Sociologias Plurais - Revista Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia, s.v., n. especial

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Reitor: Prof. Dr. Zaki Akel Sobrinho Vice-Reitor: Prof. Dr. Rogério Andrade Mulinari SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Diretora: Profa. Dra. Maria Tarcisa Silva Bega Vice-diretora: Profa. Dra. Norma da Luz Ferrarini PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Coordenador: Prof. Dr. Alfio Brandenburg Vice-coordenadora: Profa. Dra. Miriam Adelman SOCIOLOGIAS PLURAIS – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR. Campus Reitoria, Curitiba, s/v., n. especial 2, jun. 2014. Semestral ISSN: 2316-9249 COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA Carolina Ribeiro Pátaro, Diego Coletti Oliva, Elisa Tkatschuk, Roberto da Silva Jardim, Tatiana Araújo Berghauser. CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alexandro Trindade (UFPR), Prof. Dr. André Augusto Michelato Ghizelini (UFES), Profa. Dra. Andrea Osório (UFF), Prof. Dr. Angelo José da Silva (UFPR), Prof. Antonio Carlos Richter (FAE e ESIC), Profa. Dra. Benilde Motim (UFPR), Profa. Dra. Cláudia Elisabeth Pozzi (FJAU e FADISC), Prof. Ms. Dinaldo Almendra (UNICENTRO), Prof. Ms. Fagner Carniel (UEM), Prof. Dr. Flávio Sarandy (UFF), Prof. Ms. George Gomes Coutinho (UFF), Prof. Dra. Gisele Rocha Cortes (UFPB), Profa. Ms. Janaina Matida (Universidad de Girona), Prof. Dr. Jorge Leite Junior (UFSCar), Prof. Dr. José Luiz Cerveira (UFPR), Prof. Dr. José Miguel Rasia (UFPR), Profa. Dra. Jussara R. Araújo (UFPR), Profa. Dra. Larissa Pelúcio (UNESP), Profa. Dra. Leila de Menezes Stein (UNESP), Profa. Dra. Liliane Maria Busato Batista (PUC-PR), Profa. Dra. Luciana Veiga (UFPR), Prof. Dr. Marcelo Santos (UNESP), Prof. Dr. Marcio Oliveira (UFPR), Prof. Dr. Marcos Ferraz (UFGD), Profa. Dra. Maria Aparecida Bridi (UFPR), Profa. Dra. Maria Tarcisa Silva Bega (UFPR), Profa. Dra. Marlene Tamanini (UFPR), Prof. Dr. Milton Lahuerta (UNESP), Profa. Dra. Miriam Adelman (UFPR), Prof. Dr. Mohsine El Ahmadi (Faculté de Droit Cadi Ayyad), Profa. Dra. Nadya Araujo Guimarães (USP), Prof. Dr. Nelson Rosário de Souza (UFPR), Profa. Ms. Paula Grechinski (UNICENTRO), Prof. Dr. Paulo Roberto Neves Costa (UFPR), Dra. Patrícia Branco (Universidade de Coimbra), Prof. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (UFPR), Profa. Dra. Poliana Fabíula Cardozo (UNICENTRO), Prof. Dr. Renato Monseff Perissinotto (UFPR), Prof. Dr. Richard Miskolci (UFSCar), Profa. Dra. Rosane Rosa (UFSM), Prof. Dr. Sidartha Sória e Silva (UFU), Profa. Dra. Simone Meucci (UFPR), Prof. Dr. Valdo José Cavallet (UFPR), Dr. Valério Nitrato Izzo (Università di Nápoli “Federico II”), Profa. Dra. Vania Penha Lopes (Bloomfield College), Prof. Dr. Wanderley Marchi Jr. (UFPR). APOIO Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR DESIGN GRÁFICO E WEBMASTER Carolina Ribeiro Pátaro e Diego Coletti Oliva ENDEREÇO SOCIOLOGIAS PLURAIS Coordenação Programa de Pós-graduação em Sociologia Rua General Carneiro, 460, 9º andar, Ed. D. Pedro I, Curitiba - PR http://www.sociologiasplurais.ufpr.br/ Contato: sociologiasplurais@gmail.com


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO GT 1 – TEORIA POLÍTICA TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA AS CONTRIBUIÇÕES DE ROBERT DAHL 1 Antonio Kevan Brandão Pereira GT 2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES GRUPOS FINANCEIROS NO CONTEXTO DA CRISE (2008): UMA ANÁLISE DOS GRUPOS BRADESCO E ITAÚSA ............................................................................ 17 Gabriela Augusta da Silva GT 3 – INSTITUIÇÕES E PODER FUTEBOL, PODER E GENEALOGIA: A TRÍADE ESTRUTURANTE DA DOXA DO CAMPO FUTEBOLÍSTICO DE CURITIBA ............................................................................. 46 Luiz Demétrio Janz Laibida GT 4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E FEDERALISMO: CONTROLE ABSTRATO/CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO MECANISMO PARA LIMITAR A DESCENTRALIZAÇÃO ......................................................................... 63 Fernando Santos de Camargo

GT 8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO SOCIAL NOS PLANOS DIRETORES DA SUDENE (19591964) ................................................................................................................. 87


Rafael Gonçalves Gumiero GT 9 – SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO SUPERIOR E JUSTIÇA SOCIAL: UMA AVALIAÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO PELO PROUNI ............................ 107 Cristina Fioreze Julio Cesar Godoy Bertolin GT 10 – TRABALHO E SINDICALISMO OS INVISÍVEIS ENTRE OS INVISIBILISADOS: CATADORES E CLUBES DE TROCA E O DESAFIO DA SOLIDARIEDADE ........................................................................... 127 Magda Luiza Mascarello Maria Izabel Machado GT 12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO OS "ARTISTAS DA SEDUÇÃO": ENTRE MÉTODOS E TÉCNICAS, UMA MASCULINIDADE ............................................................................................. 145 César Bueno Franco GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ATORES E REDES NO PROCESSO DE FORMULAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR (PRONAF) .............................. 165 Deise Donatoni Casado GT14 – CONTROLE SOCIAL, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS SERPENTES NEGRAS: FANTASMA DAS COMISSÕES DE SOLIDARIEDADE OU PRECURSORA DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (PCC)? ............................ 185 Camila Caldeira Nunes Dias Fernando Salla Gustavo Higa


Marcos César Alvarez GT15 – ESTUDOS SOCIOCULTURAIS DO ESPORTE CORPOS ATLETAS: DOPING E POLÍTICAS DA AGÊNCIA MUNDIAL ANTIDOPING (WADA-AMA) .................................................................................................. 196 Viviane Teixeira Silveira GT16 – SOCIOLOGIA DA SAÚDE REFORMA PSIQUIÁTRICA E POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL: UMA ANÁLISE DOS ATORES ............................................................................. 220 Camila Muhl Fábia Berlatto GT17 – SOCIOLOGIA DA CULTURA ANONYMOUS NAS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO: UMA PROPOSTA TEÓRICA .... 238 Michele Caroline Torinelli Ana Luisa Fayet Sallas


COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA

APRESENTAÇÃO NÚMERO ESPECIAL 2 É com muita satisfação que a Comissão Editorial Executiva da revista discente do programa de pós-graduação em Sociologia da UFPR – Sociologias Plurais apresenta esse número especial de nossa revista. Este número especial que lhes apresentamos é um trabalho em conjunto entre a nossa revista Sociologias Plurais e o V Seminário Nacional de Sociologia e Política – Desenvolvimento e Mudanças Sociais em Contextos de Crise, no qual os grupos de trabalho optaram por selecionar um artigo para constar nessa edição. Assim apresentamos a vocês 13 artigos que merecem destaque no Seminário e parabenizamos aos autores e autoras selecionados e agradecemos a todos/as que participaram do V Seminário e que contribuíram de forma direta ou indireta para este número tornar-se realidade. Os grupos de trabalho do V Seminário visavam os mais diversos temas dentro das áreas de Sociologia e Política, trazendo assim a pluralidade que temos como foco em nossa revista, com as sociologias em diálogo com as mais diversas áreas de conhecimento. Agradecemos em especial a todos os pós-graduandos/as que trabalharam para que essa revista fosse possível. Aos professores/as que endossaram nossa revista e nos incentivaram com os melhores votos de sucesso, sabendo do nosso comprometimento em fazer da Sociologias Plurais uma grande rede de saberes. Agradecemos também ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR pelo apoio e por acreditar no trabalho discente.

Esperamos que apreciem esta edição da Revista, Comissão Editorial Executiva Sociologias Plurais.


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TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA: AS CONTRIBUIÇÕES DE ROBERT DAHL Antonio Kevan Brandão Pereira1 Resumo: Este artigo analisa o conceito de poliarquia na obra de Robert Dahl. O autor faz uma distinção entre “democracia ideal” e “democracia real”. Para ele, a palavra “democracia” evoca o cenário grego original de participação direta, não sendo mais adequada para classificar os regimes representativos contemporâneos. Tais regimes são pobres aproximações dos ideais democráticos, e que por isso devem ser classificados como “poliarquias”. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, o trabalho objetiva evidenciar e analisar, mais especificamente, a investigação que o autor realizou no seu clássico livro “Poliarquia: Participação e Oposição”, no qual ele abordou o tema da transição de regimes, procurando compreender quais as condições que favorecem ou impedem a transição de um regime não poliárquico para um regime poliárquico. Palavras-chave: Robert Dahl, Teoria Democrática, Democracia, Poliarquia. INTRODUÇÃO O cientista político Robert Alan Dahl (1915 – 2014) fez toda a sua carreira acadêmica na Universidade de Yale, onde se tornou professor de Teoria Política logo após obter seu doutorado em 1940. Autor de vasta obra, Dahl configurou-se como um dos principais pensadores da teoria democrática no século XX. Ao longo de quase seis décadas, publicou vários livros e artigos, dentre os quais podemos destacar os seguintes: “A Preface to Democratic Theory” (1956), “A Critique of the Ruling Elite Model (1958), “Who Governs?” (1961), “Modern Political Analysis” (1963), “Pluralist Democracy in the United States” (1968), “After the Revolution?: Authority in a Good Society” (1970), “Polyarchy: Participation and Opposition” (1971), “Dilemmas of Pluralist Democracy: Autonomy vs. Control” (1982), “A Preface to Economic Democracy” (1985), “Democracy and Its Critics” (1989), “On Democracy” (1998), “On Political Equality” (2006). Como reconhecimento por toda a sua contribuição, Robert Dahl recebeu muitos prêmios e títulos na área da ciência política. Foi professor emérito de ciência

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Graduado em Ciências Políticas e Mestre em Sociologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Email: kevbrandao@hotmail.com

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política da Universidade de Yale, membro da Associação Americana de Ciência Política – tendo sido presidente da mesma em 1967 – membro eleito da Academia Americana de Artes e Ciências, da Sociedade Americana de Filosofia, da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, e da Academia Britânica. Durante a sua longa e profícua trajetória como professor e pesquisador, Dahl tratou essencialmente do tema da democracia. Em seus escritos, ele investigou a teoria democrática clássica e moderna, dialogou com diferentes correntes da ciência política, questionou os pressupostos de várias teorias e, principalmente, reforçou a importância da pesquisa empírica. Preocupado em investigar o funcionamento, os limites, as dificuldades, e as possibilidades da democracia nos Estados nacionais, Dahl utilizou um importante conceito que passou a influenciar muitos estudos no âmbito da teoria democrática, qual seja, o conceito de “Poliarquia”. Segundo o autor, a palavra “democracia” evoca o cenário grego original, de participação direta. As democracias contemporâneas são pobres aproximações dos ideais democráticos, e que por isso devem ser classificadas como “poliarquias”. Mais especificamente, ele desenvolveu uma teoria que procura compreender quais condições favorecem ou desfavorecem a transição de um regime não poliárquico para um regime poliárquico. Foi a partir da utilização de novos conceitos, e também de novos métodos de análise, que sua produção intelectual ganhou destaque na segunda metade do século XX, influenciando diversos estudiosos em várias partes do mundo. É por isso que François Chantal afirma que a “trajetória intelectual de Dahl conferiu a ele o título de um dos grandes teóricos da democracia no século XX, ao lado de Joseph Schumpeter e Giovanni Sartori”. (CHANTAL, 2001, p.155). Renato Lessa ressalta que “quem lida com a teoria democrática não pode desconsiderar o trabalho de Dahl; sua obra é uma das mais importantes da ciência política na metade final do século XX”. (LESSA, 1997, p.10). Fernando Limongi enfatizou ainda mais a relevância do pensamento dahlsiano, pois para ele, “é possível afirmar, sem risco de exagero, que Dahl contribuiu decisivamente para definir os contornos do que hoje se entende por democracia”. (LIMONGI, 1997, p.11). A importância da obra de Robert Dahl justifica a nossa escolha em analisar neste artigo o conceito de poliarquia desenvolvido em sua teoria. Como bem colocou Terence Ball, “o pensamento e a teorização política é uma atividade importante e necessária”. (BALL, 2004, p.11).

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ROBERT DAHL E O PLURALISMO Ao longo dos anos, a teoria dahlsiana tem sido analisada por vários estudiosos da política. Existe praticamente um consenso entre eles de que a contribuição de Robert Dahl ao tema da democracia parte das inovações apresentadas pelo pensamento de Joseph Schumpeter. Ao questionar a teoria clássica da democracia, segundo a qual este sistema de governo consiste na realização do bem comum através da vontade geral do povo, Schumpeter estabeleceu no seu clássico livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, as bases de uma nova concepção para o sistema democrático. Em um dos trechos mais importantes dessa obra, ele nos diz que: A democracia é um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa) e, por isso mesmo, incapaz de ser um fim em si mesmo, sem relação com as decisões que produzirá em determinadas condições históricas. E justamente este deve ser o ponto de partida para qualquer tentativa de definição. (SCHUMPETER, 1961, p.295-6).

Nesse sentido, a definição de Schumpeter estabelece a democracia como um método, ou seja, “como um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”. (SCHUMPETER, 1961, p.327-8). Aqui, a democracia nada mais é do que um mecanismo para escolher e autorizar governos – e não uma meta moral – através da competição entre elites por votos em eleições periódicas. Contudo, é interessante ressaltar que existem diferenças consideráveis entre as abordagens de Joseph Schumpeter e Robert Dahl. O grande mérito de Schumpeter foi demonstrar que não há incompatibilidade de princípio entre realismo político e democracia – e isto foi apropriado por Dahl –, entretanto, é necessário colocar que a “concepção dahlsiana da democracia evitou tanto o utopismo de definições substantivas e dedutivas da democracia quanto o congelamento da definição schumpeteriana”. (LESSA, 1997, p.10). Reforçando também as diferenças entre os dois, Giovanni Sartori nos fala que “embora Dahl defenda a teoria competitiva, sua ênfase é muito diferente da de Schumpeter; Dahl começa onde Schumpeter para, isto é, Dahl procura uma difusão e um reforço pluralistas, na sociedade como um todo, da competição entre elites”. (SARTORI, 1994, p.211). Ainda sobre este ponto, o cientista político italiano nos diz que enquanto Schumpeter que apenas entender como o

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sistema democrático funciona, Dahl pretende, além de entender esse funcionamento, promover a democracia. Esse pluralismo destacado por Sartori é sem dúvida alguma um dos principais aspectos do pensamento de Dahl. Ao inserir a ideia de pluralismo na esfera democrática, a teoria dahlsiana se diferencia cada vez mais das análises meramente elitistas da democracia. Criticando a Teoria das Elites2, Dahl afirmou que esta não pode ser comprovada cientificamente. No texto “A critique of the ruling elite model” 3, o autor questionou os pressupostos dessa teoria, na ocasião em que estabeleceu a seguinte hipótese: A hipótese da existência de uma elite dirigente pode ser estritamente testada somente se: 1) A elite dirigente hipotética é um grupo bem definido. 2) Há uma quantidade razoável de casos envolvendo decisões políticas fundamentais nos quais as preferências da elite dirigente hipotética se chocam com as preferências de qualquer outro grupo provável que possa ser sugerido. 3) Em tais casos, as preferências da elite regularmente prevalecem. (DAHL, 1970, p.96).

Ele refutou essa teoria por ela ser incapaz de comprovar empiricamente a existência de uma única elite – minoria – governante e dominante que se constitui como um grupo bem definido dentro de um sistema democrático 4. A crítica se direciona também para o fato de que não é possível demonstrar, a partir de uma observação direta da realidade, que as preferências políticas dessa elite sempre prevalecem. Para o autor, as democracias modernas são formadas por várias minorias concorrentes entre si, e no mínimo, cada uma dessas minorias tem alguma influência sobre as questões que lhe interessam. Esta ideia de que numa democracia existem minorias que concorrem entre si evidencia fortemente o pluralismo da teoria dahlsiana.

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Por Teoria das Elites ou elitista se entende, de maneira geral, “a teoria segundo a qual em toda a sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias formas, é detentora do poder, em contraposição a uma maioria que dele está privada”. (BOBBIO, 2007, p.385). DAHL, Robert. A Critique of the Ruling Elite Model. The American Political Science Review Vol. 52, No. 2, 1958. Neste trabalho utilizamos a versão brasileira: DAHL, Robert. Uma Critica do Modelo de Elite Dirigente. In: Amorim, Maria Estella. Sociologia Política II, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1970. É nesse sentido que Robert Dahl critica a tese de C. Wright Mills. De acordo com Mills (1962), o Estado norte-americano era dominado por uma “elite do poder”: uma esteira aliança militarindustrial entre as grandes fortunas, os dirigentes das grandes corporações, chefes militares, e um pequeno grupo de políticos “chave”. Para Dahl, a tese de Mills no que tange aos Estados Unidos não se sustenta, pois teria que comprovar empiricamente a existência de uma única classe de poder. Segundo ele, Mills não demonstrou, dentre outras coisas, que as preferências políticas dessa elite sempre prevaleciam.

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Outros autores também destacaram o aspecto pluralista na obra de Robert Dahl. C. B. Macpherson, por exemplo, afirma que Dahl é pluralista, Porque parte da pressuposição de que a sociedade a que se deve ajustar um sistema político democrático é uma sociedade plural, isto é, uma sociedade consistindo de indivíduos, cada um dos quais é impelido a muitas direções por seus muitos interesses, ora associado com um grupo de companheiros, ora com outros. (MACPHERSON, 1978, p.81).

O cientista político britânico David Held também faz referência a este ponto, no momento em que ele classifica Dahl como um adepto do modelo de democracia pluralista. De acordo com Held, os pluralistas não concordam integralmente com o elitismo de que a concentração de poder pelas elites fosse algo inevitável. Ainda que os elitistas tenham exercido uma influência considerável sobre os pluralistas, “estes se diferenciam daqueles na medida em que aceitam a ideia de que as decisões políticas do governo de uma sociedade democrática sofrem a influência de vários grupos”. (HELD, 2007, p. 148). Norberto Bobbio salienta o pluralismo de Dahl, afirmando que ele “é um dos mais convencidos teóricos e ideólogos do pluralismo”. (BOBBIO, 2007, p.931). Segundo Bobbio, o pluralismo democrático defendido por Dahl admite a existência de elites de poder, contudo, faz questão de ressaltar a concorrência entre essas diversas elites. De acordo com a teoria dahlsiana, “o axioma fundamental de um sistema pluralista consiste no fato de que em vez de um único centro de poder soberano, é necessário que haja muitos centros, dos quais nenhum possa ser inteiramente soberano”. (BOBBIO, 2007, p.931). Cristina Buarque de Hollanda expressa uma opinião similar a esta, colocando que “o autor não adere, portanto, à tendência elitista de afirmar a indiferença entre os regimes políticos – fadados, afinal, ao governo das minorias”. (HOLLANDA, 2011, p.43). Para essa autora, a partir de sua concepção plural Robert Dahl ressignificou a democracia como uma competição entre elites. Esse aspecto pluralista da teoria dahlsiana é fruto de uma tradição do pluralismo iniciada no século XIX por Alexis de Tocqueville e aperfeiçoada na década de quarenta do século XX, sobretudo por Talcott Parsons e David Truman. Paul Hirst nos diz que os cientistas políticos norte-americanos desse período desenvolveram de uma forma mais aprofundada essa concepção política, e Robert Dahl foi um dos principais expoentes dessa tradição. No sentido de construir um modelo teórico das condições que uma comunidade política deve satisfazer para garantir um mínimo de

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GT1 – TEORIA POLÍTICA competição democrática para a influência e o exercício de funções, “Dahl é o mais explícito dos pluralistas”. (HIRST, 1996, p.576). Para Hirst, é justamente por valorizar e enfatizar os aspectos plurais de uma sociedade democrática que Dahl supera a teoria schumpeteriana, diferenciando-se desta. Nas mãos de Dahl, o pluralismo torna-se uma teoria da competição política estável e relativamente aberta e das condições institucionais e normativas que a sustentam. Poder e influência só se dispersam sob condições sociais e políticas definidas: a participação política deve incluir, pelo menos potencialmente, todos os cidadãos adultos que gozem dos mesmos direitos formais; a formação de grupos de interesses e partidos concorrentes, independentes do controle do estado, não deve ser sistematicamente monopolizada por um grupo minoritário. Além disso, a maioria dos grupos concorrentes que almejam controlar ou influenciar a tomada de decisões deve subscrever as normas de uma cultura política democrática, ou seja, aceitar a alternância de poder, o direito de outros grupos à existência e os limites dos métodos de competição política. (HIRST, 1996, p.575).

Maior diferenciação fez Leonardo Avritzer. Segundo este autor, Robert Dahl rompe e supera a teoria de Schumpeter a partir de dois pontos principais: o primeiro diz respeito ao fato de que ao introduzir o princípio de “maximização” – princípio este que consiste no entendimento de que não basta apenas descrever as democracias, mas que é preciso também aperfeiçoar as suas condições – Dahl superou o dualismo entre realismo e idealismo; o segundo ponto trata da reintrodução do elemento da “participação política” como uma fonte de legitimação e avaliação das democracias. Sobre esta característica da teoria dahlsiana, Avritzer nos fala que: Desse modo, Dahl sustenta que não apenas a participação democrática é afim ao desenvolvimento moral, recolocando na teoria democrática um elemento ausente desde Schumpeter, como deduz desse princípio uma crítica ao elitismo. Para ele, o princípio da autonomia moral traz, enquanto decorrência, a constatação de que todos os indivíduos são suficientemente qualificados para participar das decisões coletivas de uma associação que afete significativamente os seus interesses. O princípio da autonomia moral implica, portanto, o rompimento com a visão schumpeteriana. (AVRITZER, 2012, p.117).

Em Dahl, a justificação da democracia passa, portanto, pelo princípio da autonomia, entendendo-a como um processo que, mediante a participação, desenvolve a capacidade moral e social dos cidadãos. Cremos que a partir da opinião de todos esses autores citados, ficou bastante claro os aspectos do pluralismo na teoria dahlsiana. É importante ter em mente essa relação entre democracia e pluralismo no pensamento de Robert Dahl para entender a maneira como ele analisa os sistemas democráticos reais. Veremos mais adiante

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que o seu interesse não é apenas compreender a forma como os sistemas democráticos funcionam, mas também promover a democracia, isto é, encontrar uma maneira de maximizar os potenciais da mesma. Antes, porém, é importante observarmos que o autor desenvolveu uma interessante investigação sobre dois eixos teóricos da democracia moderna. É a partir da análise crítica desses dois tipos representativos de democracia que Dahl começa a esboçar a sua teoria democrática.

A DISCUSSÃO SOBRE A TEORIA DEMOCRÁTICA MODERNA Uma das principais análises realizadas por Robert Dahl em torno da teoria democrática moderna encontra-se em um de seus primeiros e mais importantes livros, “A Preface to Democratic Theory”5, de 1956. Nesta obra, o objetivo de Dahl foi examinar três tipos representativos de teoria democrática, a saber, a “Democracia Madisoniana”, que coincide com o Estado limitado pela Lei, a “Democracia Populista”, que tem como princípios fundamentais a soberania popular e a igualdade política, e a “Democracia Poliárquica”, na qual as condições da ordem democrática derivam de pré-requisitos sociais. De acordo com o autor, estes três tipos representativos servem para o estudo das vantagens e deficiências de dois métodos a partir dos quais seria possível construir uma teoria democrática: o da maximização e o descritivo. A partir do método da maximização nós podemos tomar, como valor, um estado de coisas, por exemplo, a igualdade política, e elaborar a seguinte questão: que condições são necessárias para atingir a máxima concretização dessa meta? Nesse sentido, pode-se definir a democracia em termos de processos governamentais específicos e necessários à maximização da meta escolhida. Para Robert Dahl, as duas primeiras teorias, a madisoniana e a populista, estão relacionadas a esse método. “A madisoniana postula uma república não-tirânica como objetivo a ser maximizado; a teoria populista indica a soberania popular e a igualdade política”. (DAHL, 1989, p.67). Vejamos então as características mais importantes de cada uma dessas concepções e, principalmente, o ponto de vista do autor sobre as mesmas. No que tange à “democracia madisoniana”, Dahl nos apresenta uma ideia geral sobre essa teoria logo no início da sua discussão:

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DAHL, Robert. A Preface to Democratic Theory. Chicago: University of Chicago Press, 1956. As citações são retiradas da tradução brasileira. DAHL, Robert. Um Prefácio à Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

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GT1 – TEORIA POLÍTICA O que vou chamar de teoria “madisoniana” de democracia constitui um esforço para se chegar a uma acomodação entre o poder das maiorias e o das minorias, entre a igualdade política de todos os cidadãos adultos, por um lado, e o desejo de lhes limitar a soberania, pelo o outro. Como sistema político, a transigência mútua, exceto em um interlúdio importante, provou se duradoura. E o que é mais, parece que os americanos o apreciam. (DAHL, 1989, p.13).

De acordo com Dahl, James Madison, acreditava que a realização de uma democracia direta seria praticamente impossível no contexto da modernidade. Para Madison, a democracia direta no seu sentido mais amplo, qual seja, o de governo exercido diretamente pelo o povo, se degeneraria inevitavelmente em despotismo. Dessa forma, a solução seria reduzir o sistema democrático de governo à proteção da liberdade individual no contexto de uma república não tirânica. A concepção madisoniana assenta-se sobre duas ideias básicas: “tirania” e “facção”. De uma forma geral, podemos apreender a ideia de tirania a partir de algumas hipóteses: I) Na ausência de controles externos, qualquer dado indivíduo, ou grupo de indivíduos, tiranizará os demais. II) A acumulação de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário nas mesmas mãos implica a eliminação dos controles externo (generalização empírica). A eliminação dos controles externos gera tirania, por conseguinte, a acumulação de todos os poderes nas mesmas mãos implica tirania. III) Na ausência de controles externos, uma minoria de indivíduos tiranizará uma maioria de indivíduos. IV) Na ausência de controles externos, uma maioria de indivíduos tiranizará uma minoria de indivíduos. A segunda ideia diz respeito às facções que teriam que ser controladas pelo o governo. Para garantir que esses grupos não prejudiquem a comunidade política, Madison colocava que, no caso de uma facção minoritária, aplica-se a solução do critério da maioria e, em relação à majoritária, a solução é uma sociedade plural (que impediria o domínio de um único grupo). Ele acreditava que o princípio republicano da maioria seria capaz de impedir a ação das facções minoritárias, porém, não se propôs em momento algum a demonstrar a validade de tal argumento. Dahl critica essa suposição da teoria madisoniana, e também por esta ter superestimado os controles constitucionalmente definidos (externos) e subestimado os sociais (internos), como por exemplo, a educação, tomados, sem nenhuma comprovação razoável, como incapazes de impedir a tirania. Segundo Dahl, o pensamento de Madison sobre a democracia possui deficiências lógicas e empíricas. Para ele, a fragilidade da teoria madisoniana se 8


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encontra na sua pretensão de acomodar duas metas conflitantes: a ideia de que todos os cidadãos adultos de uma república deveriam ter direitos iguais, e o desejo de criar um sistema político que assegurasse as “liberdades de certas minorias cujas vantagens de status, poder e riqueza, acreditava ele, não seriam provavelmente toleradas para sempre por uma maioria não-restringida por liames constitucionais”. (DAHL, 1989, p.35). Esta segunda razão determina a necessidade de controlar constitucionalmente as maiorias. Entretanto, apesar das falhas lógicas e científicas da teoria democrática de Madison, o fato é que ela permanece, com sua ideologia, a prestar

inúmeros

serviços

de

natureza

psicológica,

socioeconômica,

e

propagandística, representando a doutrina dominante nos Estados Unidos. Dahl destaca que, assim como na época da elaboração da Constituição norte-americana, esta teoria continua a proporcionar uma “ideologia satisfatória, convincente e protetora às minorias de riqueza, status e poder”. (DAHL, 1989, p.35). O segundo eixo teórico analisado por Dahl diz respeito à “democracia populista”. Na medida em que enfatiza a “soberania popular” e a “igualdade política” como os princípios superiores da república, a teoria populista se torna uma inversão da teoria madisoniana. Para a realização do princípio da soberania popular, as políticas governamentais deveriam ser tomadas com base numa decisão majoritária. Para alcançar os objetivos do princípio da igualdade política, seria necessário atribuir um valor igual à preferência de cada cidadão. Com isso, tem-se que a única regra compatível com esses dois princípios seria a da “maioria”. Após apresentar estes fundamentos da teoria populista, Dahl argumenta que é possível fazer três tipos de objeções a essa teoria: objeções técnicas, objeções éticas e objeções empíricas. As objeções técnicas podem ser expressas da seguinte forma: I) supõe-se que a decisão mais democrática é aquela preferida pela maioria, mas pode ocorrer que muitos eleitores não tenham preferência alguma; II) no caso de empate entre duas preferências não existe nenhuma solução prevista; III) mesmo que não ocorra um empate, quanto menos a diferença de votos entre as alternativas, menor a legitimidade da decisão; IV) a inação do governo pode ser mais apropriada a um grupo específico, não sendo, portanto, uma solução; V) mesmo que haja uma maioria ampla é sempre difícil determinar um método inequívoco que expresse a preferência da maioria. No que diz respeito às objeções éticas, Dahl nos fala que estas se referem às dificuldades de determinar empiricamente que os princípios da soberania absoluta e 9


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da igualdade política são mais desejáveis, por exemplo, do que a soberania limitada defendida por Madison. Segundo o autor, não faz sentido tomar esses dois princípios como bens absolutos, preferíveis independentemente dos seus custos, ou em detrimento de outros bens. Uma outra falha da democracia populista é que esta ignora o problema da “intensidade de preferências”; sobre isso, Dahl nos fornece o seguinte exemplo: se uma maioria prefere fracamente a alternativa “A” no lugar da alternativa “B”, esta preferida intensamente por uma minoria, por que é mais justo optar pela primeira? Por fim, as objeções empíricas a essa concepção da democracia populista nos levam a considerar que: I) não há uma demarcação de quais indivíduos devem ter direito de manifestar sua preferência pelo voto, uma vez que não é possível que todos o façam; II) a simples aplicação da regra da maioria legitima o poder ilimitado dos representantes políticos; III) um sistema desse tipo pode resultar na sua autodestruição, sendo necessário um mecanismo de veto de minoria. Foi a partir desses três tipos de objeções que Dahl chegou à conclusão de que a teoria populista permanece em um nível formal e axiomático, carecendo de informações sobre o mundo real. Para ele, a união dos princípios da soberania popular com a igualdade política é compatível com o princípio da maioria, entretanto, esse enunciado não é suficiente. “Pois o que queremos desesperadamente saber (se nos preocupamos com a igualdade política) é o que podemos fazer para maximizá-la em alguma situação real, dadas as condições existentes”. (DAHL, 1989, p.84). Dessa forma, é através da crítica desses dois eixos teóricos da democracia moderna que se chega ao segundo método proposto para a construção de uma teoria democrática, qual seja, o método descritivo. Com este, é possível analisar as democracias reais na medida em que se considera a existência de um conjunto de organizações sociais com determinadas características em comum. De acordo com o autor, tal método: Implica considerar como uma única classe de fenômenos todas essas Nações-Estado e organizações sociais que são geralmente classificas como democráticas pelos cientistas políticos e, em analisar os membros dessa classe com o objetivo de descobrir, em primeiro lugar, as características distintivas que tem em comum e, em segundo, as condições necessárias e suficientes às organizações sociais que as possuem. (DAHL, 1989, p.67).

Apesar das diferenças entre o método de maximização e o método descritivo, Dahl ressalta que estes não são mutuamente incompatíveis, pois “se começarmos empregando o primeiro, logo depois tornar-se-á necessário algo parecido com o segundo, também”. (DAHL, 1989, p.67). Com isso, e a partir desses dois métodos, o 10


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autor se pergunta: será possível combinar em uma única concepção teórica tanto os aspectos normativos como os empíricos da democracia? É através desse questionamento que surge o terceiro tipo representativo de teoria democrática exposto na obra de 1956, a “Democracia Poliárquica”. Dahl constrói essa alternativa e parte do pressuposto de que as condições da ordem democrática derivam de pré-requisitos sociais. Com esta teoria, o interesse do autor passa a ser compreender “quais são as condições necessárias e suficientes para que existam poliarquias?” (DAHL, 1989, p.76). A principal vantagem da teoria poliárquica é que esta pode ser aplicada à investigação das democracias reais 6. Através do método descritivo, ao invés de simplesmente estabelecer metas a serem maximizadas (às vezes, em detrimento da realidade), esta teoria permite descobrir quais são as características dos regimes democráticos existentes, descrever essas características, e assim tomá-las como condições necessárias e suficientes para a maximização da própria democracia. O método descritivo nos serve como um instrumento para reconhecer um sistema político democrático na medida em que em tal sistema estão afastadas ou contidas características típicas de uma ordem despótica. Com ele, é possível perceber que alguns sistemas políticos têm características democráticas, e estas podem ser isoladas e apresentadas como comuns. Assim, nós podemos descrever tais características tanto do ponto de vista de seu estado atual, quanto no que diz respeito à sua história, e às chances de desenvolvimento ou retrocesso. A reflexão dahlsiana direciona-se então para a análise das “democracias reais” (Poliarquias). Mais especificamente, o seu objetivo passa a ser compreender as condições que favorecem ou impedem a transição de um regime não poliárquico para um poliárquico.

AS CONDIÇÕES FAVORÁVEIS À POLIARQUIA De maneira sucinta, podemos dizer que, para os pluralistas, o poder encontrase relativamente disperso nos países democráticos modernos. Na sociedade plural, diferentes grupos podem influenciar as decisões políticas, visto que o poder não está 6

Sobre isto, Carole Pateman nos diz que: Dahl encara as teorias “madisoniana” e “populista” como inadequadas para os dias atuais; e sua teoria da democracia como poliarquia – o governo de múltiplas minorias – é apresentada à guisa de uma substituição mais adequada para aquelas, enquanto uma teoria da democracia moderna e explicativa. (PATEMAN, 1992, p.18).

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concentrado. Como adepto do pluralismo, Robert Dahl afirma que as democracias modernas são formadas por várias minorias concorrentes entre si, e que no mínimo, cada uma dessas minorias pode exercer alguma influência sobre as questões que lhe interessam. No livro “A Preface to Democratic Theory”, ele colocou o seguinte: Se há algo a ser dito pelos processos que efetivamente distinguem ou diferenciam democracia (ou poliarquia) de ditadura, ele não será descoberto na nítida distinção entre governo pela maioria e governo por uma minoria. A distinção aproxima-se muito mais de ser entre governo por uma minoria e governo por minorias. Em comparação com os processos políticos das ditaduras, as características da poliarquia aumentam muito o número, tamanho e diversidade de minorias, cujas preferências influenciarão o resultado das decisões governamentais. [...] São nestes e em outros efeitos, mais do que na soberania da maioria, que encontramos os valores do processo democrático. (DAHL, 1989, p.132. Grifos do autor).

Sem dúvida alguma, é a partir dessa ideia que o autor formula o conceito de “poliarquia”. A teoria de Dahl define “poliarquia” como a competição relativamente aberta de elites políticas por meio de disputas eleitorais periódicas, num sistema em que há uma pluralidade de forças, organizações e formas de influências políticas sobre a tomada de decisões. Noutras palavras, a poliarquia pode ser entendida como um sistema político em que uma pluralidade de organizações competem pela influência e, especificamente, em que os eleitores – cidadãos adultos considerados politicamente iguais – podem escolher entre vários partidos em eleições. A existência de diversos grupos ou diversas minorias garante o caráter poliárquico desse regime. A teoria dahlsiana entende que para um governo ser classificado como democrático, ele precisa satisfazer pelo menos cinco critérios: “participação efetiva”, “igualdade de voto”, “aquisição de entendimento esclarecido”, “exercício do controle definitivo do planejamento”, “inclusão de adultos”. Vimos também que uma das justificativas apresentadas por Robert Dahl para demonstrar a superioridade e a desejabilidade da democracia, consiste no fato de que tal sistema de governo tende a gerar um grau relativamente elevado de igualdade política entre os seus cidadãos. Segundo ele, a igualdade política é algo inerente à democracia; ela é o alicerce, o fundamento, e somente através dela é possível criar uma associação que satisfaça esses cinco critérios. A ideia de que todos os cidadãos são intrinsecamente iguais passou a ser então uma premissa da própria democracia. Desse modo, o governo democrático só se justifica com base no pressuposto de que todos os cidadãos são, de modo geral, igualmente qualificados para participar na tomada das decisões políticas. Ressaltando a competência cívica dos cidadãos adultos, o autor afirmou que 12


GT1 – TEORIA POLÍTICA “não há ninguém tão inequivocamente mais bem preparado do que outros para governar, a quem se possa confiar a autoridade completa e decisiva no governo do Estado”. (DAHL, 2009, p.89). No entanto, Dahl faz questão de enfatizar que existem diferenças cruciais entre esses ideais e a prática política dos Estados democráticos modernos. Este é indiscutivelmente um dos momentos mais importantes de toda a sua investigação. É justamente por considerar essas diferenças que ele escreve uma teoria da “poliarquia”, e não da democracia. Não cabe mais falar em democracia, pois essa palavra evoca o cenário grego original, de participação direta.

As democracias

contemporâneas são “poliarquias”, isto é, sistemas fortemente inclusivos e amplamente abertos à competição pública. A poliarquia plena é uma ordem política do século XX e que se distingue de outros regimes – antigos ou contemporâneos – pela presença de pelo menos sete instituições indispensáveis: (1) Funcionários eleitos; (2) Eleições livres e justas; (3) Sufrágio Inclusivo; (4) Direito de concorrer a cargos eletivos; (5) Liberdade de expressão; (6) Informação alternativa; (7) Autonomia associativa. De acordo com o autor, todas essas instituições devem existir para que um sistema possa ser classificado como poliárquico. Todas elas são indispensáveis para a consecução mais viável possível do processo democrático no governo de um país. (DAHL, 2012, p.352). Essas instituições relacionam-se com duas dimensões teóricas da democratização: “contestação pública” e “direito de participação”. Dahl considera a democratização como um processo ascendente de contestação pública reunida à expansão dos direitos de participação. A poliarquia se caracteriza por abrigar essas duas dimensões, dessa maneira, ela se diferencia de outros regimes, como as “hegemonias fechadas” (ausência de contestação e também do direito de participação), as “hegemonias inclusivas” (direito de participação, mas ausência de contestação), e as “oligarquias competitivas” (presença de eleições competitivas, mas com uma inclusão restrita). (DAHL, 1997, p.23). O interesse do autor passa a ser investigar quais condições favorecem o desenvolvimento desse regime que reúne tanto a contestação pública, como o direito de participação. No intuito de compreender por que a poliarquia se desenvolveu somente em alguns países, ou por que a poliarquia fracassou em alguns países e em outros não, é que Dahl procura identificar quais as condições que favorecem o

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desenvolvimento, a consolidação e a estabilidade da poliarquia. Este é o objetivo do seu principal livro, “Polyarchy: Participation and Opposition”, de 1971. A teoria de Robert Dahl é essencialmente uma exposição das condições que possibilitam o advento da poliarquia. De acordo com essa teoria, as condições de uma ordem democrática derivam de pré-requisitos sociais, com isso, ela estabelece que a poliarquia não é algo que “acontece” independentemente das condições sociais estruturais. Desse modo, para que surjam regimes poliárquicos é preciso que algumas condições estejam presentes. O autor analisou então as consequências de sete conjuntos de condições: sequências históricas, grau de concentração na ordem socioeconômica, nível de desenvolvimento socioeconômico, desigualdade, clivagens subculturais, crenças de ativistas políticos e controle estrangeiro. Nessa análise, ele explicitou e especificou com clareza as condições mais favoráveis e também as menos favoráveis à poliarquia. A conclusão é que as chances de desenvolvimento e de manutenção da poliarquia serão maiores: (I) quando a institucionalização da competição pública precede a expansão dos direitos de participação; (II) quando os acessos aos meios violentos de coerção e também às sanções socioeconômicas estão dispersos ou neutralizados; (III) quando o nível de desenvolvimento socioeconômico é alto; (IV) quando os níveis de desigualdades são baixos ou decrescentes; (V) em países mais homogêneos culturalmente, porém, se houver um pluralismo subcultural, nenhuma subcultura pode constituir uma maioria absoluta; (VI) quando os ativistas políticos defendem e acreditam na superioridade das instituições da poliarquia, confiam uns nos outros, e realizam acordos através de relações políticas cooperativascompetitivas; (VII) e quando a dominação por um poder estrangeiro é fraca ou temporária. Embora nenhuma condição em particular possa, por si só, explicar a existência ou a ausência da poliarquia em algum país, se essas condições colocadas acima estiverem presentes com solidez, o regime poliárquico será algo quase garantido. Porém, se elas estiverem ausentes ou forem extremamente frágeis, as chances da poliarquia serão quase nulas. Contudo, é importante entender que em muitos países o resultado é incerto, pois enquanto algumas condições talvez sejam relativamente fortes e, com isso, relativamente favoráveis, outras podem ser frágeis e, por conseguinte, desfavoráveis. O fato é que as condições podem mudar com o

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tempo, fortalecendo ou reduzindo as chances da poliarquia estável num determinado país.

