Especial 50 anos do golpe de 1964

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Edição Especial - 50 Anos do Golpe de 1964 - é parte integrante da Folha Metalúrgica edição 740 - abril de 2014

FOI GOLPE.

• Comissão é criada pela memória, verdade e justiça pág 2 • Chico Gomes escapa da morte pelo exílio pág 3 • Sorocaba operária combate a ditadura pág 4 • A trajetória de um estudante: Alexandre Vannucchi Leme pág 5 • Sorocabanos na coordenação do Comitê Brasileiro de Anistia pág 6


“Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo, nós podemos mais. Vamos lá fazer o que será”. GONZAGUINHA Página 2

Foguinho

Atividades marcam os 50 anos

Comissão Municipal da Verdade: em busca de memória, verdade e justiça

No dia 28 deste mês, aconteceu a primeira audiência pública da Comissão Municipal da Verdade Alexandre Vannucchi Leme, na Câmara Municipal de Sorocaba, presidida pelo vereador Izídio de Brito (PT), para debater os 50 anos do golpe e as conseqüências da ditadura no Brasil. No último dia do mês, 31, o Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região (SMetal) e um grupo de professores do projeto Café e Educação promoveram debate (foto) com o professor Miguel Trujillo Filho, o ex-ferroviário Francisco Gomes e a jornalista Fernanda Ikedo, na sede do Sindicato.

Mesa presidida pelo vereador Izídio de Brito (PT) durante a primeira audiência pública da Comissão Municipal da Verdade, em 28 de março

Neste ano em que se completa 50 anos do golpe civil militar no Brasil, militantes sociais, lideranças comunitárias, professores e profissionais liberais de Sorocaba criaram o Movimento Popular em apoio à Comissão Municipal da Verdade Alexandre Vannucchi Leme. Na manhã de sábado, dia 22 de fevereiro, os participantes se reuniram para discutir sobre as tarefas e cronograma da Comissão Municipal da Verdade, que pretende promover uma pesquisa voltada para os temas da memória, verdade e justiça, com base nos anos de 1964 a 1985, período da ditadura civil e militar. A iniciativa surgiu do professor de filosofia Daniel Lopes. A intenção, segundo ele, é a de apurar, no

No mesmo dia e horário, a UFSCar promoveu mesa de debate com os professores da universidade que sentiram na pele as consequências do golpe: Marly de Almeida Gomes Vianna, Ramón Peña Castro e Wolfgang Leo Maar.

O Centro Acadêmico Rubino de Oliveira da Faculdade de Direito (Fadi) também promoveu discussão sobre o tema. Entre as palestrantes estava a professora de história contemporânea da USP, Maria Aparecida Aquino. Para o dia 3 de abril, às 19h30, na Uniso - Cidade Universitária, haverá palestras com as professoras Maria Aparecida de Aquino, Maria Regina Vannucchi Leme, Osvaldo F. Ramos (Juruna) e o historiador Walter Cruz Swensson Junior.

gueiro com a rua Amazonas. "Lembro que quando o monumento em homenagem a Alexandre foi criado ele foi alvo de balas da polícia, houve perseguição ao vereador que deu nome à praça." Oficializada No dia 27 de fevereiro, às 9h, durante a sessão ordinária da Câmara Municipal de Sorocaba, os membros do movimento popular protocolaram o documento – lido pelo professor Daniel na tribuna popular - pela instalação da Comissão Municipal em Sorocaba. Compõem a Comissão Municipal da Verdade Alexandre Vannucchi Leme os vereadores: Izídio de Brito Correa (PT), Anselmo Rolim Neto (PP), Saulo da Silva (PRP) e Neusa Maldonado Silveira (PSDB).

