa e à globalização. Costuma ser incluído na tradição francesa do intelectual público e combativo, a exemplo do escritor Émile Zola (18401902) e do filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980).

3 Especificamente, A Reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino, escrito em parceria com Jean-Claude Passeron (1982).


de de oportunidades. A leitura proposta aqui não tem como foco a escola – instituição de ensino; aqui essa instituição é somente o cenário onde atua o profissional que, este sim, é o cerne desta discussão: o professor. Se, para Bourdieu, o professor é um agente da reprodução dos valores da elite da sociedade, a serviço da instituição escola, aqui nos interessa o professor, visto como alvo da violência simbólica – ou, em outras palavras, como vítima – nas condições de trabalho impostas a ele não só pelo poder patronal mas também pela sociedade como um todo. I – Violência simbólica – o que é? Entre os importantes legados do sociólogo Pierre Bordieu certamente está a concepção – surpreendente para muitos – de que a cultura não é uma só. E não poderia ser, já que, segundo o pensador francês, está sempre vinculada aos interesses de vários grupos, posicionados em degraus diferentes nas relações de poder. O indivíduo forma o seu capital cultural, seu conjunto de conhecimentos, valores e padrões de comportamento, inicialmente, na família; logo em seguida, na escola – ou melhor, na educação formal (escolas, universidades). Chegamos, então, à educação, que é o objeto de análise do sociólogo. Segundo ele, o que a escola faz, enquanto instituição, é reiterar e reproduzir “uma” das culturas: naturalmente, a da classe dominante. Desde os anos iniciais, os conteúdos constantes nos programas escolares são planejados e organizados a fim de que se identifiquem com o capital cultural da classe dominante. Em outras palavras, é papel da escola reproduzir aquilo que, para aquela classe, tem valor social, remete a prestígio e poder. (Nesse contexto, poderíamos conjecturar que o uso da

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Internet, por exemplo, nas escolas é muito mais que – simplesmente, como parece – um recurso tecnológico a serviço da educação...). Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron criaram, então, o conceito de “violência simbólica” para descrever esse processo, por meio do qual a classe que detém o domínio econômico reforça seu poder – não pela truculência da força bruta, mas, sutilmente, por meio da escola e da mídia – ao impor sua cultura às outras classes. Segundo os autores do conceito, a violência simbólica é “insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última análise, do sentimento”. Tal imposição não usa a força, como dissemos, mas a dissimulação: a partir daí, passam a ser naturais e acabam legitimando-se regras, padrões de comportamento, valores culturais. Partindo dessa concepção, o objetivo dos dois sociólogos era chegar à tese de que a escola (ao menos na França, espaço de estudo dos dois) não é uma instituição democrática em que todos têm as mesmas oportunidades. O indivíduo oriundo de uma família que pertença à classe dominante, segundo a tese, certamente trará para a escola uma boa bagagem daquele capital cultural – a qual só será enriquecida com o que ele receber da escola: ele muito provavelmente chegará à escola com razoável domínio, por exemplo, da norma linguística padrão, ou das regras de socialização, ou do funcionamento dos aparelhos eletrônicos do momento, seja um celular de última geração, um tablet, um DS ou um Wii. Os que não chegam à escola com tal bagagem sofrerão as dificuldades do difícil aprendizado e as sanções reservadas aos que “não aprendem”, mas – sobretudo – sofrerão resignados, pois a violência simbólica nada mais é do que a

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adesão dos dominados às teses do poder dominante. Inúmeras situações do dia a dia são exemplos de violência simbólica. Quando um anúncio publicitário de determinado brinquedo, na televisão, encerra com a pergunta “Você não vai querer ser o único a não ter um, não?”, a criança – cuja família não tem condições de adquirir tal produto – está sofrendo violência simbólica. E ela insistirá para que seus pais lhe deem o brinquedo, pois a televisão “disse” que ela deverá ter um desses se quiser fazer parte do grupo de crianças “felizes”. Da mesma forma, a jovem da periferia que compra uma bolsa – fabricada na China, mas com uma falsa etiqueta de um estilista francês – também sofre desse tipo de violência, pois acredita, ou aprendeu a acreditar, que o logotipo estrangeiro, mesmo que não legítimo, é imprescindível para inseri-la no mundo “da moda”. Esses dois exemplos são da ordem do consumismo, um dos pilares da nossa sociedade, mas em muitos outros segmentos podemos perceber esse fenômeno, como na arte: quem diz que gostar do tipo de música X é “mais bem visto” que gostar do tipo Y? Hoje, há um patrulhamento constante nas relações sociais em geral, a fim de não se permitirem posturas ou ações politicamente incorretas: por exemplo, dificilmente serão ouvidas, num grupo, piadas racistas, sexistas ou homofóbicas, como seria comum há não muito tempo. Tais piadas, em outro tempo, poderiam ser contadas inclusive pelas próprias “vítimas” do preconceito: isso, no entanto, não atestaria sua capacidade nata de rir de sua própria condição, mas sim a aceitação da depreciação de sua condição.

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II – A violência simbólica no cotidiano profissional do professor Deslocando nossa análise para o ambiente do ensino privado brasileiro – e especificamente do Estado do Rio Grande do Sul – encontramos ali um profissional não raro subjugado pelas condições extenuantes de trabalho. Segundo artigo do portal do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro/RS), os professores (...) frequentemente são expostos a situações de violência, que se expressa desde o desrespeito por parte dos alunos até a desconstituição da sua autoridade pelas direções. A compreensão equivocada de “aluno cliente” na escola privada alimenta a dificuldade para transformar o ato violento em conteúdo pedagógico, que deve ser trabalhado pelas direções de escola, professores, alunos e a família. (...) A postura de colocar “embaixo do tapete” as situações violentas é um desserviço à educação, fato confirmado pelo recorrente relato de professores submetidos a situações de constrangimento. (FARIAS, 2008)

Além dessas situações citadas, como desrespeito por parte dos alunos, desconstituição da autoridade do professor por parte dos superiores hierárquicos – problemas talvez resultantes da aplicação das leis do marketing à instituição escola, agora vista como uma empresa que oferece seu produto (educação) a um cliente (aluno e sua família) –, há ainda uma outra situação a pesar sobre esse profissional: a sobrecarga de trabalho. Indubitavelmente, o professor (sobretudo o da Educação Básica das instituições privadas) é o único profissional que tem uma significativa sobrecarga de trabalho cumprida fora do espaço profissional e não remunerada. Outros profissionais podem, eventual ou circunstancialmente, levar trabalho para casa; o professor leva

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sempre, pois sua atuação em sala de aula depende do que planejou, preparou ou avaliou antes, em horário extraclasse. Essa rotina é compreendida pelo senso comum (compreensão da qual se beneficia o setor patronal) como inerente ao trabalho do professor, mas, na verdade, há inúmeros estudos que comprovam que foi construída historicamente. Não está longe o tempo em que se definia a atividade docente mais como “missão sagrada” ou “sacerdócio” (portanto, uma missão pela qual abre-se mão de todo o resto: vida pessoal, tempo, remuneração) do que como “profissão”. Essa era uma visão que desconstituía o docente como um “trabalhador” e, consequentemente, o constrangia a não (re)agir como tal. Tanto é assim que, somente nos anos 1960, no Brasil, os professores passaram a usar métodos de luta típicos das classes operárias, como as greves, as paralisações, as passeatas, etc., provavelmente estimulados por outros tantos movimentos de trabalhadores da época. Casualmente, as décadas de 1960, 1970 e 1980 foram a “época de ouro” das lutas dos professores do ensino privado por direitos trabalhistas. Da abertura política até nossos dias, essa categoria vem perdendo cada vez mais a capacidade de mobilização, muito provavelmente por causa da ausência de uma “identidade de classe”: suas reivindicações, sempre mediadas pela representação sindical, restringem-se às campanhas salariais e a uma ou outra batalha isolada para não perder direitos conquistados. No setor público, por sua vez, a capacidade de mobilização dos professores existe, e a categoria a usa, geralmente, para reivindicação salarial4. Por que a diferença? Porque, no setor público, a visão de educação como mercado ainda não chegou – há outros problemas, como a já antiga falta 4

Exemplo é o já antigo embate, no RS, entre professores da rede estadual de ensino (uma das categorias mais mal remuneradas no funcionalismo público) e o governo do Estado.

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de investimentos no setor, mas são relativos a políticas e erros governamentais. No setor privado, pode-se dizer que é uma concepção – equivocada – de categoria profissional a principal causadora do desconforto que é ser professor hoje. Se o conceito de violência simbólica serve para representar a submissão de um sujeito a uma ideia, sem coerção e sem uso da força, podemos aplicá-lo perfeitamente à compreensão que a sociedade tem – além dos próprios professores – do que seja, de fato, atribuição do profissional docente. O que há hoje é um profissional que interiorizou uma jornada dupla ou tripla de trabalho, não remunerada, entendida como “inerente ao ofício”. Esse entendimento serve (e é por isso que se mantém, a despeito da evolução das relações de trabalho) aos setores patronais. Muito provavelmente, as outras situações de violência expostas antes, muito mais “visíveis”, são resultantes também desse entendimento (a que chamamos aqui de violência simbólica), haja vista que esse perfil de professor é adequado para a concepção de escola vigente hoje em nossa sociedade. Enquanto essa concepção não for revista, correm riscos o professor, como profissional, e a própria a escola, como instituição e como valor de uma sociedade.

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Referências APPLE, Michael W. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. BARBOSA, Sandra Jacqueline. A intensificação do trabalho docente na escola pública. Disponível em: http://hdl.handle.net/10482/4208 (Acesso em 25/02/2012). BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. FARIAS, Cecília Martins. Violência e educação. Disponível em: http://www.sinprors.org.br/arquivos/Artigo_Cecilia_abril08 (Acesso em 25/02/2012).

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Do exercício do poder diretivo e o respeito à dignidade do empregado Luciane Lourdes Webber Toss1

Parafraseando a escritora francesa Fred Vargas, às vezes escrever é fracassar. Isto porque este artigo trata de retomar certos limites éticos na ação dos empregadores. Como veremos, a legislação que veda qualquer atitude discriminatória, humilhante ou vexatória aos trabalhadores tem mais de 15 anos e ainda é ignorada, inclusive quando os empregadores são instituições de ensino. Os professores têm sofrido com os mais diversos mecanismos de pressão no local de trabalho. É necessário lembrar, mesmo que isso possa nos envergonhar, que o conceito de dignidade é extensivo aos professores no seu local de trabalho. 1. Da dignidade como princípio norteador do direito e da ação A dignidade possui uma função hermenêutica, atuando na interpretação de todo o sistema jurídico. Funciona como parâme1

Advogada. Assessora Jurídica do Sinpro/RS. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Unisinos e Doutoranda em Direito Público pela Universidad de Burgos, Espanha.


tro de valoração a orientar a compreensão das normas constitucionais, de modo que o exercício do poder diretivo do empregador deve ser conciliado com o respeito à dignidade do empregado. Os direitos fundamentais são oponíveis nas relações priva2 das , notadamente naquelas em que há desigualdade entre as partes, como ocorre no contrato de trabalho. O respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais, aqui incluído o da liberdade de expressão, constitui um mínimo ético a ser observado pela sociedade. O artigo segundo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece o conceito de empregador como sendo a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. Um dos mais importantes efeitos próprios do contrato de trabalho é o poder empregatício. Como leciona Maurício Godinho Delgado, esse poder exterioriza-se nas dimensões diretiva, também conhecida como organizacional, disciplinar, regulamentar e de controle. Segundo o jurista, o poder diretivo do empregador: “É o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaço empresariais internos, inclusive o processo de trabalho adotado no estabelecimento e na empresa, com a especificação e orientação cotidianas no que tange à prestação de serviços” (DELGADO, 2006)3.