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GRUPOS FINANCEIROS NO CONTEXTO DA CRISE (2008): UMA ANÁLISE DOS GRUPOS BRADESCO E ITAÚSA Gabriela Augusta da Silva7 Resumo: A crise financeira desencadeada em 2008 levou à falência grandes instituições financeiras e debilitou gravemente a economia de vários países. Por conta das condições econômicas anteriores a 2008 e pela pouca exposição ao mercado hipotecário estadunidense, as perspectivas tendiam a ressaltar que o Brasil continuaria blindado contra os impactos. Neste cenário um ator em especial nos chama atenção: os grupos financeiros. Eles constituem a unidade econômica predominante dentro do capitalismo contemporâneo e têm papel preponderante sobre os rumos da economia global. O trabalho analisa os dois maiores grupos financeiros privados nacionais (Itaúsa/Banco Itaú Unibanco e Bradesco), focalizando os impactos da crise e estratégias manifestas no discurso dos principais dirigentes dessas instituições e na composição acionária dos grupos. Compara-se a rede de relações de capital que se estabelecem entre as empresas de cada grupo e fora deles antes e depois da crise considerando o período de 2007 a 2011. Palavras-chave: Crise financeira de 2008, Grupo Itaúsa, Grupo Bradesco INTRODUÇÃO A crise financeira desencadeada em 2008, que teve origem nos Estados Unidos em 2006, levou à falência grandes instituições financeiras e debilitou gravemente a economia de vários países. Também custou o emprego e as casas de milhares de trabalhadores em todo o mundo, especialmente em seu país de origem e na Europa. As alternativas adotadas pelos Bancos Centrais para minimizar os impactos do colapso mostraram-se incapazes de cessar a crise nesses países. Grandes somas de dinheiro público foram levantadas para tentar salvar o sistema e os prejuízos continuaram afetando os trabalhadores e abalando os sistemas financeiros pelo mundo. A abordagem deste trabalho será orientada pelos pontos de vista de Harvey (2011), Mészáros (2009) e Oliveira (2009), a respeito da crise no âmbito global e brasileiro. Estes autores caracterizam a crise de 2008 como uma das mais profundas já enfrentadas pelo capitalismo. Concordam ainda que as crises, de modo geral, são condições da estrutura do capitalismo ao deparar-se com sua contradição mais 7

Mestranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: gabiaugustas@gmail.com

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insolúvel: a realização do valor. Esta crise seria mais uma exacerbação dessa contradição e, ao superá-la, o capital financeiro sairá ainda mais fortalecido e centralizado. Neste cenário de crise um ator em especial nos chama atenção: os grupos financeiros. Eles constituem a unidade econômica predominante dentro do capitalismo contemporâneo e têm papel preponderante sobre os rumos da economia global. A pesquisa tem por objetivo analisar as implicações da crise recente do capitalismo sobre dois grupos financeiros brasileiros (Itaúsa e Bradesco), tomando como indicadores dois aspectos: primeiro, identificar e comparar mudanças nos discursos sobre a crise, formulados pelos controladores desses dois grupos e, segundo, identificar alterações na composição de cada grupo, especialmente em relação a sua estrutura acionária e o grau de expansão/contração do grupo no contexto da crise. Para esta pesquisa serão utilizados alguns elementos da metodologia de análise de redes sociais, especialmente a representação gráfica que ela proporciona.

CRISE FINANCEIRA MUNDIAL A crise financeira de 2008 desencadeou uma série de transformações nos países desenvolvidos devido, principalmente à centralidade das finanças em suas economias. Ela teve origem em 2006 no mercado imobiliário dos EUA, especialmente na linha de crédito chamado subprime, e se expandiu para todo o sistema financeiro e produtivo dos EUA e da Europa. Além disso, pela natureza global do sistema capitalista a crise abalou o mundo, atingindo a economia de todos os países do mundo, em graus distintos de intensidade. Como se não bastasse o risco do próprio crédito subprime, aliados a ele foram criados outros produtos financeiros, como forma de securitização dessas dívidas. São títulos que tinham a própria dívida das hipotecas como garantia e serviam para promover liquidez de capital e compensar as perdas com a inadimplência. Apesar do alto risco, os títulos derivados das dívidas chegavam a receber nota AAA pelas agências de avaliação de risco, por meio de uma “alquimia”, como chama Stiglitz (2010). Esses títulos, chamados “podres”, eram vendidos e revendidos por até 5 vezes o valor dos empréstimos originais e entre instituições financeiras de dentro e fora dos EUA. Por isso o crescimento da inadimplência criou uma “bolha” que se disseminou

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como um efeito dominó, para além do país de origem da crise. Como na Europa, onde grandes bancos franceses, suíços e britânicos, anunciaram enormes perdas. Para tentar conter a crise de liquidez o FED (Federal Reserve), Banco Central dos Estados Unidos, tomou algumas medidas como, por exemplo, a redução das taxas de juros e o fornecimento de crédito para os agentes financeiros (CARCANHOLO et al, 2008). Ainda assim, grandes instituições financeiras não suportaram o peso dessas dívidas e pediram falência, como foi o caso do Lehman Brothers. A falência da instituição financeira, um dos maiores e mais antigos bancos americanos, em 15 de setembro de 2008, foi decisiva para o “decreto” da crise. Depois dele a AIG, maior seguradora dos EUA também pediu falência e a corretora Merrill Lynch foi comprada pelo Bank of America. A crise representou a destruição de um enorme volume de riqueza especulativa estimada em mais de 10 trilhões de dólares (SACHS apud CONCEIÇÃO, 2009:33). Entretanto, o sistema não acumulou somente perdas. A socialização dos prejuízos, através da estatização ou da compra de parte de suas ações pelos governos, ainda garantiram algum retorno aos grupos financeiros “grandes demais para falir”. Ficaram “no lucro” diante das perdas que provocaram. É importante também considerar os grupos financeiros que, embora atingidos pela crise, tiveram condições de comprar outras instituições em situação de falência. Como foi o caso do Bank of America que, como já citamos, comprou o Merrill Lynch, do Citigroup que comprou o Washington Mutual e do Santander que comprou parte do inglês Dradford & Binley. São exemplos de transações que evidenciam que o fim da crise representará um significativo potencial de consolidação e centralização do capital financeiro. (HARVEY, 2011; CONCEIÇÃO, 2009) De acordo com a perspectiva adotada neste trabalho e dos autores de referência destacamos a atualidade e a relevância de Marx para compreender este abalo no sistema capitalista. Estes autores nos ajudam a compreender que esta crise não se trata de um momento de dificuldades impostas por uma conjuntura temporariamente adversa, mas se trata na verdade, de uma crise estrutural do capitalismo (MÉSZÁROS, 2010). São as próprias contradições internas do sistema capitalista que exprimem a necessidade de superar seus próprios limites históricos (CHESNAIS, 2008). Além disso, as crises no sistema capitalista não são completamente ruins à reprodução do capital, mas fazem parte de seu metabolismo.

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É através delas que o capitalismo se revoluciona, buscando novas alternativas para a maximização dos lucros. A crise de hoje leva o sistema a enfrentar sua contradição irresoluta: a realização do valor. O sistema financeiro se baseia na ideia de que a produção expandida amanhã não vai encontrar obstáculos, de forma que o excedente projetado hoje possa ser realizado amanhã. (HARVEY, 2011) As finanças projetam números que o capital produtivo nem sempre consegue alcançar. É um limite físico, material. Em outras palavras “o meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente.” (KARL MARX, apud CHESNAIS, 2008).

O CONTEXTO DA CRISE NO BRASIL Nos países periféricos do sistema financeiro, como no Brasil, as consequências pareciam não ser consideradas de imediato, camufladas sob um discurso de imunidade econômica, pelo fato de estarmos pouco expostos ao mercado hipotecário americano. De forma geral, muitos autores contribuíram com análises de conjuntura econômica, além de fazer projeções e indicar algumas medidas consideradas fundamentais para superar os possíveis impactos negativos da crise. Em 2008, por exemplo, Carcanholo et al não era tão otimista. O Brasil, é verdade, tem pouca exposição ao mercado americano dos subprime, entretanto, uma visão mais estrutural da questão indica que o impacto na América Latina de uma crise internacional, [...], tende a ser particularmente sério. Isso decorre da elevada vulnerabilidade externa estrutural das economias da região. Essa vulnerabilidade é causada pelo processo de liberalização financeira e cambial promovido e ampliado desde o início da década passada. (2008:03)

Além disso, os mesmos autores destacam que outra consequência seria a redução das exportações de commodities, principal produto de exportação da América Latina, e também do Brasil. Com a desaceleração da economia global, a demanda por esses produtos deveria cair, e os preços também pressionados a cair. De fato, houve uma queda geral nas exportações brasileiras na comparação entre os anos de 2008 e 20098. De acordo com pesquisa realizada pelo IPEA

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Segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC)8, o Brasil sofreu redução de 22,7% nas exportações, em

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(2011:08), a despeito da queda no valor das commodities primárias, estes produtos incrementaram sua participação no total das exportações brasileiras entre os anos de 2008 e 2009, passando de 43% para 49%. Para os autores do estudo, esse crescimento se deve ao processo acelerado de urbanização da China e da Índia, que não dão conta de abastecer seu mercado interno com a produção doméstica, demandando um aumento de suas importações. Por conta disso, a China é o maior parceiro comercial do Brasil e cerca de 80% do que exportamos para os chineses são commodities. De fato, na primeira fase da crise (2007/2008), a economia brasileira vinha apresentando um acelerado crescimento, o que sustentou uma política mais efetiva do governo. Na prática, o que se acompanhou foi a realização do papel anticíclico do governo através da atuação do Banco Central (BACEN) e dos bancos públicos federais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para reverter desdobramentos nocivos ao crescimento que o Brasil vinha apresentando desde 2004. De acordo com um comunicado do IPEA (2009a:10), entre as medidas do governo que conseguiram “evitar o pior” destacamos: injeção de dólares pelo BACEN, compra de ações de bancos em crise pelos bancos públicos, disponibilização de mais recursos para incentivo à exportação, incremento dos financiamentos à construção civil e ao setor automobilístico, redução de impostos para as indústrias, manutenção de investimentos (como o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC) e programas sociais.

OS GRUPOS FINANCEIROS NO BRASIL A crise financeira de 2008 atingiu diretamente o mundo das finanças, afetando os grandes grupos financeiros, especialmente grupos com sede nos EUA e Europa. O conceito de grupo econômico adotado neste trabalho é o de Reinaldo Gonçalves que o define como: [...] o conjunto de empresas que, ainda que juridicamente independentes entre si, estão interligadas por relações contratuais, seja pelo capital, e cuja propriedade (de ativos específicos e, principalmente do capital)

bilhões de dólares. Uma queda que acompanhou a tendência mundial que foi de -22,6%. Porém, no que diz respeito às commodities, as exportações continuaram crescendo Fonte: <http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=1486&refr=608>

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pertence a indivíduos ou instituições que exercem o controle efetivo sobre este conjunto de empresas. (1991:494).

Por sua vez, grupo financeiro, trata-se de uma denominação que deriva da importância que a atividade financeira tem na maioria dos grupos econômicos. Uma característica importante é a presença de empresas de variados setores da economia num mesmo grupo. Mantendo-se a atividade financeira como principal segmento, ao seu lado podem ser administradas empresas, por exemplo, do ramo industrial, agropecuário ou comercial. Segundo Hilferding (1973), patamares cada vez mais longos e complexificados de produção exigem massas cada vez maiores de capital. No capitalismo concorrencial o lucro acumulado era produto direto de uma única firma. Já no capitalismo monopolista grandes massas de capitais sob um controle centralizado passam a controlar outros capitais (PORTUGAL JUNIOR, 1994:17). Quanto às maneiras adotadas pelos grupos para acumular essa massa de capital e crescerem estão a aquisição, a fusão e a internacionalização: Entende-se como fusão, a junção de duas ou mais empresas em uma única e, aquisição, como a compra de participação acionária de uma dada empresa já existente, sem que isso implique, necessariamente, no seu controle por meio da propriedade total das ações. Entende-se por internacionalização, a venda de produtos em mercados diferentes do seu mercado doméstico e, as fusões e aquisições constituem uma forma de entrada em mercados internacionais. (Andreatta, p. 02, 2004)

Para Granovetter (1994:14), existe uma característica importante a ser destacada sobre grupos econômicos que são as relações estáveis que os mantêm. Estabilidade neste sentido é compreendida como o resultado de uma solidariedade existente entre as empresas e indivíduos que se conectam dentro de um mesmo grupo econômico, solidariedade que pode ter origem religiosa, partidária, política, étnica, regional ou familiar. Os grupos econômicos também “[...] podem ser mantidos de forma indireta através de sucessivas participações acionárias ou através de holdings” (MINELLA, 2007:06). Desta maneira a formação de grupos econômicos se dá a partir da participação ou controle acionário de uma empresa (holding) sobre várias outras. O termo holding é considerado neste trabalho como uma instituição que mantém o controle majoritário das ações e da administração de uma ou mais empresas.

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A escolha das instituições (Itaúsa e Bradesco) se dá pela atuação central no mercado financeiro brasileiro. O Banco Bradesco e o Banco Itaú Unibanco (holdings respectivas a cada grupo) são os maiores bancos privados nacionais em concentração e movimentações de capital além, é claro, de serem instituições reconhecidas nos mercados financeiros internacionais. Outra característica marcante é a presença dos diretores de suas empresas ocupando lugares importantes nos órgãos de representação de classe nos setores onde atuam. O atual presidente do conselho diretor da Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN) é Roberto Egydio Setubal, Vice-Presidente do Conselho de Administração do Itaú-Unibanco. E o Bradesco é representado por Marco Antonio Rossi, presidente do Grupo Bradesco Seguros e vice-presidente executivo do Banco Bradesco, como diretor presidente da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg). Ambos tiveram significativa participação no processo de privatizações dos bancos estatais e têm grande influência no processo de concentração do sistema financeiro, incorporando diversos bancos, num processo que resultou, nos últimos anos, na redução do número de instituições atuando no mercado nacional. Sua presença têm destaque também nos rankings dos maiores grupos, sempre na liderança, por exemplo, da lista do Valor Grandes Grupos. O contexto político econômico gerado pela crise desafiou os grupos financeiros nacionais a lidarem com uma nova realidade, refazendo suas projeções e alterando objetivos. A seguir buscaremos identificar de que forma esse cenário de turbulências econômicas afetou o discurso e as estratégias dos grupos estudados e em que medida há coerência entre o discurso e a prática.

O GRUPO BRADESCO O Bradesco foi fundado na Cidade de Marília, interior de São Paulo, em 1943, com o nome de Banco Brasileiro de Descontos. Segundo o próprio banco, seu objetivo principal era atender aos pequenos comerciantes, funcionários públicos, entre outros clientes de recursos modestos, mas em oito anos de história já era o maior banco privado do país.

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GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES Na década de 70, durante o “milagre econômico”, experimentou um acelerado crescimento, o que possibilitou a aquisição de 17 bancos. Com o processo promovido pelas reformas financeiras na década de 1990 o Bradesco adquire o Banco de Crédito Real de Minas Gerais S.A. (Credireal), o Banco Itabanco S.A. e o Banco de Crédito Nacional S.A. (BCN). E do mesmo modo, também se beneficia das privatizações e adquire bancos públicos como Banco do Estado da Bahia S.A. (Baneb) em 1999, o Banco do Estado do Amazonas (BEA) em 2002, o Banco do Estado do Maranhão (BEM) em 2004 e o Banco do Estado do Ceará (BEC) em 2005. Compra o BBVA em 2003 e a American Express em 2006. Em 2007, antes portanto do ano crítico da crise, o Bradesco se destacava como o maior banco privado do país em valor de ativos (R$ 341,184 bilhões) Como já citamos, uma característica importante enquanto grupo financeiro é a “solidariedade”, como fator que oferece estabilidade ao controle do grupo. No grupo Bradesco, o controle é mantido pelos laços familiares da família Aguiar, o que poderia indicar que este seria o fator de estabilidade no controle da instituição. Na sua rede de relações o grupo divide espaço onde tenciona interesses políticos e econômicos, como é o caso das participações na Serasa S.A. e na Cia Brasileira de Securitização (Cibrasec). A participação nessas instituições induz o Bradesco a manter contato próximo inclusive com concorrentes, como era o caso em 2007 (ver Figura 1), com os bancos Itaú, Unibanco, Santander, ABN, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Além dos bancos estatais, a relação ainda mais estreita com o setor público se dá através da Bradespar que detinha, pelo menos até 2011, 21,1% das ações ordinárias da Valepar, controladora da Companhia Vale do Rio Doce (VALE). Na figura a seguir apresentaremos o sociograma que representa a rede de relações de capital do grupo Bradesco. Acima e ao centro observamos os controladores majoritários do grupo, composto pela Cidade de Deus (1), Nova Cidade de Deus (4) e Família Aguiar e mais à direita um núcleo do controle de capital estrangeiro, composto pelo BES (6), BBVA (7) e Bank of Toquio Mitsubishi (8).

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FIGURA 1 - Grupo Bradesco: empresas controladas ou com participações acionárias significativas – 2007

Empresas financeiras do grupo

Outras instituições do grupo

Empresas não-financeiras do grupos

Outras instituições de fora do grupo

Empresas financeiras de fora do grupo

Família controladora

Empresas não-financeiras de fora do grupo FONTE: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis em BRADESCO (2007), BOVESPA (2007), CVM (2007) e VALOR ECONÔMICO (2007). Programa utilizado: NetDraw a partir do Ucinet 6. Obs.: Os números identificam as empresas, conforme Quadro 1 (Consultar apêndice).

Acima e à esquerda encontramos as conexões em torno da Bradespar (65) incluindo sua participação na Valepar (77) e na CPFL Energia (75). Chamam atenção também a presença do banco BMC (13) e Banco Finasa (17), aquisições do Bradesco que lhe proporcionou também o controle das empresas desses bancos pelo grupo. Ainda à esquerda localizamos um núcleo de empresas do Bradesco que atuam no exterior (22,24,25,26,27,28,29,30) e abaixo delas, as empresas do núcleo de seguros (36,37 e 38), segunda principal atividade do grupo. No relatório anual da instituição (2007) o presidente do conselho de administração do banco, Lázaro de Mello Brandão, expressava preocupação com o ambiente de “turbulência e volatilidade” nos mercados internacionais, mas destaca que, apesar disso, o ano de 2007 foi de importantes conquistas e avanços para o banco, entre eles um lucro recorde de R$ 8,010 bilhões e um crescimento de 29,08% em relação a 2006 (BRADESCO, 2007:10). Afirma também que, de forma “prudente”, a instituição buscará crescer através de aquisições e parcerias. Ainda no exercício de 2007, o Relatório da Administração relaciona uma série de acontecimentos importantes para o banco, como a incorporação do BMC, um dos 25


GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES

maiores bancos privados de crédito consignado do INSS. Uma operação que agregou R$ 1 bilhão à carteira de crédito consignado do banco9. Os “acontecimentos relevantes” destacados pelo relatório do banco, demonstram que a ampliação de suas atividades internacionalmente não é um objetivo secundário. Em 2007 o banco já marcava presença em cidades do exterior: Nova York, Londres, Grand Cayman, Nassau, Buenos Aires, Tóquio, Hong Kong e Luxemburgo, além é claro, da relação estabelecida por seus controladores com seus acionistas minoritários, o Banco Bilbao Viscaya Argentaria (BBVA), da Espanha, o Banco Espírito Santo (BES), de Portugal e o Bank of Tokio Mitsubishi UFJ, do Japão. Em setembro de 2007 o presidente do Bradesco, Marcio Cypriano era otimista com o cenário brasileiro: "O Brasil não está sujeito a determinados solavancos da economia internacional (...)”, para ele “(...) a atual fase de crescimento econômico do país está ancorada no consumo das famílias, o que reduz a dependência do desempenho da economia externa.”10 O foco da instituição a curto e médio prazo continua sendo o mercado interno e não a internacionalização. Segundo ele, "Fazer varejo no exterior hoje não é interessante porque ainda há uma parte muito grande da população brasileira que não é 'bancarizada', o que aumenta o potencial de crescimento do setor bancário no país"11 Nesta fala, a perspectiva do banco indica uma aposta no mercado bancário interno e seu crescimento. Com o agravamento da crise, em 2008, Cypriano muda um pouco o tom do discurso e admite que a economia brasileira poderia sofrer “arranhões”, mas ainda assim, projeta crescimento da carteira de crédito do Bradesco e insiste que “o Brasil deve ‘resistir bem’ à turbulência externa, com impactos mínimos no crescimento da economia”12.

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Carteira de crédito consignado do Bradesco deve chegar a cerca de R$ 4 bilhões após compra do BMC. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/530715/carteira-de-creditoconsignado-do-bradesco-deve-chegar-cerca-de-r-4-bilhoes-apos-compra-do-bmc ROSAS, R. Bradesco aumenta previsão de inflação para 2008, reduz projeção para o PIB e prevê Selic estável. Valor Econômico, São Paulo, 25 de setembro de 2007. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/556703/bradesco-aumenta-previsao-de-inflacao-para-2008reduz-projecao-para-o-pib-e-preve-selic-estavel ROSAS, R. Cypriano defende redução gradual da CPMF. Valor Econômico, São Paulo, 25 de setembro de 2007. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/556681/cyprianodefende-reducao-gradual-da-cpmf CAMAROTTO, Murillo. Bradesco espera alta de até 25% na carteira de crédito, mesmo com crise externa. Valor Econômico, São Paulo, 28 de janeiro de 2008. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/570153/bradesco-espera-alta-de-ate-25-na-carteira-de-creditomesmo-com-crise-externa

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O ano de 2008 apresenta uma queda na taxa de lucro. Mas os números não afetam tanto os planos de expansão do grupo. Entre as operações do banco está a aquisição da Ágora Corretora de Títulos e Valores Mobiliários S.A., então maior corretora do país em transações de compra e venda de ações para pessoas físicas. E firma também com o The Bank of Tokyo Mitsubishi UFJ, Ltd. uma aliança operacional para administração de fundos de investimento. Em novembro é selada a fusão entre os bancos Itaú e Unibanco, que juntos, passam a assumir a liderança em ativos. Se referindo à operação do concorrente13, Cypriano afirmou que o banco não fará “loucuras” para retomar a liderança. O Bradesco não admite adotar medidas que chama de “desenfreadas”, como aquisições ou a internacionalização, para compensar a perda no ranking. O presidente do banco salientou que a liderança em ativos não é tão importante, e que o Bradesco continua sendo o primeiro lugar em depósitos à vista, poupança, pontos de atendimento e número de clientes, além do segmento de seguros e previdência. Junto dele, o vicepresidente Milton Vargas, disse que o banco continua liderando entre a população da classe C, que acreditam, tem um “promissor potencial de crescimento” nos anos seguintes. O que pode demonstrar que o Bradesco aposta na eficácia dos programas do governo federal em beneficiar esses segmentos da população. No Relatório de 2009 o Bradesco ressalta as projeções pessimistas do início do ano para a economia global, mas destaca que a recuperação é evidente, cada país a seu tempo. Na opinião do banco o Brasil superou bem os efeitos da crise e já sinaliza uma recuperação ainda melhor com a dinâmica econômica que será gerada “(...) pela demanda doméstica e das oportunidades geradas pela Copa do Mundo e as Olimpíadas, além da exploração do pré-sal.” (BRADESCO, 2009:12). No ano de 2009 ocorrem mudanças na direção do Bradesco e Luiz Carlos Trabuco Cappi assume a presidência da instituição. Nas primeiras palavras, o presidente reconhece que há dificuldades, mas também é otimista com relação à economia brasileira frente ao cenário mundial: "Não acho que o Brasil está entrando em recessão profunda. O país tem uma capacidade de crescimento no mercado interno e essa é a maior apólice de seguros que o Brasil tem para ultrapassar a

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CAMAROTTO, Murillo. Bradesco descarta "loucuras" para retomar liderança. Valor Econômico, São Paulo, 25 de novembro de 2008. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/602231/bradesco-descarta-loucuras-para-retomar-lideranca

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crise."14 A estratégia é aumentar a capacidade de crescimento através da expansão física, no mercado doméstico e pela conquista de novos correntistas 15. Três meses depois Trabuco reconheceu que durante o pior momento da economia internacional, o Bradesco perdeu espaço no mercado de crédito para os bancos públicos, que tiveram papel anticíclico no Brasil durante a crise. Mas fez questão de destacar que entre os bancos privados, manteve sua posição no mercado. Ainda em 2009 o Bradesco adquiriu 43,5% das ações da Odontoprev 16, líder brasileira no mercado de planos odontológicos. A junção formou uma empresa com valor de mercado de R$ 1,5 bilhão e agora líder isolada no ramo. No Relatório Anual de 2010 Lázaro de Mello Brandão retoma o discurso de que a economia global vem recuperando seu crescimento no pós-crise, ainda que em ritmos bem diferentes. E o Bradesco destaca sua atuação nesse contexto ajudando a promover a inclusão bancária e contribuindo para a mobilidade social (BRADESCO, 2010:10). Referindo-se à demanda de investimentos com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, Trabuco afirma que "Se o motor da economia, num primeiro momento, foi o consumo, em 2010 o motor vai ser o investimento"17. Um dos acontecimentos mais importantes do ano foi a sociedade com o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF) para administrar uma bandeira de cartões, a Elo. A atuação no exterior recebe nova atenção com a entrada de Joaquim Levy, ex-secretário do Tesouro Nacional, no Bradesco Asset Management (Bram). Segundo Trabuco "Joaquim Levy representa uma importante contribuição para a consolidação do projeto de internacionalização da Bram"18. Dias depois, Levy afirmou que “(...) embora a situação do país seja confortável, é necessário ficar atento. ‘Se houver por parte dos estrangeiros necessidade de levar capital de volta, teremos de estar CARVALHO, M e TRAVAGLINI, F.. Trabuco assume Bradesco e ressalta continuidade. Valor Econômico, São Paulo, 11 de Março de 2009. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/612475/trabuco-assume-bradesco-e-ressalta-continuidade 15 CAMAROTTO, Murillo. Para Bradesco, atender demanda do pós-crise é principal desafio futuro. Valor Econômico, São Paulo, 03 de agosto de 2009. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/628161/para-bradesco-atender-demanda-do-pos-crise-eprincipal-desafio-futuro 16 SILVA JUNIOR, Altamiro. Bradesco fortalece o pilar de seguros. Valor Econômico, São Paulo, 20 de outubro de 2009. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/789091/bradesco-fortalece-o-pilar-de-seguros 17 TRAVAGLINI, Fernando. Bradesco acelera expansão no crédito para empresas. Valor Econômico, 29 de janeiro de 2010. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/806237/bradesco-acelera-expansao-no-credito-para-empresas 18 LIMA, Aline. Bram fecha com Levy para atrair estrangeiros. Valor Econômico, 01 de junho de 2010. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/827595/bram-fecha-com-levy-paraatrair-estrangeiros 14

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GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES preparados’”.19 Segundo Levy, nenhum movimento nesse sentido foi identificado, mas o risco existia. Não apenas a situação fiscal da Europa que preocupava, mas também o sistema financeiro que ainda não podia ser considerado sólido. Por outro lado, Octavio de Barros, economista chefe do banco, é otimista. Segundo ele, os impactos da crise europeia no Brasil parecem “modestos”, especialmente porque a maior parte das exportações brasileiras é direcionada à Ásia, particularmente à China. E estas sim, se diminuíssem se tornariam um problema para a economia brasileira. E mais, Barros acredita que uma “benção disfarçada” da crise20 [europeia] seja o crescimento de oportunidades para empresas brasileiras e latinoamericanas ingressarem no mercado europeu. Na carta aos acionistas do Relatório Anual de 2011, Brandão reconheceu que a conjuntura econômica internacional afetou negativamente o desempenho econômico brasileiro. Mas que ainda assim, o país podia comemorar a marca histórica de ter 50% da população integrada à classe média (BRADESCO, 2011:10). Entre suas estratégias o Bradesco continua afirmando que o foco está nos seus segmentos essenciais - banco e seguros - sendo o varejo o maior destaque. Na figura 2 visualizamos a rede do grupo Bradesco em 2011, depois das transformações que apontamos até aqui, promovidas por fusões, parcerias, aquisições e abertura de novas empresas. FIGURA 2 - Grupo Bradesco: empresas controladas ou com participações acionárias significativas – 2011

19 LORENZO, Francine De. Levy alerta para risco de reversão de investimentos no Brasil com crise europeia. Valor Econômico, 28 de junho de 2010. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/664769/levy-alerta-para-risco-de-reversao-de-investimentos-nobrasil-com-crise-europeia 20 BARROS, O. e SANTISO, J. Para uma Europa considerada irreformável, a crise atual é uma "bênção disfarçada". Valor Econômico, 02 de julho de 2010. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/833605/para-uma-europa-considerada-irreformavel-crise-atual-euma-bencao-disfarcada

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Empresas financeiras do grupo

Outras instituições do grupo

Empresas não-financeiras do grupos

Outras instituições de fora do grupo

Empresas financeiras de fora do grupo

Família Controladora

Empresas não-financeiras de fora do grupo FONTE: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis em BRADESCO (2011), BOVESPA (2011), CVM (2011) e VALOR ECONÔMICO (2011). Programa utilizado: NetDraw a partir do Ucinet 6. Obs.: Os números identificam as empresas, conforme Quadro 2 (Consultar apêndice).

O Bradesco aumentou o número de instituições em sua rede de relações de capital entre os anos de 2007 e 2011, devido, especialmente às aquisições recentes. Eram 75 instituições do grupo em 2007 (envolvendo famílias e empresas financeiras e não financeiras) passando para 110 em 2011. O mesmo ocorreu com o número de empresas em que tinha participação importante ou compartilhava participação. Eram 23 em 2007, aumentando para 30 em 2011. Esse aumento do grupo se reflete também no patrimônio líquido que aumentou de R$ 30,357 bilhões em 2007 para R$ 55,582 bilhões em 2011 (BRADESCO, 2007; BRADESCO, 2011).

O GRUPO ITAÚSA

A história do Banco Itaú começou em 1945, na cidade de São Paulo, com o banco Central de Crédito sob a presidência de Alfredo Egydio de Souza Aranha. Em 1948, com o crescimento do banco, novos nomes entram na diretoria, entre eles Eudoro Libâneo Villela. No ano de 1959, Alfredo convida seu sobrinho Olavo Egydio Setubal para compor a diretoria do banco. A primeira aquisição da instituição é o Banco Paulista de Comércio S.A., em 1961. Três anos depois ocorre a primeira fusão, com o Banco Itaú S.A., dando origem ao Banco Federal Itaú S.A.. Depois de outras aquisições importantes, o então Banco Itaú América S.A. se funde ao Banco Aliança S.A. e ao Banco Português, de onde nasce o Banco Itaú S.A.. Em 1980 começa seu processo de internacionalização, com a abertura de uma agência do Itaú em Nova York. 30


GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES Depois de uma assembleia realizada em 1991 é que surgiu a Itaúsa – Investimentos Itaú S.A., empresa holding criada para concentrar as decisões estratégicas do grupo em todos os segmentos financeiros e empresas do setor nãofinanceiro. Em 1997 tem início uma nova fase de aquisições do Banco Itaú, inclusive participando de processos de privatizações de importantes bancos públicos estaduais brasileiros. Os bancos comprados pelo Itaú foram o Banco do Estado do Rio de Janeiro - Banerj (1997), Banco do Estado de Minas Gerais - Benge (1998), Banco do Estado do Paraná – Banestado (2000) e Banco do Estado de Goiás - BEG (2001). O Itaú também apresenta como característica marcante a forte presença familiar no controle administrativo do grupo, com integrantes das famílias Vilella e Setubal ocupando cargos da direção e presidência. Com a fusão com o Grupo Unibanco, como veremos adiante, entra em cena a família Moreira Salles. A visualização do sociograma de participação e controle acionários do grupo Itaú (Figura 3) permite-nos perceber de forma objetiva a amplitude e o alcance do grupo, de forma mais intensa no Brasil e na América Latina, mas se estendendo também aos Estados Unidos e à Europa. Além disso, a Itaúsa tem uma presença destacada no setor não-financeiro da economia através de empresas do próprio grupo: a Duratex e a Deca atuando na indústria de painéis de madeira, louças e metais sanitários, a Elekeiroz na indústria química e a Itautec na indústria eletrônica de informática.

FIGURA 3 - Grupo Itaúsa: empresas controladas ou com participações acionárias significativas – 2007

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Empresas financeiras do grupo Empresas financeiras de fora do grupo

Empresas não-financeiras do grupo Famílias controladoras

Empresas não-financeiras de fora do grupo FONTE: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis em ITAÚSA (2007), BOVESPA (2007), CVM (2007) e VALOR ECONÔMICO (2007). Programa utilizado: NetDraw a partir do Ucinet 6. Obs.: Os números identificam as empresas, conforme Quadro 3 (Consultar apêndice).

Na Figura 3, acima e ao centro, destacamos o controle do grupo, composto pelas famílias Setubal (1) e Villela (2), que detêm o controle e participam ativamente na administração do grupo. Diferente da atuação da família Aguiar, no caso do Bradesco, cuja participação na administração é menos significativa. Na Itaúsa também observamos a participação de um outro grupo, a Camargo Corrêa (4), que não estará presente em 2011. À esquerda da figura encontram-se as empresas não-financeiras do grupo, Duratex (7), Itautec (16) e Elekeiroz (11), seguidas de suas respectivas empresas. E do lado oposto identificamos empresas da Itaúsa com atuação no exterior (38 e 39). Em pontos diferentes da rede encontramos também bancos adquiridos pela Itaúsa, como o BEG (55), Banerj (56) e Banestado (86). E à semelhança do Bradesco, identificamos abaixo as conexões estabelecidas entre o Itaú e outras instituições financeiras a partir de sua participação na BIU (63) e na Cibrasec (136). Voltando-se para o cenário econômico de 2007, o Relatório Anual da Itaúsa (ITAÚSA, 2007:90) demonstrava que seus dirigentes estavam atentos ao mercado financeiro internacional sem, no entanto, expressar grande preocupação. Na publicação sobressai a valorização do crescimento da economia brasileira como resultado do incremento da demanda interna. Efeito do aumento da renda, da oferta de crédito e da redução de juros, estimulando o brasileiro consumir mais bens e serviços. No mesmo relatório a direção do grupo não apresenta posicionamento muito aprofundado sobre a crise, nem faz projeções para cenários futuros que considerem os possíveis impactos sobre o Brasil ou sobre a própria instituição financeira. A expectativa positiva mais concreta para 2008 é apresentada por Olavo Egydio Setubal, presidente do conselho de administração, que estimou crescimento de 30% da carteira de crédito para pessoa física em relação a 2007 (Ibid.:07). Segundo os

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resultados apresentados no relatório do ano seguinte o crescimento desse segmento foi de 71,32% (ITAÚSA, 2008:36). Diferente do Bradesco, a Itaúsa valoriza mais a sua atuação internacional. Com um mapa do mundo ocupando duas páginas (Ibid.:14-15), destaca a presença das empresas do grupo nos países da América Latina, da Europa e Estados Unidos e China e Japão. As estratégias de crescimento evidenciadas pelos grupos também são diferentes. O Bradesco destaca sua expansão pelo “crescimento orgânico”. A Itaúsa não deixa de apresentar os números do crescimento do grupo, seja de abertura de agências, novas contas, carteiras de crédito, venda de serviços e produtos, mas salienta que “Uma bem-sucedida estratégia de aquisições e incorporações levou o Banco Itaú Holding Financeira à atual posição como um dos líderes entre os bancos privados brasileiros e um dos maiores bancos da América Latina” (Ibid.:12). Entre as “oportunidades de mercado” relacionadas pelo relatório estão: integração do Itaú Personnalité com o BankBoston; aquisições do negócio private bank com clientes latino-americanos do Bank of America e do ABN Amro; criação da Kinea, gestora de fundos de investimento de alto risco; e estabelecimento de acordo com a LPS Brasil – Consultoria de Imóveis S.A. (Lopes) para a promoção e oferta de produtos imobiliários (Ibid.:39-40). Em fevereiro de 2008 o Itaú permanecia otimista com relação ao cenário econômico brasileiro e esperava repetir o “sucesso” de 2007, em que o banco teve lucro recorde. Setubal afirmou que “o crescimento econômico está dando fôlego ao crédito e anima o banco a expandir a rede e todas as áreas de negócio” 21. Entretanto a expectativa otimista não se concretizou. Enquanto o lucro do banco em 2007 foi de R$ 8,5 bilhões, em 2008 foi de R$ 7,8 bilhões. Ainda que o valor seja significativo, houve uma redução na taxa de lucro de 8,2% entre os dois anos. Em agosto de 2008 falece o grande líder e então presidente do conselho de administração da Itaúsa, Olavo Egydio Setubal. Além disso, o ano fechou com alguns dos piores resultados para o banco. Mas apesar dos resultados e dos impactos da crise, José Carlos Moraes Abreu, Presidente do Conselho de Administração da Itaúsa, e Alfredo Egydio Arruda Villela Filho, Diretor Presidente e Diretor-Geral, destacam que 21

CARVALHO, M. Itaú dobra lucro com expansão do crédito. Valor Econômico, 13 de fevereiro de 2008.

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com a fusão com o Unibanco, a instituição termina o ano como o maior banco do Hemisfério Sul: o Banco Itaú Unibanco, com um valor de marcado de R$ 107,9 bilhões. Afirmam também que o momento é de buscar acelerar a integração das duas instituições ao mesmo tempo em que “(...) o Itaú Unibanco prepara caminho para futuras ampliações e investimentos no Brasil e no exterior” (ITAÚSA, 2008:04). No dia 03 novembro de 2008 o Itaú anunciou sua fusão com o Unibanco, a maior fusão da história bancária brasileira22. Um dos objetivos da operação era a expansão do grupo fora do país. Juntos, os bancos ficariam mais fortes para enfrentar transações internacionais. A fusão com o Unibanco gerou também a criação da maior emissora de cartões de crédito do país. Com a operação, Hipercard, Unicard e Itaucard se uniram, completanto 37,5% de participação no mercado de cartões. Em maio de 2009, ganha destaque a declaração de Setubal de que a crise teria ajudado na fusão entre Itaú e Unibanco: “Se o mercado estivesse crescendo a uma taxa de 30%, a gente ia perder mercado”23. Para o empresário, se a economia brasileira tivesse mantido seu ritmo de crescimento, não haveria tanto espaço para expansão do novo banco. Durante a coletiva de imprensa Setubal afirmou que a crise “talvez” tenha acelerado a vontade de fazer o projeto acontecer, entendendo que tinham que ficar mais fortes para enfrentá-la. No item “Expansão internacional” do Relatório Anual de 2008, o grupo evidencia mais uma vez seus planos em relação à atuação internacional: “Ser um banco global. Esse é o principal objetivo de longo prazo do Itaú Unibanco, que nasce como o maior banco do Hemisfério Sul (...)” (ITAÚSA, 2008:32). Em agosto de 2009 o Itaú Unibanco apresentou resultados que demonstraram nova queda nos lucros do banco. O diretor financeiro do banco, Silvio de Carvalho, atribui o saldo negativo ao aumento da inadimplência e à redução da demanda por crédito. Mas afirma que “Tudo leva a crer que a crise já passou no Brasil, e que o país será um dos primeiros a se recuperar”24. A queda nos lucros também não parece ser impedimento para novas estratégias de internacionalização. Em agosto de 2009, Setubal voltou a afirmar que assim que a integração com o Unibanco estiver consolidada, o banco vai voltar os

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CARVALHO, M e TRAVAGLINI, F. Itaú e Unibanco anunciam fusão. Valor Econômico, 04 de novembro de 2008. ADACHI, V. Para Setubal, crise ajuda Itaú Unibanco. Valor Econômico, 01-04 de maio de 2009. CARVALHO, M. Inadimplência sobe e reduz lucro do Itaú. Valor Econômico, 12 de agosto de 2009.