Coordenador da Comissão da Verdade da UEE traz apoio à criação da comissão em Sorocaba Foguinho

No dia seguinte, 1º de abril, diversos eventos marcaram a data histórica na cidade. Na UFSCar, com a segunda mesa de debate, no campus da rodovia João Leme dos Santos. A programação completa pode ser visualizada no blog: http://50anosdogolpe. blogspot.com.br/p/blog-page.html

contexto sorocabano, os crimes cometidos nesse período com base em documentos e depoimentos de personalidades da cidade que vivenciaram a repressão da época. A reunião que deu base para a criação do movimento popular contou com a presença do deputado estadual Adriano Diogo (PT), que preside a Comissão Estadual da Verdade. Adriano foi colega do curso de Geologia, da USP, do sorocabano Alexandre Vannucchi Leme, que foi morto aos 22 anos, após sofrer torturas. Ele foi preso no dia 16 de março de 1973 e encontrado morto, na cela da delegacia (DOPS), em São Paulo, no dia seguinte. Ele lembrou da Praça Alexandre Vannucchi Leme, que fica na confluência da avenida Afonso Ver-

O estudante e líder da UEE Vitor Quarenta manifesta apoio da entidade para as investigações em Sorocaba

O coordenador da Comissão da Verdade Alexandre Vannucchi Leme da UEE (União Estadual dos Estudantes) de São Paulo, Vitor Quarenta, esteve presente na manhã de segunda-feira, dia 17, no Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região (SMetal). Antes, ele conversou com assessores de parlamentares petistas da cidade sobre as atividades desenvolvidas pela comissão neste ano e abordou a necessidade desses debates que vêm ocorrendo em todo o país sobre a verdade, memória e justiça, tendo como base o período de enfrentamento na sociedade durante a ditadura civil e militar. “Criada no ano passado, a comissão da UEE tem como objetivo trazer à tona a memória da enti-

dade na construção das narrativas de enfrentamento do movimento estudantil”, conta Quarenta, que ressaltou seu apoio à criação da Comissão Municipal da Verdade, em Sorocaba. Para ele, um dos destaques da Comissão Nacional da Verdade é a investigação de empresas que contribuíram com a ditadura no Brasil. “Tem empresas estrangeiras que chegaram no Brasil e patrocinaram uma série de equipamentos de tortura para os governos dos generais”, comenta sobre o caso da Firestone citado em estudos de pesquisadores da comissão. As ações da comissão da UEE contam com o apoio do movimento estudantil Levante Popular da Juventude.

Expediente - Edição Especial: 50 Anos do Golpe de 1964 • Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região • Diretor responsável: Ademilson Terto da Silva (Presidente) • Redação e reportagem: Paulo Rogério L. de Andrade - Fernanda Ikedo • Fotografia: José Gonçalves Fº (Foguinho) • Projeto Gráfico e Diagramação: Lucas Eduardo de Souza Delgado - Cássio de Abreu Freire • Site: www.smetal.org.br • E-mail: diretoria@smetal.org.br • Impressão: Bangraf • Tiragem: 46 mil exemplares


"Os agentes históricos, ao conquistarem a sua auto-emancipação coletiva, escolherão os rumos e a forma da nova sociedade". FLORESTAN FERNANDES. Página 3

Chico Gomes, o Beduíno Sorocabano que foi um dos primeiros a sair de Cuba com a decretação da anistia no Brasil, em 1979, foi companheiro de militância de Carlos Mariguella para ser baixado na internet www. smetal.org.br/bibliotecadigital Em 2011, o jornalista Mário Magalhães lançou o livro “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo”, pela Companhia das Letras e cita Chico Gomes no capítulo 29, na ação do trem pagador. A obra foi roteirizada para o cinema e a direção fica por conta do ator Wagner Moura. O filme será rodado em 2015. O filme, assim como o livro, deve tocar os jovens para que eles saibam o que é morrer por uma causa.

"Precisamos entender e passar a história a limpo"

Biografia do guerrilheiro, de autoria do jornalista Mário Magalhães. Chico Gomes é citado no livro

Foguinho

O ex-ferroviário Francisco Gomes, 82 anos, que saiu de Sorocaba em 1949 em busca de emprego em São Paulo, foi um dos sorocabanos que teve de ser exilado para não ser morto pela ditadura. Além de líder sindical ele militava no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e participou de diversas assembleias de trabalhadores da ferrovia, em São Paulo. Fora a perseguição e a cassação dos direitos após o golpe de estado, ele foi ameaçado de morte pelos agentes da repressão. Junto com o guerrilheiro Carlos Marighella, Beduíno, seu apelido na época, saiu do Partidão e fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN). Entre as ações que planejaram juntos está o assalto ao trem pagador, nos trilhos da Estada de Ferro Santos-Jundiaí. Parte de sua trajetória é contada no livro “Ditadura e repressão em Sorocaba” (Linc, 2003), da jornalista Fernanda Ikedo e que o Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região lançou em versão ebook