Arnaldo Sussekind4 elenca como direitos do empregador, 2 MENDES, Gilmar. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na Ordem Constitucional. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ Centro de Atualização Jurídica, n° 10, janeiro, 2002. 3 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do trabalho. 5 ed. São Paulo: LTr, 2006. p. 629. 4

SUSSEKIND, Arnaldo ... [et al.]. Instituições do direito do trabalho. vol. 1. 21 ed. Atual. São Paulo: LTr, 2003. p. 243.

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potencialmente existentes, os poderes de direção e de comando, de controle e de aplicar penalidades disciplinares. O poder empregatício atua, propriamente, sobre a forma de prestação de serviços realizada pelo empregado. Para os que defendem a natureza jurídica de direito-função, a atuação do empregador deve ser direcionada não apenas para a concretização dos seus objetivos, mas também não causar prejuízos aos trabalhadores. Obriga-se, também, a tutelar e agir em benefício dos obreiros e da comunidade, de acordo com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, norteadores da relação de emprego. O empregador pode exercer o poder de controle sobre a prestação da atividade pelo obreiro, a fim de verificar o atendimento da prestação de serviços contratada. Esse poder, se utilizado de forma desvirtuada, pode promover graves afrontas aos direitos fundamentais dos trabalhadores. No caso de desvirtuamento do poder de controle, ao empregado cabe o direito de resistência (SARAIVA, 2006)5. Ressalte-se que o empregado pode, legitimamente, negarse à obediência de ordens contrárias ao direito, alheias à prestação do serviço, oriundas de pessoas não legitimadas, bem como de exigências de condutas que afrontem os seus direitos de personalidade. Esses direitos são tutelados em todas as suas dimensões: integridade física (direito à vida, à higidez corpórea), moral (direito à intimidade, à imagem, à honra, à liberdade civil, política) e intelectual (direito de autoria, direito à liberdade de pensamento). Todos são oponíveis ao empregador. Não lhe é permitido atentar contra a dignidade do obreiro. Em todos esses casos, o empregado pode exercer o seu jus resistentiae. 5 SARAIVA, Renato. Direito do Trabalho para concursos públicos. São Paulo: Método, 2006.

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2. Direitos Fundamentais no Contrato de Trabalho Como ressalta Flávia Piovesan, “todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e são interdependentes entre si”6. Arion Sayão Romita7 conceitua os direitos fundamentais como sendo: “aqueles que, em dado momento histórico, fundados no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, asseguram a cada homem as garantias de liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça” (ROMITA,2007) .

Os direitos fundamentais são o sustentáculo do ordenamento jurídico estatal. Os demais direitos devem ser interpretados e construídos à luz dos direitos fundamentais. Para a concepção comum, a fundamentalidade advém de valores comuns protegidos no âmbito de outros sistemas jurídicos e no direito internacional. Não obstante os direitos fundamentais tenham surgido para limitar o poder estatal (eficácia vertical), eles também podem ser invocados perante particulares (eficácia horizontal)8. No caso da relação entre empregadores e empregados, podemos nos valer da definição de Daniel Sarmento9: 6 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. p. 151. 7

ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 2 ed. ver. e aum. São Paulo: LTr, 2007. p. 45.

8 DIMITRI, Dimoulis; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 9 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e relações privadas. 2 ed. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 329.

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“Um dos parâmetros importantes nesta questão liga-se ao grau de desigualdade fática entre as partes da relação jurídica. A assimetria do poder numa determinada relação tende a comprometer o exercício da autonomia privada da parte mais fraca, expondo a um risco maior seus direitos fundamentais. Por isso, quanto mais a relação for assimétrica, maior será a vinculação da parte mais forte ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada. Sem embargo, mesmo nas relações tendencialmente iguais, os direitos fundamentais incidem, para impor um mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana, que é irrenunciável” (SARMENTO, 2006).

Essa vinculação se dá, de forma inequívoca, na relação de emprego, em face da assimetria existente entre as partes. O poder diretivo e a subordinação jurídica geram uma posição de inferioridade fática. A autonomia da vontade do trabalhador encontra-se mitigada, sendo o pacto empregatício tipicamente de adesão. Por esta razão, alguns doutrinadores, de forma coerente com a defesa dos direitos fundamentais, lhe atribuem eficácia direta, sem necessidade de intermediação do legislador ordinário para a efetivação dos direitos fundamentais. A Carta Magna de 1988 estabelece a prevalência dos direitos humanos e a eficácia imediata dos direitos fundamentais, nos termos do art. 5º, §1º. Não faz qualquer restrição ao alcance nas relações privadas, e deve ser interpretada de acordo com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e da unidade. 3. Limites internos e externos aos poderes do empregador. Compatibilização entre direitos fundamentais Assim como os demais direitos fundamentais, o direito de propriedade, previsto no art. 5º, XXII da Constituição, não é

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ilimitado. Possui limites internos e externos. Os primeiros residem na própria natureza do direito e a forma de exercê-los. Somente são protegidos quando exercidos de forma regular, vedado o abuso de direito. A conduta deve pautar-se na boa-fé. O balizamento para a solução dos conflitos entre os direitos fundamentais deve ser o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e dos direitos humanos. Possui uma função hermenêutica, atuando na interpretação de todo o ordenamento jurídico. Conforme observa Flávia Piovesan, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional10. Ingo Wolfgang Sarlet conceitua a dignidade como “uma qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado11”. Márcio Túlio Viana12 elenca diversos limites constitucionais ao poder diretivo do empregador. Analisando, primeiramente, o art. 5º da Carta Magna, afirma que o empregador não pode discriminar o trabalhador (incisos I e VIII); obrigá-lo a fazer ou não fazer senão em virtude de lei (inciso II); submetê-lo a tortura e a tratamento desumano ou degradante (inciso III); impedir a manifestação do seu pensamento (inciso IV); violar a sua liberdade de consciência e crença (inciso VI); bem como a sua intimidade, honra, imagem e vida privada (inciso X); obrigá-lo a associar-se ou impedí-lo de 10

PIOVESAN, Op. cit., p. 27.

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. ver. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 118. 12

Op. cit., p. 119.

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o fazer (incisos XVI, XVII e XX); obstar o acesso à justiça (incisos XXXIV e XXXV), dentre outros. Como salienta Romita, os direitos fundamentais exercem dupla função: limitam o exercício do poder do empregador no curso da relação de emprego e representam barreira oposta à flexibilização das condições de trabalho mediante negociação coletiva. Acrescenta o jurista: “Os direitos fundamentais dos trabalhadores (portanto, direitos indisponíveis em caráter absoluto, insuscetíveis de renúncia, mesmo em sede coletiva), são os seguintes: direitos da personalidade, liberdade ideológica, liberdade de expressão e de informação, igualdade de oportunidades e de tratamento, não discriminação, idade mínima de admissão no emprego, salário mínimo, saúde e segurança do trabalho, proteção contra a despedida injustificada, direito ao repouso (intervalos, limitação da jornada, repouso semanal remunerado e férias), direito de sindicalização, direito de representação dos trabalhadores e sindical na empresa, direito à negociação coletiva, direito à greve, direito ao ambiente de trabalho saudável” (Op. cit., p. 422).

O poder empregatício não dá direito à violação dos direitos da personalidade do trabalhador. A inserção do empregado no contexto empresarial não mitiga a eficácia dos seus direitos fundamentais. Podem ser exigidos o respeito à dignidade, e no caso específico, o direito à livre manifestação do pensamento e de organização para defesa dos interesses dos trabalhadores no local de trabalho. Em consonância com o princípio da igualdade, a legislação pátria repudia discriminações atentatórias aos direitos fundamentais dos trabalhadores. A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da igualdade nas dimensões formal (igualdade perante a lei, art. 5º, I) e material (igualdade na lei, art. 3º, IV).

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Tem como objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A proibição da discriminação, como vertente negativa do princípio da igualdade, é enfatizada no art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII da Carta Magna. O art. 5º, inciso XLI da Lei Maior estabelece que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. A Constituição Federal, no seu art. 5º, incisos IV, VI e VIII, garante a liberdade de pensamento e de convicção religiosa, filosófica ou política. Essa liberdade deve ser vista também na sua dimensão negativa, podendo o trabalhador ocultar o seu pensamento, a sua crença, a sua convicção e a sua ideologia ou manifestá-las somente perante um grupo de pessoas que lhe convier. 4. Da Vedação de Despedimento Discriminatório O legislador constituinte de 1988 procedeu à positivação de vários direitos fundamentais, com o intuito de dotá-los de maior efetividade. Pode-se citar, como exemplos, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho enquanto princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, 1°, III); o objetivo de promover o bem de todos, independentemente de origem, raça, cor, idade e toda e qualquer forma de discriminação (CF, 3°, IV); a liberdade e a igualdade entre todos, inclusive entre homens e mulheres (CF, 5°, caput e I); proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (CF, 7º, XXX); justiça social assegurada pela redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego (CF, 170, VII e VIII).

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A proteção ao princípio da não-discriminação não fica restrita à Constituição Federal. O legislador, visando dar maior amplitude e delimitação ao tema, atuou na confecção de vários dispositivos legais, alguns de caráter geral, outros com direcionamento mais preciso, visando complementar o texto constitucional. Dentre os princípios e as normas internacionais do trabalho, encontram-se os direitos à não discriminação no trabalho, matéria expressa na Convenção nº 111, aprovada na Conferência Internacional do Trabalho13, em 1958, e ratificada pelo Brasil em 1968 (Decreto Legislativo n.º 104 24/11/64 e Decreto de Promulgação n.º 62150 19/01/68)14. A Convenção nº 11115 fixa alguns parâmetros que facilitam o trato das questões jurídicas envolvendo o problema da discriminação no trabalho, ou, em outras palavras, da ausência de igualdade no trabalho. Ou seja, enumera as hipóteses em que ocorre discriminação em matéria de emprego e profissão, delimita o campo de incidência dos termos emprego e profissão, estabelece as obrigações dos Estados-membros, enumera hipóteses que não serão consideradas discriminatórias e fixa as regras de sua ratificação, vigência e denúncia. A Convenção 111 da OIT, ratificada pelo Brasil, regula genericamente a discriminação, proibindo-a em todas as suas formas e por qualquer motivo:

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Desde a sua criação pelo Tratado de Versalhes em 1919, passando pela Declaração da Filadélfia em 1944, e da sua conversão em organismo especializado da Organização das Nações Unidas (ONU), pelo acordo assinado em 30 de maio de 1946, que disciplinou as relações jurídicas entre as duas entidades, a Organização Internacional do Trabalho – OIT – exerce um papel importante na universalização das normas do trabalho, zelando pela observância de um patamar mínimo e digno na relação entre capital e trabalho. 14

Ministério do Trabalho e Emprego, In: http://www.mte.gov.br/rel_internacionais/ Quadro_OIT_ratificadas_Brasil_junho_2009.pdf. 15

Organização Internacional do Trabalho, In: http://www.oit.org.br/.