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olhos para o exterior. Durante um evento em São Paulo, o presidente afirmou: “Quando realizamos a fusão Itaú Unibanco, dissemos que tínhamos aspirações internacionais. Isto faz parte da nossa estratégia para o futuro”25 Setubal sugeriu inclusive que a internacionalização é também uma estratégia de expansão alternativa à expansão no mercado brasileiro, que não apresenta mais possibilidades de fusões e aquisições, fazendo referência à forte concentração do mercado financeiro brasileiro. O Relatório Anual de 2010 volta a dar destaque à distribuição internacional da Itaúsa. Empresas do grupo agora estão presentes em novos territórios como Paraguai, Hong Kong, França, Suíça e Emirados Árabes, embora não atue mais na Venezuela e no Equador. O Itaú Unibanco, especificamente, estava presente naquele ano na Inglaterra, Portugal, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina e Japão. Na Mensagem do Presidente do Conselho de Administração, José Carlos Moraes Abreu, o destaque é para o fortalecimento da “Governança” com foco na integração das empresas (Ibid.:06). Passada uma série de grandes fusões e aquisições, o ano foi dedicado a alinhar e fortalecer a gestão do grupo. Na Mensagem do Presidente, o discurso segue a mesma lógica. Alfredo Egydio Arruda Villela Filho (Ibid.:08) busca ressaltar a boa recuperação da economia brasileira e do grupo frente ao cenário de crise: “Aproveitando a retomada positiva das economias, brasileira e mundial, após dois anos intensos de crise e incertezas, o Conglomerado Itaúsa demonstrou que estava no caminho certo”. Durante o ano o banco HSBC refez suas estratégias pelo mundo, levando-o a se desfazer de operações no varejo. Aproveitando essa oportunidade, o Itaú Unibanco adquiriu as operações de varejo deste no Chile26. Com a compra o Itaú Unibanco incorporou US$ 20 milhões em ativos e quatro agências bancárias. Em entrevista ao Valor Econômico em dezembro de 201127, Roberto Setubal iniciou destacando o sucesso na integração com o Unibanco. Agora como banco único, o objetivo é aumentar a eficiência. Falou também de internacionalização: “O que a gente tem olhado é principalmente América Latina, onde queremos ter 25 26

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DEZEM, V. Setubal admite aquisições no exterior em 2011. Valor Econômico, 12 de agosto de 2009. MANDL, C. Itaú fecha hoje compra da unidade chilena do HSBC. Valor Econômico, 29 de setembro de 2011. Valor Online. Disponível em: http://www.valor.com.br/financas/1025466/itau-fecha-hojecompra-da-unidade-chilena-do-hsbc ADACHI, V e MANDL, C. ‘Itaú é e será o banco das grandes cidades’. Valor Econômico. 08 de dezembro de 2011.

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uma presença maior tanto no varejo, quanto no atacado, no banco de investimento”. Para ele, investir na Europa ainda é arriscado e nos países da Ásia “não faria sentido”. Quando perguntado sobre a estratégia do Bradesco, de investir em cidades do interior e em populações não bancarizadas, Setubal responde que o Itaú Unibanco é um banco de classe média, urbana e concentrado no Sudeste. O presidente afirma: “Queremos continuar sendo assim, um banco forte nas áreas em que somos fortes”. Assim como o Bradesco, a Itaúsa igualmente divide espaços onde tencionam interesses políticos e econômicos. É o caso das participações em torno da Serasa S.A. e da Cibrasec, onde o grupo mantém relação com outros grupos financeiros concorrentes, como já vimos. Mas há um ator em especial que nos chama atenção e provavelmente provoca uma relação totalmente nova para o grupo, que é a participação da Petros na composição acionária da Itaúsa28. Participação esta que dá direito a um assento no conselho administrativo da instituição. Com isso, José Sérgio Gabrielli de Azevedo figura como o representante da Petros, desde maio de 2011. Na sequência apresentamos a Figura 4, com a sistematização dos dados de relações de capital da Itaúsa em 2011. No controle do grupo agora estão reunidas as famílias Setubal e Villela sob uma mesma denominação, família Egydio de Souza Aranha (2). O novo ator participando na Itaúsa é a Petros (60), no lugar do grupo Camargo Corrêa. Outra família a fazer a parte da rede é a Moreira Salles, neste caso, compartilhando o controle do Itaú Unibanco (6). FIGURA 4 - Grupo Itaúsa: empresas controladas ou com participações acionárias significativas – 2011

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Em 2010 ocorrem mudanças na composição acionária entre os controladores da Itaúsa. Em um leilão realizado em novembro a Camargo Corrêa vendeu seus 11,4%28 de participação no capital do grupo para a Petros (Fundação Petrobras de Seguridade Social), fundo de pensão dos funcionários da Petrobrás.

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Empresas financeiras do grupo

Empresas financeiras de fora do grupo

Empresas não-financeiras do grupo

Outras instituições de fora do grupo

Outras instituições do grupo

Famílias controladoras

Empresas não-financeiras de fora do grupo FONTE: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis em ITAÚSA (2012), BOVESPA (2007), CVM (2007) e VALOR ECONÔMICO (2012). Programa utilizado: NetDraw a partir do Ucinet 6. Obs.: Os números identificam as empresas, conforme Quadro 4 (Consultar apêndice).

Continuam presentes as empresas não financeiras do grupo, Itautec (47), Duratex (46) e Elekeiroz (48), mas com um número um pouco menor de empresas pertencentes. E mantiveram-se as relações em torno da BIU (29) e da Cibrasec (61), um núcleo de empresas no segmento de seguros (20 e 21) e um núcleo expressivo de empresas do grupo com atuação no exterior (à direita). A Itaúsa sofreu uma significativa redução no número de instituições identificadas em sua rede. Passando de 106 empresas do grupo em 2007 (envolvendo famílias e empresas financeiras e não financeiras) para 65 em 2011. O mesmo ocorreu com o número de empresas em que tinha participação importante ou compartilhava participação. Eram 32 em 2007, reduzindo para 19 em 2011. Redução é o que se observa também no patrimônio líquido do grupo que passou de R$ 33,933 bilhões em 2007 para R$ 32,290 bilhões em 2011 (ITAÚSA, 2007; ITAÚSA, 2011). As estratégias do banco parecem indicar a superação das “turbulências” provocadas pela crise por meio do aproveitamento de oportunidades que levam à manutenção dos seus rendimentos, maior centralização e concentração financeira. Em outras palavras, demonstram justamente que as vias de superação das contradições do capitalismo são encontradas dentro de sua própria lógica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As crises, de maneira geral, pertencem ao próprio desenvolvimento do capitalismo, sendo a ele inerente. O modo de produção capitalista é regido por 37


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contradições e antagonismos internos que em um dado momento e após o acúmulo de certo tipo de condições coloca o sistema em xeque. Porém, as crises, por exemplo a de 1929, década de 1980 e a de 2008, não chegam a destruir o sistema. Antes, possuem um papel reorganizador e criam condições para que a acumulação de capital possa voltar a acontecer de maneira desimpedida. O desenvolvimento econômico é marcado por ciclos e, no limite, as crises servem como impulso renovador da acumulação capitalista. É no período de crise que surgem as inovações tão necessárias ao restabelecimento de um ciclo de acumulação de capital. No Brasil, de fato, a economia vinha desde 2004 passando por um processo de crescimento mais sólido, através das políticas de redistribuição da renda, inclusão social e aumento dos investimentos. Para os bancos, a mobilidade social foi vantajosa, pois aumentou o acesso de uma população maior ao crédito bancário. A primeira fase da crise provocou efeitos diretos sobre a economia brasileira, amenizados pelo bom momento do cenário nacional, com crescimento econômico acelerado, aumento da renda e mobilidade social, redução do desemprego, aumento dos investimentos em infraestrutura e programas sociais. Aliados a essa conjuntura observou-se atuação ativa do governo através do BACEN e dos bancos públicos, o que ajudou a conter efeitos drásticos no mercado financeiro, reduzindo impostos, disponibilizando mais recursos e ajudando bancos em dificuldade. Os efeitos da crise sobre os bancos privados derivam especialmente da retração da demanda por crédito e inadimplência. Ainda que os bancos fizessem questão de justificar que os calotes vinham de clientes e empresas que receberam crédito antes da crise e que depois de 2008, as análises de crédito se tornaram mais exigentes e o perfil dos tomadores de crédito mudou. De forma geral, as turbulências deixaram o Bradesco e a Itaúsa mais atentos e exigentes, mas não totalmente avessos a operações como fusões e aquisições. O Bradesco em especial não assumia no discurso a estratégia de expansão através destes tipos de operações, apostando sempre no “crescimento orgânico”. Entretanto, a estratégia assumida, abriu uma série de exceções, como verificamos no decorrer do trabalho. Muito além da abertura de agências, cobrindo todo o território nacional, novas contas e serviços direcionados às classes “C” e “D”, o Bradesco fez uma série de aquisições, inclusive levando o grupo a intensificar sua presença no exterior. Já o Itaú assumia desde 2007 suas intenções de expansão através de aquisições e internacionalização. 38


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O cenário de crise pode ter reduzido o número de incorporações, mas não a proporção dessas operações, que foram até estimuladas pela concorrência interna. Com destaque para a fusão com o Banco Unibanco, possivelmente acelerada pela crise. A redução do número de transações deste tipo estaria vinculada mais à alta concentração do setor bancário brasileiro, reduzindo as possibilidades de novas aquisições, do que um efeito direto da crise internacional. O cenário externo teria inclusive proporcionado benefícios ao Bradesco e à Itaúsa, e aos bancos em geral, pois possibilitou que ocupassem espaços abertos dentro e fora do país com a saída de outras instituições falidas ou em dificuldades. REFERÊNCIAS ANDREATTA, J. C. . Fusões, aquisições e internacionalização do setor bancário brasileiro: 1990-2003. In: IX Encontro Nacional de Economia Política, 2004, Uberlândia. Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), 2004. Disponível em: http://www.ie.ufu.br/ix_enep_mesas/Mesa%2010%20%20Economia%20Industrial%20e%20servi%C3%A7os%20I/Fus%C3%B5es%20Aq uisi%C3%A7%C3%B5es%20e%20Internacionaliza%C3%A7%C3%A3o.pdf> Acesso em: 16 de dezembro de 2008 BOLSA DE VALORES DE SÃO PAULO (BOVESPA). Empresas. Disponível em: <http://www.bovespa.com.br>. BRADESCO. Relatório Anual. São Paulo, 2004 a 2011. Disponível em: < http://www.bradescori.com.br/abertura.html>. BRADESCO. Demonstrações Financeiras. São Paulo, 2004 a 2011. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/> CARCANHOLO, Reinaldo et al, Crise financeira internacional: natureza e impacto. 2008. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/hpp/intranet/pdfs/crise_financeira_internacional_gep_maio_200 8.pdf>. CONCEIÇÃO, Jefferson José da. O abc da crise In: SISTER, Sérgio (Org.). O abc da crise. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 17-54. CHESNAIS, François. O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior. Carta Maior. 09 de outubro de 2008. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaImprimir.cfm?materia_id=15284> Acesso em 22 de abr de 2012. COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). Empresas abertas e estrangeiras. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br>.

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GONÇALVES, Reinaldo. Grupos econômicos: uma análise conceitual e teórica. In: Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 45 (4), out/dez. 1991, p. 491-518. HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo, SP: Boitempo, 2011. HILFERDING, Rudolf. El Capital Financiero, Madrid, Editorial Tecnos, 1973. IPEA (2009a). Comunicado da Presidência. A crise internacional e possíveis repercussões: primeiras análises. IPEA: Brasília, n. 16, jan 2009. ITAÚ. Demonstrações Financeiras, São Paulo, 2004 a 2008. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/> ITAÚSA. Relatório Anual, São Paulo, 2004 a 2009. Disponível em: < http://ww13.itau.com.br/itausa/HTML/pt-BR/infofinan/rao.htm> ITAÚSA. Relatório Anual de Sustentabilidade, São Paulo, 2010 e 2011. Disponível em: < http://ww13.itau.com.br/itausa/HTML/pt-BR/infofinan/rao.htm> ITAÚ Unibanco. Demonstrações Financeiras, São Paulo, 2009 a 2011. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/> MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009, cap. 1 “A crise em desdobramento e a relevância de Marx”, p. 17-30. Texto também publicado em Comunicação & política, v.27, nº2, p.125-146, 2009. [Palestra pronunciada em Conway Hall, Londres, a 21 de outubro de 2008]. MINELLA, Ary C. Maiores bancos privados no Brasil: um perfil econômico e sociopolítico. Rev. Sociologias, Porto Alegre, ano 9, n. 18, jul./dez. 2007, p. 100125. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n18/n18a06.pdf> NEGRI, F. e ALVARENGA, G. A primarização da pauta de exportações no Brasil: ainda um dilema. In: IPEA. Radar: Tecnologia, Produção e Comércio Exterior. IPEA: Brasília, n. 13, abr 2011. OLIVEIRA, Francisco de. Criar cinco Embraer por ano In: SISTER, Sérgio (Org.). O abc da crise. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 83-89. PORTUGAL JR., José Geraldo (org.). Grupos econômicos: expressão institucional da unidade empresarial contemporânea. São Paulo, FUNDAP/IESP, 1994. STIGLITZ, Joseph E. O mundo em queda livre: Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 VALOR. Valor Grandes Grupos, edições de 2007 e 2011.

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APÊNDICE Quadro 1 – Grupo Bradesco – Empresas do grupo e nas quais tem participação importante (2007) (continua) 1 Nova Cidade de Deus 2 Fundação Bradesco 3 Elo part. E Inv. S.A. 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 79 80 81 82 83

Cidade de Deus Família Aguiar Banco Espírito Santo Banco Bilbao Vizcaya Argentaria S.A. Bank of Tokio Mitsubishi UFJ (MUFG) Banco Bradesco Outros - Mercado (Banco Bradesco) Alvorada Cartões, Crédito, Financiamento e Investimento S.A. Banco Alvorada S.A. Banco BMC S.A. Banco Bankpar S.A. Banco Bradesco BBI S.A. Banco Boavista Interatlântico S.A. Banco Finasa S.A. Bankpar Arrendamento Mercantil S.A. Bradesco Administradora de Consórcios Ltda. Atlântica Companhia de Seguros Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação S.A. Átria Participações Ltda. Andorra Holdings S.A. Bradescor Corretora de Seguros Ltda. Bradesplan Participações Ltda. Cia Securitizadora de Créditos Financeiros Rubi Cibrasec - Companhia Brasileira de Securitização CPM Holdings Limited Nova Paiol Participações Ltda Scopus Tecnologia Ltda Tempo Serviços Ltda União Participações Bradport - SGPS, Sociedade Unipessoal Lda. (Portugal) Elopart Participações Ltda Bradesco Administradora de Consórcios Bradesco Services Co. Bradesco SegPrev Investimentos Ltda. Bradesco Dental S.A. Bradesco International Health Service Baneb Corretora de Seguros S.A. Elba Holdings Ltda. Serasa S.A. Embaúba Holdings Ltda. Neon Holdings Ltda.

20 Bradesco Leasing S.A. Arrendamento Mercantil Bradesco S.A. Corretora de Títulos e Valores 21 Mobiliários 22 Bram - Bradesco Asset Management S.A. Companhia Brasileira de Meios de Pagamento 23 Visanet 24 Banco Bradesco Argentina S.A. 25 Banco Bradesco Luxembourg S.A. 26 Banco Bradesco S.A. Grand Cayman Branch 27 Banco Bradesco S.A. New York Branch 28 Banco BMC S.A. Grand Cayman Branch 29 Banco Bradesco S.A. Nassau Branch 30 31 32 33 34 35 36 37 38 59

Banco Bradesco Securities, Inc. Atlântica Capitalização S.A. Áurea Seguros S.A. Bradesco Argentina de Seguros S.A. Bradesco Auto/RE Companhia de Seguros Bradesco Capitalização S.A. Bradesco Saúde Bradesco Seguros S.A. Bradesco Vida e Previdência S.A. Cidade Capital Markets Ltd.

60 61 62 63 64

BMC Asset Management Ltda. BMC Previdência Privada Credicerto Promotora de Vendas Ltda NCF Participações S.A. BEM DTVM Ltda

65 Bradespar S.A. 66 67 68 69 70 71

Finasa Promotora de Vendas Promosec Cia Securitizadora de Créditos Financeiros Zogbi DTVM Ltda Zogbi Leasing S.A. Arrendamento Mercantil Settle Consultoria, Acessoria e Sistemas Ltda Fundo de Pensões do Banco Espírito Santo

72 73 74 75 76 77 78 88 89 90 91 92

Hedging Geiffo (Fundos) Antares Holdings Ltda Brumado Holdings Ltda. CPFL Energia S.A. Millenium Security Holding Corp. Valepar S.A. Cia Brasileira de Soluções e Serviços Visavale Banco Bradesco Cartões S.A. Bankpar Consultoria e Serviços Ltda. Imagra Imobiliária e Agrícola Ltda. Alvorada Vida S.A. Unibanco União de Bancos Brasileiros S.A.

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84 BPS Participações Ltda. 93 Banco do Brasil - Banco de Investimentos BCN Consult., Adm. De Bens e Servs. E 85 Public. Ltda 94 Caixa Econômica Federal - CEF 86 Aquarius Holdings Ltda. 95 Banco ABN AMRO Real S.A. Nova Marília Adm. De Bens Móveis e Imóveis 87 Ltda 96 Banco Itaú S.A. Fonte: BRADESCO (2007), BOVESPA (2007), CVM (2007) e VALOR ECONÔMICO (2007)

Quadro 2 – Grupo Bradesco – Empresas do grupo e nas quais tem participação importante (2011) (continua) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60

Nova Cidade de Deus Fundação Bradesco BBD Part. S.A. (Administradores/Funcionários) Cidade de Deus Família Aguiar Banco Espírito Santo Bank of Tokio Mitsubishi UFJ (MUFG) Banco Bradesco Outros - Mercado (Banco Bradesco) Alvorada Cartões, Crédito, Financiamento e Investimento S.A. Banco Alvorada S.A. Banco Bankpar S.A. Banco Bradesco BBI S.A. Banco Boavista Interatlântico S.A. Bankpar Arrendamento Mercantil S.A. Bradesco Administradora de Consórcios Ltda. Bradesco Leasing S.A. Arrendamento Mercantil Bradesco S.A. Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Bram - Bradesco Asset Management S.A. Banco Bradesco Argentina S.A. Scopus Tecnologia Ltda Tempo Serviços Ltda União Participações Bradport - SGPS, Sociedade Unipessoal Lda. (Portugal) Bradesco Services Co. Bradesco SegPrev Investimentos Ltda. Cidade Capital Markets Ltd. BMC Asset Management Ltda. BMC Previdência Privada NCF Participações S.A. BEM DTVM Ltda Bradespar S.A. Promosec Cia Securitizadora de Créditos Financeiros Settle Consultoria, Acessoria e Sistemas Ltda Antares Holdings Ltda Brumado Holdings Ltda. CPFL Energia S.A. Millenium Security Holding Corp. Valepar S.A. Cia Brasileira de Soluções e Serviços Alelo

21 22 23 24 25 26 27 28 29

Banco Bradesco Europa S.A. Banco Bradesco S.A. Grand Cayman Branch Banco Bradesco S.A. New York Branch Banco Bradesco S.A. Grand Cayman Branch II Banco Bradesco Securities, Inc. Atlântica Capitalização S.A. Bradesco Argentina de Seguros S.A. Bradesco Auto/RE Companhia de Seguros Bradesco Capitalização S.A.

30 31 32 33 34 35 36

Bradesco Saúde Bradesco Seguros S.A. Bradesco Vida e Previdência S.A. Atlântica Companhia de Seguros Andorra Holdings S.A. Bradescor Corretora de Seguros Ltda. Bradesplan Participações Ltda.

37 Cia Securitizadora de Créditos Financeiros Rubi 38 39 40 61 62 63

Cibrasec - Companhia Brasileira de Securitização CPM Holdings Limited Nova Paiol Participações Ltda Baneb Corretora de Seguros S.A. Elba Holdings Ltda. Embaúba Holdings Ltda.

64 65 66 67 68 69 70 71 72

Neon Holdings Ltda. BPS Participações e Serviços Ltda. BCN Consult., Adm. De Bens e Servs. E Public. Ltda Aquarius Holdings Ltda. Banco Bradesco Cartões S.A. Bankpar Consultoria e Serviços Ltda. Alvorada Vida S.A. Banco Bradesco Financiamentos S.A. Banco BERJ S.A.

73 74 75 76 77 78 79 80

Ágora Corretora de Títulos e Valores Mobiliários S.A. Banco Bradescard S.A. Cielo S.A. Banco Bradesco Securities, UK. Odontoprev S.A. Bradseg Participações S.A. BSP Empreendimentos Imobiliários S.A. Columbus Holdings S.A.

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GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES

81 82 83 84 85 86 87 88 89

Banco Ibi S.A. Ibi México Bradescard Elo Participações S.A. Elo Participações S.A. Elo Serviços S.A. Ibi Promotora de Vendas Alpha Serv. De Rede de Autoatendimento CPM Braxis Bradesco North America LLC Delaware USA BES Investimento do Brasil S.A. Banco de 90 Investimento 91 Bradesco Trade Services Ltd. (Hong Kong) Leader S.A. Administradora de Cartões de 92 Crédito 93 Bradesco Securities Hong Kong Ltd. 94 MPO Processadora de Pagamentos Móveis 95 Bradescard México 96 BEC DTVM Ltda. 97 Serel Participações em Imóveis S.A. 98 Miramar Holdings S.A. 99 Alvorada Administradora de Cartões Ltda 100 Caetê Holdings Ltda. 121 Aícas Holding S.A. Danúbio Empreendimentos e Participações 122 Ltda Bréscia Empreendimentos e Participações 123 Ltda

101 102 103 104 105 106 107 108 109

Aicaré Holding Ltda. Marselha Holding Ltda Manacás Holdings Ltda Lyra Holdings Ltda BIU Participações S.A. Tibre Holdings Ltda Itaú Unibanco Holding S.A. Rubi Holdings Ltda. Quixaba Empreendimentos e Participações Ltda.

110 Ferrara Participações S.A. EABS Serviços Serviços de Assistência e Participação 111 S.A. 112 113 114 115 116 117 118 119 120 131

IRB Brasil Resseguros S.A. Marília Reflorestamento e Agropecuária Ltda. BSP Affinity Ltda. Tapajós Holding Ltda Veneza Empreendimentos e Participações S.A. Cia Brasileira de Gestão de Serviços Jahu Tecnologia em Seguros Ltda. Ipê Holding Ltda. Mediservice Administradora de Planos de Saúde S.A. Clidec Clínica Dentária Especializada Cura D'ars Ltda

132 Everest Leasing S.A. Arrendamento Mercantil Tibre Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários 133 Ltda Dental Partner Com. De Produtos e Equipamentos 134 Odontológicos Ltda 135 BF Promotora de Vendas Ltda. 136 Crediare S.A. Crédito, Financiamento e Investimento

124 Caboquenas Holdings S.A. 125 Everest Holdings Ltda. 126 Reno Empreendimentos e Participações Ltda Tamisa Empreendimentos e Participações 127 Ltda 137 Cia Leader Promoção de Vendas 128 Odontoprev Serviços S.A. 138 BB Banco de Investimentos (Banco do Brasil) 129 Adcon Adm. De Convênios Odontológicos Ltda 139 Banco Santander S.A. 130 Garcia Pedrosa Ltda 140 Caixa Participações Fonte: BRADESCO (2011), BOVESPA (2011), CVM (2011) e VALOR ECONÔMICO (2011)

Quadro 3 – Grupo Itaúsa – Empresas do grupo e nas quais tem participação importante (2007) (continua) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

Família Setubal Família Villela Fundação Itaú Social Camargo Corrêa Cimentos S.A. Outros1 Itaúsa Investimentos Itaú S.A. Duratex S.A. Itaucorp S.A. Rouxinol Adm. e Participações Ltda. Elekpart Part. e Adm. S.A. Elekeiroz S.A. Castletown Trading S.A. Duraflora S.A. Duratex Empreendimentos Ltda.

22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35

Duratex North America Inc. Duratex Overseas Duratex Europe N.V. Itautec Participações e Comércio S.A. Itec Equador S.A. Itautec México, SRL CV Itautec Portugal S.A. Tallard Technologies, Inc. (US) Itautec Itália S.R.L. Itautec França S.A. Itautec Espanha S.A. Itautec America, Inc. Itautec Argentina S.A. Itaúsa Export S.A.

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GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES

15 Duratex Comercial Exportadora S.A. 16 Itautec S.A. Grupo Itautec 17 Armazéns Gerais Itautec Philco S.A. Itautec Locação e Comércio de Equipamentos 18 S.A. 19 Itautec com Serv. S.A. 20 TCI Trading S.A. 21 Deca Piazza S.A. 43 Bank of America Corp. 44 Itaú-BBA Part. S.A. 45 Banco Itaú - BBA S.A. 46 Itaú Chile Holding Inc. 47 Banco Itaú Uruguai S.A. 48 OCA S.A. 49 OCA Casa Financeira S.A. 50 ACO Ltda. 51 Itaú-BBA Trading S.A. Puerto Cia. Securitizadora de Créditos 52 Financeiro 53 Delle Holding S.A. 54 Itaú Uruguai Boston Directo S.A. 55 Banco Itaú S.A. 56 Banco Banerj S.A. 57 Banco Beg S.A. 58 BFB Leasing S.A. Arrendamento Mercantil 59 Itaú Administradora de Consórcios S/C Ltda. 60 Itaú Cia. Securitizadora de Créditos Financeiro 61 Itaú Corretora de Valores S.A. 62 Banco Itaú Buen Ayre S.A. 63 BIU Participações S.A. 85 Banco Itaucard S.A. 86 Banco Banestado S.A. 87 Banco Del Paraná S.A.

39 40 41 42 64 65 66 67 68 69 70 71 72

Banco Itaú Europa Luxemburg S.A. (LX) Ith Zux Cayman Company Ltd. Outros 2 Banco Itaú Holding Financeira S.A. Itaubank Leasing S.A. Arrendamento Mercantil Itaú U.S.A. Inc. Itauseg Participações S.A. Itaú Seguros S.A. Itaú Vida e Previdência S.A. Enseg Engenharia de Seguros Ltda. Itaú XL Seguros Corporativos S.A. Paraná Cia. de Seguros Cia. de Seguros Gralha Azul S.A.

73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 104 105 106

88 89 90 91 92

107 108 109 110 111

Itaú Rent Adm. e Part. S.A. Aracema Adm. e Participações S.A. Itauseg Saúde S.A. Corcon Part. Administração e Participações Ltda. Itaú Gestão de Ativos S.A. Gralha Azul Participações Ltda. Cia. Itaú de Capitalização Lineinvest Participações S.A. Andorinha Adm. e Part. S.A. Três B Empreends. e Parts. Ltda. AGF Brasil Seguros S.A. Intrag-Part. Adm. e Part. Ltda. Serissa Adm. e Part. Ltda. Vitória Participações S.A. Miravalles Empreends. e Part. S.A. Orbitall Serviços e Processamento de Informações Comerciais S.A. ITB Holding Brasil Part. Ltda. ITB Holding Ltd. Itaú Bank Ltd. Banco Itaubank S.A.

93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 123

Topaz Holding Ltd. Banestado Parts. Adm. E Serviços Ltda. Investimentos Bemge S.A. Itausaga Corretora de Seguros S.A. Sertec Corretora de Seguros S.A. Banestado Leasing S.A. Arrendamento Mercantil Afinco Americas Madeira, SGPS, Sociedade Unipessoal, LDA Banco Itaucred Financiamentos S.A. Itauvest Adm. Part. S.A. Banco Itauleasing S.A. Fina Promoção e Serviços S.A. Fináustria Ass., Adm. e Servs. de Crédito e Parts. S.A. Itaú Lam Asset Management S.A. Banestado Adm. Cartões de Crédito Ltda. Fináustria Arrendamento Mercantil Fináustria Ass., Adm. e Serv. Crédito Ltda. Unibanco Participações Societárias S.A.

36 Itaúsa Europa Invest. SGPS Ltda. (PT) 37 Itaúsa Portugal SGPS S.A. (PT) 38 Banco Itaú Europa S.A. (PT)

112 FAI - Financeira Americanas Itaú S.A.CFI 113 114 115 116 117

Financeira Itaú CBD S.A. CFI Banco Fiat S.A. Pandora Participações S.A. Itaubank Comercial Parts. Ltda. Kinea Investimentos S.A.

118 119 120 121 122 131

Fiat Adm. de Consórcios Ltda. Redecard S.A. Grupo Bradesco Unibanco União de Bancos Brasileiros S.A. Dibens Leasing S.A. Arredamento Mercantil Lojas Americanas S.A.

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GT2 – ELITES POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES

124 Experian Group of Companies

132 Facilita Promotora S.A. Cia Brasileira de Distribuição (CBD) (Grupo Pão de 133 Açúcar) 134 Sé Supermercados Ltda.

125 Banco Santander S.A. 126 Banco ABN Amro Real S.A. HSBC - Investment Bank Brasil S.A.- Banco de 127 Invest. 135 AGF do Brasil Ltda. 128 HSBC Bank Brasil S. A. - Banco Múltiplo 136 Cibrasec - Companhia Brasileira de Securitização 129 Serasa S.A. 137 Banco do Brasil - Banco de Investimentos 130 Banco Citibank S.A. 138 Caixa Econômica Federal - CEF Fonte: ITAÚSA (2007), BOVESPA (2007), CVM (2007) e VALOR ECONÔMICO (2007)

Quadro 4 – Grupo Itaúsa – Empresas do grupo e nas quais tem participação importante (2011) (continua) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19

Família Moreira Salles Família Egydio de Souza Aranha Free Float (ITAÚSA Investimentos Itaú) Cia. E Johnston de Participações ITAÚSA Investimentos Itaú S.A. IUPAR Itaú Unibanco Participações Itaú Unibanco Holding S.A. Free Float (Itaú Unibanco Holding) Banco Itaú Chile S.A. Banco Itaú Uruguay S.A. Itaú Unibanco S.A. Banco Itaucard S.A. Banco Itaú BBA S.A. Itaú Corretora de Valores S.A. Banco Itaú BBA International S.A. Banco Itaú Paraguay S.A. Banco Itaú Argentina S.A. Hipercard Banco Multiplo S.A. Cia Itaú de Capitalização

22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40

Redecard S.A. Banco Dibens S.A. Banco Fiat S.A. Banco Itaú Europa Luxembourg S.A. Banco Itaucred Financiamentos S.A. Banco Itauleasing S.A. Dibens Leasing S.A. - Arrendamento Mercantil BIU Participações Fiat Administradora de Consórcios Ltda. Itaú Administradora de Consórcios Ltda. Itaú Ásia Securities Ltd. Itaú Bank, Ltd. Itaú Companhia Securitizadora de Créditos Financeiros Itaú Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. Itaú Japan Asset Management Limited Itaú Middle East Limited Itaú USA, INC. Unibanco Participações Societárias S.A. Unibanco Cayman Bank Ltd. Orbitall Serviços e Processamento de Informações 41 Comerciais S.A. 42 Banco Investcred Unibanco S.A.

20 Itaú Seguros S.A. 21 Itaú Vida e Previdência S.A. FAI - Financeira Americanas Itaú S.A. 43 Crédito, Financiamento e Investimento 55 Fundação Itaú Social Financeira Itaú CBD S.A. Crédito, 44 Financiamento e Investimento 56 Fundação Itaú Industrial Luizacred S.A. Soc. Cred. 45 Financiamento Investimento 57 Banco Bradesco S.A. 46 Duratex 58 Banco Boavista InterAtlântico S.A. 47 Itautec 59 Embaúba Holdings Ltda. 48 Elekeiroz 60 Fundação Petrobras de Seguridade Social - Petros 49 Cia Ligna e Família Seibel 61 Cia. Brasileira de Securitização - CIBRASEC 50 ITH Zux Cayman 62 Banco Santander S.A. 51 Itaúsa Empreendimentos 63 BB Banco de Investimentos (Banco do Brasil) 52 Free Float (Duratex) 64 Banco Alvorada S.A. (Bradesco) 53 Free Float (Itautec) 65 CAIXA Participações 54 Free Float (Elekeiroz) Fonte: ITAÚSA (2011), BOVESPA (2011), CVM (2011) e VALOR ECONÔMICO (2011)

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GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER

FUTEBOL, PODER E GENEALOGIA: A TRÍADE ESTRUTURANTE DA DOXA DO CAMPO FUTEBOLÍSTICO DE CURITIBA Luiz Demétrio Janz Laibida29 Resumo: O objetivo principal deste artigo é analisar como se configuram as relações de poder no interior do campo futebolístico de Curitiba, utilizando- se de aspectos genealógicos como metodologia estruturante para estabelecer relações da doxa vigente do campo supracitado. A escolha de Curitiba se deu por ser uma região marcada pela intensa dominação e continuísmo de grupos familiares no poder da capital e do Estado que são disseminados no campo futebolístico. Esta análise se justifica pela recorrência de nomes da política local que se fizeram presentes também na Federação Paranaense de Futebol, ou seja, as questões relacionadas ao futebol estão alicerçadas nas questões genealógicas e também fazem a interface com a política local. O universo empírico dessa análise é análise bibliográfica de alguns dirigentes de clubes da capital. Para a operacionalização desta proposta será utilizada a teoria bourdieusiana para realizar uma análise do campo esportivo, faze-se necessária fazer a verificação da posição que tal campo ocupa frente aos demais campos do poder, mapear as disposições dos agentes inseridos no campo a ser estudado através da analise do habitus dos mesmos. Para Bourdieu, o campo esportivo seguiria a mesma lógica dos demais campos, quais seja a presença dos dominantes e dominados em constante disputa de capitais, e doxa e nomos. Palavras-Chave: Futebol de Curitiba; Genealogia; Poder INTRODUÇÃO “todo menino e todo homem (isto é, a criança ou o bárbaro que há nele) tem a tendência de impelir para a frente, com o pé, latas e cascas de fruta que estão no caminho. A reação natural do homem (não do burguês assentado e, em nossa cultura, quase nunca da mulher) é devolver com o pé uma bola que rola para ele”. (Anatol Rosenfeld)

A citação supracitada é de um dos pioneiros dos estudos futebolísticos Anatol Rosenfeld, referenciando a capacidade inata do homem em chutar as coisas que estão pelo seu caminho, seria uma referência no sentido metafórico, que o futebol é inerente ao indivíduo, por isso, esta paixão desenfreada, em especial, por nós, brasileiros. A melhor instrumentação teórica utilizada para definir o futebol, que instiga o imaginário de muitos estudiosos e leigos do campo em questão, seria os aportes

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Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Email: luizdemetrio@ig.com.br

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teóricos elaborados pelo antropólogo Roberto Da Matta, em especial, o constructo teórico relacionando o futebol com o “drama social”. Na concepção de Da Matta o futebol é o simulacro das nossas relações sociais, ou seja, as regras futebolísticas e a sua reelaboração coletiva, representam na maioria das vezes a funcionalidade ética a sociedade, é durante o jogo e no calor das emoções, que se revelam o certo e o errado, moderados pelos apitos do juiz. Para Da Matta, ao pressupor uma igualdade inicial o futebol oferece alguns ensinos de democracia e igualdade, onde há a isonomia de regras. O objeto de estudo deste artigo é a doxa, no sentido de representações dominantes na esfera do campo futebolístico de Curitiba, no sentido de levantar analises reflexivas sobre a tríade da estrutura estruturante do futebol no estado do Paraná que perfaz o simulacro do contexto futebolístico da capital: Poder, Genealogia e Futebol. Os aportes teóricos utilizados nesta análise serão as discussões de conceitos principais de Pierre Bourdieu, de posse destes instrumentos fornecidos por este autor é possível analisar a posição ocupada pelos agentes neste campo, ou seja, ao verificar os capitais dos agentes é possível posicioná-lo no campo (cargos de dirigência), e ao verificar os capitais simbólicos e as relações entre os campos, é possível determinar os elementos imprescindíveis para a conversão de capitais dos dirigentes para a efetiva entrada em outros espaços, que no caso proposto é o campo político. Uma outra importante referência dos estudos da sociologia do esporte são Elias e Dunning, que utilizaram o esporte como um instrumento para a compreensão do processo social e também será discutido as questões de genealogia a partir das obras de Oliveira. FUTEBOL, PODER E GENEALOGIA: SÍNTESE TEÓRICA O objeto de estudo deste trabalho - o futebol, também passa pela complexa discussão entre individualidade e coletividade, o futebol brasileiro é sui generis, por ser estruturado pela improvisação e individualidade. Desta maneira, o futebol é na sociedade brasileira, um marco de individualização e possibilidade de expressão individual, muito mais do que expressão de coletividade, é a partir deste foco dialético entre individualização e coletividade, que o futebol brasileiro permite exprimir o conflito presente entre destino impessoal X vontade individual, este é um simulacro da própria sociedade brasileira, que o jogo de futebol focaliza e dramatiza, pois mesmo apresentando vontades individuais este esporte é regido por leis impessoais,

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apresentando fatores imprevisíveis que podem dar a vitória para uma equipe considerada menos apta para ser a vencedora, ou seja, não há um modo de prever com segurança uma relação direta (racional) entre os meios e os fins. O viés teórico para analisar o futebol será a partir da ideia de dramatização como parte elementar do ritual elaborada por Roberto DaMatta. Para este autor, sem o drama não há rito e o traço distintivo do dramatizar é chamar a atenção para as relações, valores ou ideologias que de outro modo não poderiam estar devidamente isoladas das rotinas que formam o conjunto da vida diária, ou seja, o ritual e o drama seriam um determinado ângulo através do qual uma dada população conta a sua história. Neste sentido, não se trata de discutir a verossimilhança dos fatos, mas de perceber como o brasileiro expressa-se, apresenta-se e revela-se em um dos seus momentos de liberdade social. A proposta deste autor está em relativizar a análise, fugindo do modelo tradicional de dicotomizar o objeto a ser estudado. Para ele, é decorrente desta ideologia a tese do “Futebol como Ópio do Povo”, da mesma forma que a economia é considerada a base da sociedade. Assim sendo, o futebol brasileiro seria um instrumento ideológico utilizado pelas elites (pensantes) como um meio de desviar a atenção das massas (pensadas) de suas mazelas sociais. DaMatta, indica que é basilar que se visualize o futebol além do seu caráter funcional, pois só assim torna-se possível envolver a função política e social deste esporte, que acaba acarretando várias tensões sociais, como ele salienta: “Só que eles são os problemas da nossa própria sociedade, daí a dificuldade em percebê-los e discuti-los”. (1982: 22) Através do futebol pode-se realizar outra forma de dramatização, onde uma entidade abstrata como um país, torna-se algo visível e concreto sobre a forma de uma equipe que sofre, vibra e vence os seus adversários. Representando uma massa popular que normalmente desprovida de voz e quando fala necessita respeitar uma ordem hierárquica, mas o futebol parece permitir certa, horizontalização do poder, através da reificação esportiva, permitindo ao povo uma espécie de poder simbólico, onde ele vê e fala abertamente com o Brasil, sem a obrigação de intermediários. Relacionar o futebol com concepções atreladas à política é uma junção em torno do país é algo concreto e uma poderosa dramatização que o futebol permite realizar e que transcende os seus usos e abusos pelo governo. Pois o futebol é uma atividade “democrática” pautada no desempenho individual, ou seja, ninguém se torna craque através da família, pelo compadre, ou por decreto presidencial, é necessário provar as suas qualidades em uma ação concreta, algo raro na sociedade brasileira, 48


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ou seja, consiste numa das poucas modalidades brasileiras que impera a meritocracia. O que se pode apreender é que no ensaio de explicar a popularidade do futebol no Brasil, DaMatta vale-se dos conceitos de ritual e drama social, para tratar o futebol como um meio distinto de analisar uma série de problemas expressivos da sociedade brasileira, o que em certa medida justificam a popularidade deste esporte no nosso país. Quais seriam as representações dominantes do futebol na esfera de Curitiba? Qual a doxa? Será que a estrutura estruturante seria a mesma que utiliza as questões de genealogia e parentesco para a configuração do poder de determinadas instituições no estado paranaense? Para tanto, alguns conceitos instrumentalizadores desenvolvidos por Pierre Bourdieu (2001), podem ser utilizados. O autor argumenta que a perspectiva de que a parcela da população “politicamente ativa” forma um campo relativamente independente, com processos de avaliação e legitimação internos, e cujos participantes assimilam uma illusio, uma crença na regras do jogo deste universo específico. Deste modo, é preciso entender as regras desse campo e as propriedades que determinam a posição desses participantes nas lutas dentro do campo. Essas propriedades são, por um lado, elementos incorporados ou objetivados através de garantia formal (sanção legal ou titulação) e, por outro lado, determinam um sistema de disposições de ação e apreciação, o habitus, que, juntamente com os capitais acumulados pelo indivíduo, determinam as atuações do agente dentro do campo. Através de sua filosofia da ação, Bourdieu (2004) propõe uma teoria da prática ou do modo de engendramento das práticas que é definida por ele como uma ciência da dialética da interioridade e da exterioridade, ou seja, da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade. Essa concepção se encontra na gênese do conceito de habitus, que é um sistema de disposições duráveis e transferíveis que constituem a estrutura da vida social. Ao integrar todas as experiências passadas, o habitus pode ser entendido como um sistema de esquemas de produção de práticas que funciona também como uma matriz de percepções, apreciações e ações, tornando possível a realização de tarefas diferenciadas. Desse modo, segundo Bourdieu (2004, p. 21-22), o habitus é o “...princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas,