Nas ruas, sem livro e com documento Foguinho

Arquivo / SMetal

A censura imperava no período da ditadura. Não havia notícia sobre as gestões dos militares. Mas o medo imperava e a certeza de que não se podia sair na rua sem documento, nem se discutir certos assuntos

Metalúrgicos, liderados pelo Sindicato, enfrentaram a polícia em assembleias e greves nos anos 80, final da ditadura

A maioria da categoria metalúrgica de Sorocaba e região não vivenciou o período da ditadura militar. De acordo com perfil elaborado pela subsede do Dieese do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região, com base na RAIS de 2012, o setor é ocupado em grande parte por jovens de 18 a 29 anos. Eles representam 39,83% (ou 17.098) do total de tra-

O geógrafo Paulo Celso destaca que o grande medo de ditadores é o acesso à comunicação e a informação

balhadores, seguido pelos trabalhadores entre 30 a 39 anos 33,57% (ou 14.403) e os que possuem entre 50 e 64 anos com 25,71% (ou 11.035). Os menores valores cabem aos trabalhadores com menos de 18 anos e aos que possuem mais de 65 anos, representando apenas 0,58% (ou 250) e 0,31% (ou 133) trabalhadores, respectivamente.

O geógrafo e coordenador do curso de pós-graduação de Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), Paulo Celso da Silva, afirma que “muita gente que viveu o período, pouco percebeu do que acontecia. Sabia que os militares estavam no poder e chamavam - chamam - o golpe de revolução. Era o cotidiano das pessoas e elas não questionavam.”

Mesmo assim, havia um medo incutido na mentalidade da sociedade em geral. Sabia-se que não podia sair de casa sem documentos, nem andar em grupos, nem discutir certos assuntos. “Em um regime onde não existem direitos civis, o documento indica que você existe para o Estado, ainda que não tenha direitos”, comenta Paulo Celso.


"Que sonha com a volta Do irmão do Henfil. Com tanta gente que partiu Num rabo de foguete" O BÊBADO E A EQUILIBRISTA - JOÃO BOSCO E ALDIR BLANC Página 4

Sorocaba na mira

Aprendizagem Um dos fundadores do PT em Votorantim, José Carlos de Campos Sobrinho, o Té, comenta que no início da ditadura poucas pessoas tinham noção do que realmente estava acontecendo. “Muitos setores estavam em uma euforia preparada, como setores da igreja, políticos e sindicatos com direção pelega”. Mas em contato com alguns sindicalistas do setor têxtil, que foram

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muito combativos, Té foi impactado pelas notícias de perseguições e prisões em Votorantim. Greves eram reprimidas, listas negras contendo nomes de trabalhadores que eram militantes populares eram feitas e, como consequência, esses não conseguiam mais emprego. Esse foi o caso também pelo qual passou, mais tarde, no início da década de 80, o deputado estadual Hamilton Pereira, que foi cipeiro de fábrica metalúrgica. Ele afirma que na época a mentalidade do setor patronal era ter nos policiais militares um braço da empresa para reprimir as assembleias de trabalhadores. Seu nome constou em uma dessas listas negras feitas por empresários e dirigentes e, com isso, Hamilton não conseguia emprego na cidade. “Às vezes, passava até pela entrevista, mas na hora de assumir o cargo, diziam que houve um problema na minha ficha."