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Artigo 1.º (1) Para os fins da presente Convenção, o termo «discriminação» compreende: a) Toda a distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) Toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Estado-membro interessado, depois de consultadas as organizações representativas de patrões e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.

Ainda, pode-se citar a Lei nº. 5.473/68 que determina a nulidade de toda disposição ou providência que resulte em discriminações entre brasileiros de ambos os sexos, para o provimento de cargos sujeitos a seleção nas empresas privadas e no serviço público federal, estadual ou municipal, incluídas as entidades autárquicas, sociedades de economia mista e empresas concessionárias de serviço público; a lei nº. 9.029/95 que veda a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade; bem como o art. 373-A, da CLT, que proíbe a recusa de emprego, promoção ou, ainda, a dispensa do trabalho motivada em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez, salvo quando a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível, bem como prática que considere sexo, idade, cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional.

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O estado de saúde do trabalhador também pode ser fundamento para práticas discriminatórias pelo empregador. Casos de empregados portadores de patologias ligadas diretamente e indiretamente ao trabalho, como LER e AIDS, são a causa da não contratação ou da rescisão de contratos de trabalho. Os casos de trabalhadores demitidos por conta de terem contraído AIDS são emblemáticos. Geralmente, no âmbito judicial, discute-se a ausência de dispositivo legal que garanta estabilidade quando constatada a patologia. Ao que parece, tal diretriz é equivocada, pois, ainda que inexistente a previsão legal de estabilidade ao trabalhador, a despedida discriminatória é vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. Como visto, quando a Constituição eleva a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho ao status de princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, 1°, III); bem como quando objetiva promover o bem de todos, independentemente de origem, raça, cor, idade e toda e qualquer forma de discriminação (CF, 3°, IV), acaba por tutelar a liberdade e a igualdade entre todos (CF, 5°, caput). Da mesma forma, ao positivar os princípios da igualdade e da não-discriminação, responsabiliza o Poder Público pelo combate de toda e qualquer prática discriminatória, inclusive aquelas ocorridas na relação de trabalho. A jurisprudência apresenta entendimento progressista a respeito: Reintegração. Empregado portador do vírus da Aids. Caracterização de dispensa arbitrária. Muito embora não haja preceito legal que garanta a estabilidade ao empregado portador da síndrome da imunodeficiência adquirida, ao magistrado incumbe a tarefa de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes para solucionar os conflitos ou lides a ele

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submetidos. A simples e mera alegação que o ordenamento jurídico nacional não assegura ao aidético o direito de permanecer no emprego não é suficiente para amparar uma atitude altamente discriminatória e arbitrária que, sem sombra de dúvida, lesiona de maneira frontal o princípio da isonomia esculpido na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista, conhecida e provida. (TST – 2ª T – Proc. RR 217791/95.3, julg. Em 10.09.2003, Rel. Juiz conv. André Luís Moraes de Oliveira, in Revista LTr, São Paulo: 67-10/1249 16).

Ao mesmo tempo, o aplicador do direito pode utilizar-se, analogicamente, dos dispositivos contidos na Constituição, artigo 7°, cujas hipóteses de discriminação não podem ser consideradas como exaustivas, podendo-se falar em um tipo aberto ou ainda suscitar lacuna no texto legal capaz de ser suprida através de processo interpretativo. Por exemplo, vide prática adotada em relação à “lista negra” que, em sua essência, representa a conduta discriminatória de empregadores em face de trabalhadores que ingressaram com reclamações trabalhistas, que apresentam certa restrição de crédito ou que figuram como réus em demais processos de natureza civil e criminal. A discriminação e o abuso de direito são evidentes, pois nenhuma dessas informações poderá revelar a qualificação do trabalhador para exercer determinada função. A despedida discriminatória pode ser decorrente do estado de saúde ou do descontentamento do empregador em relação à atividade política do empregado na defesa dos direitos trabalhistas de seus pares. O combate a tal prática parte da análise de que o direito potestativo do empregador em rescindir o contrato de trabalho unilateralmente, sem justa causa, não é absoluto, devendo observar o princípio da dignidade humana. A despedida pode ser imotivada, mas não pode ser motiva16

Tribunal Superior do Trabalho, in: http://www.tst.gov.br.

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da por razões discriminatórias. As rescisões unilaterais fundadas em critérios discriminatórios representam abuso de direito, vedado nos termos do art. 187, do Código Civil. Ao mesmo tempo, como visto, a igualdade e a não-discriminação são princípios tutelados pela Constituição e pela legislação infraconstitucional. Na jurisprudência, cita-se acórdão que trata da discriminação praticada sobre o trabalhador em decorrência da participação em movimento grevista, onde se verifica tratamento desigual sem justificação ou critério de razoabilidade, acrescido de abuso de direito por parte do empregador: “Ato discriminatório. Embargos. Recurso de revista. Justa causa, dispensa. Participação em movimento paredista. Reconhecimento de justa causa pela instância trabalhista. Ato discriminatório. Princípio da isonomia. Se ficou configurada a justa causa, pelo fato de o Reclamante ter se recusado a retornar ao trabalho, não obstante a decretação da abusividade do movimento paredista, o empregador deveria dispensar todos os empregados que persistiram na greve, já que todos incorreram em causa justa para a resolução do contrato, e não apenas alguns, sob pena de tratamento discriminatório. Se o ato, apesar de pessoal, é único, mas a empresa dispensou apenas alguns, forçoso concluir, na esteira do entendimento do Acórdão do Regional, que a empresa se aproveitou de uma situação de momento, de um deslize praticado por seus empregados, para se desfazer, sem qualquer ônus, daqueles que lhe fossem mais convenientes, por critérios absolutamente desvinculados da justa causa, em ação discriminatória. Incabível, todavia, a reintegração por não haver previsão legal, normativa ou contratual. Se o ato é ilícito, impõe-se a reparação do dano. Embargos conhecidos e providos parcialmente”. (Ac. TST SBDI 1 – E-RR 378487/97 – Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, julgado 08/09/03)

A despedida discriminatória, além da devida indenização por danos morais, também pode resultar em reparação nos ter-

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mos do art. 4º, da Lei 9.029/95, que prevê a readmissão, sem prejuízo dos salários referentes ao período de afastamento, ou, a critério do trabalhador, a condenação em indenização, cujo valor deve corresponder ao dobro da remuneração do período em que o trabalhador ficou afastado17. 2.3.1 Da Jurisprudência Regional Ao TRT da 4ª Região a matéria que envolve as despedidas arbitrárias e discriminatórias não é estranha. Vasta jurisprudência é encontrada no sentido de coibir, limitar, impedir ou tornar nulas despedidas que se dão, seja por caráter arbitrário, seja discriminatório, contra os empregados. Acórdão do processo 00692-2008-029-04-00-1 (RO) Redator: Ricardo Carvalho Fraga Participam: Luiz Alberto de Vargas, Maria Helena Mallmann Data: 01/07/2009 Origem: 29ª Vara do Trabalho de Porto Alegre Ementa: Recurso ordinário da reclamada. Reintegração ao emprego. Considerada a despedida como discriminatória, por ato arbitrário do empregador, ela é nula, cabendo a reintegração ao emprego.

O acórdão fundamenta sua decisão na previsão contida no art. 7º, I da CF. O art. 7º, inc. I, da Constituição da República assim dispõe: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos. 17

Presidência da República, In: www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9029.HTM.

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Ressalta o Desembargador Ricardo Fraga, que “a partir da leitura desse dispositivo constitucional, emerge o entendimento de que a despedida sem justa causa não pode ser arbitrária. Mesmo o empregador possuindo o direito de despedir o empregado não pode agir com abuso de direito. Os motivos para a dispensa do empregado não podem ser discriminatórios, inclusive, para embasar a conveniência do ato do empregador. Os princípios constitucionais, inseridos nesses também os trabalhistas, pretendem proteger o empregado contra a despedida arbitrária, como meio de buscar o equilíbrio nas relações sociais. E nesse raciocínio insere-se a vedação à despedida discriminatória, como espécie de despedida arbitrária, com a agravante de que viola não apenas o direito à manutenção do emprego, mas a própria dignidade do trabalhador”.

Citando Márcio Túlio Viana, um dos coordenadores do livro “Discriminação” (SP: Editora LTr, edição do ano 2000), há duas formas de discriminar: “Há pelo menos dois modos de discriminar. Pode-se discriminar ferindo regras, mas também com as próprias regras”. E, ainda: “Esse segundo modo de discriminar atinge a todos: não é de minorias, é de massas; não é circunstancial, é estrutural”.

O fato de não haver regra específica na legislação constitucional e infraconstitucional não pode servir de estímulo para que o empregador desrespeite o direito. Em decisões recentes de nosso TRT, professoras tiveram reconhecido o direito ao ressarcimento de danos por discriminação e por condutas humilhantes dos empregadores. 6. Da Vedação da Discriminação e do Assédio Duas importantes decisões do tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul (TRT4) amparam a tese da dignidade

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do trabalhador e dos limites ao poder diretivo do empregador. No primeiro caso, tratava-se de professora em retorno de auxílio-doença. Após 20 anos de contrato de trabalho, foi despedida, injustificadamente, pela Instituição de Ensino. A mesma ingressou com Ação reclamatória trabalhista, tendo sido reconhecida a despedida discriminatória na sentença, confirmada pelo TRT da 4ª região: Acórdão do Processo 0000026-80.2010.5.04.0011 Redator: Maria Regina Telesca Participam: Denis Marcelo de Lima Molarinho, Wilson Carvalho Dias Data: 26/11/2011 Origem: 11ª vara do Trabalho de Porto Alegre Ementa: Dispensa discriminatória. Indenização por dano moral. É discriminatória a dispensa de empregado acometido por grave enfermidade, que conta com mais de vinte anos de serviços prestados à instituição, após o gozo de auxílio-doença e término do tratamento quimioterápico e radioterápico a que estava submetido. Inequívoco, pois, o sofrimento suportado pelo empregado, que deve ser reparado por compensação financeira. (Acórdão 0000026-80.2010.5.04.0011, 8ª Turma, TRT4, publicada em 26.11.2011)18.