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GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER de bens, [e] de práticas”. Ao tentar compreender as implicações da noção de habitus, Bourdieu (2003) articula as relações entre estes e os campos sociais, redes de relações objetivas entre posições sociais definidas objetivamente em sua existência e que fornecem determinações que elas repõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições por sua situação social atual e potencial e por sua posição relativa em relação a outras posições. Visto assim, o campo é um espaço estruturado a partir de posições de poder e disputas simbólicas no qual se constata a existência de leis genéricas. Nessa mesma lógica, as práticas sociais são definidas pelo autor como o resultado do aparecimento de um habitus. Como os indivíduos estão inseridos espacialmente em determinados campos sociais, a posse de grandezas de certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, entre outros) e o habitus de cada um condicionam seu posicionamento espacial. Porém, a posição espacial no campo social é determinada especialmente pelas posses de capital econômico e de capital cultural. Assim, pode-se dizer que a riqueza econômica (capital econômico) e a cultura acumulada (capital cultural) geram internalizações de disposições (habitus) que diferenciam os espaços a serem ocupados por eles. Desta forma, as ferramentas desenvolvidas por Bourdieu (campo, habitus e capitais), fornecem instrumentos essenciais para a análise da relação entre as elites do futebol e da política, bem como os meios conversores de capitais desses espaços. Já Elias e Dunning (1992) utilizaram o esporte como um instrumento para a compreensão do processo social. Na obra ‘A busca da excitação’, escrita por ambos, resgata-se a teoria do processo civilizador, bem como a sua metodologia, para aplicar ao esporte, em especial ao futebol. Dunning (2003, p.80), ao analisar os esportes praticados nos séculos XVIII e XIX, dentre eles o futebol, se remete a ideia de que o desenvolvimento dos mesmos pode ser entendido como uma forma de processo civilizador. Outro estudo importante para este trabalho é a obra “O Silêncio dos Vencedores: genealogia, classe dominante e Estado do Paraná”, de Ricardo Costa de Oliveira (2001), em que o autor traça um panorama geral da elite paranaense, adentrando as questões genealógicas, determinante para a construção e permanência da configuração atual da política do Paraná. Dessa maneira, este estudo oferece a possibilidade de interlocuções entre as estruturas do campo político e do

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campo do futebol. Segundo Oliveira (2001), o Paraná nasceu politicamente em sintonia com a ordem dominante central, assim sendo, a mais nova província do Império tinha o papel de se modernizar, como de fato incidiu em algumas esferas, mas a conjuntura que está relacionada ao poder, não dá para perceber notáveis alterações, o que se observa é o poder desmembrado nas mãos de famílias tradicionais, que vão se reproduzindo nas principais instituições do estado, o campo do futebol, não foge à lógica. Oliveira (2007) segue proferindo que o estudo dos ricos e poderosos perfaz uma análise sobre uma ampla rede social e política de interesses. Muitas vezes, as conexões e os capitais sociais e políticos são acumulados ao longo de diversas gerações. Fato delineado no Brasil e, em especial no Paraná a ação social e econômica dos poderosos fundamenta-se em torno do aparelho do Estado como forma direta e indireta de controle do fluxo de informações, capitais e privilégios essenciais para a reprodução da classe dominante. De acordo com Oliveira (2001), o significado e a formação da classe dominante seguem alguns critérios: o primeiro diz respeito a materialidade (composta pela inserção econômica ocupada pelos sujeitos, demandando com isso a posição de comando da sociedade local, o outro diz respeito a indivíduos e grupos familiares que acumulam capitais e entram na classe dominante. TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE DIRIGENTES DO FUTEBOL EM CURITIBA Quanto à perspectiva teórica de análise, os conceitos que irão interagir com as hipóteses propostas serão basicamente retirados das obras de Bourdieu. Segundo Bourdieu e Wacqüant (2008) para realizar uma análise do campo esportivo é necessário verificar a posição que tal campo ocupa frente ao campo do poder, mapear a estrutura objetiva das relações das instituições e dos agentes com relação à disputa pela autoridade legítima no campo, e, por último, analisar o habitus dos agentes do referido campo. Visto isso, fica evidente a questão da estrutura estruturada e estruturante entre campo e habitus. De posse destes instrumentos fornecidos por Bourdieu é possível analisar a posição ocupada pelos agentes neste campo, ou seja, ao verificar os capitais dos agentes é possível posicioná-lo no campo (cargos de dirigência), e ao verificar os capitais simbólicos e as relações entre os campos, é possível determinar os elementos imprescindíveis para a conversão de capitais dos dirigentes para a efetiva entrada em

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outros espaços, que no caso proposto é o campo político. Para materializar estas análises o método a ser utilizado será o prosopográfico, para analisar, mesmo que de maneira pormenorizada os traços biográficos coletivos dos dirigentes do futebol de Curitiba. De acordo com Heinz a utilização deste método ajuda na elaboração de perfis sociais de determinado grupo social, como profere o autor: Embora talvez nem todos os especialistas concordem com isso, podemos considerar a prosopografia, ou o método das Biografias Coletivas (os termos são comumente intercambiáveis, sobretudo em se tratando de seu uso em história contemporânea), como um método que utiliza um approach de tipo sociológico em pesquisa histórica, buscando revelar as características comuns (permanentes ou transitórias) de um determinado grupo social em dado período histórico. As biografias coletivas ajudam a elaborar perfis sociais de determinados grupos sociais, categorias profissionais ou coletividades históricas, dando destaque aos mecanismos coletivos - de recrutamento, seleção e de reprodução social – que caracterizam as trajetórias sociais (e estratégias de carreira) dos indivíduos. (HEINZ, 2006, p. 9)

O método prosopográfico permite estudar um universo específico da amostra (dirigentes) em questão visando motes sobre seu perfil e área de atuação. Este método procura desvendar traços comuns num determinado grupo social, além de ser um enfoque sociológico freqüentemente utilizado em pesquisas de cunho historicista. CORITIBA FOOTBALL CLUB O primeiro clube de futebol paranaense foi o “Coritibano Foot-Ball Club”, atual Coritiba Football Club, criado através de uma organização dos alemães em julho de 1909, os quais regressavam da cidade de Pelotas no Rio Grande do Sul, onde o futebol já era muito mais praticado. O grupo de alemães e seus descendentes pertenciam ao clube Ginásio Teuto-Brasileiro com famílias tradicionais alemãs como os Dietrich, Hauer, Iwersen, Obladen, entre outros. Entre os fundadores do Coritiba, destaca-se o argentino, natural de Buenos Aires, e descendente de alemães Frederico Fritz Essenfelder, que em sua vinda para Curitiba participou ativamente dos eventos desportivos do Clube Ginásio TeutoBrasileiro, o qual decidiu em 1909 chamar de Coritiba Foot-Ball Club. Ele foi prontamente aceito pelos demais descentes de alemães do grupo e o segundo presidente do clube, em 1915. Os pianos Essenfelder eram sinônimos de luxo, requinte e bom gosto nas casas elitistas curitibanas. O primeiro presidente do Coritiba foi o também descendente de alemães e empresário João Viana Seiler, pioneiro da 52


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indústria de laminados no Paraná que atuou ainda nos setores atacadista e cerâmico. Conseguiu acumular um bom patrimônio antes de construir o casarão da Rua Brigadeiro Franco. Morava numa casa em um amplo terreno na Rua Desembargador Westphalen, onde funcionou, durante muitos anos, o Cine São João, que recentemente foi transformado em estacionamento e depois em templo religioso. Outros personagens importantes na historia Coritibana sucederam-se na presidência, um deles foi Constante Fruet, presidente do clube em duas ocasiões, 1916-1917 e 1926, bisavô do atual prefeito de Curitiba, Gustavo Fruet. Curiosamente o tio-avô de Gustavo, Humberto Fruet foi o primeiro presidente do Savóia Futebol Clube, um dos primeiros clubes que deram origem ao Paraná Clube, e seus avós Constante e Geni Fruet, dirigentes da Escola Dominical da Igreja Presbiteriana Independente de Curitiba do Largo da Ordem, eram atleticanos declarados. No ano seguinte assumiu a presidência um dos maiores nomes na história do clube, o Major Antônio Couto Pereira, que nasceu no Ceará em Baturité, porém, viveu grande parte da sua vida em Curitiba, era filho do latifundiário e Coronel Lindolpho Pereira Lima e de Francisca Soares do Couto, casou-se com Odette Pereira Correia e teve dois filhos. Filiou-se ao clube em 1916 e após dez anos foi aclamado presidente do time. O Major foi presidente do Coritiba nos anos de 1926, 1927, 1930 a 1933, 1936 a 1945 e 1947. Couto Pereira ganhou a patente de Major durante a revolução de 1930, onde teve atuação destacada como elo entre o Gal. Plínio Tourinho, comandante das forças revolucionárias no Paraná, e Getúlio Vargas. O Major foi deputado estadual no estado do Paraná em 1933. Tempos depois mais uma importante personalidade paranaense que presidiu o Coritiba foi Amâncio Moro. Nasceu em Curitiba, em 31 de julho de 1908, filho de Domingos Antonio Moro e Natália Lucas Moro. Foi casado com D. Albertina Moro e teve um filho, o Dr. Carlos Alberto Moro, além de presidente do Coritiba foi também presidente da Federação Paranaense de Futebol. Na vida política, foi vereador na capital, por quatro anos, tendo sido Prefeito de Curitiba, por nomeação do então governador Bento Munhoz da Rocha Neto. Logo após, em 1954, Antonio Anibelli, um político muito influente no Estado do Paraná, também presidiu o Coritiba, permaneceu como dirigente por dois anos. Filho de Alberto Annibelli e de Francisca Anibelli formou-se em direito em 1936 pela Faculdade de Direito do Paraná e logo ingressou no Ministério Público e 53


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posteriormente foi eleito prefeito de Clevelandia em 1944. Seis anos depois foi eleito para a Assembléia Legislativa e reeleito em 1958. Pouco tempo depois, em 1962, chegou à Câmara dos Deputados. Foi governador do estado do Paraná no período de 03 de abril até 1º de maio de 1955, em substituição ao governador Bento Munhoz da Rocha Netto quando este aceitou ocupar a pasta do Ministério da Agricultura no governo Café Filho. CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE O Clube Atlético Paranaense surgiu da união do Internacional e do América em 26 de março de 1924. A primeira diretoria ficou constituída da seguinte maneira: presidente, Arcésio Guimarães; vice-presidente, Joaquim Narciso de Azevedo; primeiro-secretário, Hugo Franco; segundo-secretário, Arnaldo Loureiro de Siqueira; primeiro-tesoureiro, Matheus Boscardin; segundo-tesoureiro, Erasmo Mäder; diretor esportivo, Oscar Spinola; Comissão de Contas, Raul Carvalho, Heitor Requião, Alcidio Abreu e José Euripedes Gonçalves. O pioneiro e “patriarca” do clube foi Joaquim Américo Guimarães, ainda no extinto Internacional. Nasceu em Paranaguá em 4 de novembro de 1879. Filho do major Claro Américo Guimarães e de Pórcia de Abreu Guimarães, era neto do Visconde de Nácar. De família tradicional, era usineiro, ligado ao mate, destaque na economia do estado. Foi presidente do Jockey Club do Paraná e também vereador em Curitiba. Faleceu prematuramente em 1917. Deixou sete filhos como herdeiros. Logo após sucedendo o pioneiro surge a figura de Agostinho Ermelino de Leão Júnior, empresário da tradicional indústria de chá Leão JR, a Matte Leão, era filho de Agostinho Ermelino de Leão, presidente da Província do Paraná entre 1864 e 1875. O primeiro presidente do Atlético “de fato” foi Arcésio Guimarães em 1924, seu mandato durou dois anos. Filho de João Guilherme Guimarães, neto de Visconde de Nácar e sobrinho de Joaquim Américo Guimarães, Arcésio Guimarães nasceu em Paranaguá no dia 09 de fevereiro de 1888. Ao chegar em Curitiba, logo se identificou com o Internacional, clube fundado por seu tio. Desde muito cedo dedicou-se ao comércio, tendo sido sócio da empresa Guimarães & Cia. Desempenhou o cargo de vereador e presidiu a Câmara Municipal de Curitiba, a Associação Comercial do Paraná e o Clube Curitibano. Jornalista foi um dos sócios do jornal Gazeta do Povo. Seu vice, Joaquim Narciso de Azevedo, além do “cargo” no Atlético em 1924 presidiu o clube em 1926 e 1930 e assumiu em dezembro de 1927 o comando da

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Federação Paranaense de Desportos. Na década de 60, a figura de Renato Barreto de Siqueira foi importante para o clube. Filho de Arnaldo Loureiro de Siqueira que era irmão de José Loureiro de Siqueira e de Anfrísio Fonseca de Siqueira. Casado com Alair Maria Surugi de Siqueira, procurador adjunto do Tribunal de Contas do Paraná, presidiu o clube nos anos de 1962 e 1963. Seu primo José Loureiro de Siqueira Júnior, sobrinho de Arnaldo Loureiro de Siqueira e de Anfrísio Siqueira, foi eleito para ocupar a presidência depois da renúncia de Ernani Santiago de Oliveira, no início de 1969. Ainda no inicio do clube, dois irmãos também se destacavam na Presidência e na sociedade paranaense, eram Candido Mader Erasmo Mäder. Candido assumiu por duas gestões 1925-1926 e 1936-1939, já Erasmo presidiu em 1946. Oriundos de família tradicional eram filho do coronel Nicolau Mäder e de Francisca da Costa Mäder, donos de uma grande empresa de erva-mate, principal produto agrícola do Paraná no início do século XX. Outro irmão seu teve destaque na vida paranaense como presidente da Câmara Municipal de Curitiba foi Odilon Mäder. Mais um importante nome no Atlético foi o gaucho Capitão Manoel Aranha, que precedeu a diretoria de Erasmo Maeder. Filho do Coronel Euclides de Sousa Aranha e de Luísa de Freitas Vale Aranha, teve dez irmãos, entre eles Osvaldo Aranha, que participou da Revolução de 30, sendo mais tarde Ministro da Justiça, das Relações Exteriores e da Fazenda e representante do Brasil na primeira Assembléia da ONU. Seguindo a carreira militar, Manoel serviu o exército no Rio de Janeiro em 1938, mas um incidente o faz vir para Curitiba. Adaptando-se a elite local foi convidado a assumir a presidência do clube em 1943 e ficou até 1946 e no mesmo ano deixou o clube e ocupou a presidência da Federação Paranaense de Futebol até 1948. Concorreu a prefeitura de Curitiba em 1954, porém foi derrotado por Ney Braga. Pouco tempo depois, Aníbal Requião, mais um representante de família tradicional curitibana, foi presidente do Atlético na temporada de 1951. Nasceu em Curitiba em 21 de março de 1903, filho do comerciante Aníbal Requião e de Carlina Correa Requião, ainda na infância começou a se envolver com o futebol, jogou pelo Internacional e foi um dos fundadores do clube, ao lado de seu pai. Participou dos primeiros times do Atlético e exerceu diversos cargos na diretoria. A partir do ano de 1929, dedicou-se aos negócios da família, tocando a Papelaria Requião, uma das mais tradicionais da cidade. No final da década de 60, mais precisamente em 1968, o advogado Jofre Cabral e Silva assumiu a Presidência do Atlético, era filho do ex-presidente João Alfredo 55


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(1947-1948). Também foi presidente do Clube Curitibano e do Santa Mônica Clube de Campo, o que lhe dava bastante poder e status na sociedade paranaense. Lauro Rego Barros foi mais uma figura ilustre da sociedade Curitibana a comandar o Atlético em 1972-1973. Nasceu dia 4 de agosto de 1918, em Curitiba, aos 22 anos, formou-se em Direito e foi trabalhar como promotor público no interior do Paraná. Vindo de uma tradicional família atleticana, foi convidado pelo então governador Ney Braga para assumir a Secretaria de Educação. Lauro também administrou a Secretaria de Justiça, posteriormente atuando como diretor de penitenciária. Após o término do mandato de Ney Braga, o então presidente Paulo Pimentel assumiu o governo e manteve Lauro na administração das secretarias. Apesar do modo de trabalhar diferenciado, Lauro trabalhou mais três anos no Estado. Em seguida, assumiu o Tribunal de Contas do Paraná. Já aposentado, Lauro assumiu a presidência do Atlético em 1972, depois de ter sido vice de Rubens Passerino de Moura (1970-1971). No final da década de 70, o deputado Anibal Khury assumiu a Presidência do clube. Nasceu dia 18 de julho de 1924, em Porto União na divisa entre o Paraná e Santa Catarina, era de filho Salomão Khury e Wadia Kassad Khury, comerciantes que migraram de Abadiem no Beirute para São Paulo e se estabeleceram em União da Vitória. Seu pai, Salomão Khury foi vereador presidente da Câmara de Porto União, influenciando Aníbal a trilhar o caminho da política, que já era integrante da elite política na cidade, depois fez parte da ala jovem da UDN e aos 24 anos elegeu-se como vereador. Em 1954, mudou para Curitiba com sua esposa Niva Sabóia Khury com quem teve dois filhos: Ricardo Khury e Aníbal Khury Júnior. Neste mesmo ano assumiu o primeiro mandato de deputado estadual na Assembléia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP) e nos anos seguintes foi sucessivamente eleito deputado estadual por quatorze vezes e foi Primeiro Secretário da Mesa Diretora da ALEP por oito vezes. Com sua grande influência política, em 1965 se tornou presidente estadual do Partido Trabalhista Nacional lançando a candidatura do Governador Paulo Pimentel, e com a ditadura militar, anos depois em 1969 foi preso por atos subversivos em detrimento de causa pública, afastado assim por dez anos da vida política. Neste período Aníbal apoiou a construção do Hospital Pequeno Príncipe, e foi Presidente do Clube Atlético Paranaense, chamando alguns amigos para o auxiliarem em 1976 dirigindo obras associativas, mesmo que sem experiência no ramo futebolístico, tentou sanear as finanças e recuperar o clube e após esta experiência disse estar de 56


GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER missão cumprida, afastando voluntariamente e dizia “Qualquer político, para ser bom mesmo, tem que fazer pós-graduação em futebol!”. Com a anistia e a redemocratização do país, em 1979, Aníbal voltou à vida política, se tornou secretário geral do Diretório Regional do PP e mais tarde secretário geral do PMDB no Paraná. No ano seguinte voltou a ser reeleito deputado estadual e em 1985 foi eleito Primeiro Secretário da Mesa, e em 1989 foi eleito presidente, presidindo também a elaboração da Constituinte do estado. Novamente em 1991 foi reeleito presidente e em 1995 assumiu a Presidência da Assembléia. Em 1988 foi reeleito para o seu nono mandato de Deputado com votação recorde, e neste mesmo ano foi eleito à Presidência da casa pela quinta vez. PARANÁ CLUBE A criação de outras equipes também foi importante para a atual configuração do futebol de Curitiba. O Paraná Clube é sem duvida um dos maiores representantes brasileiros na questão de aglutinar equipes, foram várias formações e junções até a sua fundação em 19 de dezembro de 1989. Um clube com “sangue” de vários outros clubes, traz uma historia bastante interessante de analise de poder. A começar pelo Savóia Futebol Clube, fundado em 1914 por Tarquínio Todeschini, nome dado em homenagem à família real italiana. Todos os descendentes da colônia Italiana tornaram-se adeptos do novo clube. Em 03 de março de 1942, o clube passou a se chamar Esporte Clube Brasil por imposições de autoridades devido à Segunda Guerra Mundial, pois Savóia era um nome vindo da Itália, inimiga da nação. Em 04 de abril de 1944, por decisão do governo federal, teve que trocar de nome novamente: a designação do país não podia ser usada com exclusividade. Passou então a denominar-se Esporte Clube Água Verde, o qual ganhou grande força com o presidente Erondy Silvério, pessoa renomada nos meios políticos da capital do estado. Erondy nasceu em Guarapuava (PR) em 1923, porém radicou-se em Curitiba nos anos 1940, período em que alcançou respeito perante o clube. No início da década de 50, obteve sucesso como empresário do transporte coletivo na capital, com o aval do então prefeito Ney Braga. Pouco tempo depois, elegeu-se vereador em Curitiba, presidiu a Câmara Municipal e foi prefeito interino. Assumiu como deputado estadual em 1966; em 1968, chegou à presidência da Assembléia Legislativa, exercendo sete mandatos até 1994. Liderou o governo nas gestões de Paulo Pimentel, Ney Braga e Hosken de Novaes.

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Outra grande referência política e empresarial do Savóia e do Água Verde, e posteriormente do Savóia-Água Verde, foi Orestes Thá. Ele e os irmãos Eduardo Thá, Mikare Thá, Reinaldo Thá e Osvaldo Thá jogaram no Savóia, Água Verde e Britânia. Orestes Thá presidiu o Esporte Clube Água Verde por dez anos, de 1948 a 1958. Na gestão de 1953, conseguiu a sede da Kennedy (onde hoje funciona a sede social do Paraná Clube), através do bom relacionamento com Erondy Silvério, com o vereador Milton Anselmo da Silva e o prefeito Lineu Ferreira do Amaral. Junto com seu irmão Reinaldo Thá, por meio da construtora Thá e de um contrato com a Rede Viação, construiu o Estádio Durival Britto e Silva, atualmente o principal estádio do Paraná Clube e um dos estádios brasileiros da Copa de 1950. Dentre

vários

outros

importantes

presidentes,

porém

bastante

contemporâneo, na atual formação de clube, encontra-se Darci Piana (1992-1993). Natural de Carazinho, Rio Grande do Sul, nascido em 24 de dezembro de 1941, casado com Maria José Piana, teve dois filhos. Formou-se em economia, pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Católica do Paraná e Ciências Contábeis, pela Faculdade Econômica e Administração da UFPR. O empresário de autopeças Darci Piana, já foi superintendente Regional da Companhia de Financiamento da Produção no Paraná; presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Veículos, Peças e Acessórios do Paraná; fundador e primeiro presidente da Sincocred; presidente do Conselho do Paranacidade e presidente do Conselho Deliberativo do Sebrae/PR. Atualmente é presidente do Sistema Fecomércio/Sesc/Senac Paraná. Darci Piana ainda integra a Academia Paranaense de Letras, na vaga da cadeira nº 29, ocupada pela poetisa pontagrossense Leonilda Justus. Não poderia deixar de fora da lista Ernani Lopes Buchmann (1996/1997), que nasceu em Joinville (SC), em 15 de agosto de 1948, filho de Arino Brazil Cubas Buchmann e Lucília Lopes Buchmann, formou-se em Ciências Sociais e Direito, Foi repórter da Rádio Clube Paranaense, revisor da Editora Laudes (RJ) e cronista de inúmeros jornais e revistas, como Correio de Notícias, Folha de Londrina, Panorama, Quem, Atenção, Paraná & Cia., Idéias e Gazeta do Povo, para a qual escreveu, em 2004, com Carneiro Neto e Vinicius Coelho, a série Casos e Acasos do Futebol Paranaense, em 20 fascículos. Trabalhou como produtor e comentarista em emissoras de rádio (Cultura, 96 FM e 91 Rock) e na TV (RIC, Band e SBT/PR). Iniciou carreira em publicidade em 1972, trabalhando no Rio de Janeiro, dirigindo, depois, diversas agências curitibanas, como Exclam, Master e Get

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GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER

Propaganda. Foi diretor executivo da Fundação Cultural de Curitiba e membro dos conselhos de administração da Fundação Teatro Guaíra e do Museu de Arte Contemporânea do Paraná. Ex-professor da PUCPR e do Curso de Pós-Graduação em Marketing da ESIC, foi também coordenador e orientador na pós-graduação na Unicuritiba. Foi eleito para a Academia em 24 de maio de 2005, recebido em sessão solene no dia 17 de outubro do mesmo ano, no Clube Curitibano, pelo acadêmico Carlos Roberto Antunes dos Santos. JMALUCELLI FUTEBOL S.A O Grupo J. Malucelli tem como fundador Joel Malucelli, bisneto do pioneiro Giovanni Malucelli. O grupo J. Malucelli é um dos principais referenciais empresariais do Brasil em diversos ramos, entre eles o futebol. E sobre o futebol, foi o primeiro clube empresa do país através da lei Pelé, e desde que Giovanni e Margherita Malucelli desembarcaram em Morretes, no Litoral paranaense, em 1877, formaram-se dirigentes atleticanos, coxas-brancas, paranistas e de outros clubes, como o Iraty e o próprio J. Malucelli. Nas décadas de 70 e 80 a família e equipe já formada pelos primeiros integrantes do Grupo J. Malucelli, Joel, primos e amigos, então, reuniam-se para conversar e também jogar futebol. Era um jeito de manterem-se os laços mais estreitos e assim estava nascendo o Malutrom (o primeiro nome originou-se da junção de uma parte de dois sobrenomes das famílias Malucelli e Trombini -, Malu + Trom, parentes entre si). Com o passar dos anos começaram a participar de jogos oficiais na cidade de Morretes, onde tem até hoje uma sede. Treinavam em Curitiba e região após o trabalho, e jogavam na Liga de Morretes conquistando os primeiros troféus em finais de semana, além das viagens ao exterior. Assim ficaram conhecidos fora do Brasil como a equipe "masters" do Clube Malutrom. Oficialmente no futebol profissional e registrado na Federação Paranaense de Futebol é fundado em 27 de dezembro de 1994, com a denominação anterior de Malutrom Futebol Clube. Em 2005 o nome é modificado para JMalucelli Futebol SA, o qual modifica-se novamente em 2009 para Corinthians Paranaense, através de uma parceria com o clube paulista e também numa tentativa de angariar mais torcedores, esse ultimo sem muito êxito, acabada a parceria em 2012 volta com o nome de JMalucelli Futebol SA.

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GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER

Entre os integrantes da família, Marcos Malucelli já foi presidente do Atlético Paranaense que colocou seu irmão, Sérgio Malucelli, na direção do próprio Atlético e depois no Iraty. Na capital, o primo Joel Malucelli presidiu o Coritiba entre 1996 e 1997, enquanto o “time” da família, o J. Malucelli é dirigido por Juarez Malucelli e tem Joel Malucelli como presidente de honra. O pesquisador Antonio Marcos Pereira, filho de Antonio Pereira e Helena Malucelli, fez uma bela e importante biografia da família Malucelli, da qual faz parte. Um trabalho minucioso e fundamental para ajudar a compreender uma das mais importantes famílias paranaenses. André Malucelli, membro da família Malucelli, participou da pesquisa de Antonio e escreveu sobre a chegada da família de Giovanni Malucelli ao Brasil. De acordo com André, no ano de 1877, fugindo das dificuldades da Itália, Giovanni Malucelli e esposa Margherita, com 8 filhos, chegaram no Brasil através do Porto de Paranaguá, litoral paranaense. De Paranaguá se firmaram na cidade litorânea, não muito distante do porto, em Morretes, onde a família guarda suas raízes até hoje. Conforme exaustiva pesquisa, André descobre que a primeira pessoa a ter o sobrenome Malucelli foi Lorenzo Malucelli, inscrito no ano de 1495 no país italiano. Porém, no Brasil, foi com Giovanni Malucelli que a descendência da família Malucelli estabeleceu-se no Brasil. Filho de Marco Antonio Malucelli e Giustina Guidolin, Giovanni nasceu no dia 30 de julho de 1825 na província de Vicenza, cidade de Maróstica, Comuna de Dueville. Aos 25 anos casou -se pela primeira vez com Carolina Marchioretto e teve dois filhos, um casal, que acabou falecendo e um tempo depois também ficou viúvo vindo a casar-se então com Margherita Gobbo (filha de Gio Batta Gobbo e Lucia Galvan), também da província de Vicenza, nascida em 28 de novembro dfe 1834. O pesquisador menciona que Giovanni com 52 anos, que trabalhava como agricultor na Itália, já com 8 filhos, ao lado de Margherita, 43 anos, decidiu -se pelo Brasil. O nome dos oito filhos e idade respectivas quando da chegada ao Porto de Paranaguá, confirmando, no dia primeiro de abril de 1877: Marco Antonio (17), Giustina (15), Baptista (13), Lúcia (11), Lorenzo (9), João (6), Antonio (3) e Domênico (1). André comenta que antes de se instalarem definitivamente na cidade litorânea de Morretes, a família ficou em Alexandra, no meio do caminho, por 37 dias. Em Morretes hospedaram-se numa pensão até o governo brasileiro indicar a colônia Nova Itália - onde, posteriormente, se estabeleceram no lote 5, onde a família estabilizou -

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GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER

se e construiu a sua primeira própria moradia nas novas terras (agricultura) até comprar um engenho. Referencia ainda que um ano após a chegada, Giovanni faleceu vítima de maleita (malária). Margherita, sozinha com os oito filhos mandou buscar dois sobrinhos que moravam na Itália e ela os considerava como filhos. Cinco meses após, sendo atendida por D.Pedro II do governo brasileiro, seus sobrinhos chegaram ao Brasil - Marco e esposa Anda de Bassi e Domênico e esposa Margherita Fellipi e seu filho Lorenzo (Marco e Domênico eram filhos de um irmão de Giovanni). Por fim, uma família que tem na imigração italiana ao Brasil, mais especificamente ao litoral paranaense e no ramo empresarial sua história longínqua na tradicionalidade familiar paranaense e recente no nosso futebol. CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando as instituições e o campo do poder na esfera paranaense, pode-se analisar de maneira heurística que a estrutura estruturante, parafraseando Pierre Bourdieu, do Paraná está alicerçada nas bases genealógicas, ou seja, a maioria das instituições paranaenses é dominada por determinadas famílias que estão que se perpetuam no poder através de gerações. O campo futebolístico não foge desta estruturação, como foi mostrado neste artigo, como o estudo supracitado era um estudo de caráter pormenorizado, o campo amostral foi as relações genealógicas no futebol nos quatro clubes de Curitiba: Coritiba, Atlético, Paraná Clube e J.Malucelli. Foi exposto um breve histórico da formação desses clubes como também como alguns de seus dirigentes sempre estiveram interligados com as esferas do poder paranaense, tanto no Executivo, como no Legislativo e também no Judiciário, além do ramo empresarial e intelectual, mantendo a estrutura estruturante do Paraná: Genealogia, Poder e Parentesco. REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. Razões práticas. Papirus, Campinas, 2004. Brasiliense, 1981. BOURDIEU, P. & WACQUANT, L. Una invitación a la sociología reflexiva. 2. ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2008. CARDOSO, F.G. História do Futebol Paranaense. Ed. Grafipar, Curitiba-PR, 1978. DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Zahar Editores, 1983. 61


GT3 – INSTITUIÇÕES E PODER

DA MATTA, R. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Edições Pinakotheke, 1982. DUNNIG, E. El Fenômeno Deportivo. Barcelona: Paidotribo, 2003. ELIAS, N. e DUNNING, E. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1992. GOUSSINSKY.E. ASSUMPÇÃO.J.C. Coritiba Foot Ball Clube: emoção alviverde, Curitiba-PR, DBA, 2000. HEINZ, F. (ORGs). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006. HELLER, M. I.; NOVAES, R.; LALA, R. Aníbal Khury: vida e obra. Curitiba: Assembléia Legislativa do Paraná, 2000. 383 p. MACHADO, H.I. HOERNER JR.V. FAGNANI.J.P. Clube Atlético Paranaense: uma paixão eterna, Curitiba-PR: Natugraf, 2010. MACHADO, H.I. CHRESTENZEN.L.M. Futebol do Paraná: 100 anos de história. Curitiba-PR, 2005. NETO, C. O Vôo Certo: A História do Paraná Clube. Ed. Clichepar, Curitiba-PR, 1996. OLIVEIRA, R. C. O Silêncio dos Vencedores: Genealogia, Classe Dominante e Estado no Paraná. Editora Moinho do Verbo, 2001. OLIVEIRA, R. C. Famílias, poder e riqueza: redes políticas no Paraná em 2007. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano9, nº 18, jun/dez.2007, p. 150-169. PEREIRA,A.M.Disponível em: <http://triaquimmalucelli.blogspot.com.br/search/label/Chegada%20da% 20fam%C3%ADlia%20de%20Giovanni%20Malucelli%20ao%20Brasil>. Acesso em: 16 jun. 2014. ROSENFELD, A. Negro, macumba e futebol. Editora da Unicamp, 1993.

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E FEDERALISMO: CONTROLE ABSTRATO/CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO MECANISMO PARA LIMITAR A DESCENTRALIZAÇÃO Fernando Santos de Camargo30

Resumo: Nas federações, a existência de pelo menos dois níveis de governo com atribuições definidas constitucionalmente em uma relação não hierárquica (ao menos formalmente) suscita a questão sobre quem será o árbitro quando as unidades componentes entrarem em conflito. Sistemas federativos demandam, portanto, instrumentos para a composição de disputas federativas. Na maioria das federações o Judiciário, por meio da Suprema Corte, desempenha um importante papel na solução desses conflitos. No Brasil, o papel de arbitro é desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o principal mecanismo por meio do qual as disputas federativas se desencadeiam é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), instrumento por meio da qual um Estado pode buscar a invalidação de uma decisão legislativa da União e vice-versa. Nesse contexto, a questão que emerge é, em um cenário marcado pela concentração de competências legislativas no governo central tal como o definido pela Constituição de 1988, qual seria o papel do STF, como arena principal e última dos embates entre entes federados. Os resultados desses processos demonstram o STF favoreceu a expansão da jurisdição legislativa central. Palavras-chave: Judiciário, Federalismo, Centralização. INTRODUÇÃO A Constituição de 1988 definiu um complexo quadro de repartição de atribuições entre os entes federados, marcado pela concentração de competências legislativas no governo central. O desenho institucional delineado pela Constituição de 1988 caracteriza-se, nesse sentido, por uma combinação entre descentralização administrativa e centralização legislativa (TOMIO; ORTOLAN; CAMARGO, 2010), o que compõe um quadro no governo central é o principal responsável pela elaboração de políticas públicas, enquanto as unidades subnacionais respondem pela execução dessas políticas (ARRETCHE, 2009). Ainda assim, no que diz respeito às atribuições materiais, o texto constitucional de 1988 foi bastante generoso com a União ao concentrar nas mãos das autoridades federais vinte e cinco matérias de competência 30

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

administrativa exclusiva (art. 21), sem a possibilidade de delegação, e apenas doze matérias de competência comum à União, aos Estados e aos Municípios (art. 22). Em princípio, portanto, o arranjo federativo brasileiro seria marcado por um predomínio do governo central sobre as demais entidades federadas (Estados e Municípios). A questão que emerge de tal panorama é qual seria o papel do Supremo Tribunal Federal (STF), como arena principal e última dos embates entre entes federados, na federação brasileira? O objetivo deste estudo é justamente analisar o papel desempenhado pelo STF em termos de centralização/descentralização do arranjo federativo brasileiro. O texto encontra-se dividido em três seções. Na primeira seção, discuto, de modo breve, o papel das supremas cortes em Estados federais e, em seguida, analiso as características institucionais do arranjo federativo brasileiro que, em princípio, influiriam a atuação pró-União do STF em conflitos federativo. A segunda seção, por seu turno, apresenta a metodologia e os indicadores empregados para testar as hipóteses formuladas. Os resultados obtidos, por sua vez, são analisados e interpretados na seção seguinte. Em seguida, na quarta seção, examino as poucas vitórias estaduais sobre as instituições centrais. A conclusão, por fim, retoma os pontos principais e sintetiza os resultados.

STF COMO INSTITUIÇÃO QUE FAVORECE O GOVERNO CENTRAL Na teoria clássica do federalismo, a ideia de instituir o Poder Judiciário como instância última das disputas federativas encontra-se atrelada à preocupação de garantir a máxima imparcialidade possível na composição do conflito. O Judiciário é retratado, assim, como instituição equidistante dos litigantes que, por não estar, em princípio, sujeita às pressões da política cotidiana, seria apta a assegurar o cumprimento das normas de divisão de competências conforme previsto no texto original. A preocupação em estabelecer a cúpula do judiciário federal como órgão – ao menos em tese - imparcial nos conflitos federativos remonta, portanto, aos Artigos Federalistas (Federalist Papers), textos que delinearam as instituições políticas da primeira federação moderna, os Estados Unidos. No Artigo n o. 78, Hamilton desenha os contornos gerais do controle de constitucionalidade (no caso americano, desempenhado por qualquer tribunal apenas no exame do caso concreto) ao

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

sustentar que cabia ao judiciário preservar as determinações da autoridade delegante (o povo) frente os atos da autoridade delegada (legislativo), embora tal controle tenha se firmado apenas anos depois com o caso Marbury versus Madison em 1803. Como Hamilton considerava o Judiciário o ramo mais fraco do poder por não ter participação na força e na riqueza, nem a capacidade de tomar resoluções e depender inclusive do Executivo para fazer valer seus julgamentos (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 464), defende a adoção de medidas suplementares, como estabilidade

funcional

e

irredutibilidade

da

remuneração,

para

assegurar

independência no exercício de suas funções (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468). Entretanto, aspectos institucionais referentes à organização e à composição das altas cortes judiciais em federações levantam a suspeita quanto à imparcialidade desses tribunais, ao menos nas relações entre centro e subunidades. Nesse sentido, Bzdera (1993), com base no estudo comparativo dos tribunais federais de cúpula em sete federações (Estados Unidos, Suíça, Canadá, Austrália, Alemanha, Áustria, Bélgica) e em dois sistemas não federais com características federativas (Comunidade Europeia31 e Itália), constata que, em todos eles, as decisões das supremas cortes nas disputas federativas têm promovido a centralização política (e a descentralização administrativa) da federação. Segundo autor três elementos característicos das altas cortes federais que contribuiriam para a tendência de favorecimento do governo central, dois dos quais presentes também no STF. O primeiro elemento diz respeito à configuração da alta corte federal, que, embora esteja prevista na Constituição, sua composição e organização normalmente envolvem a participação de autoridades centrais e, em casos extremos, como o canadense, o tribunal pode ser inclusive abolido. O principal fator a ser destacado, nesse sentido, é que todos ou, ao menos, a maioria dos membros das altas cortes são selecionados por autoridades centrais. Desse modo, pela carreira (como escritos e decisões anteriores) os responsáveis pela escolha podem optar por pessoas alinhadas política e ideologicamente com o governo central - o que é, de fato, a própria intenção de um procedimento de nomeação (BZDERA, 1993, p. 22-24). O segundo elemento é a adoção da técnica de “opinião singular anônima” para fundamentar as decisões. Na maioria dos países estudos por Bzdera (1993), as

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Texto anterior ao Tratado de Maastricht (1993).

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

decisões das supremas cortes são emitidas como únicas, sem mencionar votos dissidentes. Mesmo nos países em que não há essa exigência, a publicação de votos contrários é escassa. Segundo o autor, a aparência de unanimidade dissimula os conflitos políticos existentes (BZDERA, 1993, p. 25). O terceiro elemento, por fim, é o mito da independência judicial: apesar de ser patente a existência de um viés na atividade dos tribunais federais de última instância, eles sempre procuram se afirmar como um árbitro independente nas disputas federativas (BZDERA, 1993, p. 26). Assim, para o autor, ainda que os tribunais não tenham responsabilidade primária nessa tendência geral, eles “não impedem as iniciativas legislativas centralizadoras do governo federal e, algumas vezes, encorajam e incitam ativamente tais iniciativas federais” (BZDERA, 1993, p. 20, tradução nossa). O controle de constitucionalidade desempenhado pelas altas cortes federais examinadas é exercido primordialmente sobre normas estaduais e apenas raramente sobre normas federais. Bzdera (1993, 19, tradução nossa) conclui, assim, que "a principal função de uma alta corte federal é favorecer e legitimar a expansão gradual da jurisdição legislativa central”. No Brasil, além das duas características apontadas por Bzdera (1993, p. 2226) como aspectos comuns das altas cúpulas judiciais em federações e encontradas no STF – composição definida por autoridades do governo central e mito da independência judicial – o desenho institucional federativo delineado pela Constituição de 1988, marcado pelo amplo espectro de competências legislativas da União e o consequente limitado escopo normativo dos Estados, também ajudaria a explicar essa inclinação. Nesse quadro, as características institucionais do STF, tribunal responsável pelo julgamento de conflitos federativos entre União e Estados em sede de controle abstrato de constitucionalidade, poderiam ser encaradas como componentes adicionais na explicação da tendência centralizadora. O fato de os juízes serem nomeados pelo Presidente da República após a aprovação do Senado Federal possivelmente exerceria um impacto muito menor se as competências do governo central fossem reduzidas. Do mesmo modo, ainda que os Estados tivessem alguma

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

participação na escolha dos Ministros do STF32, dificilmente conseguiriam contornar essa tendência sem descumprir a Constituição. Na verdade, os formuladores da Constituição de 1988, nesse sentido, não criaram barreiras institucionais para impedir a ampliação de modo unilateral do âmbito de ação do governo nacional, isto é, não estabeleceram oportunidades de veto para que os governos subnacionais (ARRETCHE, 2009) ao menos pudessem, se não impedir, barganhar no processo decisório central. Ao contrário, "as instituições que regem as interações entre as elites do governo central e as elites regionais permitem que uma preferência majoritária nas duas casas centrais não encontre obstáculos institucionais para converter-se em política" (ARRETCHE, 2009, p. 412). E devido à distribuição de competências legislativas altamente favorável ao ente central, a instância que poderia ampliar o âmbito de ação dos governos subnacionais atua, na verdade, na limitação do seu escopo legislativo. Ou seja, o controle abstrato de constitucionalidade restringiu ainda mais a descentralização (TOMIO & ROBL FILHO, 2013). Nesse quadro, este estudo pretende analisar os efeitos da atuação da suprema corte brasileira em termos de centralização/descentralização do arranjo federativo brasileiro a partir da verificação da hipótese de Bzdera (1993, p. 20) de que a alta corte federal favorece e legitima a expansão gradual da jurisdição legislativa central.