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Sorocaba sempre foi operária, com destaque para os têxteis e os ferroviários, que tinham expressivos números de trabalhadores. A partir dos anos 80 os metalúrgicos também intensificaram sua organização como mostra a foto, com trabalhadores em frente à antiga sede do Sindicato, na rua da Penha

Té, ex-líder sindical, é um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) em Votorantim

Inflação alta, situação econômica cada vez mais complicada. Hamilton contou com o apoio de dois ferroviários de quem ele é grato até hoje: Brasil Mirim (falecido) e Francisco Gomes, o Chico Gomes. Com a ajuda desses companheiros Hamilton passou a trabalhar na Estrada de Ferro Sorocabana, em São Paulo. Como não havia vagas nas oficinas ele atuou por dois anos e meio

Saiba mais lendo mais O professor de história Miguel Trujillo Filho (foto), torturado pela ditadura civil-militar ressalta: “O Brasil poderia ser hoje outro país se as propostas apresentadas por João Goulart no comício da sexta feira, 13 de março de 1964, tivessem sido implementadas. Não houve tempo. No dia 1º de abril de 1964, a direita (civil e militar) deu o golpe, dando início a uma ditadura que durou 21 anos e que deixou suas marcas até hoje”. Trujilo indica como leitura a tese de pós-doutorado do historiador carioca Oswaldo Munteal, sobre "As Reformas de Base na Era Jango", pois as Reformas de Base, 50 anos depois do golpe de 1964 continuam na ordem do dia. A obra pode ser baixada na Biblioteca Digital do site do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região. “A partir da página 129 há uma série de anexos, onde estão incluídos o discurso de Jango em 13 de março e um resumo das Reformas de Base, num artigo de Roland Corbisier”.

fazendo manutenção em dormentes de trechos da Estrada. Teve contato com muitos operários praticamente analfabetos e, com isso, teve também a oportunidade de compartilhar seu conhecimento, mesmo após horas de exaustivo trabalho. Começava assim uma longa amizade de Hamilton com os demais trabalhadores e um processo de alfabetização nos trilhos da Sorocabana. Foguinho

O artigo “Manchester PaulistaxMoscou Brasileira”, do geógrafo Paulo Celso da Silva, traz relatos de entrevistas de moradores de Sorocaba e que demonstram um pouco do aparato repressor existente na década de 60, pós golpe. A dominação e o controle do patronato sobre os operários é citado: “Lá na Votorantim, o gerente resolvia até as brigas de crianças e seus pais corriam o risco de levar suspensões ou advertências conforme a gravidade do caso. O gerente ficava de janela aberta vendo a gente brincar no pátio”. (pág. 19, da Revista Estudos Universitários v. 23, dez de 1997). No auge da exportação de tecidos, o professor e pesquisador Aldo Vannucchi, que atuou na sociedade como padre por cerca de 20 anos (1958 a 1970), lembra que a Companha Nacional de Estamparia (Cianê) “nadava em ouro e em sangue. Este, dos trabalhadores (homens e mulheres) que trabalhavam, inclusive aos finais de semana e cumpriam jornadas diárias de mais de 10 horas”. Todas essas injustiças e arbitrariedades eram situações “normais” na sociedade e no país como um todo, que se “justificava” pela ausência de direitos civis e políticos do povo diante a um estado golpeado e por uma ditadura que se prolongou por 21 anos. No Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região, o ex-presidente da entidade e atual assessor político, Geraldo Titotto Filho, que também é professor de história, conta que a ditadura manteve, pela intervenção, uma diretoria sindical que estava desvinculada dos desejos e necessidades dos trabalhadores metalúrgicos. “Omissa e sem compromisso”, declara. As eleições realizadas no pós golpe até 1980 não eram legítimas, pois as principais lideranças sindicais de oposição eram perseguidas.

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O golpe de estado afetou e modificou a trajetória das organizações sindicais, dos movimentos e das categorias profissionais como os ferroviários e os têxteis


"Os povos que não podem ou não querem confrontarse com seu passado histórico estão fadados a repetí-lo" DOM PAULO EVARISTO ARNS