A decisão dos desembargadores assinala com precisão que: “É de, no mínimo, causar estranheza o fato de que a ruptura do contrato de trabalho de uma empregada que conta com mais de vinte anos de serviços prestados à instituição tenha se dado, coincidentemente, após ter contraído enfermidade de caráter grave, pouco tempo depois de ela ter gozado auxílio-doença em virtude disso. Giza-se que a rescisão operou-se justamente ao término do ano letivo (em dezembro de 2009), o que aten18 Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. In: (http://www.trt4.jus.br/portal/portal/trt4/consultas/consulta_lista/ ConsultaProcessualWindow?svc=consultaBean&nroprocesso=000002680.2010.5.04.0011&operation=doProcesso&action=2)

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de, sobremaneira, os interesses da instituição, mormente porque foram concluídos integralmente pela autora os objetivos propostos para aquele período. Nesse particular, assevera com propriedade a Magistrada singular, cujos termos seguem transcritos: Ora, se a reclamante trabalhou por quase 20 (anos) e, por todos estes anos não deu indícios de que não servia ao empregador, a sua dispensa logo após ter concluído o seu tratamento, ao término do ano letivo, faz presunção de discriminação (fl. 233)”.

O judiciário reconheceu o dano moral baseado em agressão à dignidade da professora. É, nos dizeres da desembargadora Maria Magdalena Telesca, ofensa a direito não patrimonial, mas que atinge a professora em sua vida profissional (“...capacidade laborativa que deriva da reputação conquistada no mercado, profissionalismo, dedicação, produção, assiduidade, capacidade...”). A decisão limita o poder diretivo do empregador, vez que considera o despedimento abusivo. Em outra importante decisão, o limite dá-se em face da constatação de Assédio Moral. Nos ensina Alice Monteiro De Barros19 que, de início, os doutrinadores definiam Assédio Moral, como: “a situação em que uma pessoa ou um grupo de pessoas exercem uma violência psicológica extrema, de forma sistemática e frequente (em média uma vez por semana) e durante um tempo prolongado (em torno de 6 meses) sobre outra pessoa, a respeito da qual mantém uma relação assimétrica de poder no local de trabalho, com o objetivo de destruir as redes de comunicação da vítima, destruir sua reputação, perturbar o exercício de seus trabalhos e conseguir, finalmente, que essa pessoa acabe deixando o emprego”. 19

BARROS, Alice Monteiro. Assédio Moral. Publicada no Juris Síntese nº 52 - Março/ Abril 2005.

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Hoje é sabido que esse comportamento ocorre não só entre chefes e subordinados, mas vice-versa e entre colegas de trabalho com vários objetivos, entre eles o de forçar a demissão da vítima, o seu pedido de aposentadoria precoce, uma licença para tratamento de saúde, uma remoção ou transferência. São enumerados pela doutrina vários comportamentos que se encaixam nesse conceito, os quais são verdadeiras “técnicas” destinadas a desestabilizar o trabalhador. Vamos citar apenas algumas: “1) Técnicas de relacionamento – aqui o assediador não dirige o olhar nem a palavra à vítima, sequer para um bom dia; comunica-se com ela por bilhetes, no caso do autor, por emails; 2) São adotadas, ainda, “técnicas de isolamento”, ou seja, são atribuídas à vítima funções que a isolam ou a deixam sem qualquer atividade, exatamente para evitar que mantenha contato com colegas de trabalho e lhes obtenha a solidariedade como manifestação de apoio; 3) Existem as chamadas “técnicas de ataque”, que se traduzem por atos que visam a desacreditar e/ ou a desqualificar a vítima diante dos colegas ou clientes da empresa. 4) Há também as “técnicas punitivas”, que colocam a vítima sob pressão, como, por exemplo, por um simples erro cometido elabora-se um relatório contra ela” (op. cit.). Marie-France Hirigoyen (citada por BARROS) assevera que é muito comum o assediador utilizar-se de provocações e de indiretas. Quando a vítima se mostra irritada com a situação e reage, a justificativa do perseguidor é aquela: “Ah, nada disso me espanta, essa pessoa é louca, é desequilibrada, é temperamental, é hipersensível, é agressiva, é desajustada”. E em seguida se justifica: “Imagina, eu estava só brincando!” “Aliás, eu nem estava falando de você!” Ora, alguns dos comportamentos relatados podem ser enquadrados em várias alíneas do art. 483 da CLT (como rigor

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excessivo, perigo manifesto de mal considerável, descumprimento de obrigações legais ou contratuais, serviços superiores às forças do trabalhador, ofensa à honra e boa fama), capazes de autorizar a rescisão indireta, além de indenização por dano moral e/ou material. Um dos elementos caracterizadores do assédio moral, que enseja a reparação de dano pessoal, é produzir na vítima, no caso o trabalhador, danos psíquicos e morais no local de trabalho. A imagem do trabalhador é que fica comprometida. A propósito dos danos à integridade psíquica do trabalhador, há decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, identificando o dano moral com o sofrimento proveniente da angústia, da tristeza ou da dor, independentemente da lesão psíquica (conforme STEDH 2002/12, de 14 de março de 2002). Esse tribunal, em matéria de vulneração aos direitos fundamentais, considerou as perdas sofridas como consequência direta da violação alegada e o dano moral, quer dizer “a indenização pelo estado de angústia, dos dissabores e incertezas resultantes dessa infração”. Isso porque se pode produzir uma corrosão moral na vítima sem que necessariamente seja afetada a sua integridade psíquica. No caso do Acórdão abaixo, a situação foi muito mais grave e agressiva. A superior hierárquica da professora promoveu de tal maneira uma perseguição sistemática que a mesma sofreu múltiplo danos (aqui incluído dano físico gravíssimo como refere a decisão judicial: “perda da visão de seu olho direito, consequência de deslocamento de retina que pode ser causado por quadro de stress”) . O TRT4, reformando a decisão proferida em primeiro grau reconheceu: Acórdão do processo 014320028.2008.5.04.0332 (RO)

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Redator: Denis Marcelo de Lima Molarinho Participam: Cleusa Regina Halfen, Ana Rosa Pereira Zago Sagrilo Data: 27/01/2011 Origem: 2ª Vara do Trabalho de São Leopoldo Ementa: Responsabilidade civil. Indenização por assédio moral. O uso de mecanismos sutis e dissimulados de perseguição no ambiente acadêmico por superior hierárquico, tais como argumentação destrutiva; crítica exacerbada, supostamente derivada de rigor científico; elogio direto e crítica indireta, criando ambiguidade deterioradora da estabilidade psicológica do profissional; ameaças veladas de demissão, circulando entre docentes; intimidação de orientandos e profissionais próximos a não manterem contato com a reclamante, com evidente objetivo de assediar a trabalhadora, configura ato ilícito autorizador de reparação por danos morais. Recurso da reclamante parcialmente provido.

Citando José Afonso Dallegrave20, concluiu que a professora foi vítima de assédio moral por adoção, pela instituição de ensino superior, de diversas condutas ofensivas à sua integridade física e psíquica, caracterizadas por recorrente perseguição, rigor excessivo e intimidação.

20

DALLEGRAVE, José Afonso, Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008, p. 208

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O assédio moral Eduardo Mendes Ribeiro1

A Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) tem uma tradição de pensar a psicanálise para além do contexto dos consultórios, o que implica investigar as diferentes formas através das quais, contemporaneamente, se constituem e interagem as subjetividades singulares. É esta interface entre o social e o subjetivo, que está na raiz da teoria e da prática psicanalítica, e que constitui nosso campo de prática. Foi justamente para criar novas possibilidades de intervenção social que criamos o Instituto APPOA. Neste sentido, a parceria que estabelecemos com o Sinpro/RS, através do Núcleo de Apoio ao Professor (NAP), tem se mostrado extremamente profícua, na medida em que cria condições para uma reflexão sobre temas que dizem respeito a ambos os campos, psicanálise e educação. Um destes temas, o assédio moral no ambiente escolar, foi tema de um seminário realizado em junho de 2011. A seguir são apresentadas algumas contribuições para este debate. Ao contrário do que se passa no campo do direito, assédio 1

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA


moral não é um conceito para a psicanálise. Para nós, assédio moral é algo que se procura entender a partir do que se escuta, das realidades e sofrimentos com os quais a gente se depara. Uma primeira observação a ser feita é que na sociedade atual temos cada vez menos conflitos sociais, cada vez menos greves, cada vez menos causas sociais que produzam grandes embates, e cada vez mais sofrimento individual. Cada vez mais o terreno da combatividade e da agressividade se situa nas relações pessoais. Cada vez o sofrimento se torna mais individual e menos produto de embates coletivos. Nesse sentido, uma primeira proposta de entendimento é a de que o assédio moral se torna mais frequente na medida em que as pessoas estão mais sós, mais isoladas, mais individualistas, ou seja, o avanço do individualismo fez com que o trabalho solidário e coletivo perdesse terreno, dando lugar a interesses e projetos cada vez mais individuais, a fenômenos como rivalidades, ciúmes, competições, opressões. Para além das avaliações e condenações morais acerca da importância do respeito, da civilidade, da tolerância às diferenças, o que pode ser observado nesse tipo de violência são os reflexos de um determinado contexto de relações sociais, em que pessoas subjetivamente frágeis produzem violência ou submissão como estratégia de enfrentamento de seus sentimentos de inconsistência e insegurança. Mas é importante notar que, neste tipo de fenômeno chamado de assédio moral, o sentimento de impotência e insegurança não está somente do lado do oprimido, mas também do opressor. De fato, o que faz com que alguém se coloque nessa condição de oprimir alguém numa desigualdade de poder, alguém mais fragilizado? Isso só pode ser entendido como uma expressão ou uma resposta a um sentimento também de desamparo e impotência de parte do agressor.

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Observando como esta questão é tratada no campo do direito, é evidente a importância de leis que abordem, inibam e sancionem esse tipo de comportamento. Não porque as leis tenham um poder em si mesmas e que a repressão seja capaz de mudar culturas ou comportamentos, mas porque é importante que uma sociedade utilize seus instrumentos para afirmar de forma clara que esse tipo de comportamento é repreensível. Existe uma eficácia simbólica da lei, com poder de organizar o campo de gozo, estabelecendo limites ao mesmo tempo em que afirma valores. Numa civilização como a nossa, marcada pelos ideais éticos cristãos, é difícil que a agressividade encontre um lugar simbólico na cultura que permita a sua manifestação, tanto no plano pessoal como no comunitário. Não podemos esquecer que a agressividade faz parte de nossa humanidade, e que ela não é má em si. A questão é como essa agressividade se manifesta,

Roda de Conversas, atividade do NAP, realizada na sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) no dia 9 de novembro de 2011 | Foto: Igor Sperotto

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que veículos, que meios ela utiliza para se manifestar, e que efeitos produz. Uma de suas manifestações, e não a única, é a violência, especialmente a violência contra o outro. Do ponto de vista da psicanálise, se não encontramos outras formas de veicular, de dar vazão à nossa agressividade – que pode ser de formas muito produtivas, por diversos meios –, ela acaba se voltando contra o outro como supostamente responsável por nossas infelicidades. Embora a agressividade faça parte do funcionamento psíquico humano, a violência não é necessariamente a sua resultante natural. Em suas manifestações individuais e sociais, a violência é fruto de uma impossibilidade de integrar os instintos agressivos, tanto no plano psíquico como coletivo. É difícil identificar as origens e os caminhos por onde passa a agressividade. Naquelas sociedades onde se consegue compartilhar um fundamento ético para o pensar e agir, onde isso funciona como regulador das relações sociais, esses tipos de violência – como o bullying e o assédio moral – tendem a ser muito raros. Numa sociedade onde a ética, esse “em comum” que organiza e orienta os pensamentos e ações, se encontra fragilizada, torna-se muito mais possível que a violência se manifeste nas mais diferentes formas. O assédio moral pode ser considerado, por um lado, no sentido durkheimiano, como um fato social, produto de um conjunto de relações que extrapola o âmbito da subjetividade e circunstâncias pessoais; e, por outro lado, como algo que se efetiva justamente a partir das singularidades dos sujeitos envolvidos. Não é todo mundo que assedia, que oprime, que é violento, e nem todo mundo é objeto desse tipo de violência. Trata-se de um fenômeno social, que tampouco é generalizado, e só pode ser explicado a partir de circunstâncias absolutamente singulares.