METODOLOGIA, INDICADORES E HIPÓTESES A investigação dos efeitos da atuação do Supremo Tribunal Federal na federação brasileira, em termos de centralização/descentralização do desenho federativo, tem por base os resultados das ações direta de inconstitucionalidade (ADI) que envolveram disputas federativas.

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No Brasil, os Senadores devem aprovar os indicados para Ministros do STF antes da nomeação pelo Presidente da República. Esse fato poderia, a priori, ser tomado como a participação dos governos subnacionais na seleção dos membros da suprema corte. Contudo, o arranjo institucional dos Poderes favorece a atuação partidária do Senado Federal e não federativa, como demonstram evidências empíricas (NEIVA & SOARES, 2013). Na verdade, embora se atribua normativamente às câmaras altas a tarefa de representação estadual nos sistemas federativos, em grande parte das federações a influência regional exercida pelos senados é baixa (WATTS, 2008, p.153).

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

A ADI é um instrumento do sistema de controle judicial de constitucionalidade para a invalidação de lei ou ato normativo federal ou estadual incompatíveis com a Constituição. Por meio dela, um Estado pode requerer a invalidação de uma norma federal quando entender que a União, ao editar a lei, desrespeitou preceitos constitucionais, como as regras de repartição de competências constitucionais (ou, ainda, quando entender que outro Estado extrapolou sua esfera de competência). Do mesmo modo, a União pode solicitar a invalidação de lei estadual quando entender que esta desrespeitou dispositivos constitucionais, como a invasão do âmbito de atribuições federais. A ADI, entretanto, não é o único instrumento de revisão judicial existente no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, pelo qual autoridades estaduais e federais podem fazer uso para impedir ou restringir a ação de um ente federativo sobre outro. A análise empreendida neste estudo, contudo, se concentra nos dados das ADI por três razões. A primeira é que a produção de efeitos gerais de invalidação da produção normativa torna o controle abstrato a instância definitiva da resolução de conflitos federativos. Nesse sentido, embora disputas federativas possam se travadas em outras instâncias por meio do controle difuso, os efeitos dessa modalidade de revisão judicial de constitucionalidade, em princípio, são restritos às partes litigantes e, portanto, não implicam a invalidação da lei ou ato normativo, mas sim a sua aplicação em determinado caso. Em sede de controle difuso, deste modo, a derrota de um ente não significa, necessariamente, a derrubada definitiva de uma decisão legislativa. A segunda razão é que, entre as diversas ações que o controle abstrato de constitucionalidade engloba (ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ação direta de inconstitucionalidade interventiva), a ação direta de inconstitucionalidade (genérica) é a mais utilizada33 e é, por excelência, a arena de conflitos federativos. A ADI interventiva, por exemplo, embora envolva necessariamente disputas entre entes federados, pode ser somente iniciada por uma das partes (no caso de

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No período considerado pelo estudo (1988 a setembro/2012), haviam sido propostas 23 ações declaratórias de constitucionalidade (ADC), 10 ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADO), 203 arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) e 4751 ações direta de inconstitucionalidade genérica (ADI).

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

conflitos entre União e Estado, a legitimidade é exclusiva do Procurador-Geral da República) e, por conseguinte, não oferecem oportunidades equânimes de participação dos entes envolvidos. Trata-se, expressamente, de um mecanismo à disposição do governo central para limitar a ação de governos regionais. A ação declaratória de constitucionalidade (ADC), por seu turno, destinada a afastar eventual quadro de insegurança jurídica, tem por objeto apenas leis ou atos normativos federais. Portanto, embora conte com os mesmos legitimados da ADI, é um mecanismo a disposição do governo central para “blindar” normas federais que futuramente possam ser questionadas judicialmente. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e arguição de descumprimento de preceito fundamental, por fim, além de escassas quando comparadas com a ADI, envolvem normalmente a observância de direitos fundamentais, não se constituindo arenas de disputas entre entes federados, assim como também as arguições de descumprimento de preceito fundamental. Quando uma ADO, equivocadamente visa a invalidação de uma norma ou ato, é conhecida como ADI. A terceira razão é que o objeto da ação - a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo - influi diretamente numa das características centrais do arranjo federativo – a repartição de competências legislativas. Como o pedido da ação, em conflitos federativos, é a invalidação de uma norma (ou ato) editado pelo outro litigante, o resultado da revisão judicial abstrata provocada por ADI limita necessariamente o escopo normativo de um dos entes, seja do requerido em caso de procedência, seja do requerente em caso de improcedência. Nesse sentido, este estudo dá seguimento pioneiro de Oliveira (2009) sobre o Poder Judiciário como árbitro da federação brasileira. Contudo, além de ampliar o volume de dados examinados, reorienta a investigação, rediscute alguns dos pressupostos e reinterpreta os resultados. Em seu trabalho, Oliveira (2009, p. 226) procura demonstrar "que há uma tendência do Poder Judiciário em favorecer o Governo central, em detrimento dos governos estaduais, nas questões de ordem constitucional que chegam ao STF". Para isso, a autora analisa a influência do Supremo Tribunal Federal no sistema federativo brasileiro como um capítulo do papel desempenhado pelo Poder Judiciário nos países federais.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

A pesquisa de Oliveira (2009) focou a atuação do Supremo Tribunal como árbitro nas disputas envolvendo dois níveis de entes federativos – Estados-membros e União –, a partir das taxas de sucesso no julgamento das ações direta de inconstitucionalidade que um propôs contra outro, sob a alegação de usurpação da competência legislativa, fixada no documento constitucional (OLIVEIRA, 2009, p. 224). Seu estudo (OLIVEIRA, 2009, p. 234) teve por base os dados de 305 ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), de um total de 941 envolvendo questões federativas. Foram considerados apenas três tipos de ações, abrangendo somente conflitos entre as esferas estadual e federal: 1) ações propostas pelo ProcuradorGeral da República contra o Governador do Estado ou Assembleia Legislativa; 2) ações propostas pelos Governadores dos Estados contra o Presidente da República, Senado Federal, Congresso ou Ministro de Estado; e 3) ações propostas pelas Assembleias Legislativas estaduais contra o Presidente da República, Senado Federal, Congresso ou Ministro de Estado (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Estavam, portanto, excluídas as ações propostas pelos demais legitimados34 e as que envolviam a esfera municipal. Por fim, as ações foram reunidas em dois blocos – ações da União contra Estados (grupo 1) e ações dos Estados contra a União (grupo 2) (OLIVEIRA, 2009, p. 235) e classificadas em nove temas - administração pública, servidor público, política social, políticas econômicas, privatizações, regulação econômica do setor público, política tributária, regulação da sociedade civil e competição política (OLIVEIRA, 2009, p. 242-243). Os resultados demonstraram que as ações impetradas pela União contra os Estados foram mais vitoriosas, o que a autora (2009, p. 224) interpretou como indício de um "federalismo centralizador". O fracasso, porém, de todas as ações propostas pelos legitimados estaduais, dada a diferença de matérias objeto das ações dos requerentes, impossibilitou relacionar o sucesso ao tema da ação, verificando se as taxas de êxito correspondiam, na verdade, a determinado assunto (e não a determinado requerente), o que, por conseguinte, segundo a autora, impediu chegar a conclusões mais robustas.

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Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Como Oliveira (2009), este estudo parte do exame das ADI para a investigação do papel do STF nos conflitos federativos. Contudo, além de ampliar o foco temporal de análise para abarcar mais de vinte anos (de 1988 a setembro/2012), adota um conceito formal de conflito federativo, relacionado aos atores (ou às instituições) requerentes e requeridos. Nesse cenário, é possível a existência de conflitos federativos de três ordens: União contra Estado, Estado contra União e Estado contra Estado35. Como o objetivo deste trabalho é analisar o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal em termos de centralização/descentralização, disputas entre Estados não são objetos de exame. Tendo isso em vista, as categorias de conflito federativo União x Estado e Estado x União englobam, assim, qualquer ação que envolva em um dos polos um ator ou uma instituição federal e, no outro, um ator ou uma instituição estadual36 (Ver Figura 1). A opção por um critério formal é por que, por definição, qualquer ADI tem por objeto um pedido de invalidação de lei ou ato normativo e, por conseguinte, remete à competência normativa de quem a produziu. Ainda que a alegação seja de violação material de norma constitucional, o que está em jogo quando há instituições federais de um lado e instituições estaduais de outro, é a extensão do escopo normativo de um ente federado. Além disso, pretende-se examinar outros indicadores para depurar as taxas de vitória de um ente federado sobre outro.

Figura 1 Tipos de conflitos federativos Conflito

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Requerente

Requerido

Ainda que as disputas entre Municípios e Estados e entre Municípios e União igualmente possam ser consideradas conflitos federativos, a ADI não é o mecanismo adequado para esses embates, visto que autoridades municipais não tem legitimidade para propor ações nesse sentido, nem as normas locais podem ser objeto de tal tipo de ação. Excluíram-se, assim, as ações propostas pelos demais legitimados (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, Confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional), independentemente de quem ocupe o outro polo da demanda e as disputas “internas”, isto é, legitimados federais contra instituições centrais e legitimados estaduais contra instituições do mesmo estado. Também foram excluídas propostas por legitimados federais e estaduais contra tribunais, sejam eles estaduais (Tribunais de Justiça dos Estados) ou federais (Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais, Tribunais Regionais do Trabalho, Superior Tribunal de Justiça, entre outros) por envolverem, tipicamente, pedidos de invalidação de resoluções/decisões administrativas de competência dos próprios órgãos judiciários, cujo resultado não poderia ser interpretado propriamente como centralização ou descentralização.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

União x Estado

- Presidente da República - Mesa do Senado Federal - Mesa da Câmara dos Deputados

- Assembleia Legislativa ou Câmara x

- Procurador-Geral da República

Legislativa do Distrito Federal - Governador do Estado ou do Distrito Federal

- Congresso Nacional - Senado Federal - Câmara dos Deputados Estado x

ou da Câmara Legislativa do

União

- Presidente da República

- Mesa da Assembleia Legislativa

- Ministro de Estado x

Distrito Federal

- Conselho Nacional de Política Fazendária

- Governador do Estado ou do

- Conselho Nacional do Meio-

Distrito Federal

Ambiente - Banco Central - Conselho Nacional de Saúde

- Mesa da Assembleia Legislativa Estado x

Distrito Federal

Estado

- Assembleia Legislativa ou Câmara

ou da Câmara Legislativa do

- Governador do Estado ou do Distrito Federal

x

Legislativa do Distrito Federal - Governador do Estado ou do Distrito Federal

Em primeiro lugar, busca-se identificar quais são os legitimados e, por conseguinte, qual ente federado é o responsável pela iniciativa da maior parte de ADI envolvendo conflitos federativos. A primeira hipótese (H1) é que, devido a maior probabilidade dos governos regionais invadirem a esfera de competência do governo central e dada as maiores chances de êxito na utilização do mecanismo serem da União (BZDERA, 1993), os requerentes federais (Presidente da República, Senado Federal, Câmara dos Deputados e Procurador-Geral da República) seriam os atores responsáveis por iniciar a maioria dos processos nesse sentido. Em segundo lugar, procura-se verificar a hipótese central do estudo (H2), a de que a alta corte federal favorece e legitima a expansão gradual da jurisdição legislativa central (BZDERA, 1993). A verificação da preposição engloba vários testes. O primeiro é se há diferenças na condução do processo conforme o requerente. Para isso, compara-se o percentual de ações que aguardam o julgamento

72


GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

e o tempo médio de julgamento das ADI iniciadas pelos legitimados federais e estaduais em conflitos federativos. A existência de disparidade pode ser um indício de favorecimento de um ente federado em detrimento do outro, pois diferentemente da decisão de mérito, não há constrições institucionais (como o amplo rol de competências do governo central em comparação com os governos subnacionais) que justifiquem maior agilidade no processamento das ações propostas por determinado requerente. O segundo teste é a medição das taxas de êxito/fracasso das ações iniciadas pelos legitimados do governo central e dos estados-membros. A análise elementar é a comparação do percentual de ADI julgadas procedentes (e procedentes em parte) conforme o ente requerente entre as ações já decididas (procedentes, procedentes em partes e improcedentes)(Figura 2). Figura 2 Cálculo da taxa de êxito T1 (%) =

(total ADI procedentes)+(total ADI procedentes em parte)x(100) (total ADI procedentes)+(total ADI procedentes em parte)+(total de ADI improcedentes)

O terceiro teste é a medição das taxas de concessão de medidas liminares. O deferimento de medida liminar é um indicativo de êxito porque possibilita a produção dos efeitos pleiteados antes da decisão definitiva. A limitação da atuação do oponente, nesse cenário, pode representar uma vitória ainda que o julgamento final reverta a decisão liminar, na medida em que as oportunidades para implantação de uma política, por exemplo, podem se perder com o tempo. Assim, confrontam-se os percentuais de medidas liminares deferidas e deferidas em parte de acordo com o requerente (a medição exclui os pedidos não conhecidos e prejudicados, bem como os que aguardam julgamento, por não ausência de resolução do mérito). Ainda, para apurar o teste das hipóteses 01 e 02, procura-se comparar os dados relativos à concessão de liminares e ao resultado do processo conforme o ente federativo nos conflitos federativos com os dados referentes a questões não federativas e identificar os legitimados individualmente do polo propositor. O objetivo desse exame é duplo. Primeiro, verificar se o STF tem desempenhado o seu papel de árbitro de federação. A resposta será positiva caso os dados não demonstrem diferenças significativas entre as ADI sobre conflitos federativos e as demais. A análise, assim, precede o exame sobre como o Tribunal tem exercido esse papel. 73


GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Segundo, verificar se os resultados obtidos (taxa de êxito, tempo de julgamento, concessão de liminares) seriam mais vinculados aos atores requerentes do que às unidades federadas que representam nesses embates. A resposta será positiva caso o desempenho dos requerentes não varie conforme a ação envolva ou não conflitos entre União e Estado. O teste, nesse sentido, procede à análise dos resultados obtidos pelos entes federados.

RESULTADOS Das 5011 ADI37 contabilizadas entre 1988 e janeiro de 2014, 18,2% (912) envolveram conflitos entre entes federativos38 (Tabela 1), das quais 91% (830) figuravam atores/instituições federais em um dos polos e estaduais no outro. TABELA 1 - ADI: resultado, tipo de conflito e requerente

Federativo União x Estado Presidente PGR Senado Estado x União Assembleia Governador Estado x Estado Assembleia Governador Não federativo Interno39 Assembleia 37 38

39

Aguarda Não Improcedente Procedente julgamento conhecida 329 269 46 268 259 187 28 243

Total 912 717

5 253 1 43

1 186 50

28 13

243 7

6 710 1 113

9 34 27

12 38 32

4 9 5

1 6 18

26 87 82

27 1416 410 5

1 31 1675 274 10

5 271 79 2

18 737 408 2

1 81 4099 1171 19

Dados coletados e organizados pelo DIRPOL – Núcleo de Direito e Política (UFPR). Houve dois conflitos entre Municípios e Estados e um conflito entre Município e União, todos iniciados pelo governo local, que tiveram seguimento negado por ilegitimidade do requerente. Tais conflitos foram classificados na categoria “outros” (assim como os demais conflitos iniciados pelo governo local) por não estarem na alçada do STF. A corte competente para resolução dessa modalidade de ação é o Tribunal de Justiça do Estado. ADI em que figuram em polos opostos instituições de um mesmo ente federativo, como, por exemplo, Governador x Assembleia Legislativa do próprio Estado e Procurador-Geral da República x Congresso Nacional.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Governador Presidente PGR Outro Assembleia Associação Governador Município OAB Partido Pessoa física Presidente PGR Total

335 70 1006 4 601 14 137 216 2 32 1745

211 53 1401 6 682 13 15 62 518 48 57 1944

63 1 13 192 1 87 3 18 77 6 317

373 33 329 136 6 35 96 56 1005

982 1 169 2928 11 1506 36 15 252 907 48 2 151 5011

FONTE: Supremo Tribunal Federal.

O primeiro dado que se observa na comparação entre as ações sobre disputas federativas e as demais ações é que não houve diferenças significativas no que diz respeito ao desempenho do STF na condução do processo (Tabela 1). Entre as ações que tratavam de conflitos federativos, 36,1% (329) ainda não haviam sido julgadas em janeiro de 2014, percentagem pouco superior à taxa de julgamento das demais ADI (34,5%). No mesmo sentido, o tempo médio de julgamento40 (Tabela 2) das ADI referentes a tais disputas foi ligeiramente superior (5,9 anos) ao tempo despendido para a resolução das demais ADI (5,6 anos). Essa pequena diferença, ainda, é relevada caso se considere o julgamento dos pedidos de medidas liminares, que, na hipótese de deferimento, antecipam o resultado pretendido pelo requerente.

TABELA 2 – Tempo médio de julgamento (em anos) Tipo de conflito Federativo União x Estado

Estado x União Estado x Estado Não federativo 40

Tempo 5,9 6,0 6,8 4,5 5,6

O tempo médio de julgamento foi calculado com base na diferença (em anos) entre a data de propositura da ADI perante o STF e a data de publicação do acórdão. Foram consideradas apenas as decisões com resolução do mérito (conhecidas e julgadas improcedentes, procedentes ou procedentes em parte).

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Interno Outro Total

6,7 4,6 5,7

FONTE: Supremo Tribunal Federal.

A taxa de sucesso quanto ao pedido de deferimento de medida liminar, por sua vez, foi significativamente superior nas ADI sobre conflitos federativos (Tabela 3). Das 764 ações envolvendo disputa entre entes federados em que houve pedido de liminar (83,8% do total), 34,3% (262) obtiveram êxito, enquanto pouco menos de um quinto (878) das demais ADI tiveram suas liminares deferidas, embora a medida tenha sido pleiteada em 90,7% (3719) dos processos. A taxa de êxito da União quanto ao pedido de liminar (pedidos não prejudicados, conhecidos e decididos 41) foi significativamente maior que a obtida pelos Estados (85,6% contra 65,7%42). No entanto, não se constata diferença significativa caso se considere apenas as ADI com pedido de liminar que ainda não foram decididas definitivamente (Tabela 4). Enquanto 17,9%(48) das ADI que envolvem embates federativos já produzem algum efeito antes do término do processo, a taxa de concessão de medidas liminares nos demais casos foi de 16,4% (219), sendo que tal pedido está presente em 94,4% (1337) dessas ações e em apenas 81,5% (268) das ADI que envolvem conflitos federativos e ainda aguardam julgamento.

TABELA 3 – Medidas liminares em ADI: resultado, tipo de conflito e requerente Sem Não Aguarda Prejudicad limina conhecid julgamento a r a

Federativo União x Estado

Presidente PGR Senado Estado x União 41 42

Indeferida

Deferid Total a

148 136 1 135 -

220 164 4 160 -

3 2 2 -

235 151 1 150 -

44 33 33 -

262 231 230 1

912 717 6 710 1

12

30

1

43

10

17

113

Como exposto na seção anterior, o cálculo da taxa de êxito/sucesso exclui os pedidos não conhecidos e prejudicados, bem como os que ainda aguardam julgamento. A União teve 231 pedidos de medidas liminares deferidos e 33 indeferidos nos conflitos contra os Estados, enquanto a medida foi concedida aos Estados 17 e negada 10 vezes nas ações que propuseram contra o governo central. Nos conflitos entre Estados o êxito (14 em 15) no deferimento de liminares dos legitimados estaduais foi muito maior (93,3%). Tais dados revelam, como se verá a seguir, que as taxas de sucesso devem-se à origem da norma a qual se pretende invalidar e não ao requerente.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Assembleia Governador Estado x Estado Assembleia Governador Não federativo Interno Assembleia Governador Presidente PGR Outro Assembleia Associação Governador Município OAB Partido Pessoa física Presidente PGR Total

6 6

5 25

1

10 33

4 6

1 16

26 87

-

26

-

41

1

14

82

380 105 2 63 40 275 131 2 1 13 100 15 13 528

26 1092 254 6 201 47 838 3 530 11 114 163 2 15 1312

7 2 2 5 2 1 2 10

1 40 1284 260 5 220 1 34 1024 5 527 13 14 47 364 33 21 1519

1 458 108 3 85 20 350 3 151 3 22 162 9 502

14 878 442 3 411 28 436 165 7 55 116 93 1140

1 81 4099 1171 19 982 1 169 2928 11 1506 36 15 252 907 48 2 151 5011

FONTE: Supremo Tribunal Federal.

TABELA 4 – Medidas liminares em ADI que aguardam julgamento Sem Não Aguarda Prejudicad limina conhecid julgamento a r a

Federativo União x Estado

61 56 5

Estado x União Estado x Estado Não federativo 79 Interno 33 Outro 46 Total 140

Indeferida

Deferid Total a

208 155 27

1 1 -

3 1 2

8 5 3

48 41 6

329 259 43

26 1004 236 768 1212

3 2 1 4

11 1 10 14

100 32 68 108

1 219 106 113 267

27 1416 410 1006 1745

FONTE: Supremo Tribunal Federal.

O STF, portanto, não se eximiu do seu papel de árbitro da federação.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Os dados também demonstram o diferente uso da ADI que fizeram os legitimados federais e estaduais (Tabela 5). Enquanto a União utilizou esse instrumento para atuar nas disputas contra os Estados (68,9% das ADI propostas por legitimados federais envolveram conflitos contra os Estados), as subunidades nacionais o empregaram para resolver disputas internas (80,5%), como as batalhas jurídicas entre Governadores e Assembleias (9,1% das ADI iniciadas pelos legitimados estaduais foram propostas contra a União e 6,6% contra outros Estados).

TABELA 5 – Entidade requerente e tipos de conflito

União Estado Outros Total `

União x Estado 717 717

Estado x União 113 113

Estado x Estado 82 82

Interno

Outro

Total

170 1001 1171

153 47 2728 2928

1040 1243 2728 5011

FONTE: Supremo Tribunal Federal.

Os dados, nesse sentido, confirmam a hipótese (H1), de que os legitimados federais (Presidente da República, Senado Federal, Câmara dos Deputados e Procurador-Geral da República) seriam os principais responsáveis pela instauração de conflitos federativos entre governo central e governos regionais por meio de ADI devido a maior probabilidade de os governos regionais invadirem a esfera de competência do governo central e dada as maiores chances de êxito na utilização do mecanismo serem da União. No que diz respeito ao desempenho do seu papel de árbitro da federação, o STF discriminou moderadamente requerentes estaduais e federais quanto à condução do processo. Os dados, na verdade, não revelam diferença significativa quanto ao volume de ações ainda não julgadas: em janeiro de 2014, 38,1 % (43) das ações propostas por Governadores e Assembleias Legislativas contra a União ainda não haviam sido julgadas, enquanto 36,1% (259) das ações da União contra os Estados encontravam-se na mesma situação (Tabela 1). Contudo, deve ser sopesado o fato de os legitimados federais haverem proposto quase sete vezes mais ADI nesse sentido (717 contra 113). Além disso, observa-se uma diferença no tempo médio de julgamento das ações propostas conforme o ente requerente: as ADI iniciadas pelos legitimados federais contra os Estados levaram em média 6 anos para serem 78


GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

decididas, enquanto os processos instaurados por Assembleias e Governadores contra a União perduraram, em média, 6,8 anos (Tabela 2). O resultado das ações, por sua vez, confirma a hipótese (H2) de que alta corte federal favorece e legitima a expansão gradual da jurisdição legislativa central (BZDERA, 1993). A taxa de êxito da União nas ações que propôs contra os Estados foi significativamente superior às ADI propostas por Assembleias e Governadores contra o governo central. Das ações propostas pelos legitimados federais e resolvidas no mérito (excluídas, portanto, as não conhecidas e as que aguardam julgamento), 89,7% (243 de 271) obtiveram resultado favorável (julgadas procedentes ou procedentes em parte), enquanto a taxa de sucesso dos Governadores e Assembleias que enfrentaram a União foi de 35% (7 de 20)43. Além disso, o STF foi mais generoso com a União na concessão de liminares. Ainda que não existam diferenças significativas quanto à resolução dos pedidos de liminar44, a taxa dessas medidas nas ações do governo central contra governos subnacionais é mais que o dobro do observado no caso contrário (Tabela 3). O pedido da União foi deferido em 55,4% (231) das ações (considerados apenas os pedidos já decididos), o que implica em uma taxa de êxito de 87,5% (desconsiderados os pedidos não conhecidos e prejudicados). As Assembleias e os Governadores, por sua vez, tiveram apenas 23,9% (17) dos seus pedidos de liminar deferidos, o que implica numa taxa de 63%. Por fim, os dados demonstram que o êxito está mais atrelado à origem do ato ou da norma (se federal ou estadual) do que ao requerente. Independentemente de quem provoque o controle abstrato de constitucionalidade, é mais fácil obter um resultado favorável do STF quando a ação envolve pedido de invalidação de normas ou atos editados por instituições estaduais em vez de federais. Das ADI propostas pelo PGR, mais de dois terços (67,7%) versavam sobre conflitos contra os Estados. Das restantes, 14,7% (99) envolviam pedido de invalidade de normas promulgadas

43

44

Note-se, ademais, que a maioria absoluta (71,4%) das ADI propostas pelos Estados contra a União e já decididas sequer foi conhecida pelo STF, ao passo que o percentual de ações iniciadas pela União que se encontram na mesma situação é de 40,8% (187). Ver Tabela 1. 28,2% (164 de 581) dos pedidos de liminar nas ações propostas por legitimados federais contra instituições federais aguardam julgamento, ao passo que o percentual de pedidos de liminar ainda não decididos nas ações de Estados contra a União é de 29,7% (30 de 101). Caso sejam considerados apenas as ADI que aguardam julgamento, o percentual é de 76,4% (155 de 203) e 71,1% (27 de 38), respectivamente. Ver Tabela 3 e 4.

79


GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

ou atos editados pelas instituições centrais (isto é, o processo decisório do governo central) e 17,6% (119) outras questões (como disputas contra tribunais, Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público para invalidar decisões e resoluções administrativas emanadas por esses órgãos). Nessas duas modalidades de conflitos, o desempenho do PGR foi discrepante. Enquanto obteve resultado favorável em 53,2% das vezes que questionou o processo decisório federal (taxa de êxito de 89,7%), foi vitorioso em 40,4% dos demais conflitos (taxa de êxito de 82,4%)45. Nota-se também que mesmo os legitimados estaduais (destacadamente os Governadores), que tiveram pouco êxito em invalidar normas e atos federais por meio de ADI, obtiveram resultado favorável em 56,7% (taxa de êxito de 85,2%) 46 das tentativas de derrubar decisões estaduais internas, percentagem muito superior à obtida nos demais processos47 (Tabela 1). Assim, nos conflitos entre União e Estados, a suprema corte favorece instituições centrais pelo bloqueio de iniciativas descentralizadoras das subunidades.

VITÓRIAS ESTADUAIS E DESCENTRALIZAÇÃO As poucas vitórias estaduais, nesse contexto, suscitam a questão sobre as circunstâncias que levaram o STF decidir excepcionalmente pela “descentralização” do sistema federativo. A análise detalhada dos casos, todavia, apontam que o êxito estadual deve ser encarado com ressalvas. Das sete vitórias estaduais contra a União, duas tratavam de questões administrativas e cinco envolviam finanças. Dessas cinco ADI, quatro, por sua vez, propostas por Estados diferentes48, tratavam do questionamento das mesmas normas federais e foram julgadas conjuntamente.

45

46 47

48

53,5% (53) das ADI propostas pelo Procurador-Geral da República contra o Legislativo e/ou o Executivo federal não foram conhecidas e 13,1% (13) foram julgadas improcedentes. Das demais ADI (excetuadas as propostas contra os Estados), 47,1% (56) foram julgadas procedentes, 5% (6) improcedentes e 47,9% (57) não foram conhecidas (Tabela 1). 33,5% (221) das ADI propostas pelos legitimados estaduais contra o Legislativo e/ou Executivo do próprio Estado não foram conhecidas e 9,8% (65) foram julgadas improcedentes (Tabela 1). Os legitimados estaduais obtiveram resultado favorável em 32,7% (18) das vezes nas ADI contra outros Estados, em 20,7% (6) das vezes nos conflitos contra outras instituições (Tribunais, CNJ) e, como visto, apenas em 10% (7) das vezes quando enfrentaram a União (Tabela 1). Trata-se das ações direta de inconstitucionalidade n.o 875/DF, 1.987/DF, 2.727/DF e 3.243/DF. A ADI n.o 875/DF foi proposta pelos Governadores dos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, a ADI n.o 1.987/DF foi proposta pelos Estados de Mato Grosso e Goiás, a ADI n.o 2.727/DF foi proposta pelo Governador do Estado do Mato Grosso do Sul e a ADI n.o 3.243/DF foi ajuizada pelo Governador do Estado de Mato Grosso. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

As ADI n.º 875/DF, 1.987/DF49, 2.227/DF e 3.243/DF, envolviam o questionamento de diversos dispositivos da Lei Complementar n. 62/1989, que estabelecia normas sobre o cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos dos Fundos de Participação dos Estados (FPE). Em síntese, sustentavam que o art. 2º, I e II, §§ 1º, 2º e 3º, e Anexo Único da Lei Complementar n.º 62/1989 descumpriam o art. 161, II, da Constituição por estabelecerem coeficientes sem definir os critérios para o rateio dos Fundos de Participação dos Estados. No caso, o Procurador-Geral da República manifestou-se pela improcedência das ações por entender que escapava da competência do STF avaliar se os critérios fixados pela norma atendiam o objetivo de promoção do equilíbrio socioeconômico entre os entes federados. O STF, contudo, acolheu a pretensão dos requerentes e declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos questionados, sem a pronúncia da nulidade para assegurar a aplicação da norma até dezembro de 2012, de modo a evitar “vácuo legislativo” que inviabilizasse o repasse das verbas50. O fundamento da decisão foi que os coeficientes estabelecidos pela Lei Complementar n. 62/1989 para a repartição dos recursos do FPE, que a princípio tinham aplicação apenas provisória (restrita aos anos de 1990 e 1991, embora a lei assegurasse a aplicação em caso de ausência de norma posterior) não obedecia a qualquer critério, sendo fruto apenas do ajuste político no momento de elaboração da norma. O argumento foi de que a manutenção das regras de rateio desconsiderava “a realidade socioeconômica” dos Estados por não se amparar em qualquer parâmetro. Portanto, desatendia o objetivo de alcançar o “equilíbrio socioeconômico” dos Estados, determinado pelo texto constitucional (art. 161, II). No caso, ainda, apesar do êxito dos Estados nessas ações, deve ser levado em conta que o processo demorou dezessete anos para ser concluído (a primeira ADI, n.º 875, foi proposta em 1993) e os dispositivos invalidados tiveram sua eficácia garantida por mais dois anos após o julgamento, em 2010.

49

50

Plenário. ADI n. 875, 1.987, 2.727, 3.243. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 24.02.10. DJ de 30.04.10. Na ADI n.o 1.987/DF, na verdade, alegava-se inconstitucionalidade por omissão em razão da ausência de critérios para o rateio do Fundo de Participação dos Estados, o que, segundo os requerentes, violava o mandamento inscrito no art. 161, II, da Constituição Federal (“art. 161. Cabe à lei complementar: (...) II - estabelecer normas sobre a entrega dos recursos de que trata o art. 159, especialmente sobre os critérios de rateio dos fundos previstos em seu inciso I, objetivando promover o equilíbrio sócio-econômico entre Estados e entre Municípios”). No julgamento, foi vencido parcialmente o Ministro Marco Aurélio Mello, que votou pela não protelação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (art. 27 da Lei 9.868/99).

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GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

A outra vitória estadual em finanças, na ADI n. o 1.758/DF51, envolvia o questionamento de norma federal que incluía os rendimentos auferidos por pessoas jurídicas imunes na incidência do imposto de renda (art. 28 da Lei 9.532/97). Segundo o requerente tal dispositivo violava o art. 150, VI, "a", da Constituição, que estabelecia a imunidade intergovernamental recíproca. No caso, o Procurador-Geral da República manifestou-se no sentido de emprestar "interpretação conforme a Constituição" para excluir as pessoas jurídicas de direito público que gozam de imunidade recíproca do alcance da expressão "pessoa jurídica imune", de modo a preservar a constitucionalidade do texto. O tribunal, entretanto, por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade da expressão "pessoa jurídica imune", por entender que o pedido não se restringia à imunidade tributária recíproca. O julgamento ocorreu seis anos após a propositura da ação, porém, o deferimento de medida liminar dias após a distribuição do processo já havia antecipado os efeitos perquiridos pelo requerente. Já na ADI n.º 1.27452, o Governador do Estado de Pernambuco pleiteou a declaração de inconstitucionalidade de norma federal que interferia diretamente na disciplina das instituições públicas estaduais. O dispositivo questionado era o art. 49 da Lei n.º 8.625/1993, que estabelecia a

equivalência

dos

vencimentos

do

Procurador-Geral

de

Justiça

e

dos

Desembargadores dos Tribunais de Justiça. Os argumentos suscitados pelo requerente para amparar o pedido de invalidação da norma, todavia, não abordavam o tema da autonomia ou das competências estaduais. Em síntese, alegava-se violação de norma constitucional que proíbe a vinculação e a equiparação de vencimentos para efeito de remuneração de pessoal do serviço público (art. 37, XIII, da Constituição) e citava jurisprudência do tribunal no sentido de invalidar normas que estabelecem vinculação entre os vencimentos dos membros do Ministério Público e da Magistratura. No caso, foi deferida medida liminar que suspendeu a eficácia do dispositivo questionado apenas poucos dias após a propositura da ação. O parecer do Ministério

51 52

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. ADI n. 1758. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF, 10.11.04. DJ de 11.03.05. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. ADI n. 1.274. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF, 27.04.95. DJ de 10.08.95.

82


GT4 – REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Público Federal foi favorável à pretensão estadual e, em 2003, o STF declarou a inconstitucionalidade por entender que a norma descumpria a vedação constitucional à vinculação entre vencimentos de carreiras diversas, em consonância com o argumento do requerente. Por fim, a ADI n. 3.682/DF53, proposta pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso, alegava, na verdade, inconstitucionalidade por omissão em razão da não elaboração da lei complementar federal atinente à criação, incorporação, desmembramento e fusão de Municípios (art. 18, §4º, da Constituição). No caso, o STF, por unanimidade, com manifestação do Procurador-Geral da República pela procedência do pedido, concedeu o prazo de dezoito meses para o Congresso Nacional adotar “as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto pelo art. 18, §4º, da Constituição". Na decisão, o Tribunal sustentou que não se tratava de impor um prazo para a atuação legislativa, "mas apenas a fixação de um parâmetro temporal razoável". As sete vitórias estaduais nos conflitos contra a União, portanto, implicaram a invalidação de dispositivos de apenas três normas federais. Ainda, mesmo no caso que, em princípio, produziu maior impacto (a declaração de inconstitucionalidade dos coeficientes de rateio do Fundo de Participação dos Estados), houve necessidade de protelar os efeitos em razão das implicações que a perda imediata de eficácia poderia gerar. Além disso, o tempo de julgamento deste processo foi maior que o dobro das demais ações, as ADI n.o 3682, 1274, 1758, que duraram, respectivamente, um, oito e sete anos, sendo que nas duas últimas houve deferimento de liminar antecipando o resultado pretendido nos primeiros dias após a propositura. E, em nenhum dos casos houve alegação de usurpação das competências estaduais - mesmo quando tratava da disciplina de instituições estaduais, como na ADI 1274. Assim, se os poucos resultados dos legitimados estaduais já denunciavam a atuação do STF como limitadora da descentralização, a análise dos casos em que as vitórias das subunidades nacionais ocorreram reforçam ainda mais a percepção, seja pela reduzida importância da maioria absoluta delas nas relações federativas, seja por que, quando o resultado foi mais relevante, a protelação dos efeitos reduziu os impactos da decisão – que, por sua vez, se tivesse eficácia imediata, iria prejudicar os próprios governos regionais. 53

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. ADI n. 3.682. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 09.05.07. DJ de 06.09.07.

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CONCLUSÃO O arranjo federativo delineado pela Constituição de 1988 contém diversos elementos que propiciam a atuação STF como instituição promotora da centralização ou, ao menos, limitadora da descentralização: um ambiente institucional marcado pela judicialização da política que situa o Supremo Tribunal Federal como palco para as disputas entre entes federados, uma repartição constitucional de competências caracterizada por um extenso e detalhado rol de atribuições legislativas federais e um método de seleção dos membros da suprema corte que envolve apenas a participação apenas de autoridades centrais. Nesse cenário, devido a maior probabilidade dos governos regionais invadirem a esfera de competência do governo central e dada as maiores chances de êxito no controle abstrato de constitucionalidade serem da União, os dados demonstram que requerentes federais são os atores responsáveis por iniciar a maioria dos processos nesse sentido. Enquanto a maioria das ADI propostas pelos legitimados federais envolviam litígios contra os Estados, os legitimados estaduais empregaram as ADI em batalhas jurídicas internas. Os dados demonstram, também, que o STF não se eximiu do seu papel de árbitro (não houve diferenças significativas entre o tempo de julgamento das ADI que envolviam disputas federativas e o tempo de julgamento das demais ações diretas), mas discriminou moderadamente requerentes estaduais e federais quanto à condução do processo (o STF foi mais ágil na resolução dos processos da União contra os Estados do que nas ações propostas por requerentes estaduais contra as instituições centrais, embora os legitimados federais tenham iniciado quase sete vezes mais ADI). Por fim, os resultados indicam que o STF, de fato, favoreceu e legitimou a expansão gradual da jurisdição legislativa central. A União foi a grande vencedora nos conflitos federativos, tanto no que diz respeito à decisão final, quanto à concessão de medidas liminares. A análise das poucas vitórias estaduais, por sua vez, revela que tais ações ou tiveram reduzida importância nas relações federativas ou, quando o resultado foi mais

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relevante, a protelação dos efeitos (tanto pela demora no julgamento quanto pela restrição temporal da eficácia) reduziu os impactos da decisão.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO SOCIAL NOS PLANOS DIRETORES DA SUDENE (1959-1964) Rafael Gonçalves Gumiero 54 Resumo: O objetivo desse trabalho é apresentar como a questão social emergiu no repertório da SUDENE, nos anos 1959-1964. Esse avanço apresentou uma importante inovação na compreensão do subdesenvolvimento e na proposição de alternativas para o desenvolvimento do Nordeste pela SUDENE. Nos anos 1950, as políticas desenvolvimentistas balizaram as suas medidas para superação do subdesenvolvimento pela via do crescimento econômico, ou seja, através da implantação de indústrias. A emergência da questão social trabalhada pelo Segundo Plano Diretor da SUDENE marcou uma inflexão nas políticas desenvolvimentistas produzidas até aquele momento. Nesse sentido, apontamos que o desenvolvimento do “fator humano”, compreendido como ampliação da educação e treinamento de mão de obra foi reposicionado, transitou da posição marginalizada no Primeiro Plano Diretor da SUDENE para emergente no Segundo Plano Diretor dessa instituição. Portanto, a questão social emergiu nas diretrizes do Segundo Plano Diretor da SUDENE como alternativa para a saída do subdesenvolvimento e obedeceu a alguns movimentos que podem ser verificados nos documentos produzidos por essa instituição, durante o período de 1959-64, permitindo que sejam divididos em três movimentos: 1) diagnóstico e proposição de uma Política para o Nordeste, apresentada pelo documento Uma política de desenvolvimento para o Nordeste, do GTDN; 2) aprovação do Primeiro Plano Diretor, que produziu uma política de desenvolvimento pautada pelos setores de infraestrutura (energia e transportes) e da indústria; 3) a queda de braço entre Furtado e o Conselho Deliberativo da SUDENE pela aprovação do Segundo Plano Diretor balizado pelas diretrizes de desenvolvimento do fator humano (educação), como eixo fundamental para o desenvolvimento da região Nordeste. INTRODUÇÃO O tema do problema do Nordeste aguçou inúmeros teóricos a se debruçarem sobre esta questão. Há uma vasta literatura55 que trabalhou imbricada nesse tema, sob diversos enfoques, seja na interpretação da terra, do homem, da luta pela

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Doutorando do Programa de Pós Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Poderia citar uma vasta literatura de poetas, romancistas, folhetinistas e sociólogos sobre a sua compreensão do Nordeste. Portanto, na iminência de não citar todos os trabalhos nessa área e pela sua amplitude é proposto trabalhar com uma literatura em específico nesse artigo, a da economia política subjacente aos documentos da SUDENE, pois foi a arena de produção de uma interpretação de reação contra o subdesenvolvimento econômico do Nordeste e apontou pistas para a sua superação.