Alexandre Vannucchi, lembrar é resistir

41 anos da morte de ‘Minhoca’ No dia 17 de março completou-se 41 anos do brutal assassinato de “Minhoca”, estudante de geologia que insistiu no sonho de uma nação soberana em meio à ditadura militar. Com formação fraternal e solidária, Alexandre Vannucchi Leme dedicou-se a pensar o Brasil como uma nação soberana, com seus recursos naturais, mantendo vivo o sonho de ver o povo tendo acesso a todos os direitos básicos, de moradia, alimentação, saúde e educação. Sorocabano, nascido em 5 de outubro de 1950 e de família tradicionalmente católica, “Minhoca”, como era chamado pelos amigos, cursava o último ano do curso de geologia da Universidade de São Paulo, quando aos 22 anos calaram sua voz na luta em defesa de seus ideais. Devido a sua engajada participação no movimento estudantil e como integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Alexandre foi alvo de perseguição de agentes da repressão do governo militar, que estavão na mão do general Emílio Garrastazu Médici. Em 16 de março de 1973, o estudante foi seqüestrado e levado ao DOICODI, centro de torturas, de São Paulo. Logo sua presença foi notada por outros presos políticos que estavam em celas do corredor dessa instituição. Espancado durante sessões de bárbaras torturas, gritando de dor, Alexandre foi colocado na solitária

x-zero. No dia seguinte, foi levado pela equipe A, chefiada pelo torturador de nome “Dr. José” e pelo investigador conhecido por “Dr. Tomé”, e integrada por: “Caio ou Alemão”, “Dr. Jacó”, “Silva”, “Rubens”, comandados diretamente pelo comandante daquele departamento, major Carlos Alberto Brilhante Ulstra. As torturas seguiram até aproximadamente meio-dia, quando o levaram carregado para a cela novamente. Por volta das 17 horas, o carcereiro “Peninha” encontrou Alexandre morto. Seu corpo foi retirado da x-zero arrastado pelas pernas. Naquele mesmo dia prenderam Adriano Diogo, hoje deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT-SP). “Na solitária que eu entrei, ele acabava de sair morto, esvaindo em sangue. Foi morto lá e eu sei que ele não falou absolutamente nada”, conta Adriano, que era da mesma turma da geologia e também da ALN e ficou preso por cerca de um ano. Ele ressalta, em entrevista ao documentário “Porque lutamos” (Linc 2008), da jornalista Fernanda Ikedo, que seu amigo Alexandre sempre foi um estudioso dedicado. “Tinha uma relação de irmão com ele. O cara tinha um nível de leitura absurdo, era super diferenciado. No trote do Alexandre, ele já escreveu um texto so-

bre a transamazônica e o ferro manganês e saímos pelo campus dando palestra”, recorda. A família não sabia do desaparecimento de Alexandre. Somente após um telefonema anônimo, Dona Egle Vannucchi Leme, mãe do estudante, recebeu a informação de que seu filho tinha sido preso, mais nada. Com a atrocidade da estrutura montada pela ditadura militar e ignorando as dores da família, os torturadores tentaram cobrir o assassinato do estudante divulgando para a imprensa uma versão: o estudante teria sido atropelado por um caminhão na esquina da rua Bresser com a avenida Celso Garcia, em São Paulo. Foi desse modo, pelo jornal Folha de S. Paulo, do dia 23 de março de 1973, que parentes e amigos tomaram conhecimento do que havia acontecido a Alexandre. O laudo necroscópico dele, assinado pelos médicos Isaac Abramovitc e Orlando Brandão, afirmava a versão da polícia.

Mobilizações por todo o país reorganização do movimento estudantil. Adriano Diogo possui a mesma opinião: “a ditadura começou a cair naquele dia, no dia em que o movimento estudantil se organizou com dom Paulo”. O corpo de Alexandre foi jogado numa vala do cemitério de Perus, como indigente, ou seja, sem qualquer identificação, mesmo tendo sido publicada em diversos jornais a notícia da morte do estudante com os dados pessoais, incluindo a filiação correta. Somente dez anos depois, em 1983, a família conseguiu fazer o traslado dos restos mortais para o cemitério de Sorocaba, cidade natal do estudante. Arquivo

Tanto a comunidade católica como os estudantes mobilizaram-se realizando protestos, culminando na grande missa realizada na Catedral da Sé, que reuniu cerca de três mil pessoas e demonstrou a mobilização do povo contra a ditadura militar. Os estudantes da USP solicitaram ao cardeal dom Paulo Evaristo Arns essa missa em homenagem a Alexandre. Ela ocorreu em 30 de março, numa clara demonstração de bravura e resistência do povo. A historiadora Maria Aparecida de Aquino, professora de História Contemporânea da USP, em entrevista ao documentário, afirma que essa mobilização acarretou na