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Estamos nos referindo ao assédio moral nas relações de trabalho, mas não é só nas relações de trabalho que ele acontece. Alguns artigos falam de assédio nas relações familiares, nas relações conjugais, onde um dos cônjuges sistematicamente, por certo tempo, humilha, despreza, oprime, desqualifica, desvaloriza, nega ao outro o direito à palavra, a uma posição, a um determinado pensamento. De qualquer forma, é interessante investigar quais as condições que propiciam ou não que isso ocorra; pensar como isso acontece e os efeitos que produz. Um dos aspectos mais nocivos do assédio moral é o fato dele eliminar a capacidade de defesa da pessoa: isolada, ela perde confiança, e este sentimento de impotência a impede de se defender. Ao minar a capacidade do outro de reivindicar o seu direito ou de dar uma resposta, de se defender da agressão sofrida, o assédio assume conotação absolutamente perversa. Neste sentido, também é possível qualificar alguns tipos de gestão como sendo gestões perversas. Isto ocorre quando os trabalhadores assumem uma função de valor puramente instrumental. É curioso que a gente encontre na literatura relatos e depoimentos de muitos casos de assédio moral em que os assediados não são improdutivos ou menos produtivos. Ao contrário, são aqueles que têm um desempenho acima da média, como se essa diferença acabasse por produzir um incômodo em alguém, como se isso apontasse para uma incompetência ou uma parcialidade das competências dos demais. Nas relações de poder dentro das instituições, às vezes esse é o único meio pelo qual uma chefia intermediária, por exemplo, consegue se fazer valer, consegue exercitar o seu poder através da submissão do outro. Quando isso acontece, poderíamos pensar que decorre das características perversas de alguns che-

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fes, de alguns gestores, e é provável que isto, em alguma medida, não esteja ausente, mas é um dado absolutamente insuficiente para explicar a ocorrência de assédio moral. É importante notar que algo no modelo de gestão desta instituição permite que esse tipo de relação se estabeleça. Sendo assim, não adianta muito punir esse agressor, porque o agressor também é um produto de um conjunto de relações sociais. Se não for ele, será outro, pois há algo na forma como se dão as relações entre as pessoas que acaba viabilizando este tipo de violência. Algumas interpretações procuram associar assédio moral com pressão por produtividade, mas elas parecem não se sustentar, pois, do ponto de vista de uma lógica voltada à produtividade, desqualificar e humilhar o trabalhador não produziria bons resultados. Ao contrário, sob este ponto de vista, o que seria desejável é que cada um se empodere e atue da forma mais confiante e enérgica possível. Mesmo nos casos em que a pressão no trabalho vem acompanhada de humilhações, desqualificações, o que move o assédio parece ser algo diferente. Mas, se os gestores não estão interessados no enfraquecimento, na fragilização dos trabalhadores, como é possível entender os casos de assédio moral? Em uma tentativa de resposta, poderíamos afirmar que esse tipo de relação de trabalho se torna possível naqueles contextos em que a circulação da palavra se encontra comprometida, onde, de uma forma mais ou menos explícita, se instalem estratégias de silenciamento dos trabalhadores. Se você tem a possibilidade de fazer valer sua palavra, o seu pensamento, a sua posição, isso acaba de alguma forma inibindo, esvaziando, combatendo esse tipo de opressão que se dá de uma forma geralmente silenciosa. A violência aparece a partir do momento em que a palavra não tem mais eficácia, a partir

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do momento em que aquele que fala não é mais reconhecido. Se você não consegue mais ser reconhecido enquanto sujeito, como aquele que profere suas palavras, afirma suas posições, diz o que pensa, aí você está colocado na posição objetal e qualquer violência se torna possível. Este é o efeito de um tipo de comunicação perversa que faz com que as pessoas se calem. Trata-se do que se pode chamar de montagens perversas. Para a psicanálise, porém, não é fácil reconhecer um tipo de quadro sintomático em que nem a agressão, nem a vitimização se dão prioritariamente por prazer ou por gozo. Você não consegue identificar muito claramente o que produz prazer e gozo numa prática desse tipo. Em outros fenômenos, a gente pode encontrar certa responsabilidade da vítima, seja por se colocar em uma posição que convoca a ação de seu agressor, seja porque ela, por vias diretas ou indiretas, consinta na agressão. Mas não é isto que ocorre na maior parte dos casos de assédio moral descritos. Alguns psicanalistas utilizam um conceito, o de perversão narcísica (que é um tipo de narcisismo intersubjetivo), para tentar compreender a lógica intersubjetiva que subjaz a esses fenômenos. É costume pensar no narcisismo como uma prática de autocentramento em que alguém retira os investimentos do mundo e os direciona para si mesmo, em um voltar-se para si. Segundo esta interpretação, sob a perspectiva da posição de quem assedia, aconteceria uma falha narcísica mais primordial que faria com que este sujeito, ou esse tipo de sujeito, buscasse no exercício de poder sobre o outro uma forma de sustentação de seu próprio narcisismo, ou seja, ele tentaria fazer reconhecer um valor para si, se prover de alguma consistência “egóica” ou “narcísica”, através de ação de submetimento, de opressão de

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outro. Ele precisaria exercer uma violência sobre outro para se fazer valer. É este tipo de relação que é chamada de perversão narcísica. O que parece interessante, ou importante de ser analisado, é o fato de que o silêncio da violência exercida pelo perverso narciso sobre seu “cúmplice” não é do mesmo tipo da relação sádica ou sadomasoquista, e tampouco a vítima da agressão silencia porque se sente intimidada. Não é disso que se trata: esta violência é silenciosa e a vítima sofre de maneira silenciosa porque se trata de uma violência velada e insidiosa, não assumida pelo agressor, negada e denegada por ele, que sutilmente inverte a relação acusando o outro de ser o culpado pela situação. Não se trata de casos em que esse tipo de assédio acontece de forma ostensiva, mas daqueles em que alguém vai minando a confiança do outro. Recentemente, uma paciente me relatou, com grande sofrimento, o processo persistente em que sua chefia, com a qual ela havia tido um desentendimento anterior por razões estritamente pessoais, passou sistematicamente a não lhe repassar trabalho, retirando grande parte das funções que até então exercia. Ela passou a se sentir cada vez mais inútil. Também deixou de ser chamada para participar de reuniões em que seriam definidas questões relacionadas a seu trabalho, passou a ser escalada para os piores horários, para os piores trabalhos. Nas avaliações, seu chefe fazia com que se sentisse absolutamente incompetente e desqualificada. O pior é que qualquer das atitudes tomadas pelo chefe poderia ter uma justificativa razoável. O fato é que o conjunto dessas práticas fez com que ela fosse progressivamente minando sua confiança, seu prazer pelo trabalho, suas relações com os demais colegas, produzindo um sofrimento extremamente intenso e grave. E que, mesmo no processo de análise, ela se ques-

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tionasse o quanto era culpada por aquilo, o quanto era responsável. Não era mais capaz, não conseguia mais se colocar, e começava a se responsabilizar pelo assédio que sofria. Às vezes a submissão é aceita como necessidade de reconhecimento e parece preferível ao abandono. Em um trabalho de consultoria que realizo na Justiça Federal, me deparo com sujeitos que têm uma condição privilegiada no conjunto dos servidores públicos, tanto pelas condições de trabalho, quanto pela remuneração. Por outro lado, em outra consultoria, esta para o Ministério da Saúde, encontro outros sujeitos, muitas vezes em situação oposta: com vínculos e condições de trabalho precários. Mas se há algo em comum entre estes trabalhadores é uma queixa de falta de reconhecimento e valorização de seu trabalho. Esta sensação, que produz um sentimento, passa ao largo das condições materiais, transitando por outras vias. Em contextos em que, por exemplo, alguém tem uma chefia que não o reconhece, que não lhe dá a palavra, que o desqualifica, que o desvaloriza, esse sujeito acaba muitas vezes suportando esta situação porque isso ainda lhe parece melhor do que o sentimento de desamparo e de abandono na relação com aquele que, estando em uma posição de chefia, deveria orientá-lo e protegê-lo. Ou seja, suporta-se a humilhação para não desfazer o laço com alguém que o sujeito toma como referência e que sustenta sua posição neste laço social. O que é terrível! Alguém poderia perguntar: “por que então, nessa situação, você não saiu?”, “se você está se sentindo tão mal, por que não saiu?” Em muitos casos há a necessidade e o apego a um emprego, mas geralmente há outros elementos em jogo. Muitas vezes, como foi dito, esta relação proporciona um lugar social para este sujeito, que acredita ainda que possa conquistar o respeito, o reconhecimento e a valorização de seu chefe, porque

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isso é importante para ele. São posições muito difíceis em que essas pessoas se colocam ou são colocadas, e das quais é difícil sair. Essas relações de opressão e violência – como o bullying, o assédio moral, que passaram a ser nomeadas recentemente –, provavelmente sempre existiram em alguma medida. Não é algo novo, não é apenas na contemporaneidade que os meninos são humilhados, são desprezados, são agredidos de diversas formas no colégio. Não é só agora que também as chefias oprimem, ridicularizam seus subordinados. Mas, se esses fenômenos não são inéditos, ao menos têm despertado a atenção para um tipo novo de laço social que experimentamos na contemporaneidade, em que – e isso foi apontado no início – os conflitos são cada vez menos sociais, cada vez mais voltados para o sofrimento individual. A atenção cada vez maior que é atribuída aos projetos pessoais, o atomismo, a fragmentação, a dificuldade de encontrar um comum no âmbito das relações sociais de qualquer escala, tudo isso tende a dificultar a construção de laços sociais mais fraternos e solidários, em que o outro não seja tomado como ferramenta de enfrentamento de nossa inconsistência. A agressividade transformada em violência ocorre também como efeito de um tipo de individualismo em que as pessoas acabam voltadas para aquilo que Christopher Lasch chamava de uma sensibilidade terapêutica: uma preocupação excessiva com o que cada um está sentindo, com os seus problemas pessoais, dificultando o estabelecimento de um laço social em que se afirme como valor o compartilhamento de projetos, ideais, sofrimentos e prazeres.