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sobrevivência, da empresa açucareira e das suas relações sociais estabelecidas com a sociedade nordestina. Dentro desse universo que este tema nos apresenta, o objetivo desse artigo é trabalhar a emergência da “questão social” nos documentos da Superintendência de Desenvolvimento Econômico e Social para o Nordeste – SUDENE, dos anos 1959-1964. Justifico a opção pela escolha desses documentos dessa instituição de desenvolvimento regional no período referido, pois programou uma política de enfrentamento do subdesenvolvimento por intermédio de diretrizes para a transformação dessa região. O reduzido recorte proposto nessa comunicação está inserido em um amplo movimento gestado em diferentes momentos por políticas, planos e programas para diagnosticar o atraso e apontar ações para o desenvolvimento do Nordeste. O balanço de políticas de desenvolvimento regional para o Nordeste com ênfase no recorte 19591980, ou seja, no período desenvolvimentista56 apresentou diferentes momentos demarcados por distintas abordagens: 1945-58, da solução hidráulica ao esboço do planejamento do desenvolvimento econômico para o Nordeste; 1959-64, a formulação do documento do GTDN e o impacto político (institucional) da SUDENE; 1964-84, o esvaziamento político desta instituição diante da emergência dos programas setoriais para o Nordeste formulados pelo Ministério do Interior (MINTER) e pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Dentre desse quadro composto por diferentes abordagens adotadas pelo Estado desenvolvimentista para intervir no Nordeste priorizei o recorte de 1959 a 1964, período do surgimento da Operação Nordeste e da institucionalização da Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste – SUDENE até o momento do Golpe Militar de 1964, delimitado pelo rebaixamento dessa instituição de autarquia para órgão vinculado ao Ministério do Interior durante os governos militares. Justifico essa opção de recorte pelo avanço metodológico e instrumental concedido pelo GTDN e posteriormente pela SUDENE na abordagem da questão do subdesenvolvimento no Nordeste. Ressalto como inovação na interpretação do Nordeste produzido pelo GTDN o método de análise que se distinguiu dos programas elaborados anteriormente

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“O desenvolvimentismo [...] foi a ideologia econômica de sustentação do projeto de industrialização integral, considerada como forma de superar o atraso e a pobreza dos brasileiros” (Bielschowsky, p. 77, 2000). Bielschowsky expõe três diferentes interpretações desenvolvimentistas: setor público, setor privado, nacionalista. Os seus objetivos estavam em sintonia por um projeto de formação do capitalismo industrial moderno no país mediado pelas técnicas de planejamento e intervenção do Estado na economia.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL pelo Estado, no caso o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, ao apresentar como fundamento básico o particular uso do método históricoestrutural, oriundo da CEPAL, dando lógica ao tipo de abordagem que se denominou estruturalismo, evidenciado pelas particularidades do desenvolvimento da região Nordeste, ou o subdesenvolvimento, através da formação e reprodução de suas estruturas vis-à-vis à da região Centro-Sul e dos países desenvolvidos (GTDN, 1997[1959]). O GTDN conferiu importantes subsídios à SUDENE, que partiu desse método para a análise do diagnóstico e estruturou as suas diretrizes para planejamento da indústria, infraestrutura e reorganização da agropecuária do Nordeste. A SUDENE é uma instituição de longa trajetória, surgiu em 1959 e foi extinta em 2002, no ano seguinte foi reinaugurada com novas perspectivas de ação, no Governo Lula. Portanto, não seria possível trabalhar a grande dimensão que essa instituição abrange nesse artigo. Carvalho (2011) apresentou o interessante estudo sobre a possibilidade em dividir a trajetória da SUDENE em diferentes fases, sendo possível dividi-la em quatro fases demarcadas pelas suas influências teóricas: 1) 1959-64 foi influenciada pela CEPAL; 2) 1965-198, a tese dos polos de desenvolvimento de Perroux orientou as suas estratégias; 3) 1985-2002 a questão do desenvolvimento sustentável passou a guiar seus prognósticos; 4) de 2003 em diante, o chamado desenvolvimento endógeno amparou as suas ações. A reflexão dessa teórica nos ajuda a compreender a SUDENE enquanto uma instituição de desenvolvimento regional em constante movimento e marcada por diferentes fases. Com base na reflexão da autora supracitada podemos afirmar que se a SUDENE possuiu diferentes fases de influências teóricas, é possível compreendê-la enquanto instituição de trajetória que possui diferentes momentos políticos determinados pela conjuntura política e econômica, e que foram sintetizados em seus documentos (Planos Diretores, Atas do seu Conselho Deliberativo, o discurso em palestras do seu Superintendente). A escolha pelo recorte da SUDENE no período (1959-64) obedece a três justificativas: 1) o grupo GTDN produziu um revelador diagnóstico do Nordeste, no final dos anos 1950, em paralelo apresentou audaciosas medidas para a sua superação do subdesenvolvimento nessa região. Esse documento alterou a interpretação produzida do Nordeste em relação ao DNOCS – transitando da solução hidráulica para a questão do subdesenvolvimento (remete ao método do 89


GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

estruturalismo da CEPAL); 2) a implementação da SUDENE provocou um forte impacto político e institucional. Em sua “luta política” buscou apresentar o problema do Nordeste como uma questão de Nação, o que superou a percepção regional dessa problemática. Foi apresentado a opinião pública a necessidade de integração nacional no Brasil, como um fenômeno crítico de ordem pública e nacional, o que requereu medidas audaciosas dessa instituição para o desenvolvimento do Nordeste; 3) o conceito

de

desenvolvimento,

tal

como

foi

formulado

pela

ideologia

desenvolvimentista, sofreu uma inflexão no pensamento da SUDENE, determinada pela emergência da questão social. Ela foi reposicionada da posição marginalizada no Primeiro Plano Diretor para coadjuvante no Segundo Plano Diretor, apesar de permanecerem como centrais as medidas de ação para a indústria e a infraestrutura do Nordeste. Compreende-se que a transição da “questão social” da posição marginalizada para coadjuvante do Primeiro para o Segundo Plano Diretor da SUDENE obedeceu a seguintes proposições: 1) a qualificação da mão de obra para operar a indústria era um problema emergencial, pois a ausência de treinamento retardatária o processo de inserção da industrialização no Nordeste; 2) a reforma de bases foi uma bandeira levantada para a agenda do Estado no período 1959-64, fortemente defendida por Celso Furtado que estava no staff do Estado – como Superintendente da SUDENE, 1959-62 e Ministro do Planejamento, 1962-64; 3) Furtado apresentou em seu repertório as reformas de bases como alternativa para progredir o processo de desenvolvimento no Brasil, repertório priorizado em sua produção bibliográfica de 1961-64 nas obras, O Estado subdesenvolvido e a democracia, de 1961, A PréRevolução Brasileira, de 1962, Dialética do Desenvolvimento, de 1964, e nos artigos Política econômica e reforma de base, de 1962, Reflexões sobre a pré-revolução brasileira, de 1962, A luta pelo Nordeste e a estratégia da SUDENE, de 1962 e, Obstáculos políticos ao crescimento econômico, de 1965. O recorte priorizado nesse artigo é das políticas desenvolvimentistas do GTDN e da SUDENE (1959-64) e podem ser compreendidos em dois momentos: 1) diagnóstico e a estratégia de uma Política para o Nordeste, apresentada pelos documentos Uma política de desenvolvimento do Nordeste e o livro de Celso Furtado Operação Nordeste; 2) Política em ação, determinada pelos documentos Primeiro e Segundo Planos Diretores da SUDENE, que anunciaram a proposta de desenvolvimento por intermédio da estratégia de industrialização e reformas de base. 90


GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

Portanto, propositalmente esse recorte cronológico priorizou o seguinte material bibliográfico: documento Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, de 1959, produzido por Celso Furtado (no GTDN); a Conferência proferida por ele neste mesmo ano intitulada Operação Nordeste, posteriormente transformada em uma obra que leva o mesmo título da palestra; o Primeiro Plano Diretor para o Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste, de 1960; e, por fim, o Segundo Plano Diretor, elaborado em 1963, e interrompido por conta do Golpe de 1964. Além dessa introdução esse artigo foi dividida em três subseções. A primeira apresentou a mudança da racionalidade da compreensão do atraso enquanto resultado das secas, interpretação oferecida pelo Departamento de Obras Contra as Secas (DNOCS), para a compreensão do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) do atraso econômico enquanto um problema estrutural da economia. A segunda seção trabalhou com o impacto institucional promovido pela institucionalização da SUDENE na concertação de forças políticas e sociais do Nordeste e a sua proposta de desenvolvimento econômico inserida em seus Primeiro e Segundo Planos Diretores (1961-1964). Por fim, na última seção apresentamos a emergência da questão social nos planos diretores da SUDENE e a compreensão dessa instituição de que o desenvolvimento não poderia ser promovido somente pelo crescimento da produtividade.

A ESTRATÉGIA PARA O DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE DO GTDN No ano de 1958, a seca assolou a região do Nordeste. O DNOCS, enquanto instituição responsável ao combate às secas não correspondeu às expectativas das demandas do Nordeste e foi alvo de indignação pública, foi acusado de utilizar os recursos federais para influenciar favoravelmente a vitória nas eleições estaduais de vários candidatos a governadores de partidos políticos de oposição ao Governo federal. O cenário de calamidade pública associado a derrota do Partido Social Democrata (PSD), de Juscelino Kubistchek, nas eleições em vários Estados do Nordeste exigiu do Governo Federal medidas urgentes que dessem conta da “Questão Regional” (CASTRO, 1975; GOODMAN e ALBUQUERQUE, 1974). O Estado com o objetivo de sistematizar uma estratégia de ataque à problemática questão regional solicitou a Celso Furtado, em 1958, um diagnóstico profundo da realidade nordestina e um plano de ação com sugestões concentras para

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essa região. O Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), em 1959, sob a liderança de Furtado preparou um relatório da região com as atividades previstas e o seu orçamento. No mesmo ano, foi instituído o Conselho de Desenvolvimento Econômico do Nordeste (CODENO) e no ano vindouro a Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste (SUDENE). No relatório GTDN, Uma política de desenvolvimento para o Nordeste, superou a interpretação da questão climática do DNOCS sobre o atraso econômico do Nordeste, transitou da interpretação hidráulica para a do subdesenvolvimento, ou seja, em seu diagnóstico constatou o predomínio do latifúndio nessa região, que concentrava a mão de obra no setor primário-exportador associado ao alto crescimento demográfico e à baixa remuneração dessa força de trabalho. A sua ação foi institucionalizada através da fundação da SUDENE e dos seus Planos Diretores para o Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste. O ponto de partida para a interpretação do Nordeste, enquanto região problema foi resultado da concepção formulada pelo GTDN sobre o subdesenvolvimento. A sua visão estava relacionada aos componentes como a realidade socioeconômica nordestina, os seus agentes, os condicionantes estruturais, a relação com outras regiões do Brasil e a partir disso, as medidas foram propostas. A Operação Nordeste foi sancionada com a responsabilidade de apresentar diretrizes para a reestruturação da economia nordestina, de modo que, revertesse o relativo atraso dessa região em comparação a Centro-Sul. O GTDN em seu relatório Uma política de desenvolvimento para o Nordeste trabalhou amparado pela estratégia do diagnóstico e intervenção, orientada pela ideia de planejamento setorial. O relatório GTDN foi um documento político que apontou a necessidade de reformulação da atuação do Estado no Nordeste e o estabelecimento de uma política para a transformação estrutural de todo o sistema social dessa região (GOODMAN e ALBUQUERQUE, 1974; GTDN, [1959]1997). A análise elaborada pelo Grupo de Estudos evidenciou em seu diagnóstico os seguintes problemas: a) baixa renda da população; b) concentração de renda na elite; c) comércio desigual do Nordeste com o Centro-Sul; d) a pauta de exportações pouco diversificada e reunida em produtos primários; e) a Economia do Semiárido especializada em pecuária (classe proprietária) e atividade agrícola de subsistência (trabalhadores do campo) (GTDN, [1959]1997).

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A interpretação do GTDN sobre o atraso econômico do Nordeste esteve muito próxima das teses do subdesenvolvimento dos teóricos do centro capitalista 57. Contudo, o seu diagnóstico apresentou uma característica que permitiu classificar o Brasil como lócus de um subdesenvolvimento peculiar, esse grupo de trabalho compreendeu o Nordeste como resultado de dois núcleos de produtividade. No primeiro, chamado de “Litoral Úmido” a principal atividade produtiva era a cana-deaçúcar para exportação (monocultura), o capital se concentrava nas mãos da elite. No segundo, o “Semiárido”, sub-região com a economia pouco diversificada e focada na pecuária (latifundiários) e na agricultura de subsistência (dos trabalhadores rurais), o que resultava em sistema de acumulação de capital restrito à elite e os trabalhadores sobreviviam em nível de subsistência (GTDN [1959]1997). O relatório do GTDN ([1959]1997) indagou como seria possível formular nichos de produtividade no Semiárido. Nessa sub-região foi explorada uma única atividade econômica, a pecuária, que esteve circunscrita às elites locais. Subjacente a esta situação, o pequeno produtor rural estava com a sua sobrevivência comprometida, consequência da sua pequena produtividade de subsistência sazonal e pelas limitadas condições impostas pela atividade pecuária58. A questão central é, portanto, a seguinte: como elevar a produtividade da economia da região semi-árida? Para alcançar esse objetivo será necessário integrar o mais possível, no mercado, a unidade produtiva típica. No momento presente, essa unidade se articula com o mercado por meio da pecuária e da produção de algumas xerófilas, particularmente o algodão mocó. As condições ecológicas indicam claramente que a economia dessa região deve basear-se nesses dois elementos. Estabelecidos este ponto de partida, cabe indicar: quais são as características dimensionais e de organização que melhor se adaptam a uma unidade econômica, especializada na cultura de xerófilas e na pecuária, capaz de alcançar um grau razoável de produtividade? (GTDN, ([1959]1997), p. 421).

57

58

De acordo com a teoria do subdesenvolvimento elaborada pelos teóricos do centro capitalista – Rostow, Hirschman, Myrdal e Nurkse, dentre outros, qualificaram o subdesenvolvimento como proveniente de baixa poupança interna, concentração de produtividade em produtos primários, ou seja, artigos de baixo valor agregado, salários a nível de subsistência aos trabalhadores consequência da ampla oferta de mão-de-obra e baixa oferta de empregos, o que reforça a pequenez do mercado interno e a reduzida circulação da moeda, desestimulando o empresário ampliar a sua produção, o que colabora para a pouca diversificação produtiva nesse país (GUMIERO, 2011). No final do século XVIII no Nordeste, a empresa açucareira declinou e a pecuária, atividade econômica de subsistência, emergiu como alternativa para a migração da mão-de-obra que antes estava voltada para a empresa açucareira. Nesse sentido, esta configuração moldou a estrutura econômica dessa região, transitando de uma economia dinâmica no século XVII para uma região que retrocedeu a produzir apenas o necessário para a subsistência da população. A mão-de-obra antes concentrada no sistema produtivo do açúcar se dispersou em busca de emprego na pecuária extensiva, o que determinou uma involução nas formas de divisão do trabalho e especialização, ocasionando o retrocesso às técnicas artesanais de produção (FURTADO, 2007).

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A crise no Semiárido foi consequência da seca, que afetou a produção de alimentos dos trabalhadores rurais e de um sistema social rígido, que não os permitiam saírem da situação de subsistência. Essa crise apresentou fortes repercussões sociais, enrijeceu a estrutura social e reafirmou a concentração de renda nas mãos dos latifundiários (GTDN, [1959]1997). O GTDN ([1959]1997), em seu diagnóstico59 da economia nordestina concluiu que a crise de produtividade do Semiárido não foi a única barreira para empreender o desenvolvimento do Nordeste. Embora, a economia brasileira apresentasse, nos anos 1950, um ritmo acelerado de crescimento econômico, os efeitos de estímulo a expansão da dinâmica do mercado se limitou a uma desigual distribuição para as unidades federativas brasileiras. O chamado “desenvolvimento desigual” beneficiou unicamente a região mais industrializada (Centro-Sul), enquanto que na região atrasada (Nordeste) assegurou a sua pauta exportadora no setor primário e complementou a demanda da região industrializada do Brasil. A tabela 1, extraída do relatório GTDN, comparou a evolução da renda do Nordeste com a do Centro-Oeste, que registrou a sua involução. Tabela 1. Renda das Principais Regiões do País em Anos Escolhidos Discriminação e Ano Norte Nordeste Centro-Sul

Total

Renda (em milhões de cruzeiros)

5 766

25 523

133 387

164 675

25 023

102 000

637 005

764 028

1948

3,50

15,49

81,01

100,00

1956

3,27

13,35

83,38

100,00

1 764

1 627

4 358

3 323

6 322

5 450

17 029

12 718

1948 1956 Idem (porcentagem)

Renda per capita (em cruzeiros) 1948 1956 FONTE: GTDN (1997). 59

Furtado em uma Política de Desenvolvimento para o Nordeste e na Operação Nordeste, aponta para o caso do crescimento econômico da região Centro-Sul em relação com a estagnação da região Nordeste.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

Conforme a tabela supracitada, a situação de desigualdades regionais se agravou devido o crescimento proporcionado pela alta dinamicidade da economia do Centro-Sul ao cotejar à estagnação da economia do Nordeste. Dessa forma, foram identificadas duas dinâmicas contrárias na economia brasileira. O crescimento desigual concedia, inevitavelmente, para a região Centro-Sul maiores benefícios em suas relações comerciais com a região Nordeste. A sua economia era dinâmica, ou seja, a implantação da industrialização demandou um perfil de mão-de-obra mais qualificada, a migração da área rural para a urbana concentrou um índice de urbanização elevado, o que foi determinante para o Centro-Sul exercer o papel de polo dominante60 sobre a região Nordeste (FURTADO, 1959; GTDN, [1959]1997). Na região Nordeste, após o declínio do ciclo da cana-de-açúcar, a sua economia permaneceu estagnada e retrocedeu à economia tipicamente précapitalista (produção de subsistência da sua população). A economia nordestina atuou como complemento (produção e exportação de produtos primários) à demanda da economia do Centro-Sul. E, justamente por atender essa demanda, por produtos primários, o Nordeste não conseguia alcançar a próxima etapa para o desenvolvimento econômico, a industrialização (FURTADO, 1959). Na tabela 2, foram reunidos os índices de produção dos dois principais setores da economia – agropecuária e indústrias no Nordeste e no Centro-Sul. Após o ano de 1950, a produtividade agropecuária e industrial do Centro-Sul ganhou fôlego e se distanciou da do Nordeste. Os dados registraram a liderança da produtividade no setor industrial do Centro-Sul em relação ao Nordeste, concomitante ao vagaroso crescimento dessa região. Tabela 2. Índice da Produção Agropecuária e Industrial Agropecuária Indústrias Anos Nordeste Centro-Sul Nordeste Centro-Sul 1948 60

100,00

100,00

100,00

100,00

Cano (2007) alerta para o erro conceitual usualmente praticado por alguns pesquisadores acerca da aplicação da relação centro-periferia da Cepal à dimensão regional, o referido autor procura desmitificar o “mito” do imperialismo paulista em relação a região Nordeste. Nos marcos internos de um país, não há fronteiras políticas ou alfandegárias internas, evitando apontar um suposto “imperialismo interno”. Entretanto, a posição de destaque da região Sudeste sobre as demais do país derivou da concentração automática de capital, mediante os interesses privados em detrimentos de outras regiões. Dessa maneira, houve a concentração de capital em um Centro Dominante, que norteou os rumos do processo de acumulação de capital à escala nacional.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

1949

102,3

104,1

101,1

105,3

1950

107,5

107,8

103,9

118,8

1951

88,2

114,3

110,5

132,3

1952

95,9

123,5

113,0

141,9

1953

98,0

121,1

121,3

148,2

1954

114,1

129,6

128,6

160,7

1955

118,7

137,5

142,5

168,0

1956

125,2

132,4

149,8

181,2

FONTE: GTDN (1997).

A desintegração foi representada pelo reduzido nível de articulação econômica da região Nordeste com a região Sul foi um dos principais obstáculos para o seu desenvolvimento econômico. Dessa forma, o setor industrial da região Sul progrediu e promoveu condições suficientes para o seu crescimento auto-sustentado. Nessas condições, o seu mercado interno impulsionou o crescimento econômico, a sua dependência em importações de produtos foi reduzida (FURTADO, 1959). O plano de ação do GTDN foi articular a política industrial aos seguintes pontos: a) promover oferta de emprego à massa populacional flutuante; b) substituir a antiga classe

dominante

(oligarquia)

por

uma

classe

dirigente

que

visasse

o

desenvolvimento; c) providenciar para o Nordeste capitais formados em outras atividades econômicas; d) através da industrialização concederia autonomia e expansão manufatureira; e) transformar a economia agrícola da faixa úmida pela ampliação da oferta de alimentos; f) deslocamento da fronteira agrícola do Nordeste para a faixa úmida do hinterland maranhense (GTDN, 1997[1959]). A estratégia do GTDN concedeu fortes subsídios para o plano estratégico e a institucionalização da SUDENE, realizada em 1960. A aprovação dos quatro Planos Diretores da SUDENE enveredou por esse caminho, apesar de marginalizar algumas das propostas elaboradas pelo GTDN, como a reforma agrária.

SUDENE - DO IMPACTO POLÍTICO À CRISE DE GOVERNABILIDADE (1959-64) Em 1959, orientado pelas medidas propostas pelo GTDN foi formada a SUDENE, uma estrutura administrativa norteada por uma política de industrialização para o Nordeste. A SUDENE surgiu como uma Autarquia, o que significava ter um

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

nível institucional equiparado a de um Ministério e respondia diretamente a Presidência da República. O primeiro superintendente dessa instituição foi Celso Furtado, composta juntamente por uma Secretaria Executiva, de técnicos e burocratas, por um Conselho Deliberativo, tendo um caráter político, pois reuniu alguns Ministros, os nove governadores da região Nordeste e o de Minas Gerais61. Furtado (2009[1959]), em seu discurso de posse como superintendente da SUDENE, aponta a necessidade do pacto político entre o governo federal e os estaduais dessa região para o aperfeiçoamento das instituições democráticas e para a execução de medidas em seus planos diretores. Esses elementos de reforma política, contidos na Lei da Sudene, são da mais alta significação, porquanto os objetivos do desenvolvimento, traduzindo os ideais da convivência social, devem constituir denominador comum na ação política e ser afastados das faixas de fricção da luta partidária (FURTADO, 2009[1959], p. 166)

A institucionalização e o funcionamento da SUDENE dependeriam do pacto político, formado entre o Presidente da República – Juscelino Kubstichek, do Superintendente desse órgão – Celso Furtado, com os nove governadores da região Nordeste. Esse processo esbarrou em inúmeros interesses particulares dos dirigentes estaduais, o que dificultou a formação de uma “aliança” em torno da “questão das desigualdades regionais”. Uma ideia simples cristalizou-se então: o problema do Nordeste é essencialmente político. Na medida em que essa região perdeu o acesso aos verdadeiros centros de decisão do país, ela acabou assumindo um verdadeiro estatuto colonial. Como “região problema”, que vive pedindo “ajuda”, que aceita ser considerada como uma “carga”, o Nordeste foi relegado ao segundo plano das prioridades nacionais. O lançamento da Operação Nordeste pelo presidente Kubitschek, em 1959, constituiu uma tentativa de modificar esse estado de fato. Sob a aparência de uma simples reforma administrativa, decidida por uma lei ordinária, promoveu-se uma mudança na própria estrutura da federação: os governadores dos nove estados da região iam agir conjuntamente, num quadro institucionalizado, com o apoio de amplos recursos técnicos e se fazendo representar nos centros nacionais de decisão. Um poder burocrático não podia mais agir sem tomar conhecimento da realidade da região (FURTADO, 2009[1979], p. 181).

Furtado (1962) afirmou ser necessário para o funcionamento dessa instituição a ação técnica e o comando político. Em outras palavras, sem política de desenvolvimento não há plano de desenvolvimento, e não é possível executar a política sem que ela alcance os centros principais do poder político. Para o referido 61

A área de atuação da SUDENE além dos nove Estados do Nordeste encampou o Norte do estado de Minas Gerais, área que compôs o chamado “Polígono das Secas” do Nordeste.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

teórico, a SUDENE possuia a união entre a política, representada pelo seu Conselho Deliberativo composto pelos nove governadores do Nordeste, e a técnica, balizada em seus Planos Diretores pelo diagnóstico do Nordeste e um plano de ação para a saída do subdesenvolvimento. Portanto, a junção desses dois elementos permitiu que a SUDENE apresentasse as medidas para as prioridades do Nordeste à opinião pública. No estudo realizado por Lima (2009) os “embates políticos” travados por Celso Furtado e o Conselho Deliberativo da SUDENE62 no período de 1959-64 demarcou dois importantes movimentos. O primeiro embate, 1959-61, antecipou a aprovação do Primeiro Plano Diretor dessa instituição e foi marcada pela disputa dos interesses estadualista dos representantes das unidades federativas da região Nordeste. As articulações classistas cederam lugar ao discurso de cada um dos estados da região Nordeste pela captação dos recursos financeiros. O embate ficou polarizado entre os estados nordestinos da área litorânea, Bahia e Pernambuco, produtores de cana-de-açúcar, e os da área seca, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte, circunscritos pela produção da pecuária e algodão. Dessa forma, tomaram a “frente” em defesa do discurso da SUDENE os governadores de Pernambuco e da Bahia, desde que houvesse investimentos em seus territórios (LIMA, 2009). A partir de 1962, a SUDENE enfrentou uma feroz batalha para aprovação das suas medidas diante do pensamento conservador do Conselho Deliberativo e pela Câmara dos Deputados. Cid Sampaio63, que havia apoiado a SUDENE até esse momento voltou se contra o campo de ação dela, acompanhado pela maioria dos governadores. O Segundo Plano Diretor da SUDENE incorporou demandas sociais em suas diretrizes de ação, apresentado assim, medidas redistributivistas na estrutura fundiária e ao fator de desenvolvimento humano. Por outro lado, o Conselho Deliberativo temendo que as medidas reformistas pudessem ser institucionalizadas

62

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Oliveira (2008) em seu estudo clássico sobre as origens da SUDENE fez uma análise dos principais personagens que estiveram inseridos no processo de formação dessa instituição. Segundo o autor, figuras públicas como Celso Furtado, Cid Sampaio, João Goulart, Francisco Julião, Miguel Arraes podem ser compreendidas como personas, seguindo a terminologia de Karl Marx, ou representantes das forças sociais que estavam em fricção naquela ocasião. Segundo Lima (2009) a mudança de posição de Sampaio de incentivador da Sudene para opositor foi dada pela subida ao poder de João Goulart e a possível ameaça do candidato ao governo de Pernambuco, Miguel Arraes. Em paralelo, a medida proposta pela Sudene de reorganização da produção da Zona da Mata providenciou determinantes para oposição de Sampaio a essa instituição.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

abandonou o discurso que representava os interesses interestaduais e se uniram em um só coro contra a SUDENE. Pretendiam esvaziar esse órgão mediante os acordos estabelecidos com o governo norte-americano e a desaprovação da opinião pública das ações da SUDENE (LIMA, 2009). O Primeiro e Segundo Planos Diretores produzidos no período de 1959 a 1964 representaram interesses de Celso Furtado pela transformação econômica e política da região Nordeste. O Primeiro Plano Diretor após um longo período de espera, vinte e um meses aguardando a sua aprovação pela Câmara dos Deputados, foi instituído pela Lei nº. 3.995 de 14 de dezembro de 1961, com orientação para o combate à pobreza do Nordeste. As suas principais diretrizes estiveram direcionadas para o suporte a formulação da infraestrutura – energia e transportes e indústria de base. Ele foi formulado orientado pelo diagnóstico e prognóstico, como alternativa para a redução das desigualdades regionais e subdesenvolvimento nessa região. Diante disso, ele concluiu que três constatações determinavam o agravamento do subdesenvolvimento: a) o Nordeste é uma das regiões em que a população vive em condições precárias; b) a região apresenta potencial inexplorado para o seu desenvolvimento, existe uma variedade de recursos naturais subutilizados e há contingente populacional suficiente para receber treinamento e assimilar técnicas modernas; c) a liderança do Poder Público, no processo de formação de capital, é primordial para que seja reduzida a distância (econômica, social e infraestrutura) que separa o Nordeste do Sul do país (SUDENE, 1966a). Como propostas para superação do subdesenvolvimento, o Primeiro Plano Diretor indicou diretrizes orientadas majoritariamente por duas frentes de trabalhos: 1) modernização da infraestrutura - investimentos em transportes e no setor da energia elétrica, reformulação da política de aproveitamento dos recursos de água e prioridade nos investimentos aos serviços de abastecimento de água urbanos no interior dessa região; 2) reorganização da economia - reestruturação da economia rural da zona úmida e na caatinga, com a conciliação mais racional dos recursos de terra, colonização da zona úmida, do Maranhão e Sul da Bahia, coordenação dos investimentos públicos e privados para as indústrias de base (SUDENE, 1966a). A lei nº 3692 atribuiu à SUDENE a responsabilidade de formular diretrizes de uma política de desenvolvimento regional. Com base nessa lei, essa instituição aplicou uma reforma administrativa para executar as técnicas de planejamento combinada com o mecanismo de incentivos fiscais, o “Artigo 34”, para formação de 99


GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

empresas nacionais privadas especializadas em diferentes setores produtivos no Nordeste. O denominado “Mecanismo 34/18”, funcionou outorgando isenção de até 50% dos impostos de renda de pessoas jurídicas que optassem em aplicá-los em investimentos no Nordeste, o que era esperado que fossem estimulassem nessa região (SUDENE, 1966a). Os incentivos fiscais para empresas nacionais privadas foram: a) concessão de câmbio favorecido ou de custo, ou autorização para licenciamento de importação sem cobertura cambial, para equipamento destinado ao Nordeste, inclusive implementos agrícolas considerados essenciais ao desenvolvimento da região; b) isenção de quaisquer impostos e taxas à importação de equipamentos destinados ao Nordeste, considerados, preferencialmente, os das indústrias de base e de alimentação, desde que não se trate de máquinas e equipamentos usados ou recondicionados, nem haja similar no país; c) recomendação de financiamento ou aval a investimentos para o desenvolvimento econômico do Nordeste, enquadrado no Plano Diretor da SUDENE, a serem concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico ou Banco do Nordeste do Brasil (SUDENE, 1966a, p. 154/155).

A exigência da SUDENE (1966a) para concessão desses incentivos à instalação da indústria no Nordeste foi prioritária aos setores: infraestrutura econômica, especialmente energia elétrica, serviços básicos de transporte e comunicações, extração de recursos minerais; as indústrias estratégicas e as que utilizavam como insumo as matérias-primas locais; ao reequipamento de indústrias de alimentos, produção agrícola, pesca e armazéns. O prognóstico da SUDENE propunha avançar por intermédio da reorganização da agropecuária e da política de industrialização. O programa de desenvolvimento agropecuário do Nordeste foi empregado em conjunto pelo Ministério da Agricultura, o DNOCS, o Conselho do Vale do rio São Francisco - CVSF, o BNB e outros órgãos com a supervisão e investimento de fundos da SUDENE. O montante global de investimentos para o quinquênio (1960-1965) correspondeu a 10 bilhões de cruzeiros. Esses investimentos estavam direcionados em três vertentes: a) ampliação da oferta de terras; b) reorganização da economia da zona semiárida 64; c) pesquisa e experimentação (SUDENE, 1966a).

64 Os investimentos na reorganização da economia do Semiárido mediaram projetos prioritários em atividades distribuídas na produção de algodão arbóreo, mamona, oiticica e plantas forrageiras. (SUDENE, 1966a).

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

A política de industrialização da SUDENE interveio nos seguintes pontos: a) promoção de infraestrutura para o transporte e a energia, capacitando o meio com condições para uma distribuição da atividade industrial de base econômica; b) coordenação de incentivos proporcionados pelo governo federal às iniciativas privadas; c) modificação da estrutura industrial, pela criação de indústrias de base altamente germinativa, como a siderúrgica; d) reorganização e reequipamento das indústrias tradicionais, como a têxtil; e) aproveitamento das matérias-primas locais; f) reestruturação das atividades artesanais (SUDENE, 1966a). O Segundo Plano Diretor da SUDENE foi elaborado para o período de 1963/65 e seguiu as diretrizes estabelecidas pelo seu antecessor. Porém, apresentou importantes inovações em relação ao seu antecessor, avançou nas medidas para o “desenvolvimento do fator humano”. Do Primeiro para o Segundo Plano Diretor da SUDENE, os investimentos em infraestrutura foram reduzidos e reinvertidos para outros setores, com destaque para o aumento nos investimentos no fator humano e bem estar social. Ao contrário do Primeiro Plano Diretor, em que os investimentos, infraestruturais representavam 75 por cento do esfôrço total, a construção da infra-estrutura de transportes e fornecimento de energia já não absolverá mais de 46 por cento dos recursos neste Segundo Plano. Os investimentos diretamente ligados à produção tiveram sua participação elevada de 15 para 25 por cento do total. Os pré-investimentos cresceram de forma substancial, elevando-se sua participação de 5 para 15 por cento, sendo que pràticamente todo o incremento corresponde a recursos destinados à melhor capacitação do fator humano. A modificação mais importante, todavia, é a que se observa com respeito aos investimentos ligados ao bem-estar social: a participação destes cresce de 5 para 15 por cento (SUDENE, 1966b, p. 8).

O técnico em educação Antônio Cabral de Andrade da SUDENE, em sua entrevista para o jornal do Commercio de Pernambuco, publicada em fevereiro de 1963, afirma que o sentido da educação não possui um fim em si mesmo, mas um meio para alcançar o desenvolvimento. Para tanto, a SUDENE se posicionou para amparar o ensino agrícola e industrial, os cursos técnicos e de ensino superior, para qualificar a mão de obra para assumir postos de trabalhos na indústria e na agricultura. Entretanto, nesse plano Diretor a maior porcentagem de investimentos permaneceu no de infraestrutura, reafirmando-a como prioridade para a SUDENE (Cadernos do Desenvolvimento, 2006, p. 166). As diretrizes do Segundo Plano Diretor da SUDENE (1966b) para o setor de Pesquisa, Educação de Base e Saúde direcionaram para elaborar o levantamento de

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

recursos naturais disponíveis na região e eliminação do analfabetismo e treinamento para a ampliação da oferta de técnicos; no setor da Reforma Administrativa foi a criação de dois fundos de financiamento, mecanismo 34/18; para o setor de reorganização da Economia foram estimular investimentos na iniciativa privada; e, para o setor de infraestrutura, continuidade da instalação de infraestrutura de serviços, transportes e energia iniciada no Plano Diretor anterior. A legislação que estabeleceu o Segundo Plano Diretor introduziu algumas mudanças institucionais. O mecanismo de incentivos fiscais formulado com o Primeiro Plano Diretor foi alterado, a sua cobertura foi estendida para empresas de capital estrangeiro registradas no país, o que providenciou a isenção de imposto de renda e aprovação dos seus projetos para o Nordeste. O Sistema 34/18 (recebeu essa denominação em função do artigo 34 da Lei 3995/61 e do artigo 18 da Lei 4239/63) surgiu como uma das alterações aos incentivos fiscais concedidos as empresas privadas. As mudanças que ocorreram no sistema 34/18 convergiram na expansão de seus recursos financeiros ao setor agrícola e até mesmo as empresas internacionais. Soma-se a estas alterações, a determinação de que o optante poderia ser o próprio investidor, nacional ou não. Os seus investimentos também foram direcionados para pesquisa em recursos minerais, indústria siderúrgica, redução do impacto das flutuações na taxa de câmbio sobre empreendimentos que se beneficiaram de investimento externo e permitir a mobilização de recursos para financiar habitações populares (GOODMAN e ALBUQUERQUE, 1974: 196-197). No setor de educação a SUDENE (1966b) propôs como medida a ampliação da capacidade instalada do sistema educacional do Nordeste, para determinar padrões mínimos de cultura à população do Nordeste, treinamento da mão-de-obra, com os níveis médio e superior de educação. O programa formulado pelo órgão abrangeu os seguintes projetos: a) aumento das matrículas no ensino primário; b) ampliação e reequipamento da rêde de escolas técnicas e industriais de nível médio; c) ampliação e reequipamento da rêde de escolas agrícolas de nível médio; d) melhoria de ensino técnico de nível superior; e) formação de pessoal destinado aos Estados e Municípios; g) formação de pessoal para a SUDENE (SUDENE, 1966b, p. 31).

A ausência de técnicos qualificados de nível superior representou um dos principais entraves à execução dos planos diretores de desenvolvimento regional. O

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL estudo realizado pelo “Grupo de Reequipamento Técnico” e Científico das Universidades do Nordeste (GRUNE), a SUDENE e o Ministério da Educação e Cultura, identificou como prioridades a expansão de Escolas de Nível Superior e reestruturação do nível técnico científico no Nordeste65 (SUDENE, 1966b). O Segundo Plano Diretor (1966b) apresentou como medida para a reestruturação da economia agropecuária do Nordeste o Projeto de Colonização do Maranhão. Esse projeto de migração foi direcionado pelos seguintes fatores: organização do escritório base em Pindaré-Mirim, de Operações e Coordenação Geral do Projeto; a instalação de escolas; programa de saúde; comercialização e organização econômica; e infraestrutura e logística. A SUDENE reorganizou a economia agropecuária com projetos nos seguintes setores: equalização da produção de alimentos com a sua demanda; melhoria da pecuária; produção de algodão; pesquisas agronômicas; organização de cooperativas rurais; incentivos a fruticultura; conservação do solo, expansão da área e irrigação do São Francisco. Por sua vez, a sua política industrial foi direcionada para dar continuidade às diretrizes iniciadas pelo seu Primeiro Plano Diretor nos setores: o têxtil, produção de sal, oportunidades de investimentos na produção de mamona, óleos vegetais, curtume e a indústria siderúrgica. O setor de infraestrutura permaneceu como uma das metas prioritárias do Segundo Plano Diretor da SUDENE. O seu objetivo principal foi construir uma Rede Prioritária com recursos para investimentos em um sistema de estradas, como eixo de unificação das capitais da região e os centros de produção aos portos, de modo que, facilitasse o transporte de mercadorias do Nordeste para os Estados do Sul do país (SUDENE, 1966b). Mesmo, após o Golpe Militar em 1964, a SUDENE permaneceu ativa, porém o seu Segundo Plano Diretor foi interrompido. O posicionamento institucional da SUDENE foi rebaixado, passou de Autarquia que respondia somente a Presidência 65

Para o primeiro objetivo foram instituídas metas para apoio, em infraestrutura, financeira e orientação de aptidão, ao aluno que pretende avançar seus estudos ao nível superior. A SUDENE declarou seu incentivo à criação de novos cursos superiores de Agronomia, Veterinária e Engenharia, ampliando a oferta anual de 500 bolsas aos alunos. O segundo objetivo objetivou a reestruturação do ensino técnico científico através da ampliação de Institutos criados pela GOSUPI e expansão de vaga para a pós-graduação em universidade existente no Nordeste – Ceará, Recife e Bahia. Aperfeiçoamento do ensino e pesquisa no setor de Ciências Básicas (Física, Matemática e Química) como medida que antecede a criação de futuros Institutos. Melhoria do ensino da Universidade Rural de Pernambuco para a formação de docentes para Escolas Agrícolas de nível médio da região. Reequipamento e ampliação das Universidades nos setores que há maior demanda por pessoal (SUDENE, 1966b).

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

da República para agência confiada ao Ministério do Interior (MINTER). Nessas condições, o MINTER assumiu ao lado do recém-inaugurado Ministério Extraordinário para a Coordenação dos Organismos Regionais (MECOR) as responsabilidades relativas ao desenvolvimento regional (CARVALHO, 1988). Portanto, para Furtado (2009[1979]) o regime autoritário que foi instaurado a partir de 1964 retirou da SUDENE a sua excepcionalidade, a ação política. Apesar, de manter ativa essa instituição nos governos militares e serem formulados os seus Terceiro e Quarto Planos Diretores, ela foi esvaziada politicamente. Anteriormente, no período de 1959-64, a SUDENE foi uma instituição responsável pelo planejamento econômico regional, ou seja, os interesses do Nordeste ficaram acima dos interesses partidários dos governadores estaduais dessa região, membros que compuseram o Conselho Deliberativo da SUDENE. A prioridade dada a Política da SUDENE permaneceu central mesmo após a sucessão dos presidentes Kubitschek, Quadros e Goulart, atravessando os interesses particulares dos seus respectivos partidos políticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Questões que foram emergentes para o GTDN e nos dois primeiros Planos Diretores da SUDENE haviam sido escamoteadas pelo Terceiro e Quarto Planos Diretores. A restrita diversificação produtiva do Nordeste e a conservação da estrutura produtiva, liderada pela elite local excluiu a oportunidade de emergência de pequenos agricultores, o que determinou a permanência e expansão da monocultura no Nordeste. O estreitamento das relações comerciais com o Centro-Sul, associada à complementação da produção industrial do Nordeste aos insumos industriais produzidos com o Centro-Sul escapou a alternativa inicialmente proposta pelo GTDN, a de concluir o ciclo produtivo industrial no Nordeste. A proposta do relatório do GTDN de reorganização fundiária foi arquivada, a intervenção no Semiárido reforçou a concentração de investimentos em agricultura irrigada e na pecuária em pontos focais. O monopólio da cana na Zona da Mata foi reafirmado e a expansão da produção agrícola para as terras úmidas foi arquivada, os incentivos fiscais concedidos pelo mecanismo 34/18 foram concedidos em grande medida a empresários oriundos do Centro-Sul ou agricultores que faziam parte da elite nordestina (ARAÚJO, 2000).