Praça na avenida Afonso Vergueiro recebe o nome do estudante. Aldo Vannucchi na solenidade na Escola Getúlio Vargas, no traslado dos restos mortais

REPARAÇÃO Justiça muda atestado de óbito de Alexandre Vannucchi Leme Em dezembro de 2013, a 2ª Vara de Registros Públicos do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, em sentença proferida pela juíza Renata Mota Maciel Madeira Dezem, a retificação da causa da morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme. O pedido de retificação foi feito pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e assinado pelo então coordenador José Carlos Dias após requerimento dos irmãos da vítima. Em ofício a CNV apresentou documentos que comprovam que a morte de Vannucchi Leme foi causada por lesões decorrentes de tortura. A magistrada deferiu o pedido e ordenou a retificação no atestado de óbito de Alexandre Vannucchi, para constar que a morte decorreu de lesões provocadas por tortura e maus tratos.


"O homem educado pela História nunca será um ser passivo, inconsequente" RAFAEL RUIZ

Tortura nunca mais

Sorocabanos na luta pelas liberdades democráticas Comitê Brasileiro de Anistia em Sorocaba apoiou protestos por melhores condições de saúde e principalmente, esteve à frente na luta pela reparação e justiça da morte de Alexandre Vannucchi Leme

Repressão O DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) juntamente com os DOI-CODI eram os organismos que prendiam ilegalmente, torturavam e matavam os opositores da ditadura no Brasil. As manifestações contra o aumento da miséria eram reprimidas durante a ditadura com perseguições e violações dos direitos civis. Entre os crimes do período 1964 a 1985 constam: prisões, torturas, mortes, desaparecimentos, fechamento do Congresso Nacional, intervenção nos sindicatos, censura a jornalistas, entre outros.

Reparação Em 2013, na presença dos chefes das Forças Armadas e da presidente Dilma Rousseff, o Congresso devolveu, simbolicamente, o mandato do presidente João Goulart (1919-1976), deposto pelo golpe.

Pouco antes, os parlamentares anularam a sessão do Congresso de 2 de abril de 1964 que viabilizou o golpe ao declarar vaga, na ocasião, a Presidência da República. A Comissão Nacional da Verdade foi instituída pelo Governo Federal para apurar crimes e arbitrariedades da ditadura.

Crime de opinião Para ela, é fundamental que se apure e denuncie todos os aparatos de repressão existentes na época em prol da memória da cidade e daqueles que lutaram para a conquista da democracia que se tem hoje. Ela destaca que durante a di-

tadura civil e militar havia o crime de opinião. Durante seu mandato na Câmara dos Vereadores de Sorocaba, no início da década de 80, pelo Partido dos Trabalhadores, diversas vezes ela e Osvaldo Noce, também vereador, foram ameaçados de serem enquadrados A deputada federal Iara Bernardi foi fundadora do CBA Sorocaba na Lei de Segurança Nacional por criticarem ações dos Carta de princípios governos local, estadual e/ou naO CBA conclamou a todos os cional. brasileiros a lutarem pela anistia ampla e irrestrita a todos os prePerseguição sos e perseguidos políticos. Era Em uma das fichas do Depar- contra o autoritarismo, contra a tamento Estadual de Ordem Polí- censura imposta pela ditadura, tica e Social (Dops), da Secretaria a favor da liberdade de associada Segurança Pública, do dia 11 ção e de reunião, pela autonomia de agosto de 1982, percebe-se que sindical, pelo direito de greve, havia policiais infiltrados em uma pela liberdade de atuação polímanifestação promovida pelo então tica e da organização partidária. combativo Centro Acadêmico Vital Os comitês espalhados pelo Brasil, da Faculdade de Medicina Brasil exigiam o fim radical e da PUC/Sorocaba. absoluto das torturas, a libertaA ficha (1217/82) denuncia que ção de presos políticos e a volta os manifestantes protestavam pelas dos cassados, dos abolidos, exiprecárias condições do Conjunto lados e perseguidos políticos. Hospitalar de Sorocaba e que entre Pela elucidação da situação eles estavam integrantes da Asso- dos desaparecidos, pela reconciação dos Médicos Residentes de quista do “habeas-corpus”, pela Sorocaba, da Associação dos Do- revogação da Lei de Segurança centes, junto de estudantes e “po- Nacional e fim da repressão e dendo-se notar a presença de Iara das normas punitivas contra a Bernardi, Osvaldo Noce, Jocélio atividade política, os militantes Drumond de Andrade e Elizabeth do CBA, enfim, apoiavam as Gonzales”, entre outros membros lutas pelas liberdades democrádo Comitê Brasileiro de Anistia. ticas no país.