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A adolescência empoderada1 Rose Gurski2

Se é que os poetas e artistas chegam às verdades de seu tempo antes dos especialistas, é interessante que consultemos os refrões das músicas, os jingles e outras produções da cultura, para que possamos melhor compreender o lugar do jovem e o modo como se manifesta seu mal-estar em diferentes épocas sociais. A clínica da adolescência, por exemplo, é pródiga em nos confrontar com essa dimensão. Falando de si, através das escolhas culturais que fazem, os jovens elegem, muitas vezes, as letras poéticas para enunciar seu mal-estar. Um desses sujeitos comentava comigo o vídeo “we all want to be young”3, uma 1

Este capítulo foi escrito a partir da palestra de mesmo título proferida no evento “Roda de Conversas”, uma parceria entre a Associação Psicanalítica de Porto Alegre e o Sinpro/RS, realizada na sede da APPOA, em maio de 2011. 2

Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Educação (Ufrgs); Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia (Ufrgs); Coordenadora da Clínica Maud Mannoni; Organizadora e coautora dos livros Cenas da Infância Atual: a família, a escola e a clínica (Unijuí, 2006) e Educação e Função Paterna (Ufrgs, 2008). 3 O videoclipe citado foi o produto do projeto de pesquisa O Sonho Brasileiro, da já referida empresa BOX 1824. Tal pesquisa buscou perfilar os jovens brasileiros entre 18 e 24 anos a fim de pensar as perspectivas de futuro destes sujeitos. Para outros detalhes acerca do videoclipe acessar: http://www.box1824.com.br/. (N. E.: Leia a continuação da nota 3 na página seguinte).


espécie de videoclipe feito pela BOX 1824 – uma empresa de pesquisa especializada em tendências de comportamento e consumo –, no qual o poder imagético revela-se em sua potência: são dez minutos, nos quais a superposição de imagens rápidas narra, de forma icônica, a breve e recente história da construção da “juventude empoderada”.4 e 5 Ao tratar das origens do lugar do jovem de hoje, o clipe feito pela BOX 1824 retorna a um passado recente: evoca a geração baby boomers, identificando-os como os pais dos jovens da atualidade, passa pelos hippies e sua irreverente posição, pela geração Y e chega até os chamados millennium – uma geração conhecida por ter “acesso total a tudo através da Internet”. Dentre as adjetivações que dão sentido e significação a esses sujeitos do tempo de agora, encontra-se a denominação de “geração mais plural da história”. Seguindo a narrativa, encontramos a flexibi3 (cont.)

Importa registrar que o Instituto Cidadania, no início dos anos 2000, realizou uma importante pesquisa de norte a sul do país, intitulada Projeto Juventude, na qual buscava dados representativos da população jovem do país. Esses dados foram analisados por especialistas de diferentes campos e estão registrados na publicação Juventude e Sociedade (NOVAES, Regina e VANUCHI, Paulo [Org.], Ed. Perseu Abramo, 2004). 4 A expressão empoderamento corresponde ao vocábulo da língua inglesa empowerment, não existindo uma tradução para a língua portuguesa. Dentre as significações encontradas está a ideia de que a palavra entrou na língua portuguesa através das teorias de administração de empresas. É um vocábulo, em geral, referido às minorias sociais, aspecto que contém a noção de um grupo que tem poder na atualidade, mas “nem sempre” o teve. 5

Importa aqui registrar que recebi o título da palestra como a expressão de uma demanda dos educadores, registrada pela direção do Sinpro/RS. A escolha da expressão “adolescência empoderada”, parece evocar uma pergunta: como lidar com as novas posições dos jovens da atualidade? Nesse sentido, gostaria de sublinhar a importância de dar voz às vivências cotidianas dos educadores. Acreditamos que da escuta destas vivências possam decantar experiências potentes. A simples nomeação de uma vivência pode transformar-se em um dispositivo interpretativo, abrindo deste modo a via de uma elaboração daquilo que se apresenta como dificuldade.

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lidade e a diversidade como marcas desta geração, especialmente pela possibilidade que estes sujeitos desenvolveram de apresentarem-se através de múltiplos perfis simultaneamente: surfistas, nerds, DJs, roqueiros, cinéfilos, designers, entre outros. A finalização do videoclipe sublinha a noção de que, se a juventude é a catalisadora das grandes mudanças, “para entender o mundo, é preciso compreender os jovens”. Fazendo um trocadilho com este dito e expressando aquilo que, neste escrito, importa considerar, diríamos que, se para compreender o mundo precisamos entender os jovens, para compreender a posição dos jovens de hoje torna-se necessário operar uma reflexão acerca da adultez contemporânea. Interessa-nos provocar a percepção das movimentações de sentidos e os diferentes tempos culturais que esses lugares nos apresentam para, então, refletir sobre as circunstâncias desta flutuação. Se hoje a juventude desfruta de toda uma soberania, não é demais lembrar que, na década de 1920, como afirmava Nélson Rodrigues, o Brasil parecia uma paisagem de velhos (Kehl, 2004). Isso porque a mocidade carecia de reconhecimento e o semblante de maturidade adulta era buscado como um traço de valor. Neste tempo, em que as diferenças geracionais eram “mais bem” circunscritas, em que não pareciam existir dúvidas acerca do lugar da autoridade, tampouco sobre o que os adultos esperavam dos jovens, a angústia dos herdeiros apresentava-se através de outras configurações. Na atualidade, a juventude encontra-se “empoderada”, como bem demonstram tanto a tônica do videoclipe, quanto os relatos daqueles que se confrontam diariamente com os adolescentes nos bancos escolares. Nesse sentido, perguntamos: qual é a responsabilidade do mundo adulto com esta nova configuração?

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Importante questão quando, ao remetermo-nos à história social, percebemos quão recente é a ocupação deste lugar de “poder” por parte dos jovens. Como então se construiu tal espaço? Quais condições de nosso laço social e da posição do mundo adulto levam os adolescentes ao lugar simbólico no qual se encontram atualmente?

Forever young Talvez Bob Dylan não tivesse a menor ideia acerca da verdade social “visionária” contida em sua canção “Forever Young”. Composta em 1974, a música foi construída como uma espécie de diálogo entre um pai que dizia algumas palavras ao filho que crescia. Hoje, talvez pudéssemos dizer que o refrão da música, feita na década de 70, poderia ser uma espécie de hino, inspirado exatamente no ideal do mundo adulto. Atualmente, todos querem ser “eternamente jovens”. Nas palavras de Maria Rita Kehl (2004, p. 89), em nossa cultura, dos 18 aos 40 anos, todos os adultos são “jovens”. Essa questão deve nos inquietar profundamente, pois se todos querem ser jovens, quem vai ocupar o lugar do adulto na relação com os adolescentes? Como fica a dose de alteridade geracional tão importante para a constituição do sujeito na adolescência? A noção de que o lugar do adulto está vago, ou ainda, de que estamos frente a um tempo de adolescência generalizada (Pereira, 2011; Gurski, 2011), está nas letras não só dos psicanalistas. Eric Hobsbawm (1995), um importante historiador contemporâneo, sugere que o século XX foi o século da adolescência. Segundo ele, a repercussão do modus vivendi dos jovens, exportado pela cultura americana, através do cinema e das novas estratégias de apelo ao consumo, nos levou a viver em uma

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cultura juvenilizada, na qual o adolescente tornou-se o paradigma das crianças e dos adultos. Neste diapasão, o historiador também afirma que a juventude, a partir da década de 60, consolidou-se como um segmento social próprio, sendo este período reconhecido como um tempo histórico pioneiro na dose de importância que promoveu ao jovem. Ora, sabemos que as condições sociais produzem efeitos psíquicos, sendo a adolescência um momento da constituição psíquica paradigmático em revelar o enredo irredutível entre estes dois campos. Assim, o que decanta deste breve repasse da história da adolescência no laço social, leva-nos a entender, junto com o psicanalista francês Jean-Jacques Rassial (1999), que a chamada operação psíquica da adolescência acabou sendo um efeito das novas condições sociais da modernidade. Se em tempos diferentes dos nossos, os rituais culturais funcionavam como dispositivos de elaboração das mudanças corporais típicas da puberdade, inscrevendo com legitimidade o novo lugar do sujeito adolescente no cenário social, em nossa época, a ausência destes ritos simbólicos de passagem parece deixar os jovens em uma espécie de limbo com relação aos modos de representação de si no social. Nesse sentido, a pergunta sobre o inflacionamento imaginário produzido através da figuração do adolescente “empoderado” revela, talvez, aquilo que desaparece nas brumas da ausência de ritos e dispositivos simbólicos da cultura e da posição da adultez contemporânea. Assim, o trabalho psíquico exigido por conta da passagem adolescente, demanda do jovem de agora um quantum extra de simbolização a fim de que possa elaborar tanto o real de seu novo corpo, quanto os novos traços que constrói através da sutil transição entre o campo familiar e o campo social. Ora, no momento em que as práticas culturais

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não oferecem a dose de simbolização necessária para essa operação e que os adultos não conseguem reconhecer sua experiência como passível de transmissão, interrompe-se o elo entre os diferentes tempos. Ou seja, o enlace entre passado, presente e futuro já não possibilita que os mais jovens possam construir o novo a partir da transmissão dos que chegaram antes. Neste diapasão, o desamparo de referências e da pane da autoridade de transmissão como bússola da trilha da vida, jogam o jovem em um estado de desamparo simbólico, restando, muitas vezes, as marcas do corpo e a superlativação do ego como um lugar de marca do sujeito.

Adolescência, experiência e transmissão Toda essa transformação do sítio simbólico do jovem, ocorrida nas últimas décadas, cobra um preço caro. O lugar de paradigma da cultura também os colocou na posição de experimentar os piores sintomas deste tempo. Apresentados ao hedonismo extremo, que demanda o gozo imediato e seus avatares – as drogas, a violência e o empoderamento narcísico –, os jovens acabam chafurdados na lama da massificação, seduzidos pelos diferentes transbordamentos do mundo contemporâneo: o domínio tecnológico, o excesso de consumo e a intolerância às diferenças (Pereira, 2011). Neste cenário, uma porção de paradoxos convive de mãos dadas. Maria Rita Kehl (2004), em A Juventude como Sintoma da Cultura, argumenta que o ideal de perfeição de nossa época reside na dose de juventude corporal e emocional que o sujeito porta. Tal situação produz no jovem um estado de desamparo de como se orientar minimamente na vida e no mundo, já que esse ideal aponta para um excesso de presente, não balizando

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uma perspectiva de futuro. A disseminação do ser jovem acaba colocando todos em uma horizontalidade empobrecedora, questão que parece retirar a dose de diferença tão necessária ao jovem que, recém-chegado da infância e das mutações da puberdade, inaugura suas primeiras inscrições na esfera pública e social. Assim, afora a já conhecida moratória adolescente, o jovem acaba percebendo que os adultos ao seu redor, ao sonhar com a eterna juventude, além de deixarem o lugar vago, não se furtam em apagar as marcas do tempo e da origem, rompendo deste modo o elo que liga passado, presente e futuro. Como já referido, temos visto nas expressões dos adolescentes e jovens que a juvenilização da cultura não permite, muitas vezes, a distância necessária para a criação do novo em termos subjetivos. Hannah Arendt (2001), no texto A Crise da Educação, pondera que toda educação necessita de uma dose de tradição. Isto é, será somente no encontro com o velho que a geração que chega poderá construir o novo. Ora, no momento em que os adultos de uma sociedade se juvenilizam através de comportamentos e condutas, e que os ideais do imaginário cultural passam a valorizar a juventude e seus atributos, é como se todos constituíssem uma comunidade de iguais (Gurski, 2008). Este cenário de justaposição dos tempos leva-nos aos textos de Walter Benjamin. O filósofo alemão, em seus escritos da década de 19306, trata do tema do esvaziamento da dimensão da experiência em associação com a aceleração do tempo que vivemos da modernidade em diante, o que ele denomina de “choque da modernidade” (Benjamin, 1989). Para Benjamin (1930/1994; 1936/1994)6, o sujeito moder6

Refiro-me aos textos produzidos no período entre os anos de 1930-1940, que ficaram conhecidos como sua Arqueologia da Modernidade. Destaco, especialmente, Experiência e Pobreza (Benjamin, 1933) e O Narrador (Benjamin, 1936).