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

Apesar das medidas propostas pelo Segundo Plano Diretor da SUDENE não terem sido colocadas em prática, esse documento apresentou uma importante questão em relação aos anteriores. O Segundo Plano Diretor da SUDENE reposicionou a questão social e pode ser afirmado que a compreensão do desenvolvimento nessa fase dessa instituição não se limitou ao crescimento econômico por intermédio de projetos industriais e infraestrutura. Avançou no sentido de formular medidas ousadas para a expansão da educação e treinamento de mão de obra no Nordeste. O aspecto do bem estar social, habitação, saúde, saneamento básico passou a ser determinado pela SUDENE como condição para o desenvolvimento. É possível apontar que a SUDENE, em seu Segundo Plano Diretor, fez uma inflexão na ideologia desenvolvimentista, apresentando a questão social não como consequência do crescimento econômico, mas como condição para alcançar o desenvolvimento. O protagonismo das diretrizes para o crescimento econômico nos Primeiro e Segundo Planos Diretores da SUDENE permaneceu, porém, não é possível deixar de apontar a emergência da questão social.

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GT8 – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

CARVALHO, F. (2011). SUDENE: Do desenvolvimento cepalino ao desenvolvimento endógeno. AMARAL, J. e CARRILLO, J. (org). Trajetórias de desenvolvimento local e regional: uma comparação entre a região Nordeste do Brasil e a Baixa Califórnia, México. Rio de Janeiro, RJ: E-papers. GOODMAN, D. e ALBUQUERQUE, R. Incentivos à Industrialização e Desenvolvimento do Nordeste. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1974. GUMIERO, R. G. Diálogo das teses do subdesenvolvimento de Rostow, Nurkse e Myrdal, com a teoria do desenvolvimento de Celso Furtado. São Carlos: UFSCar – Programa de Pós Graduação em Ciência Política (Dissertação de Mestrado), 2011. GTDN. Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste. Recife, 2ª ed, 1997. FURTADO, C. A operação nordeste. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1959. ______. A fantasia organizada (memórias). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ______. Brasil: a construção interrompida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ______. A Formação Econômica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ______. Discurso na cerimônia de instalação da Operação Nordeste (1959). In: O Nordeste e a saga da Sudene (1958-64). Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado / Editora Contraponto, 2009. ______. A luta pelo Nordeste e a estratégia da Sudene (1962). In: O Nordeste e a saga da Sudene (1958-64). Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado / Editora Contraponto, 2009. ______. Para o Nordeste: 15 anos perdidos (1979). In: O Nordeste e a saga da Sudene (1958-64). Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado / Editora Contraponto, 2009. LIMA, M. C. O Conselho Deliberativo da Sudene. In: O Nordeste e a saga da Sudene (1958-64). Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado / Editora Contraponto, 2009. OLIVEIRA, F. Elegia para uma Re(li)gião. Rio de Janeiro: Boitempo, 2008. SUDENE. Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste. Recife, 1966a. ______. Segundo Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste. Recife, 1966b.

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GT9 – SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO SUPERIOR E JUSTIÇA SOCIAL: UMA AVALIAÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO PELO PROUNI Cristina Fioreze66 Julio Cesar Godoy Bertolin67 Resumo: Na atualidade, um dos maiores desafios do Brasil é equilibrar crescimento econômico com justiça social. A educação superior tem se tornado, no âmbito da sociedade do conhecimento, força maior na construção de sociedades inclusivas. Nesse contexto, os indicadores de acesso à educação superior no início do século XX evidenciavam a realidade de um sistema elitista e injusto socialmente. Em 2002, apenas 5% dos jovens matriculados na educação superior pertenciam à classe D. Na última década, porém, políticas educacionais têm buscado responder aos desafios de ampliação do acesso e de geração de maior equidade no sistema. O Programa Universidade para Todos (Prouni) é, hoje, a maior dessas políticas, em que pesem as importantes críticas a respeito da privatização da educação que pode estar subjacente ao programa e sobre problemas de qualidade das IES privadas. O programa trata da oferta de bolsas de estudos por IES privadas, possibilitando o acesso à educação superior, com bolsas integrais ou parciais de 50%, a estudantes com renda familiar per capita de 0 a 3 salários mínimos, que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Iniciado no ano de 2004, até o ano de 2013 foram concedidas mais de 1 milhão de bolsas, o que demonstra a relevância de pesquisas capazes de mensurar os resultados do programa no que tange à promoção de justiça social. Entretanto, analisar o Prouni por uma perspectiva limitada de resultados quantitativos pode ser insuficiente. De acordo com a teórica Nancy Fraser, justiça social deve ser compreendida em uma perspectiva bidimensional, que agrega redistribuição e reconhecimento. Nesse sentido, o presente trabalho visa desenvolver uma avaliação do Prouni a partir da perspectiva bidimensional proposta pela autora e fazendo uso de levantamentos empíricos sobre a realidade dos bolsistas. Como resultados, foram encontradas evidências da presença de elementos de redistribuição e de reconhecimento no Prouni. Porém, a dimensão do reconhecimento pela via do programa é, ainda, um processo em construção, dada a realidade de elitismo e preconceito ainda presente na educação superior. Palavras-chave: Educação superior, Justiça Social, Prouni.

66

67

Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGS/UFRGS. Graduada em Serviço Social e Mestra em Educação. Professora do Curso de Serviço Social da Universidade de Passo Fundo. Email: cristinaf@upf.br. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestre em Ciência da Computação. Professor do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo. Email: julio@upf.br.

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GT9 – SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO

INTRODUÇÃO Nancy Fraser desenvolve uma análise das sociedades contemporâneas em que a justiça social abrange tanto a dimensão da distribuição, quanto a dimensão do reconhecimento. Nessas sociedades, a estratificação de classe, originada essencialmente em mecanismos econômicos, e a hierarquia de status, oriunda primordialmente da institucionalização de valores culturais, são entendidas pela autora como ordens de subordinação que estão mutuamente imbricadas. A cada uma corresponde um tipo analítico de injustiça: a má distribuição à estratificação de classe e o não reconhecimento à hierarquia de status. Para Fraser, nos dois casos o efeito é o mesmo, isto é, há a ofensa ao princípio da paridade de participação, pois obstrui-se a possibilidade de participação como igual na interação social. A noção de paridade de participação, centro normativo da teoria de Fraser, é tomada como princípio superior de justiça. Partindo do pressuposto de que todas as interações compartilham, ao mesmo tempo, da distribuição e do reconhecimento, a autora constrói o que chama de “dualismo perspectivo”, no qual inclui ambas as dimensões a partir de uma compreensão bidimensional, em que são consideradas a partir de sua mútua imbricação, sem que sejam reduzidas uma a outra. O enfoque do dualismo perspectivo, para Fraser, deve ser tomado como referência para a análise da justiça (ou não) de qualquer prática social. Tal enfoque, ao possibilitar que se pense de modo integrador, permite analisar se uma prática garante tanto as condições objetivas (ligadas à má distribuição) quanto as subjetivas (ligadas ao não reconhecimento) da paridade de participação. Fazendo uso da proposta analítica contida no dualismo perspectivo de Fraser, o presente artigo objetiva discutir o Prouni – Programa Universidade Para Todos –, política de expansão da educação superior brasileira através da concessão de bolsas de estudos em instituições privadas, em vigor no país desde o ano de 2004. Por meio do Prouni foram acessadas, somente no ano de 2012, 284.622 bolsas, o que significa uma ampliação em mais de 150% na quantidade de bolsas ofertadas desde a emergência do programa. A quantidade acumulada de bolsas concedidas até 2012 supera o número de um milhão. Isso demonstra o impacto do programa em um contexto marcado pelo comprometimento do país com a ampliação do número de

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matrículas no ensino superior, o que pode ser notado nos últimos Planos Nacionais de Educação. Para desenvolver o que se pretende, o texto parte de uma retomada da teoria social de Nancy Fraser, buscando demonstrar a construção do “dualismo perspectivo” como marco teórico de entendimento da justiça social. Em seguida, apresenta uma descrição do Prouni e, fazendo uso de levantamentos empíricos sobre a realidade dos bolsistas, realiza uma avaliação do impacto e do significado do programa no contexto da educação superior brasileira. E, por fim, o artigo desenvolve, com base na aplicação da perspectiva teórica de Fraser, uma reflexão que visa compreender o Prouni enquanto medida que se pretende orientada para a justiça social.

A BIDIMENSIONALIDADE DA JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER Nancy Fraser observa, no cenário atual, uma reorganização do discurso sobre a justiça social, o qual, historicamente centrado na luta por redistribuição, desloca-se para a esfera das lutas por reconhecimento. Neste cenário os dois tipos de reivindicação encontram-se dissociados e, não raro, apresentam-se como antíteses. A autora sustenta, porém, que não se trata de escolher entre redistribuição ou reconhecimento e, apesar das tensões nas relações entre os dois campos, defende que “na atualidade, a justiça exige tanto a redistribuição como o reconhecimento” (2006, p. 19). Então, Fraser desenvolve seu pensamento de modo a apresentar uma compreensão bidimensional das injustiças, demonstrando que, mesmo situações de injustiça de status, carregam consigo componentes distributivos, e vice-versa. Permite, assim, a compreensão de que redistribuição e reconhecimento não são categorias excludentes e que faz-se necessário integrar os aspectos emancipatórios de ambas. Em suas palavras, a tarefa consiste em “elaborar um conceito amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto as reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença” (2007, p. 103). A partir daí Fraser desenvolve uma concepção em que integra redistribuição e reconhecimento em um único marco normativo de referência, cujo núcleo se encontra na ideia de paridade de participação. Paridade seria “a condição de ser um igual, de estar a par com os demais, de estar em pé de igualdade”. Sua efetivação depende de, pelo menos, duas condições: uma objetiva, que trata da distribuição de

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GT9 – SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO recursos materiais “de modo que garanta a independência e a voz de todos os participantes”, e outra intersubjetiva, que se refere ao requerimento de que “os padrões institucionalizados de valor cultural expressem o mesmo respeito a todos os participantes e garantam a igualdade de oportunidades para conquistar a estima social” (2006a, p. 42). A paridade participativa, para a autora, é uma norma universalista, pois pressupõe o igual valor moral dos serem humanos. Deve ser tomada como critério para discernir as reivindicações justificadas das não justificadas, tanto por reconhecimento quanto por redistribuição. Independentemente de ser uma questão de distribuição ou reconhecimento, os reivindicantes devem mostrar que os arranjos atuais os impedem de participar em condição de igualdade com os outros na vida social. Os reivindicantes da redistribuição devem mostrar que os arranjos econômicos existentes lhes negam as necessárias condições objetivas para a paridade participativa. Os reivindicantes do reconhecimento devem mostrar que os padrões institucionalizados de valoração cultural lhes negam as condições intersubjetivas necessárias (2007, p. 125).

Da mesma forma, os demandantes devem demonstrar que as mudanças sociais que desejam – ou então “os remédios propostos contra a injustiça” – de fato promovem a paridade de participação. A paridade de participação é tomada, assim, como norma justificativa, que não pode se constituir por meio de uma decisão de cima. Ela só pode ser determinada dialogicamente e, ainda, tudo o que se postula como tal está sujeito a discussões. A paridade participativa representa, então, “a principal linguagem da razão pública, a linguagem mais adequada para desenvolver uma argumentação política democrática sobre problemas de distribuição e reconhecimento” (2006a, p. 48). Observa-se que o reconhecimento, na construção de Fraser, é concebido como uma questão de justiça, portanto relacionada com a moralidade e não com a ética. Para ela, “é injusto que a alguns indivíduos e grupos se negue o status de interlocutores plenos na interação social como consequência de padrões institucionalizados de valor cultural em cuja elaboração não tenham participado em pé de igualdade e que menosprezam suas diferenças ou as diferenças que os atribuem” (2006a, p. 36). A autora, ao invés de trabalhar a partir da ideia de reconhecimento como reconhecimento da identidade – que, para ela, é profundamente problemático – , propõe um análise alternativa, que chama de modelo de status, a partir do qual

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o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na interação social. O não reconhecimento, consequentemente, não significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como um igual na vida social. Reparar a injustiça certamente requer uma política de reconhecimento, mas isso não significa mais uma política de identidade. No modelo de status, ao contrário, isso significa uma política que visa a superar a subordinação, fazendo do sujeito falsamente reconhecido um membro integral da sociedade, capaz de participar com os outros membros como igual (2007, p. 107-108).

Com base no modelo de status, as reivindicações por reconhecimento “tratam de converter a parte subordinada em copartícipe plena da vida social [...] e pretendem desinstitucionalizar os padrões de valor cultural que impedem a paridade de participação” (2006a, p. 36). Diante dessa compreensão Fraser passa a questionar, a partir do paradigma da justiça: a justiça “exige o reconhecimento daquilo que é distintivo de indivíduos ou grupos, além e acima do reconhecimento da nossa humanidade comum? (2007, p. 120)”. Para responder, retoma a ideia da paridade participativa entendida como norma universalista em dois sentidos. “Primeiro, ela inclui todos os parceiros (adultos) na interação. E, segundo, ela pressupõe o igual valor moral dos seres humanos” (2007, p. 121). Buscando entender se “o reconhecimento do que é distintivo de indivíduos ou grupos pode ser exigido pela justiça como um elemento, entre outros, da condição intersubjetiva da paridade participativa”, sustenta um olha pragmatista, a partir do qual a(s) forma(s) de reconhecimento que a justiça exige em qualquer caso dado depende(m) da(s) forma(s) de não reconhecimento a serem compensadas. Nos casos em que o não reconhecimento envolve a negação da humanidade comum de alguns participantes, o remédio é o reconhecimento universalista; assim, a primeira e mais fundamental compensação para o apartheid sulafricano foi a cidadania universal “não-racializada”. Ao contrário, quando o não reconhecimento envolve a negação daquilo que é distintivo de alguns participantes, o remédio pode ser o reconhecimento da especificidade; desse modo, muitas feministas argumentam que a superação da subordinação de gênero requer o reconhecimento da capacidade única e distinta de as mulheres darem à luz. Em todo caso, o remédio deve ser moldado para o dano (2007, p. 121).

Os problemas de reconhecimento, ao tempo em que requerem este olhar pragmatista, são concebidos, no modelo de Fraser, como violação de justiça, o que facilita a articulação das reivindicações de reconhecimento com as de redistribuição. Nas palavras da autora, o modelo que propõe, “recusando o alinhamento tradicional do reconhecimento à ética, [...], o alinha à moralidade. Desse modo, o modelo de

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GT9 – SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO status permite que se combine reconhecimento com redistribuição – sem sucumbir à esquizofrenia filosófica” (2007, p. 110). Nessa linha de pensamento, Fraser procura descrever a sociedade contemporânea de modo a apreender, de um lado, a diferenciação de classe social e de status, e de outro, a sua inter-relação. A classe social é entendida como uma ordem objetiva de subordinação, enquanto o status, uma ordem intersubjetiva de subordinação. Então, “dizer que uma sociedade tem uma estrutura de classes é dizer que institucionaliza mecanismos econômicos que negam de forma sistemática a alguns de seus membros os meios e as oportunidades que necessitam para participar na vida social em pé de igualdade com os demais [e] dizer que uma sociedade tem uma hierarquia de status é dizer que institucionaliza padrões de valor cultural que negam por completo a alguns membros o reconhecimento que necessitam para participar plenamente na interação social” (2006a, p. 52). Uma estrutura de classes e/ou uma hierarquia de status é um obstáculo para a paridade participativa, sendo, portanto, uma injustiça. Diante disso, Fraser propõe o enfoque do “dualismo perspectivo”, cujo fundamento é uma concepção bidimensional em que reconhecimento e distribuição são “duas dimensões mutuamente irredutíveis da, e perspectivas sobre, a justiça” (2007, p. 123). Nesse enfoque, o reconhecimento errôneo é analisado, em primeiro lugar, por seu caráter social, ou seja, como uma questão de subordinação de status, buscando-se identificar sua consequência social, qual seja, “a constituição de algumas classes de pessoas como membros não plenos da sociedade de maneira que lhes impeça de participar como iguais” (2006b, p. 166). A má distribuição, por sua vez, é analisada como a institucionalização de mecanismos econômicos que negam a alguns os meios e as oportunidades para participar na vida social em pé de igualdade com os demais. O dualismo perspectivo permite, nas palavras da autora, uma teoria moral socialmente pertinente, a partir da qual se estabelece que tudo o que “mereça o título de injustiça viola um único princípio: o princípio da paridade participativa” (2006b, p. 166). A autora demonstra que, com o enfoque que propõe, se pode avaliar a justiça de qualquer prática social questionando-se: “a prática em questão serve para garantir tanto as condições objetivas como as subjetivas da paridade participativa, ou as debilita?” (p. 63-64). Em certas situações, remédios para a má distribuição impulsionam problemas de reconhecimento, ou o contrário. O dualismo perspectivo 112


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permitiria prever e, em alguma medida, evitar, estas dificuldades práticas, pois leva a que se pense de modo integrador na medida em que entende que nenhuma das duas dimensões “pode reparar-se por completo com independência da outra” (2006a, p. 66). No presente artigo pretende-se analisar o Prouni à luz do enfoque teórico proposto por Fraser. Para tanto, na próxima seção tratar-se-á de realizar uma breve apresentação do programa, contextualizando-o no cenário da educação superior brasileira.

O PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS - PROUNI A educação superior no Brasil vem experenciando, de acordo com Dias Sobrinho, “uma grande expansão quantitativa, mais claramente iniciada nos anos 1970, com notável aceleração nos últimos dez anos” e marcada pela ampliação do setor privado. “Dos 425.478 estudantes matriculados em cursos superiores em 1970, cerca de 51% frequentavam instituições privadas. Essa proporção, em 2009, foi muito maior: de um total de 2.281 IES68 e 4.880.381 estudantes, eram privadas 89% das instituições e 74,5% das matrículas” (2011, p. 143). Nesse processo ganha expressão o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001, que estabeleceu, entre os objetivos e metas para a educação superior, “prover, até o final da década, a oferta de educação superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos” (PNE, 2001). Cabe destacar, todavia, que os dados do IBGE de 200969 demonstram que, neste ano, a taxa líquida de matrícula atingiu os 13%, muito aquém do previsto pelo PNE para o ano de 2010 (DIAS SOBRINHO, 2011, p. 138). Já o novo Plano Nacional de Educação, para o período 2011-2020, definiu como meta “elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta”. Nesse cenário de expansão, dentro do escopo das políticas voltadas para a ampliação do acesso, destaca-se o Programa Universidade para Todos (Prouni), que trata da oferta de bolsas de estudos nos cursos de nível superior oferecidos pelas IES privadas, lucrativas ou sem fins lucrativos. O Prouni foi criado no ano de 2004, pela Medida Provisória nº 213/2004, e institucionalizado em forma de lei em 2005 – Lei nº 68 69

Instituições de Ensino Superior. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD, 2009).

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11.096/2005. As IES que aderem ao Prouni, em troca, ficam isentas de um conjunto de impostos, o que permite compreender o programa como uma medida de investimento de recursos públicos na educação superior. O programa possibilita o acesso à educação superior, com bolsas de estudos integrais ou parciais de 50%, a estudantes com renda familiar per capita de zero a três salários mínimos, que cursaram o ensino médio em escolas públicas ou em escolas privadas na condição de bolsistas. Na distribuição das bolsas, as instituições devem reservar percentual para estudantes portadores de deficiência e autodeclarados indígenas e negros, na mesma proporção de cidadãos autodeclarados indígenas, pardos ou pretos segundo o último censo, no respectivo estado. A nota do Enem é utilizada para a seleção dos estudantes no acesso às bolsas ofertadas. De acordo com a lei que instituiu o programa, as instituições que a ele aderem devem disponibilizar bolsas nas turmas iniciais de todos os cursos e turnos efetivamente instalados. Isso significa que o acesso às graduações mais competitivas e prestigiosas também passa por um processo de democratização. A pesquisa de Carvalho (2006), ao trabalhar com os dados de 2004 sobre o perfil dos estudantes no ensino superior brasileiro, demonstra que a proporção de alunos na faixa etária entre 18 e 24 anos aumenta conforme as rendas mais elevadas, sendo que “nas faixas acima de três salários mínimos, a proporção de estudantes é superior a 35%” e com renda de até um salário mínimo, “apenas 1,5% frequenta a graduação”. Como salienta a autora, “86% da população nessa faixa etária enquadrase nos níveis de renda de menos de três s.m., público-alvo do PROUNI” (p. 992). Os dados corroboram a compreensão de que o acesso à educação superior no Brasil cumpriu um percurso elitizado, verdade que ainda persiste, em que pesem as iniciativas de democratização contidas nos programas de expansão, que além do Prouni contam com o Reuni e as recentes políticas de cotas. Histórica e tradicionalmente, o mérito é utilizado como meio legítimo de acesso à educação superior no país, via vestibular. A (aparentemente) simples equação quanto maior o mérito, maiores as chances de ingresso nos melhores cursos e instituições, esconde equívocos importantes. O argumento do mérito mostra-se incoerente em um país com índices de desigualdade como os do Brasil, em que se apresenta um verdadeiro apartheid educacional quando a qualidade da educação básica oferecida pela rede privada é comparada com aquela oferecida pela rede pública. Para Carvalho (2007,

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p. 2), o discurso do mérito acadêmico nos distancia do debate sobre o direito à educação para todos os segmentos sociais e étnico/raciais”. Desse modo, pode-se afirmar que o ingresso pela via do mérito, materializado no vestibular como processo seletivo por excelência, mostra-se elitizado e frágil quando o que se pretende é a expansão do acesso de modo instaurar processos corretivos, pautados na perspectiva da equidade, que levem em conta injustiças históricas e desigualdades estruturais presentes na realidade nacional. Discutindo a equidade na educação superior, Dias Sobrinho afirma: A equidade é um princípio ético, ou valor, cuja aplicação deve gerar a igualdade social ou, ao menos, diminuir o quanto possível as desigualdades. Do ponto de vista da equidade, o primordial esforço do Estado e da sociedade haveria de ser interromper o círculo vicioso da desigualdade socioeducativa, mediante políticas públicas e ações de diversos tipos que produzam o círculo virtuoso que assegure amplas oportunidades de escolarização qualificada. Dada a impossibilidade de em curto espaço de tempo universalizar a educação superior numa sociedade historicamente tão injusta e desigual, como a brasileira, o princípio da equidade recomenda ações específicas em prol do atendimento das camadas mais pobres (2011, p. 128).

Com base nessa referência, pode-se dizer que o Prouni, na medida em que considera critérios de renda, raça e a questão da deficiência de forma combinada com o mérito mensurado pela nota no Enem, coloca-se como ação específica no atendimento das camadas mais empobrecidas da população e, nesse sentido, promove a equidade de acesso. Os dados do Prouni permitem observar, entre os anos de 2005 e 2012, uma ampliação em mais de 150% no número de bolsas ofertadas. Em 2005 foram destinadas 112.275 bolsas, enquanto que em 2012 esse número subiu para 284.622. Das bolsas distribuídas no país no ano de 2012, verifica-se que 53% são integrais e 47% parciais. O total acumulado de bolsas, em 2012, já superava o número de 1 milhão. Cabe destacar, também, no âmbito do Prouni, a instituição da Comissão Nacional de Acompanhamento e Controle Social do Prouni (CONAP). Ainda que de caráter consultivo, a CONAP é formada por representantes de discentes, de docentes, da sociedade civil organizada, de dirigentes de IES e do Ministério da Educação, com funções de recebimento de denúncias e de exercício do acompanhamento e controle social do programa. Do mesmo modo, em âmbito local estão previstas as Comissões Locais de Acompanhamento e Controle Social do Prouni, a serem instituídas pelas IES participantes do programa e formadas por representante discente, docente, de

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dirigente da instituição e da sociedade civil, com as funções de acompanhar o processo de instalação do programa nas IES, emitindo relatório de acompanhamento do Prouni nos processos seletivos. Desde a emergência do programa, em 2004, até hoje, algumas pesquisas empíricas foram desenvolvidas buscando compreender o processo de inclusão do estudante bolsista na educação superior. Tais estudos, em grande parte, tematizam sobre a percepção dos alunos no que tange a sua condição de bolsistas. As pesquisas de Anhaia (2012) e de Oliveira, Contarine e Cury (2012), evidenciam o significado, para os entrevistados, do programa como a possibilidade de acesso à educação superior, sem o qual tal acesso estaria interditado. Nesse sentido, destaca-se como emblemática a fala que segue, na qual a oportunidade produzida pelo Prouni é associada ao “direito de sonhar”. “O Enem foi, para mim, uma porta de entrada, para fazer uma boa faculdade, gratuitamente, isso me fez sonhar de novo, cursar o ensino superior [...]” (Aluna de Publicidade e Propaganda apud OLIVEIRA, CONTARINE e CURY, 2012, p. 55). Os depoimentos constantes na pesquisa de Anhaia também demonstram essa dimensão, deixando evidente o empoderamento decorrente do acesso ao programa: [Nos sentimos] orgulhosos, tanto eu quanto a minha família de eu poder estudar... Eu acho que uma das coisas mais legais, assim, é quando tu chega num lugar e perguntam o teu grau de instrução, daí tu fala: ‘Superior em andamento’. [...] [E, além disso,] Eu sou mulher, sou jovem, sou negra. Então, quando tu está num espaço – dependendo do espaço que tu está – quando tu diz que está fazendo um curso superior, as pessoas já tendem a te tratar de uma outra forma, né? [...] (Relato de uma bolsista do curso de Serviço Social apud ANHAIA, 2012, p. 13). Mudou a perspectiva que eu tenho do futuro. Antes eu pensava em simplesmente me formar no que desse pra já tentar um futuro melhor pra mim. Fui fazer Direito, pensando em me formar, mas não era uma coisa que eu seria feliz. Hoje eu já penso, vou me formar, ter um futuro melhor, ajudar os meus familiares a ter melhores condições, tipo minha irmã, meu irmão. Mais principalmente naquilo que eu gosto. (Relato de um bolsista do curso de Medicina apud ANHAIA, 2012, p. 13).

As pesquisas também demonstram, contudo, a existência de um sentimento de discriminação vivido pelos bolsistas. Oliveira, Contarine e Cury (2012) trazem a fala de um estudante a respeito da questão: Senti certa discriminação, pois em algumas decisões da turma, alguns falavam: “vocês não pagam e não têm de reclamar de professor” etc. Mas falei que tinha direito de participar e querer um ensino bom. Fora isso, não tive mais problemas. Os professores são amigos, compreensivos e

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incentivadores do nosso desempenho (Egressa de Serviço Social apud OLIVEIRA, CONTARINE e CURY, 2012, p. 59).

O estudo de Anhaia (2012) também aborda a discriminação sofrida pelos alunos bolsistas: Quando eu entrei aqui [em 2005], tinha gente que desmerecia o ENEM. Porque eu não entrei pelo vestibular, falavam como se eu tivesse entrado na universidade pela porta de trás. E isso não tem nada a ver porque a densidade [candidato/vaga] que eu enfrentei pra conseguir a bolsa foi muito maior no ENEM do que aquela que eles enfrentaram no vestibular. (Relato de um bolsista do curso de Medicina apud ANHAIA, 2012, p. 14). Mais de uma vez eu pensei em desistir. Não porque eu não tenha capacidade, sou muito esforçado e tenho bom desempenho, mas por conta de situações como essa [de discriminação] eu fico me perguntando se aqui é realmente o meu lugar (Relato de um bolsista do curso de Direito apud ANHAIA, 2012, p. 16).

Partindo da tematização do Prouni enquanto política de expansão do acesso à educação superior, pode-se discutir a respeito de sua efetividade como medida voltada à justiça social, essa entendida nos termos de Nancy Fraser. Desse modo, na próxima seção pretende-se desenvolver a problematização do programa com base em categorias analíticas fornecidas por Fraser, o que permitirá a compreensão do Prouni a partir de tal referencial.

APLICANDO A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL DE NANCY FRASER AO PROUNI Tomando como referência o dualismo perspectivo de Fraser, pode-se formular a seguinte questão quando se objetiva a análise do Prouni enquanto medida orientada para a justiça social: o programa garante tanto as condições objetivas como as subjetivas da paridade participativa, ou as debilita? Nessa direção, pode-se perguntar: quais são as condições objetivas, referentes a distribuição de recursos materiais, e as condições intersubjetivas, referentes aos padrões institucionalizados de valor cultural, que o programa pretende reparar? Quais os elementos da estrutura de classes e da hierarquia de status que obstaculizam a participação como par, que o Prouni pode superar? Quais os aspectos do programa que permitem apontar para a materialização de tal superação? Para responder a essas questões se faz necessário identificar as dimensões da redistribuição e do reconhecimento presentes no programa, estabelecendo-se como referência a ideia de paridade de participação. 117


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Parte-se, para tanto, da dimensão da redistribuição. Nesse sentido, pode-se avaliar que o Prouni, na medida em que estabelece critérios de renda para o ingresso no programa, permite o acesso à educação superior a pessoas de baixa renda, que não teriam condições de acessá-la, ou, então, teriam chances muito reduzidas para tal. O ensino superior produz, como efeito, uma ampliação significativa na renda das pessoas, funcionando como um instrumento de redistribuição de renda e, portanto, de redução das disparidades sociais. Nesse sentido, dados recentemente divulgados pelo IBGE (2013) demonstram que, no Brasil, pessoas com formação em nível superior tem rendimento 219,4% acima das pessoas sem nível superior 70. Trata-se de uma tendência observada em nível mundial, que demonstra que cursar a educação superior gera expectativas reais de incremento na renda familiar daqueles que a acessaram. Outro aspecto que evidencia o caráter redistributivo contido na proposta do Prouni diz respeito à aplicação de verbas públicas (por meio da isenção de impostos) na garantia de vagas na educação superior para pessoas oriundas de famílias de baixa renda. Predominantemente, as vagas nas instituições públicas estatais são ocupadas por estudantes oriundos de famílias com maior poder aquisitivo, que puderam pagar por boas escolas e cursinhos pré-vestibulares. Diante disso, o Prouni parece gerar um processo corretivo no que tange à distribuição do recurso público na educação superior, contribuindo para a equidade no acesso a este nível de ensino. Cabe ainda destacar as medidas que visam garantir, para além do ingresso, a permanência do estudante bolsista na educação superior. Há, nesse sentido, a Bolsa Permanência, do governo federal, que é um benefício mensal aos estudantes contemplados com bolsa Prouni de 100%, matriculados em cursos presenciais integrais. Observa-se, no entanto, que são critérios bastante restritivos. Também, algumas IES já estão investindo em programas próprios de permanência de bolsistas, de forma ainda tímida, todavia. Essas medidas contribuem para que, além da equidade de acesso, o Prouni garanta condições para a equidade de resultados71.

70 71

Notícia divulgada no site do IBGE, em 24 de maio de 2013. “Equidade de resultados está ligada a medidas de apoio e acompanhamento para ajudar os alunos que têm maiores dificuldades, principalmente se estas forem de origem socioeconômica” (MOROSINI; FELICETTI, 2009, p. 12).

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Diante do exposto, pode-se inferir que o Prouni, ao constituir-se em modalidade de investimento público para a criação de condições de participação da população de baixa renda na educação superior: a) provoca um processo corretivo no que tange aos gastos públicos com educação superior, direcionando investimentos para as camadas mais empobrecidas da sociedade, contribuindo objetivamente para sua participação neste nível de ensino; b) possibilita o acesso de pessoas de baixa renda na educação superior, que de outra forma não teriam (ou pouco teriam) condições de acessá-la, promovendo uma redução na reprodução das desigualdades do sistema educacional; c) amplia, por meio do investimento em programas de permanência, as possibilidades de conclusão de curso para os estudantes bolsistas, democratizando o acesso às profissões de nível superior, inclusive aquelas consideradas mais elitizadas; d) potencializa o incremento da renda familiar para os bolsistas concluintes, promovendo assim a ampliação dos níveis de mobilidade social no âmbito das camadas mais empobrecidas. Pode-se afirmar, portanto, que na dimensão da redistribuição o Prouni contribui para que se assegure independência e voz aos sujeitos, ao excluir “formas e níveis de desigualdade material e dependência econômica que impedem a paridade de participação”. Assim, evita que se perpetuem arranjos sociais que institucionalizam grandes disparidades de renda, que negam a alguns “os meios e as oportunidades de interagir com outros como parceiros” (FRASER, 2007, p. 119). Contudo, seguindo a trilha de Nancy Fraser, percebe-se que políticas exclusivamente redistributivas não conseguem responder suficientemente as injustiças sociais próprias da sociedade capitalista contemporânea, as quais, de caráter bidimensional, apresentam também a esfera do não (ou do falso) reconhecimento. Fraser entende redistribuição e reconhecimento como interligados, porém, chama a atenção para a independência que ambas as esferas apresentam entre si. Nesse sentido, cabe então buscar compreender os aspectos de reconhecimento contidos na proposta do Prouni. O reconhecimento, em Fraser, não está relacionado à identidade, mas, sim, à condição dos sujeitos como parceiros integrais na interação social. Diz respeito ao direito à participação das pessoas como iguais na vida social, dada a humanidade comum a todos os indivíduos. O não reconhecimento significa subordinação de status 119


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no sentido de ser privado de participar como um igual na vida social. Portanto, se a alguém não é reconhecido o direito de participar como igual, cabe a reparação, fazendo-se necessária, então, a superação da subordinação de modo que sejam removidos obstáculos decorrentes de padrões de valor cultural que não permitem a todos a participação plena na interação social. O Prouni, pode-se analisar, busca reparar a subordinação de determinados grupos sociais que, por padrões de valores culturais institucionalizados, não são reconhecidos como iguais e, por isso, tem menores chances de acesso à educação superior. Nessa direção, o programa visa possibilitar o acesso a esse nível de ensino a pessoas em situação de pobreza, que estudaram em escolas públicas. As injustiças vivenciadas

pelas

populações

pobres

apresentam

uma

natureza

material

inquestionável. Contudo, possuem também um viés cultural, ou seja, uma natureza simbólica72. Para Fraser, “A construção de um apoio amplo à transformação econômica exige questionar atitudes culturais de desprezo às pessoas pobres e trabalhadoras, como por exemplo, as ideologias da ‘cultura da pobreza’ que apontam que os pobres tem o que merecem” (2006a, p. 31). O estigma relacionado à condição de pobreza é, então, elemento que coloca os sujeitos em desvantagem no que tange às condições intersubjetivas de participação, ou seja, o modo como as pessoas pobres são notadas no contexto social revela que não estão em pé de igualdade como os demais. Observa-se,

então,

que

o

Prouni

busca

possibilitar

a

indivíduos

estigmatizados pela pobreza o acesso a um nível de educação formal (o superior) que estava vedado à população de baixa renda devido ao lugar que, culturalmente, ocupa, aspecto que vai além da questão material e econômica. Nessa direção, percebe-se ainda um importante elemento de superação da hierarquia de status quando o programa oportuniza acesso a cursos de graduação tradicionalmente elitizados, cujas vagas, tanto nas instituições públicas quanto nas privadas, costumam ser ocupadas pelos jovens oriundos de famílias com maior poder aquisitivo, que puderam custear uma educação básica de melhor qualidade, bem como cursinhos pré-vestibulares. A oferta de bolsas nesses cursos contribui para a reversão de um quadro social caracterizado pelo favorecimento a determinados grupos sociais nas carreiras mais

72

Segundo Fraser, “os danos de status que se originaram como subprodutos da estrutura econômica podem ter desenvolvido desde então uma vida própria” (2006a, p. 31).

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GT9 – SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO rentáveis. Portanto, colabora para viabilizar, no espaço da educação superior – e, consequentemente, no mercado das profissões –, a participação em condição de igualdade da população estigmatizada culturalmente pela pobreza. Outro viés analítico envolve a compreensão de que, para além da questão do estigma social gerado pelo desprestígio da condição de pobreza, o Prouni opera no sentido da garantia de cotas para pessoas com deficiência, negros e indígenas (de acordo com o percentual de cidadãos assim declarados no último censo, em âmbito estadual). Nesse sentido, o programa posiciona-se de modo a amplificar as condições de paridade de participação de grupos sociais historicamente subordinados em decorrência de processos de discriminação racial e social. Sobre este aspecto, importa destacar que, no Brasil, as desigualdades de renda e a discriminação racial andam, pode-se dizer, de mãos dadas. Ou seja, há a coincidência da participação de populações negras e indígenas vivendo em realidades de pobreza e de baixo prestígio social. Nesse cenário, faz sentido a adoção de políticas que combinem critérios de renda com critérios raciais, como é o caso do Prouni, o que significa conciliar redistribuição com reconhecimento. Mais um aspecto do reconhecimento contido na implementação do Prouni trata da compreensão de que o mesmo estabelece um processo republicano, com critérios públicos e objetivos para a concessão de bolsas de estudos. Ou seja, muitas IES, em especial aquelas caracterizadas como filantrópicas, já trabalhavam com a concessão de bolsas de estudos antes mesmo da adesão ao programa. Contudo, operava-se com critérios definidos internamente e pouco claros, que abriam margem para situações de favorecimento e/ou exclusão. Com a instalação do programa nessas instituições e nas demais IES de direito privado que assinaram o termo de adesão, o acesso às bolsas se viabiliza por meio de critérios objetivamente estabelecidos e por um processo impessoal, o que reforça a lógica do acesso à bolsa como direito e não como favor. Ainda analisando a perspectiva do reconhecimento, observa-se, com base em relatos de bolsistas, o empoderamento decorrente do acesso à educação superior, o que pode ser compreendido como uma condição intersubjetiva da paridade de participação. Ao mesmo tempo, todavia, o preconceito e a discriminação vivenciados por estudantes bolsistas são um dado da realidade que permite supor que, talvez, as condições de participação efetiva como igual, nos termos de Fraser, ainda estejam em processo de construção nas instituições que acolhem os beneficiários do 121


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programa. Ou seja, a superação da subordinação de status não é dada como decorrência imediata da garantia das condições objetivas e materiais viabilizadas pelo ingresso na educação superior, apresentando-se como algo mais complexo a se alcançar. O reconhecimento é, ainda, uma caminhada em processo. Isto posto, é plausível afirmar que o Prouni, na medida em que trabalha com critérios públicos para a concessão de bolsas de estudos em IES de direito privado, possibilitando o acesso à educação superior, inclusive aos cursos que correspondem às carreiras mais prestigiosas, a grupos sociais desfavorecidos economicamente, combinando o fator racial e a questão da deficiência com a renda: a) estabelece critérios universais e objetivos para a concessão das bolsas de estudos, impessoalizando o processo e favorecendo que o acesso seja construído na forma de direito e não como benesse ou favor; b) contribui para superar a hierarquia de status e a subordinação cultural e simbólica a que estão submetidos os grupos sociais empobrecidos, colaborando para que se tornem parceiros integrais na vida social; c) favorece a superação da subordinação de status relacionada à exclusão racial, fortemente ligada à questão econômica, bem como a subordinação de status decorrente das injustiças vivenciadas pelas pessoas com deficiência; d) consubstancia, junto aos estudantes bolsistas, um processo de empoderamento, o qual decorre de acesso à educação superior por jovens oriundos de contextos sociais suscetíveis a discriminação e preconceito; e) evidencia, por meio das situações de preconceito vivenciadas por bolsistas, que o processo de inclusão gerado pelo programa produz, também, desconforto naqueles que detinham para si (e seus grupos) o acesso à educação superior como elemento de distinção social e, portanto, de manutenção de uma ordem hierárquica, demonstrando que a dimensão do reconhecimento pela via do Prouni é, ainda, um processo em construção. Finalmente, aspecto que chama a atenção na proposta do Prouni e que merece destaque pelo potencial que representa, diz respeito às Comissões (Nacional e Locais) de Acompanhamento e Controle Social do programa. São espaços de representatividade dos estudantes bolsistas e dos demais grupos implicado no processo, em que existe a possibilidade da participação, da fala, do diálogo, da negociação coletiva.

Ou seja, trata-se de lugares de discussão acerca das

percepções dos diretamente envolvidos no Prouni sobre padrões institucionalizados 122


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de valor cultural, bem como sobre proposições para o programa, no sentido da construção da paridade participativa. Analisando a parir da ótica de Fraser, percebese nessas comissões, em especial as locais, potência para a constituição de espaços dialógicos de discussão e negociação, em que a paridade de participação pode acontecer como “a linguagem mais adequada para desenvolver uma argumentação política democrática sobre problemas de distribuição e reconhecimento” (FRASER, 2006a, p. 48).