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No final da década de 70, após duros golpes como as mortes do estudante Alexandre Vannucchi Leme, em 1973, a do jornalista Vladimir Herzog, no ano seguinte e a do operário, Manoel Fiel Filho, em 1976, a sociedade passou, novamente, a unir forças e a se organizar em torno do Comitê Brasileiro de Anistia (CBA). Em Sorocaba, a coordenação do CBA contou com a participação de militantes populares, professores, estudantes e profissionais liberais. Nomes como Iara Bernardi, Osvaldo Noce, Jocélio Drumond de Andrade e Elizabeth Gonzales. Iara lembra que um dos enfrentamentos feito pela coordenação de Sorocaba foi junto com a família Vannucchi, devido à morte, após torturas, do estudante Alexandre, aos 22 anos. Em depoimento, durante a primeira audiência pública da Comissão Municipal da Verdade, no dia 28 de março, a atual deputada federal ressaltou que fará um levantamento das atas e dos livros históricos do CBA Sorocaba para levantar nomes de dirigentes da cidade, durante o período do regime, que deram apoio à ditadura.

A Praça Alexandre Vannucchi Leme fica na avenida Afonso Vergueiro com a rua Amazonas. Sua denominação, em 1978, pelo vereador João dos Santos Pereira (camisa branca) foi alvo de perseguição política ao então vereador do MDB. Uma das principais ações do Comitê Brasileiro de Anistia, em Sorocaba, foi dar o apoio à memória de Alexandre. A praça é um marco de resistência na cidade.


" Não esqueçamos jamais que as idéias são menos interessantes do que os seres humanos que as inventam, modificam, aperfeiçoam ou traem." FRANÇOIS TRUFFAUT. Página 7

O golpe foi civil e militar O apoio de setores importantes da sociedade civil contribuiu para o ciclo dos generais no poder. Sem contar que os militares contaram com extenso apoio do governo norte-americano O professor de história do Colégio tamento de Educação da UFSCar SorocaObjetivo de Sorocaba, Cacá Jacomuci, ba, Teresa Melo, destaca “um bom exemexplica que o uso da expressão ditadura plo está no filme 'Cidadão Boilesen'." civil-militar vem sendo utilizada pelos Antonio Lassance, no site Carta Maior, historiadores para designar o período de explica que qualificar a ditadura só como 1964 a 1985 como forma de destacar que "militar" escamoteia o papel dos civis. o golpe e o período autoritário não foi ca“Foram os militares que deram o golpe, pitaneado apenas pelos militares. O golque indicaram os presidentes, que comanpe contou com amplo apoio de setores da daram o aparato repressivo e deram as orsociedade civil (OAB, dens de caçar e exterminar FIESP, Associações grupos de esquerda. Mas a Comerciais, latifundiáditadura não teria se instalarios, grande imprensa) do não fosse o apoio civil e "O golpismo e o regime teve a partambém a ajuda externa do não tinha só ticipação outros setores governo Kennedy." civis. Ele ainda descreve que: tanques e fuzis. “Empresários como "o golpismo não tinha só Tinha partidos Paulo Maluf (Eucatex) tanques e fuzis. Tinha pardireitosos" e Olavo Setúbal (Itaú) tidos direitosos; veículos tornarem-se prefeitos de imprensa agressivos; biônicos (nomeados) empresários com ódio de de São Paulo. Robersindicatos; fazendeiros to Marinho ganhou a concessão de uma armados contra Ligas Camponesas, reliemissora de televisão que apoiou, até o giosos anticomunistas. Todos tão ou mais último momento, o regime de exceção. A golpistas que os militares". utilização da expressão Ditadura Militar Sem os civis, os militares não iriam tende a isentar esses setores civis de cullonge. A ditadura foi tão civil quanto mipa pela instalação e manutenção do regilitar. Tinha seu partido da ordem; sua imme, o que é um erro histórico”, explica prensa dócil e colaboradora; seus empreCacá Jacomuci. sários prediletos; seus cardeais a perdoar No mesmo tom, a professora do deparpecados.