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no tem muitas informações para trocar, mas poucas histórias para contar. No texto “O narrador”, o filósofo reclama de uma narratividade perdida, evocando a figura do antigo narrador das sociedades de transmissão oral. O argumento consistia na noção de que as narrativas, que transmitiam um saber ancorado na experiência coletiva, estariam em extinção, pois teriam sido substituídas pela informação jornalística e pelo romance, narrativas estas marcadas pelas experiências individuais. Ora, o lugar da experiência empobrecida referida por Benjamin é o lugar no qual deveria estar a palavra transmitida. A palavra, prenhe de polissemia em sua estrutura, traz a possibilidade de emprestar múltiplos sentidos ao vivido, desenhando um horizonte simbólico de representações. Sublinhamos que é na transmissão da pluralidade dos sentidos que a palavra opera o enlace entre ato e cultura, cujo efeito é também a revelação da potência da linguagem como construtora do laço social no lugar da barbárie (Gurski, 2008). Nesse sentido, as configurações da cultura são também responsáveis pelas condições de todo esse desenlace. Na busca de um lugar de enunciação fora da família, parecido com um novo nascimento, o adolescente parece sofrer com os efeitos da desmoralização da experiência, da ausência de diferença geracional e das diferentes dobraduras do tempo, respondendo a essas condições com o colorido sintomático que já conhecemos. Neste contexto, é necessário que não nos precipitemos lançando nossos jovens na fogueira dos rótulos e diagnósticos contemporâneos. Os possíveis excessos e transbordamentos, com os quais costumam se apresentar, muitas vezes não passam de modos de expressão do mal-estar que os acomete em meio às condições do laço social atual (Gurski, 2011). Afinal, como diz Pereira (2009), se o lugar do adulto é o

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lugar da experiência posta em palavras, deve ser ele que, na figura do pai, da mãe, do mestre ou da autoridade, tem a tarefa de restabelecer a dimensão simbólica para a geração que chega (Gagnebin, 2004). O adulto, ao lembrar da importância da inscrição da lei e da memória, pode fazer da palavra um meio de humanização e pertencimento ao mundo, isso para que não reste ao jovem somente o semblante vazio do lugar de “adolescente empoderado”.

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Referências ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. BENJAMIN, Walter (1933). Experiência e pobreza. In: _________. Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119. ______. (1936). O Narrador. In: _____. Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. ______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989. GAGNEBIN. Jean Marie. Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. GURSKI, Roselene. Juventude e paixão pelo real: problematizações sobre experiência e transmissão no laço social atual: UFRGS, 2008. 219 f. Tese de Doutorado em Educação. Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. GURSKI, Roselene. As dobras do tempo e a passagem adolescente na atualidade. Trabalho apresentado na mesa redonda “A adolescência como sintoma da cultura e a clínica psicanalítica”, no I Congresso Latino-Americano de Psicanálise na Universidade (UERJ), Rio de Janeiro, agosto 2011 (ainda não publicado nos anais). HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. KEHL, Maria Rita. A juventude como sintoma da cultura. In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo (Org.) Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 89-114. PEREIRA, Marcelo Ricardo. Mal-estar docente e modos atuais do sintoma. In: SOUZA, M.; CAMARGO, A. M. F.; MARIGUELA, M. (Org.) Que escola é essa? Anacronismos, resistências e subjetividades. Campinas: Editora Átomo-Alínea, 2009, v. 1, p. 37-59. PEREIRA, Marcelo Ricardo. Adolescência generalizada. Trabalho apresentado na mesa-redonda “A adolescência como sintoma da cultura e a clínica psicanalítica”, no I Congresso Latino-Americano de Psicanálise na Universidade (UERJ), Rio de Janeiro, agosto 2011. RASSIAL, Jean-Jacques. A adolescência como conceito na teoria psicanalítica. In: Adolescência: entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios; Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1999 b, p. 45-72.

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O princípio da dignidade Rubens Fernando Clamer dos Santos Júnior1

Quero dividir a análise sobre o assédio moral em alguns pontos centrais: primeiro, retomando uma análise da essência do direito do trabalho, porque parece que passamos necessariamente pelo direito do trabalho para que a gente busque as soluções para esse problema, que, sem sombra de dúvidas, não é um problema simples para ser resolvido. Esse tema extremamente complexo não é só nosso, mas do mundo inteiro. A partir dessas noções de direito do trabalho busca-se as soluções para o problema e, principalmente, para que se procure conhecer, lembrar e ressaltar a nossa ordem jurídica. Se vivemos em um país civilizado e organizado, temos que, a partir do ordenamento jurídico, buscar os mecanismos de solução. A análise do direito do trabalho como sendo já um dos mecanismos de solução para o nosso problema, o nosso sistema jurídico, e depois retomar o discurso a partir da análise constitucional do tema, principalmente apontando o enfoque acerca dos direitos ligados à dignidade do ser humano e examinando o ponto 1 Mestre em Direitos Fundamentais do Trabalho (PUCRS), juiz do Trabalho (TRT 4a Região) e secretário cultural da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da IV Região (Amatra).


central que é o princípio da dignidade da pessoa humana. Quando foi concebido, no final do século XIX, o direito do trabalho foi chamado na época, na França e na Inglaterra, de direito revolucionário, algo diferente de todos os outros ramos do direito. Diferente porque o direito do trabalho naquele momento buscava solucionar problemas de pessoas que estavam em situações de desigualdade, tanto sob o ponto de vista formal quanto material. Havia trabalhadores de um lado e empregadores do outro e essas pessoas não estavam em um plano equiparado porque elas tinham situações de desigualdade. O trabalhador acabava cedendo à pressão do seu empregador porque ele necessitava do seu emprego, porque aquele emprego era o meio de sobrevivência seu e da sua família. Havia quase uma chantagem dos empregadores, com condições de trabalho extremamente penosas e insalubres na época, e o trabalhador tinha que ceder a tudo isso. Assim surge o direito do trabalho, que pode ser sintetizado em quatro palavras: compensação, porque o direito do trabalho surge para buscar mecanismos de compensação na relação que existe entre empregado e empregador, mecanismos que tentam equiparar partes que não estão em situação equiparada e, com isso, temos normas de ordem pública na nossa legislação, principalmente na CLT, normas irrenunciáveis das quais o trabalhador não pode abrir mão mesmo que ele queira, porque essas normas visam colocá-lo numa situação de igualdade; igualdade: que é o que se busca no direito do trabalho, a igualdade formal e material de que nenhum outro ramo falava antes de sua consagração na Constituição de 88 – o princípio da igualdade, o princípio da isonomia, que refere que todos deverão ser tratados de forma igual perante a lei; hipossuficiência que é, na maior parte das situações, uma dependência financeira do

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trabalhador em relação ao seu empregador – nem sempre, mas em várias situações, nós temos essa dependência econômica, onde há um hipossuficiente de um lado e de outro não. Portanto, ele fica vulnerável à pressão do empregador porque ele necessita daquele emprego como meio de sobrevivência; vulnerabilidade, porque o direito de trabalho serve para proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade em relação aos seus empregadores. Às vezes, elas adquiriram um padrão médio de vida repassado por seus familiares, por isso a importância de manter este padrão. Essas seriam as quatro palavras que sintetizariam essa origem do direito do trabalho chamado de revolucionário. Depois se entendeu que não era nada disso e passou a ter vários outros ramos do direito que passaram a copiar a essência do direito do trabalho. É o caso do direito do consumidor, que também trabalha com esta sistemática de pessoas que não estão em plano de igualdade, porque o direito de trabalho não pressupõe que as partes tenham essa igualdade, que seria o princípio da autônima da vontade que as partes são livres para contratar. Temos normas para proteger o trabalhador: ele não pode abrir mão de suas férias mesmo que queira, ele não pode abrir mão do seu 13º salário, ele não pode abrir mão de vários direitos que são irrenunciáveis e aí está o direito do trabalho que acaba protegendo as pessoas e os trabalhadores. Se o direito do trabalho fosse concebido não no século XIX, mas no século XXI, passaríamos a entender que essas quatro premissas não são mais suficientes para que se alcance o patamar exigido pelos cidadãos, porque naquele momento o objetivo era apenas que os trabalhadores não trabalhassem em condições análogas às de um escravo, em condições precárias, em condições penosas e

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insalubres. Naquele momento queríamos pouco. Hoje se exige muito mais. Hoje seria incluído, nessas premissas, o direito do trabalhador ao respeito e dignidade, e seria exigido que o trabalhador tivesse condições dignas de trabalho, porque o princípio da dignidade humana é o ponto central na atualidade. Sobre o prisma constitucional constata-se que há no Brasil uma das melhores constituições do mundo. Infelizmente, a todo o momento alguns setores isolados tentam alterar ou até revogar a Constituição ou mesmo tentam construir uma nova, coisa que não seria razoável para quem realmente pensa em melhorias para todos. É importante lembrar que a trajetória dessa Constituição foi muito difícil, fruto de um processo democrático jamais visto anteriormente. Nela encontram-se os cinco princípios fundamentais que estabelecem a garantia do exercício desses direitos: a garantia da soberania, garantia da cidadania, consagração do princípio da dignidade da pessoa humana e a consagração do valor social do trabalho e da livre iniciativa; por último, o pluralismo político. Esses cinco princípios fundamentais são o centro da discussão para todas as demais, inclusive para a discussão e verificação das questões ligadas às afrontas à dignidade das pessoas, dos professores e de todos que são vítimas de assédios dessa natureza. Vive-se hoje num estado social e democrático de direito, chamado estado constitucional, que justamente visa assegurar a justiça, os direitos fundamentais e os direitos sociais, previsto no título II da Constituição. O preâmbulo da Constituição também assegura a igualdade das pessoas e, principalmente, o bem-estar. Não se fala hoje do trabalho como se falava no século XIX, como algo restrito a assegurar a comida para o trabalhador e para a sua família. O trabalho, hoje, tem que assegurar a satis-