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A ditadura assassinou gerações

Titotto aborda a importância de se conhecer os fatos históricos

“Uma das piores consequências da ditadura no Brasil foi ter assassinado as lideranças de hoje”, afirma o professor de história e ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região, Geraldo Titotto Filho. Ele se refere ao período da ditadura (1964-1985), que perseguiu e matou a juventude da época e também a geração seguinte, ceifando seus sonhos. Por isso, Titotto, que também é assessor sindical do SMetal, ressalta ser importante promover a discussão sobre o contexto do golpe e as consequências da ditadura nos dias de hoje. “É importante fazer esse resgate da verdade histórica, principalmente, pelos jovens que vivem uma condição democrática que não foi dada e sim conquistada com muita resistência." Quando alguns jovens vão para as ruas e pedem pelo retorno dos militares no país e mostram cartazes pedindo uma “intervenção constitucional” você nota que há algo de muito errado em relação ao conhecimento histórico e, inclusive, desconhecimento da lei maior do país. “De certa forma, os militares conseguiram escon-

der as atrocidades e a completa falta de respeito dos direitos humanos. Quando algumas vozes pedem os militares no governo, novamente, é como se o período que eles governaram tivesse livre, isento de corrupção e de obras faraônicas (superfaturadas) que ligam o nada ao lugar nenhum”, destaca. Como afirma Antonio Lassance, em "A maioria artigo no site Carta da categoria Maior, “ditaduras metalúrgica não são regimes corruptos por excelência”. viveu o período Ele explica: “corrupda ditadura, mas ção acobertada pelo autoritarismo, pela precisa conhecer e ausência de mecanisestudar o período" mos de controle, pela regra de que as autoridades podem tudo”. Titotto deixa seu recado aos jovens: “É preciso sonhar e ousar. Para isso, conhecimento é o ponto de partida para qualquer reflexão e perspectiva futura”.

Saiba mais na web: smetal.org.br/50anos


"Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão", PAULO FREIRE Página 8

Presidente deposto pelo golpe foi eleito com voto popular Por desconhecimento ou má-fé, há hoje em dia quem tente minimizar a violência do golpe de 1964 alegando que o presidente deposto, João Goulart, o Jango, originalmente era vice-presidente e que, portanto, não havia sido eleito pelo voto popular. Mas qualquer livro básico de História desmente essa tese descabida. Em 1960, quando houve eleições presidenciais, os votos para presidente e para vice eram separados e independentes. O eleitor podia escolher o presidente de um partido ou coligação e o vice de outra agremiação. Para presidente, o candidato da elite conservadora e fenômeno eleitoral da época, Jânio Quadros, obteve 5,6 milhões de votos. O segundo colocado foi Henrique Teixeira Lott, com 3,8 milhões de votos. Na votação para vice, João Goulart, que se opunha à coligação de Jânio, obteve 4,5 milhões de votos. Seu concorrente direto, Mil-

Milhares comparecem ao Comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em defesa das reformas de base do governo João Goulart, em 13 de março de 1964

ton Campos, candidato dos conservadores, teve 4,2 milhões. Jango teve, portanto, mais votos para vice do que o segundo colocado para presidente. Renúncia de Jânio Quando Jânio renunciou à Presidência, depois de apenas sete meses de governo, os golpistas só aceitaram a posse de Jango mediante a implantação de um sistema parlamentarista, que reduziu os poderes presidenciais. Em 1963, após um plebiscito que decidiria se o Brasil continuaria parlamentarista ou voltaria ao modelo presidencialista, Jango provou novamente que era bom de voto e foi conduzido à presidência com os poderes constitucionais aos quais tinha direito. Outra prova da popularidade de Jango foi na eleição anterior, em 1955, quando obteve mais votos que o presidente eleito, Juscelino Kubitschek.

Fatos e imagens para não esquecer Confira abaixo alguns dos momentos registrados pela imprensa sorocabana no período de 1964-1985


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