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fação integral do ser humano e é no trabalho que se busca esta satisfação integral. Se exige que o trabalho seja prestado, que exista realmente esse bem-estar e, para isso, a Constituição consagra vários outros princípios que vedam a discriminação de qualquer natureza, que estabelecem a busca por uma sociedade livre e solidária, que estabelecem a prevalência dos direitos humanos. O artigo 170 da Constituição, que trata da ordem econômica, dispõe, mais uma vez, a valorização do trabalho e de uma vida digna e de justiça social. Com isso entende-se a importância de que justamente no trabalho a lei garanta a remuneração no final de cada mês e a realização pessoal de todos. Em uma terceira análise, refiro a busca de um local de trabalho sadio, seguro, adequado e salubre. Urge a busca de um local de trabalho que garanta a saúde física e psíquica do trabalhador e direitos fundamentais. A partir disso, o princípio da dignidade da pessoa humana se torna o ponto central de defesa para qualquer assédio que venha a ser realizado, porque o princípio da dignidade da pessoa humana da Constituição é a fonte para construção de toda a teoria dos direitos fundamentais. O que se busca no princípio da dignidade da pessoa humana é garantir essa dignidade, impedimento de qualquer afronta, qualquer atitude que venha a reduzir o ser humano. Esse princípio existe em poucos países. Sua inclusão no sistema brasileiro é recente e veio para o ordenamento jurídico na Constituição de 88, no Título I, artigo 170. Na Europa somente cinco países consagram esse princípio. Nas Américas, pouquíssimos países o incluem. Alguns doutrinadores sustentam que o princípio da dignidade humana é o núcleo da República e é a partir disso que se desenvolvem todos os demais direitos.

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Esse princípio passou a ser construído principalmente após o advento da Segunda Guerra Mundial. Quando se fala em dignidade da pessoa humana estão implícitos dois valores essenciais do direito de trabalho: o valor igualdade e o valor liberdade. Devese pressupor esses dois direitos para que nós tenhamos uma relação de seriedade de equiparação entre empregado e empregador, sendo, portanto, valores irrenunciáveis e inalienáveis. Um exemplo é a situação verídica que aconteceu na Alemanha, onde um anão era jogado, em um bar, de um lado para o outro. Ele era a atração no bar e ganhava por isso. Todos riam, todos se divertiam com aquela brincadeira, inclusive o anão, porque ele recebia um pagamento pela atividade. A Alemanha deu um fim à brincadeira porque afrontava a dignidade daquela pessoa que estava sendo tratada como objeto. O anão queria continuar, pois era seu ganha-pão. Porém, não lhe cabia renunciar a esse direito, que era inalienável. A Organização Mundial da Saúde (OMS) fala que a saúde envolve o completo bem-estar físico, biológico e emocional; que se trata de uma busca saudável, preservação da intimidade do trabalhador, seu orgulho, sua honra. A dignidade é valor espiritual e valor moral e é através dela que se realiza a consagração do ser humano como pessoa. Há pouco tempo, no dia a dia forense, falava-se apenas em acidentes de trabalho. Hoje se fala muito mais em doenças profissionais e doenças ocupacionais, porque esses dois problemas andam juntos e de forma intensa. No século XX tivemos mais de 1 milhão de mortes por acidente de trabalho, mais mortes no mundo por atos de violência que por guerra – só no Brasil, em 1975, quase 2 milhões de acidentes de trabalho. Na Suécia, nesse período, 10 a 15 suicídios foram resultados de assédio moral, 3 milhões de pessoas foram vítimas de assédio sexual e 8% dos

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trabalhadores foram vítimas de alguma intimidação ou alguma espécie de coação (dados da União Europeia). São situações extremamente preocupantes. Não estamos falando de Brasil, México, Bolívia ou Paraguai. Estamos falando de países considerados desenvolvidos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) qualifica o estresse como um dos mais graves problemas de saúde da atualidade. Os EUA têm um custo de 200 bilhões de dólares por ano e, no Reino Unido, o custo do estresse atinge 10% do PIB do país. O Japão criou um vocábulo para representar as mortes no país por excesso de trabalho. O estresse é a doença do século XX, tanto nos países industrializados quanto nos demais. Há categorias de trabalhadores que são acometidos um pouco mais ou um pouco menos pelo estresse e pelo assédio, e os professores estão nessa relação, sendo uma das classes e categorias que são vítimas maiores de assédio e de doenças profissionais. Além de professores, há policiais, bombeiros, bancários, operadores de telemarketing, entre outros. Para concluir, deixo a reflexão: como se soluciona e se preserva a dignidade do professor quando há o assédio moral no meio ambiente de trabalho? A solução não é simples e é claro que não há resposta de imediato para isso. Mas se poderia sintetizar observando-se que o problema pode começar a ser solucionado, num primeiro momento, com uma alteração de cultura, com uma alteração na educação de todos os estudantes, que chegarão ao mercado de trabalho futuramente e deverão ter noções mínimas de dignidade, de direitos humanos, de direitos e deveres de todos nós. Nós devemos ser respeitados e nos fazer respeitar. A partir disso, devemos tentar construir um modelo em que se evite essa barbaridade que é o assédio moral. A segunda solução é o judiciário contribuir de uma forma muito

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intensa. Estamos realmente buscando soluções para esse problema, tentando coibi-lo com condenações quando há realmente a comprovação do assédio. “Os livros não mudam o mundo, somente as pessoas mudam o mundo, os livros mudam apenas as pessoas.” (Mário Quintana)

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Memória de professor Fabio Bortolazzo Pinto1

Acredito que ser professor não é uma opção. Acredito que não é uma escolha. Pode-se tentar ser professor. Pode-se até obter relativo sucesso na tentativa. Porém, se quando pisamos numa sala de aula não sentimos aquele estremecimento, aquela emoção contraditória, misto de prazer e ansiedade, se não nos percebemos mais vivos do que nunca naquele espaço e diante daquela situação, certamente não podemos nos definir em termos absolutos como professores. E é justamente a emoção a base, a essência da memória. Não lembramos daquilo que não nos emociona. Construir um acervo com tais lembranças, registradas através das emoções, acionadas, por sua vez, diante de experiências dolorosas ou alegres, me parece de fundamental importância para a compreensão de nosso papel como professores. Sou realmente um professor? Que tipo de professor eu sou? De que maneira me construí e continuo me construindo pedagogicamente? A resposta para tais perguntas está na construção de tal acer1

Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa e Professor de Literatura do Colégio Americano de Porto Alegre.


vo. É na rememoração e no registro daquilo que vivi e vivo cotidianamente que se encontra a definição de minha identidade como professor e como pessoa. E é também no registro das vivências que se encontra, afinal, o sentido, por provisório que seja, daquilo que faço e daquilo que sou. Poucas vezes temos espaço para ‘descarregar’ aquilo que acumulamos diariamente. O professor, como todos sabem, é um profissional que nunca para de trabalhar; está sempre envolvido em tarefas as mais diversas – correção de provas, registros de diários de classe, preparação de aulas, atualização de conhecimentos –, tendo, portanto, um tempo mínimo para observar, de maneira distanciada, a própria trajetória. O fator, digamos, terapêutico, do registro memorialístico reside justamente na possibilidade de nos afastarmos um pouco de nós mesmos, de nossas inúmeras tarefas, e tentarmos dimensionar a importância e a essência daquilo que fazemos. Se tantas vezes sofremos abusos psicológicos e/ou somos excessivamente responsabilizados pelo que quer que seja, talvez nos falte uma exata noção do que diz ou não respeito à nossa atividade e desconhecemos o limite e o alcance de nossa esfera de atuação. É absolutamente necessário conhecer o que nos compete, o que nos motiva e o que potencializa nosso desempenho em sala de aula. Bem como aquilo que nos impede de desempenhar satisfatoriamente a função que atribuímos a nós mesmos. Uma escola é constituída por diversas instâncias hierárquicas, por setores divididos e encabeçados por profissionais que devem exercer sua função de maneira eficiente a fim de que a instituição cumpra seu papel educacional. Nenhuma dessas instâncias ou setores pode ignorar o professor. Afinal, é ele que está no ‘corpo a corpo’, em contato direto com o aluno, fazendo a ponte entre a instituição e a sociedade. Ainda assim, o professor

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muitas vezes é o profissional menos valorizado, tanto econômica quanto afetivamente, dentro da escola. Isto talvez aconteça justamente por, como já ficou dito, desconhecermos o limite de nossa esfera de atuação e não definirmos adequadamente o que nos move e o que nos impede de explorar ao máximo nossas potencialidades. Se estivermos sempre cansados, preocupados, inseguros com relação à manutenção de nosso posto de trabalho, nos sentindo desvalorizados e sobrecarregados, como poderemos crescer, melhorar nossa forma de agir e desenvolver autoestima suficiente para não sermos soterrados pela imensa responsabilidade que nos é imposta naturalmente por nosso trabalho? A única forma de evitar o desconforto da sensação de inferioridade ou de incapacidade para cumprir nossos deveres (aqueles, volto a dizer, que realmente nos dizem respeito) é saber se somos realmente professores, que tipo de professores somos e,

Oficina Pedagógica: registro e compreensão das experiências que definem o professor como profissional e como ser humano | Foto: Igor Sperotto

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se for o caso, o que nos falta para ser os professores que queremos ser. É a partir daí, desse conhecimento, que podemos fazer frente às expectativas alheias, àquilo que esperamos de nós mesmos, detectar e barrar toda e qualquer tentativa de abuso seja por parte da instituição, dos alunos, da sociedade e da nossa própria noção de eficiência. Em resumo: é necessário um conhecimento integral de nós mesmos. Parte importante deste conjunto de nossa integralidade é nossa atividade como professor. Descobrir do que é feita, como funciona, o que caracteriza e diferencia essa nossa atividade é descobrir também o que somos, como funcionamos e o que nos caracteriza e diferencia como seres humanos. Uma das maneiras de descobrir é lembrar aquilo que vivenciamos, para saber, por exemplo, se o que pensamos a nosso respeito corresponde efetivamente à maneira como agimos e nos colocamos diante do mundo. Há alguns meses, realizei uma atividade no Sinpro/RS, junto ao NAP, intitulada Pedagogia da Memória. Tal atividade, que pode ser chamada de ‘oficina’ ou ‘workshop’, consiste basicamente em trabalhar com algo que poucos de nós, professores, em nossas práticas cotidianas, observamos com a devida atenção: o registro e a compreensão das vivências, das experiências que nos definem como profissionais e como seres humanos. Nosso ponto de vista, nossas verdades, nossas ações e reações, quando registradas, transformam-se em um espelho. Cada vez mais, é necessário que nos proporcionemos esse momento de encarar nosso próprio reflexo no espelho da memória e perceber, entre outras coisas, o tamanho que temos.

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Este livro foi composto nas fontes Georgia 11/16 e Franklin Gothic, por Carta Editora & Comunicação Ltda. São Leopoldo, abril de 2012.


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