CONCLUSÃO O artigo propôs-se a discutir o Prouni à luz da teoria de Nancy Fraser, que procura articular, em um único marco referencial, redistribuição e reconhecimento. Para Fraser, a justiça social envolve tanto redistribuição como reconhecimento, que se inter-relacionam, apesar de manterem certa independência entre si. O centro normativo dessa concepção bidimensional da justiça da autora encontra-se na ideia de paridade de participação, que diz respeito ao direito de todos de participarem como iguais na interação social. Para Fraser, a justiça de qualquer prática social pode ser avaliada por meio da dualidade perspectiva. Este enfoque, ao possibilitar que se pense de modo integrador, permite analisar se uma prática garante tanto as condições objetivas (ligadas à má distribuição) quanto as intersubjetivas (ligadas ao não reconhecimento) da paridade de participação. Ancorado neste enfoque, o artigo buscou analisar o Prouni, partindo, para tanto, de uma descrição sobre as principais características do programa. Nesse sentido, observa-se o Prouni como importante política de expansão do acesso à educação superior em IES de direito privado, via investimento de recursos públicos por meio da isenção fiscal. O programa é destinado a egressos de escolas públicas (ou privadas, na condição de bolsistas) e apresenta critérios de renda para acesso. Há, ainda, vagas reservadas para pessoas com deficiência, negros e indígenas. A análise desenvolvida sobre o Prouni permitiu compreendê-lo a partir da perspectiva bidimensional de Fraser, identificando-se elementos de redistribuição combinados com elementos de reconhecimento presentes na proposta do programa.

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Quanto à dimensão redistributiva, evidencia-se que a proposta propicia um processo corretivo no que tange ao investimento de recursos públicos na educação superior, uma vez que o Prouni viabiliza o acesso a jovens oriundos de famílias de baixa renda neste nível de ensino. Assim, o programa contribui para a redução das disparidades econômicas, ampliando as expectativas futuras de incremento na renda dos bolsistas, o que se dá em razão da possibilidade de formação no nível superior. Observa-se, então, que o Prouni contribui para que se assegure independência e voz aos sujeitos, superando obstáculos materiais e econômicos que impedem a participação de alguns como parceiros plenos da sociedade. De modo complementar, a dimensão do reconhecimento pode ser identificada quando o Prouni contribui na superação do processo de reprodução de uma hierarquia estabelecida entre elites e classes populares, onde o acesso à educação superior, em especial em cursos mais tradicionais, é tido como um bem exclusivo dos grupos sociais dominantes. Da mesma forma, o programa estabelece critérios universais para a concessão das bolsas de estudos, impessoalizando o processo e possibilitando que o acesso seja construído na forma de direito e não como benesse ou favor. Observase, ainda, a dimensão do reconhecimento quando o programa favorece a superação da subordinação de status relacionada à exclusão racial, fortemente ligada à questão econômica, bem como a subordinação de status decorrente das injustiças vivenciadas pelas pessoas com deficiência. Restam evidentes, todavia, aspectos contraditórios no que tange à construção de um processo de reconhecimento a partir do Prouni. De um lado, se percebe o empoderamento gerado pelo acesso ao programa. Em contraposição, observa-se o preconceito vivenciado por aqueles que adentraram a educação superior por meio do Prouni. Os dois aspectos coexistem, demonstrando que se trata de um processo instituinte que, por sua própria natureza, ao tensionar hierarquias historicamente arraigadas na estrutura social do país, produz contradições. Cabe ainda destacar o potencial contido na proposta de criação das Comissões nacional e, em especial, locais, de Acompanhamento e Controle Social do Prouni, como espaços dialógicos de discussão e negociação, em que pode predominar a linguagem da paridade de participação. Diante do exposto, na tentativa de responder à questão inicialmente colocada – o Prouni garante tanto as condições objetivas como as intersubjetivas da paridade participativa, ou as debilita? –, a resposta, apesar de complexa, tende a ser positiva. 124


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Em que pese a compreensão de que a experiência do preconceito pela qual os bolsistas estão sujeitos é aspecto a ser superado, pode-se afirmar que o Prouni é uma experiência que mostra correspondência com a tese de Fraser de conciliação entre reconhecimento e redistribuição.

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OS INVISÍVEIS ENTRE OS INVISIBILISADOS: CATADORES E CLUBES DE TROCA E O DESAFIO DA SOLIDARIEDADE Magda Luiza Mascarello73 Maria Izabel Machado74

Resumo: Desde a década de 80 tem-se assistido a emergência de inúmeras inciativas e empreendimentos de geração de renda e redução da pobreza. Entre essas experiências encontram-se as alocadas no campo da Economia Solidária compreendendo empreendimentos que partilham de um determinado conjunto de princípios e valores, entre eles o respeito aos saberes, a relações horizontais de poder através da autogestão e distribuição equitativa dos recursos. Na medida em que se expande o leque de iniciativas algumas se destacam ganhando notoriedade em função do potencial humano e financeiro que mobilizam, em especial cooperativas de crédito e agrícolas. Contudo, ainda no bojo dos empreendimentos solidários, há um conjunto de iniciativas relegadas à invisibilidade, em especial Clubes de Troca e Cooperativas de Catadores de Materiais Recicláveis, sobre os quais há poucos estudos ou mesmo referências na literatura especializada sobre o campo. Nesse sentido nos perguntamos sobre os processos engendrados nessa dupla invisibilização: são grupos que estão fora do mercado formal de trabalho e à margem dos empreendimentos considerados suficientemente relevantes para reivindicar recursos e políticas públicas. Qual seria o lugar social sobre o qual se inscreve o trabalho produzido por esses agentes? Quais os impactos objetivos e subjetivos dessa dupla invisibilização? A partir de levantamentos empíricos se pretende problematizar questões acerca de conceitos como trabalho, gênero e desigualdade. Palavras-chave: Economia Solidária, Catadores, Clubes de Troca, Mapeamento INTRODUÇÃO Assiste-se nos últimos anos a um significativo aumento na produção bibliográfica acerca da chamada Economia Solidária. Certamente em virtude da multiplicação de iniciativas alocadas no rol de empreendimentos que se aproximam de princípios como autogestão e equidade na divisão de resultados. Assim como se multiplicam experiências também se amplia o leque de perspectivas interpretativas sobre elas. Os recortes possíveis, assim como o fazer científico de maneira geral, são contingentes, invariavelmente privilegiam determinados aspectos em detrimento de outros. O que se percebe, no entanto, revisando parte da literatura sobre o campo tida

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Mestranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS – UFPR) Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS – UFPR)

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como consensual é que esta tem produzido invisibilizações significativas, sobretudo no tocante a grupos de pouca expressividade econômica como Catadores e Clubes de troca. No caso dos Clubes de Troca sobrepõe-se ainda a variável complexificadora “gênero”, que permite problematizar dados dos recentes mapeamentos realizados em escala nacional sobre os Empreendimentos Solidários e seus participantes. Nesse sentido pretendemos com o artigo chamar a atenção para os desafios inerentes à construção e consolidação do campo teórico em torno da Economia Solidária, em especial ao risco de, na tentativa de consolidar conceitos e o próprio campo, reproduzirmos lógicas e dinâmicas excludentes. Para isso trataremos na primeira parte de algumas abordagens teórico metodológicas em torno da Economia Solidária e seguiremos com uma análise dos mapeamentos de Empreendimentos Solidários e suas implicações.

ABORDAGENS E SEUS RECORTES Assim como se multiplicaram as iniciativas conhecidas como economia solidária, multiplicaram-se também a produção teórica e a reflexividade sobre elas. A literatura sobre economia solidária, seja ela nas ciências sociais ou outras áreas de conhecimento, ora de teor mais normativo militante, ora mais institucional e empírico, ora ainda com caráter filosófico e generalista, apresenta uma construção conceitual que passa por múltiplas interpretações, com variações significativas em sua delimitação tanto semântica, quanto hermenêutica. Em inúmeros casos, inclusive, militância e academia se interpenetram e confundem, produzindo certa teorização que imprime um novo conjunto de normas na construção de sentidos de práticas cotidianas dos diferentes agentes da economia solidária, dentro e fora da academia. Da perspectiva metodológica às práticas, as experiências solidárias são normalmente classificadas em três categorias: empreendimentos, que são os grupos de produção, consumo e/ou crédito; assessoria, geralmente militantes pertencentes às entidades de apoio aos empreendimentos, em sua maioria ONGs e universidades; e gestores públicos, os técnicos e profissionais que estão na condução das políticas públicas de economia solidária em municípios e estados. Alguns autores têm destacado a importância de se conhecer a trajetória das pessoas engajadas na economia solidária e o processo de socialização dos seus

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participantes nas diferentes instâncias. Um olhar atento sobre estes permite perceber diferentes perspectivas e interpretações dos agentes e sua inserção no campo em suas múltiplas variações. Bertucci (2010), por exemplo, identifica duas interpretações recorrentes mobilizadas nas investigações sobre o tema. Para o autor, alguns estudiosos partem do questionamento das relações sociais produzidas pelos processos de assalariamento e afirmam que o trabalho associado é uma estratégia política e uma prática de emancipação dos trabalhadores; outros, por sua vez, se firmam sobre o argumento da importância do pertencimento coletivo como desenvolvimento de autoestima e de sobrevivência. Uma das tendências mais difundidas é a que toma a Economia Solidária como forma de resistência dos setores populares à crise estrutural do trabalho e o recuo de políticas sociais experimentadas no Brasil especialmente entre as décadas de 80 e 90. Entre os ufanistas da Economia Solidária que veem em suas iniciativas as bases de um novo modo de produção e os mais pessimistas que a interpretam como estritamente funcional ao capitalismo, uma vez que se ocupa dos inúteis para o mundo (CASTEL, 2009) há os mais cautelosos, que admitem suas contradições internas e defendem, entre outros aspectos, que a Economia Solidária não é a única alternativa dos setores populares. Nessa perspectiva diferenciam, por exemplo, Economia Solidária e Economia Popular. Embora as expressões se assemelhem e sejam com frequência equiparadas, não são convergentes, nem toda economia popular é solidária, embora como afirmam Cunha e Santos (HESPANHA & SANTOS (org.), 2011) no Brasil grande parte da economia solidária se situa no campo da economia popular. Também Pereira (2011), em uma perspectiva teórico-epistemológica sintetiza diversas pesquisas até então realizadas, classificando-as em quatro grandes e diferentes teses que mobilizam argumentos favoráveis e/ou contrários sobre este fenômeno social. Para a autora, é possível identificar na literatura a defesa da economia solidária como um modo de produção que enseja o socialismo; ou como uma economia que, embora não-capitalista e plural, não dá conta de apontar para mudanças significativas na estrutura do modo de produção; ou ainda como uma política pública inovadora de inclusão social e; acrescenta uma tese contrária que a define como um conjunto de atividades que precariza e flexibiliza as relações de trabalho.

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A primeira tese apontada pela autora reconhece a economia solidária como um embrião de modo de produção socialista e tem em Paul Singer, economista e atual secretário nacional de economia solidária, seu principal expoente. Singer compreende e identifica a prática como uma resposta à situação de pobreza resultante do desemprego e da crise de um sistema onde “não há lugar para todos”, que resulta na emergência de um cooperativismo autogestionário. Esse sistema mencionado pelo autor chama-se capitalismo e tem no Brasil sua máxima expressão de expropriação dos trabalhadores durante a crise do emprego que teve seu ápice na década de noventa, conforme mencionamos. Em sua teoria, para situar o cooperativismo autogestionário, ele retoma o cooperativismo revolucionário europeu do século XIX e identifica na emergência da economia solidária nos anos de crise, seu ressurgimento. O autor defende que a melhor estratégia de enfrentamento da crise é quebrar o isolamento social dos desempregados e criar redes de iniciativas coletivas de produção, favorecendo a cooperação e o intercâmbio e alcançando, desta maneira, o êxito de um modo de produção diferente, pautado nos princípios socialistas. Para que isso aconteça, é imprescindível ganhar espaço no aparelho estatal e na definição de políticas públicas e crescer em visibilidade para conquistar apoio da sociedade civil e ocupar as brechas deixadas pelo sistema vigente a fim de condensar forças para a transformação social. A economia solidária aparece então, na perspectiva do autor, como uma “sementeira” de um novo modo de produção capaz de transformar a estrutura social. Em síntese, a questão central apresentada por Singer: é repensar o projeto socialista, conceber uma nova forma de socialismo aprendendo com os erros do socialismo real. Na maioria de seus escritos Singer trata destas questões e as formas autogestionárias de produção são vistas como um elemento importante para a preparação de um novo modo de produção que seria “capaz de competir com o modo de produção capitalista” (1998, p.182). A economia solidária é, então, vislumbrada como a formação de um novo modo de produção socialista, mas um tanto diferente do socialismo real que vigorou até agora. Para Singer, é preciso admitir que é necessário conservar o mercado, regulado e dirigido por entidades extramercado, mas isso depende da radicalização da experiência democrática. (LECHAT 2004, p. 215)

Para que os trabalhadores dos grupos associativos possam engajar-se neste projeto revolucionário, Singer defende a necessidade de estabelecer uma “educação cooperativa” para a criação de novos pressupostos culturais de organização do trabalho, estimular a “crença nos valores centrais do movimento operário socialista: democracia na produção e distribuição, desalienação do trabalhador, luta direta dos

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GT10 – TRABALHO E SINDICALISMO movimentos sociais pela geração de trabalho e renda, contra a pobreza e a exclusão”. (Lechat, 2004, p. 218 apud Singer 1999). Insiste portanto, na contínua reafirmação dos valores considerados democráticos e na elaboração de um projeto políticopedagógico para a produção solidária. É importante salientar que as proposições do autor, ao protagonizarem uma corrente teórica de caráter acadêmico-militante, também participam da criação da própria economia solidária, não somente como tema de investigação científica, mas igualmente como fenômeno social. No livro que se tornou marco na delimitação da economia solidária no Brasil, intitulado “A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego”, publicado em 1996, Singer afirma a existência da prática no país e reúne em um único lugar e sob uma única denominação, uma coletânea de artigos sobre diferentes experiências consideradas exitosas: a economia solidária. A partir deste momento está formado um campo de mobilizações sociais e de investigação acadêmica, onde as iniciativas de geração de trabalho e renda de sindicatos, movimentos sociais, igrejas, empresas autogestionárias, governos e universidades passam a pertencer a um único e mesmo universo. Esta tendência inaugurada por Singer se fortalece no fato dele ter assumido a coordenação da Secretaria Nacional da Economia Solidaria (SENAES), função que conserva até o presente. A segunda tese - a economia solidária como uma economia não-capitalista e plural - parte da definição de uma economia formada por diversas atividades econômicas, organizadas em conjunto a partir dos princípios da cooperação, autonomia e gestão compartilhada, onde se tem a primazia da solidariedade cooperativa sobre o individualismo utilitarista do mercado. Tem entre seus principais propositores Luis Inácio Gaiger, Genauto França-Filho e Jean-Luis Laville. Autores que defendem que a economia solidária cria uma nova racionalidade produtiva resultando em ganhos extraeconômicos, além de gerar resultados materiais efetivos a partir da centralidade do trabalho e da afirmação de sua organização coletiva. É possível perceber nas proposições dos autores certa noção de eficiência imbricada nas práticas dos empreendimentos econômicos solidários que abre espaço para a satisfação das necessidades materiais, e ao mesmo tempo socioculturais e éticomorais dos indivíduos e coletividades, como uma forma de reprodução ampliada da vida.

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Uma das singularidades de Gaiger na produção teórica sobre a economia solidária foi o reconhecimento da presença e influência das chamadas entidades de apoio aos empreendimentos como parte relevante do fenômeno social, em sua maioria pertencentes ao terceiro setor: Os projetos alternativos são apresentados como fazendo parte de um conjunto mais amplo sob o título “movimentos de base”. (...) Este movimento é visto como composto de três tipos de atividades, as questões culturais, a reapropriação dos espaços da vida cotidiana e as práticas econômicas alternativas, sob forma de autogestão e cooperação. (...) Para ele [Gaiger], o ganho destes projetos está na passagem de uma vida comunitária para uma prática cidadã vivenciada como uma “sociabilidade distinta” que modifica a visão de mundo e a compreensão da vida individual e coletiva onde a participação social torna-se um “valor intrínseco”. [...] Finalmente, o mérito destas experiências estaria no “ensaio de uma nova forma de convivência, de onde, aliás, estão emergindo formuladores e condutores das reivindicações populares” o que permite vislumbrar a implementação de políticas sociais inovadores. (LECHAT, 2004, p. 261).

No entanto, ainda que os autores que defendem esta tese tragam para o cenário de produção acadêmica sobre a temática o caráter alternativo das iniciativas da economia solidária, e o fazem muitas vezes a partir de análises empíricas de experiências concretas, e este alternativo remete mais a uma saída da condição de pobreza e de desemprego do que a uma postura ideológica de enfrentamento ao sistema capitalista. A partir disso, defendem que estas iniciativas ocupam os interstícios e lacunas da economia do capital e se organizam a partir de outra lógica, não mercantilista, que pode vir a resultar em um mercado de caráter não capitalista. Esta perspectiva vem sendo fundamentada principalmente no conceito de economia plural de Karl Polanyi que estabelece três possíveis lógicas nas economias reais: a não monetária, fundada no princípio da reciprocidade; a não mercantil, fundada no princípio da redistribuição; e a mercantil com o princípio da oferta e da procura; e nas teorias da reciprocidade, principalmente Laville e França Filho, que recuperam o “dom” maussiano e o introduzem na teoria reconhecendo-o como motor e performador das alianças estabelecidas nos empreendimentos, e destes entre si, como o elemento que as sela, simboliza, garante e permite a existência e a participação no campo da economia solidária, abrindo espaço, ao mesmo tempo, para vivências profundamente coletivas e eminentemente individuais. Estas proposições, no entanto, chamam a atenção pela timidez em salientar os aspectos conflitivos do dom maussiano. Vale lembrar que para Mauss (1950), a dádiva como um fato social total reúne pessoas e grupos que intercambiam bens e que, se de um lado produzem sentimentos de

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amizade, pertencimento e comunhão, de outro, tais presentes são também trocados a partir do princípio da rivalidade e do antagonismo, reunindo ao mesmo tempo e num mesmo feixe de relações, desinteresse e obrigação. As duas teses aqui assinaladas são as mesmas que defendem as políticas públicas de economia solidária em suas diversas variações, normalmente como ações estatais de caráter inovador, republicano e democrático, orientadas para o chamado desenvolvimento social. A tese que faz a crítica à economia solidária, identificando-a com formas precárias de ocupação dos trabalhadores e o reconhecimento público e oficial do desassalariamento, fundamenta-se em algumas proposições da teoria marxista clássica e concentra-se, segundo Pereira (2011), principalmente na análise e contraposição aos argumentos de Paul Singer compreendidos aqui como induções de um significado de economia solidária dissociado de sua realização concreta e empírica nos empreendimentos econômicos existentes. Autores como Ricardo Antunes (2009), por exemplo, alocam as experiências de economia solidaria no rol das práticas funcionais ao modelo de economia neoliberal reafirmando a subordinação e flexibilização das relações de trabalho, alçadas à condição de política pública nacional, como uma forma de difusão da cultura do autoemprego dos anos anteriores, que acaba por legitimar o trabalho informal e, nesse sentido, nada tem do suposto caráter renovador apontado pelas teses acima citadas. A economia solidária seria tão somente um aprofundamento da crise neoliberal da década de noventa, cumprindo papel de funcionalidade em relação ao sistema atuando como um mecanismo minimizador da barbárie (ANTUNES, 2009, p. 113), sendo que as possíveis soluções seriam assumidas pelo terceiro setor, com apoio institucionalizado do Estado a partir da Secretaria Nacional de Economia Solidária, acabando por flexibilizar e precarizar as relações trabalhistas. Isto posto, deparamo-nos com o desafio de lançar mão de referenciais teóricos, epistemológicos e metodológicos que deem conta da complexidade de experiências sendo vivenciadas em seus múltiplos aspectos. Um dos pontos de tensão está na maneira como se tem produzido dados que informam a leitura da prática. Não se trata apenas de produzir leituras adequadas e abrangentes, mas partimos da concepção que uma vez produzidos dados e conceitos estes teriam potencial inclusive de retroalimentar as práticas.

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A economia solidária aparece sempre em trânsito entre modelos mais universalizantes (como superação do capitalismo) ou mais localizados (como alternativa de resistência ou sobrevivência), segundo a interpretação do pesquisador e as características empíricas específicas do material, local ou grupo investigado. Entende-se que o ponto de partida destas pesquisas toma esses modelos enquanto unidades dicotômicas, e além de assimetrias e hierarquizações, abriga o risco de ler as experiências a partir de concepções substancialistas de elementos que se contrapõe,

resultando

compreendidas

no

em

comparações

contraste,

perdendo-se

e

generalizações pelo

caminho

tão

somente

investigativo

as

complexidades e singularidades da economia solidária e de suas diversas manifestações em contextos específicos.

A EXPERIÊNCIA DOS MAPEAMENTOS E A CRIAÇÃO DO REAL Desde que a expressão Economia Solidária foi utilizada pela primeira vez em 1996 pelo economista Paul Singer em um periódico de circulação nacional (MOTTA, 2010) desencadeou-se um processo no sentido de construir definições acerca do que seria Economia Solidária e definir seus princípios. Tarefa essa eivada por desafios: definir o que é implicava definir o que não é, o que entra e o que fica de fora. Mais que uma preocupação semântica ou preciosismo teórico a construção do campo e delimitação dos conceitos repercute de forma objetiva em instâncias práticas como representatividade e o consequente acesso a recursos disponíveis, por exemplo. A expressão disseminada por Singer passou a aglutinar organizações e movimentos sociais especialmente desde o Fórum Social Mundial realizado em 2001. Constituiu-se a partir, a partir de então um Grupo de Trabalho (GT) de abrangência nacional formado por ONGs de atuação nacional (Fase, Pacs e Ibase75), a Cáritas Brasileira, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) (MOTTA, 2010, p. 4). O objetivo desse Grupo de Trabalho que passou a reunir-se entre as edições do Fórum Social Mundial era primeiramente pleitear junto ao governo federal a criação de uma secretaria nacional. A mesma foi criada em 2003 ligada ao Ministério do 75

Fase (Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional), Pacs (Instituto de políticas Alternativas para o Cone Sul) e Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas).

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Trabalho e Emprego e assumida por Paul Singer. Além disso, foram promovidas pelo Grupo de Trabalho plenárias nacionais que desembocaram na criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), com a função principal de ser um canal de interlocução entre o movimento Economia Solidária e as instâncias governamentais. Fórum e Senaes, portanto, estreitamente articulados desde um princípio. Alguns caminhos da construção política e teórica desse campo são refeitos pela antropóloga Eugência Motta (2010) no sentido de apontar como em determinados contextos e a partir de uma conjuntura específica é criada no Brasil a Economia Solidária e com a emergência do conceito cria-se a existência mesma. Para a autora o processo de quantificação teria o potencial de criar realidades (2010, p. 99), referindo-se especificamente ao mapeamento nacional de empreendimentos solidários realizado no ano de 2005 pela Secretaria Nacional de Economia Solidária. O mapeamento e a posterior criação do Sistema de Informações em Economia Solidária (SIES) tinha a pretensão de que os dados fossem significativos para três campos: Estado, movimento social e academia. Era preciso do ponto de vista estatal produzir dados que justificassem a existência da SENAES, atendendo por sua vez interesses acadêmico-científicos das Incubadoras universitárias, mas sobretudo, os dados visibilizariam e legitimariam o movimento em si (MOTTA, 2010, p. 118). As primeiras tentativas de padronização das informações resultaram frustradas diante não apenas da diversidade de iniciativas, mas também dos diversos métodos de coleta e sistematização dos dados disponíveis. A tentativa de aproximação do mapeamento com o IBGE e sua consolidada metodologia também não foi bem sucedida. Segundo o Instituto, sua metodologia seria incompatível com o conceito mesmo de Economia Solidária. Esses fatores somados à limitação de recursos financeiros disponíveis desencadeou a construção do mapeamento no seio do próprio Grupo de Trabalho desdobrado em um GT Mapeamento, cuja tarefa era construir e implementar instrumentos e estratégias para o levantamento dos dados necessários. De acordo com Eugênia Motta: O mapeamento consistia em realizar um levantamento de informações sobre Empreendimentos Econômicos Solidários, com a aplicação de um questionário, cujo conteúdo procurava mostrar aquilo que o GT Mapeamento considerou como as principais características que precisavam ser conhecidas. Os questionários deveriam ser preenchidos a partir de entrevistas realizadas por agentes treinados, no local de funcionamento do EES. As chamadas Entidades de Apoio e Fomento também deveriam ser identificadas, mas a elas cabia um questionário muito mais curto, que prescindia da aplicação por parte de um entrevistador. (2010, p. 102)

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Após a coleta os dados passaram por uma espécie de tratamento no qual as inconsistências

eram

identificadas

e

remetidas

aos

entrevistadores

para

esclarecimento, correção ou descarte. Só então passando a compor o banco de dados nacional que culminou no lançamento do Atlas da Economia Solidária no Brasil (MTE, 2006), formalizado por uma portaria ministerial que reconhecia oficialmente o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidaria (SIES), o que implicava na regulamentação das instâncias e processos decisórios, ou seja, na institucionalização e legitimação da Economia Solidária no Brasil. Em 2007 sentiu-se a necessidade de uma volta ao campo para ampliação do escopo da pesquisa inicial chegando em áreas e empreendimentos onde na primeira investida não havia-se chegado. Nos dois anos de pesquisa foram compilados dados de aproximadamente 22 mil Empreendimentos Econômicos Solidários, expressão criada durante a construção metodológica do mapeamento e que passou a designar as experiências que compartilhavam dos princípios e bases da Economia Solidária. Em um intenso processo de disputa em torno das definições consideradas necessárias, criou-se certo consenso na expressão Empreendimentos Econômicos Solidários: No âmbito do SIES, são caracterizadas como Empreendimentos Econômicos Solidários aquelas organizações: a) coletivas ‐ serão consideradas as organizações suprafamiliares, singulares e complexas, tais como: associações, cooperativas, empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de trocas, redes e centrais etc.; b) cujos participantes ou sócios(as) são trabalhadores(as) dos meios urbano e rural que exercem coletivamente a gestão das atividades, assim como a alocação dos resultados; c) permanentes, incluindo os empreendimentos que estão em funcionamento e aqueles que estão em processo de implantação, com o grupo de participantes constituído e as atividades econômicas definidas; d) que disponham ou não de registro legal, prevalecendo a existência real; e e) que realizam atividades econômicas de produção de bens, de prestação de serviços, de fundos de crédito (cooperativas de crédito e os fundos rotativos populares), de comercialização (compra, venda e troca de insumos, produtos e serviços) e de consumo solidário.(ANTEAG, 2009, P. 18J)

O mapeamento instituiu também as bases que permitem afirmar quem é e quem não é Economia Solidária: “O conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletiva e autogestionária” (ANTEAG, 2009, P. 17). Segundo o Atlas, são ainda características

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importantes dos empreendimentos a cooperação, autogestão, atividade econômica e solidariedade, este último uns mais multivocais que compreenderia: a preocupação permanente com ajusta distribuição dos resultados e a melhoria das condições de vida dos participantes. Comprometimento com o meio ambiente saudável e com a comunidade, com movimentos emancipatórios e com o bem estar de trabalhadores e consumidores (ANTEAG, 2009, P. 17).

As disputas e críticas em torno do mapeamento se deram em virtude da dificuldade de criar conceitos abrangentes que dessem conta da diversidade de empreendimentos. Para alguns a definição de Empreendimento Econômico Solidário deixaria de fora iniciativas importantes que não se enquadrariam nos requisitos primeiro da pesquisa e posteriormente das políticas públicas criadas a partir desta, destinadas aos empreendimentos. Na primeira investida do mapeamento era apenas suposto que os empreendimentos indicados para a pesquisa fossem “solidários”. Seria pelo preenchimento ou não dos requisitos estabelecidos nos parâmetros do SIES que o empreendimento seria dado como confirmado enquanto EES. Para atender as demandas metodológicas os empreendimentos solidários foram aproximados da lógica empresarial, como demonstrou o relato etnográfico de Eugênia Motta ao ilustrar como ao mesmo tempo o questionário aplicado nos empreendimentos informa aos seus participantes sua identidade enquanto Economia Solidária e ensina-os, por exemplo, a calcular seus rendimentos (MOTTA, 2010, p. 139). O critério de definição de um EES passa, portanto, necessariamente por critérios de produtividade e viabilidade econômica. Fora desse circuito estaríamos tratando de formas primitivas de troca e/ou sociabilidade. Esse recorte fica explícito ao analisarmos os dados e mapas contidos no Atlas (ANTEAG, 2009) e produzidos a partir do banco nacional de dados. Entre as informações

que

provocaram

maior

desconforto

e

contestação

estão

a

representatividade urbano/rural e a distribuição por gênero na sistematização do número de participantes. Segundo o Atlas, diferente do que se pensava e do observado em atividades da Economia Solidária, a maior concentração de Empreendimentos Econômico Solidários está nas áreas rurais e com maioria masculina, em números que somam 63% em relação às mulheres. Entre as hipóteses aventadas para a discrepância entre os dados e o imaginário tanto de militantes da Economia Solidária quando de assessores estaria o fato de que predominam no ambiente rural cooperativas agrícolas de médio e grande porte. 137


GT10 – TRABALHO E SINDICALISMO

Ocupando vasta extensão territorial e montantes significativos de capital esses empreendimentos se destacariam em relação ao número de sócios e recursos envolvidos. Apesar de o trabalho ser de base familiar, as mulheres não são consideradas sócias. No espaço urbano segundo MOTTA (2010) a hipótese mais provável seria a de que grandes empreendimentos como fábricas recuperadas teriam no quadro de trabalhadores a maioria masculina. Acrescentamos às hipóteses levantadas por MOTTA (2010) a prática cultural largamente explorada pelos consagrados institutos de pesquisa em identificar as tarefas de provisão familiar com figura do “chefe de família”. Como argumenta Zuleica Oliveira (2007), embora o IBGE tenha modificado metodologicamente sua base de coleta de sistematização de dados acompanhando as mudanças no cenário brasileiro é forte ainda a tendência de aproximação da noção de “chefe de família” da figura masculina. Durante o ano de 2013 foi realizada uma nova ida à campo para a realização do 2º. Mapeamento Nacional, com dados parciais já divulgados, desta vez não para perguntar a respeito dos empreendimentos, mas acerca de seus participantes. A título de exemplo cabe mencionar a experiência de uma das autoras deste trabalho, entrevistadora no processo do mapeamento, que reforça a hipótese problematizadora acerca da predominância masculina nos empreendimentos e o modo como os dados são coletados. Entre os grupos visitados para o mapeamento estava um grupo de cinco mulheres que produziam bolachas caseiras em uma área rural no entorno da cidade de Ponta Grossa. As três que foram entrevistadas relataram separadamente o mesmo padrão: trabalhavam com a família na roça com a produção de fumo, em casa sozinhas cuidando da produção de hortaliças e animais de pequeno e médio porte, mas sem acesso ao dinheiro obtido com a venda do fumo, iniciaram a fabricação de bolachas em uma dinâmica onde o dinheiro obtido ali seria realmente delas. Em outros empreendimentos visitados também foi possível observar o papel do (s) mapeamento (s) na “invenção” da Economia Solidária. Em dois empreendimentos na região litorânea do estado do Paraná os requisitos de viabilidade econômica foram verificados, no entanto seus participantes, com exceção de uma entre os 13 entrevistados, não tinham até aquele momento ouvido falar em Economia Solidária. De um total de 8 empreendimentos visitados pela pesquisadora apenas um estava na capital paranaense e era este o único que já tinha ouvido falar em Economia Solidária. Contudo a experiência das participantes com as instâncias ditas solidárias 138


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no município era extremamente negativa, o que implicou inclusive na relutância das entrevistadas em participar da pesquisa. A articulação dos EES feita via poder público (Fundação de Ação Social - Prefeitura Municipal de Curitiba) estava, segundo relatos, instrumentalizada no sentido de privilegiar determinados grupos em detrimento de outros conforme as relações interpessoais e de favorecimento estabelecidas. A consequência imediata era a impossibilidade de comercialização dos produtos nas feiras promovidas pela prefeitura. Outro elemento interessante é que, não obstante tenha-se notícia e estudos a respeito dos diversos grupos de Economia Solidária presentes na capital (Clubes de Troca, Padarias Comunitárias, Cooperativas de Catadores)76, apenas um foi indicado no lote regional para a pesquisa. Aqui vemos reforçada uma tensão já presente no primeiro mapeamento, ao trazer critérios de viabilidade econômica para o centro do recorte analítico, o que evidentemente deixou de fora de seu escopo experiências que tinham nas relações ditas solidárias seu sustentáculo. Para Eugenia Motta as práticas familiares ou consideradas mais primitivas de troca não comporiam o escopo dos Empreendimentos Solidários porque não teriam na economia a razão de ser de sua existência. Nesse ponto trazemos à reflexão as praticas dos Clubes de Troca que como demonstram pesquisas anteriores 77, embora tenham nascido de uma conjuntura específica de desmonetarização da economia tem atuado de forma a transcender as trocas econômicas produzindo sociabilidades mais que rendimentos ou resultados monetários. O que regula as práticas nos Clubes de Troca é, sobretudo, a necessidade em detrimento do lucro. A solidariedade baliza os parâmetros de justiça: não interessa o valor do objeto trocado ou possíveis perdas, é a necessidade do outro envolvido na troca que a baliza, a urgência mais que a vantagem. Mais que isso, não se trocam os objetos pelo valor de mercado. À toalha de crochê só se atribui valor enquanto um trabalho realizado por alguém, ou seja, o objeto é valorizado porque é trabalho de Maria, da Joana, etc. Nesse sentido os grupos parecem constituir-se mais como

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Disponível em: < http://www.cefuria.org.br/atuacao/>. Acesso em 09 abril 2014. CARNEIRO, Gisele; BEZ, Antonio. Clubes de troca: rompendo o silêncio, construindo outra história. Curitiba: Editora Popular, 2011, 160 p. MACHADO, Maria Izabel. “Aí a gente vai sendo solidária e as pessoas vai revivendo”: O Clube de Troca e a construção da sociabilidade. 2012. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Sociologia, UFPR/PPGS, Curitiba, 2003, 127 p. ______. Economia Solidária e Emancipações: proximidades e distanciamentos. 2009. Monografia (Graduação) – Curso de Ciências Sociais, UFPR, 2009, 54 p.

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espaço de reconhecimentos mútuos do que como empreendimentos econômicos. Reconhecimento que passaria primeiro pelo sentido atribuído ao trabalho, não envolvendo apenas o remunerado formalmente, mas toda ação socialmente útil, capaz de tocar outras pessoas pela necessidade ou sensibilidade. A perspectiva qualitativa que julgamos mais adequada para a abordagem de fenômenos como estes evita que sejam jogados por terra os significados produzidos pelos agentes para suas ações e os impactos produzidos que ultrapassam as fronteiras físicas ou temporais dos Clubes de Troca. Relegá-los à irrelevância porque não produzem indicadores econômicos seria ignorar o potencial e o papel que exercem no restabelecimento de sociabilidades primárias e na construção de redes de proteção. A produção acadêmica sobre catadores de materiais recicláveis é mais recorrente do que aquela que se dedica aos clubes de trocas. Em uma pesquisa nas teses e dissertações do portal da CAPES78 e do Domínio Público79 a partir do verbete “economia solidaria” encontramos 73 trabalhos de diferentes áreas do conhecimento, publicados entre 2003 e 2012. As Ciências Sociais é a área que mais tem se dedicado a estas pesquisas, reunindo 24% dos trabalhos, seguida pela Administração com 20% e o Serviço Social que reúne pouco mais de 13% da produção. Entre os trabalhos sistematizados, nenhum se dedica aos clubes de trocas, enquanto encontramos 5 pesquisas que tomam como objeto de investigação os catadores de materiais recicláveis. Evidentemente estes dados não são absolutos, visto que diversos trabalhos de pós-graduação não estão registrados no banco de teses e dissertações do Domínio Público e CAPES. No entanto, sua relevância permanece uma vez que indicam tendências da produção teórica acadêmica, conforme acima assinalados. A título de exemplo podemos mencionar o aumento significativo no número de trabalhos elaborados nos anos seguintes ao mapeamento. Até 2005 encontramos somente duas pesquisas sobre a temática, sendo uma neste mesmo ano e a outra em 2003, passando à 10 trabalhos em 2006, 12 em 2007 e 17 em 2008. Números que corroboram com o argumento que vimos desenvolvendo de que o mapeamento nacional de empreendimentos econômicos solidários produz estatísticas e estas, por

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Disponível em: < www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses>. Acesso 10 abr 2014. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br. Acesso em: 10 abr 2014.

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sua vez, alimentam teorias acadêmicas e políticas públicas. Juntas, estatísticas, teorias acadêmicas e políticas públicas vão criando a economia solidaria a âmbito mais institucional. Aliás, é curioso salientar que 34% dos trabalhos se dedicam ao estudo, proposta e avaliação de políticas públicas de economia solidaria a nível universitário (com as incubadoras), municipal ou nacional. A invisibilização dos catadores na economia solidaria, portanto, passa por outras dinâmicas. Apesar de aparecerem nas pesquisas acadêmicas sobre a temática, são comumente utilizados como exemplo referencial para a tese que define a economia solidaria como flexibilização das relações do trabalho, centrando suas atenções na precariedade e pobreza destes trabalhadores e na não viabilidade econômica de seus empreendimentos. Embora algumas pesquisas, ainda que baseadas na pobreza, assinalem elementos outros para além da precarização do trabalho, como o caso de Bianca Costa (2007) que em seu resumo indica que “apesar dos limites de renda e benefício trabalhistas presentes nas iniciativas gestionarias, esses espaços podem ser férteis para o exercício de relações mais democráticas e conquista de autonomia”, a maioria dos trabalhos sobre catadores insistem no argumento contrário à alternatividade da economia solidaria, ou então a colocam sob suspeita: A economia solidaria, um movimento recente que tem se estendido em diferentes configurações por todo o mundo nas últimas décadas é frequentemente tida como um suspiro do pensamento romântico dos socialistas utópicos. De fato, não se tem clareza sobre o que seria o próprio socialismo utópico, sendo que dentro desse estigma são incluídos diversos pensadores socialistas que escrevem antes de Marx e Engels, ou seja, antes do chamado “socialismo científico”. Se por um lado a economia solidaria distancia-se da realidade revolucionária inspirada na prática marxista, tampouco pode ser taxada como socialismo utópico. Ela surge em um novo contexto histórico de evolução do capitalismo contemporâneo e deve ser compreendida dentro desse quadro. (Bertucci, 2008)

Os catadores de materiais recicláveis, portanto, ainda que chamando a atenção de pesquisadores, estariam igualmente fora da economia solidária, ou porque esta simplesmente não existe enquanto tal uma vez que é mais uma forma de flexibilização do trabalho no capitalismo contemporâneo, ou então porque os dados que apresentam enquanto viabilidade econômica e autogestionária do empreendimento não são suficientes para elevá-lo ao estatuto de alternativa ao sistema dominante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Como podemos perceber, remeter a gênese da economia solidária tão somente às diferentes filosofias socialistas articuladas às mudanças conjunturais das décadas de 80 e 90 no Brasil insistentemente citadas nas teorias da área e retomadas pelos movimentos sociais e pelo Estado, não dá conta da complexidade do fenômeno. Suas significações são constantemente recriadas pelos agentes e mobilizadas em espaços múltiplos, assim como plurais são suas definições possíveis. Conforme apontamos, a visibilidade do fenômeno, por exemplo, pode ser remetida ao conceito heurístico sob o qual Paul Singer (1996) reuniu experiências diversas na obra “A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego”, conceito posteriormente endossado, ampliado e alimentado por outros intelectuais. Ou então no mapeamento nacional (2005) que emergiu como prova da existência do fenômeno e desencadeou um conjunto de iniciativas estatais e, através de seu sistema de informações (2006) que chegou com o estatuto autoridade científica, vem nutrindo inúmeras pesquisas acadêmicas que ampliam a visibilidade, complexidade e pertinência da temática. Origens múltiplas portanto, que comportam em si algo de polissemia, ambiguidade e diversidade. A partir dessa leitura do fenômeno sociológico, o que queremos salientar nesta discussão é que, segundo uma perspectiva teórica epistemológica o risco estaria em reproduzir olhares e lógicas universalizantes insuficientes para abarcar a complexidade de experiências e sujeitos envolvidos na Economia Solidária. Perguntar apenas pelos dados do mapeamento, ou então pelo lucro ou resultados econômicos obtidos pelos empreendimentos é a mesma pergunta feita massivamente pelo mercado e que o autoriza a descartar contingentes imensos como inúteis para o mundo. Ao trazer para o centro da análise os critérios de viabilidade econômica relegase a solidariedade a adereço, no sentido de que se não emancipa economicamente a experiência é irrelevante e enquanto tal não figura entre as passíveis de receber investimentos humanos e materiais. Do ponto de vista praxiológico, afirmações como essas resultam não apenas na desqualificação de inúmeras atividades desenvolvidas no país, mas na sua condenação primeiro à invisibilidade, depois ao desaparecimento. Ao não serem enquadradas nos critérios de EES grupos como os Clubes de Troca e catadores, que não possuem existência jurídica e/ou não asseguram viabilidade econômica ocupam um lugar marginal, quando não fora, das políticas públicas e principalmente dos recursos destinados à geração de renda e promoção da cidadania. Como um círculo 142


GT10 – TRABALHO E SINDICALISMO

vicioso: estão fora porque não geram renda e não conseguem implementar projetos de geração de renda porque estão fora. Ou seja, o segundo mapeamento que teve entre seus objetivos aprofundar informações do primeiro a partir de seus agentes corre o risco de nascer comprometido, enquanto pretendia representar uma ampliação em relação ao anterior pode constituir-se em não mais que sua verticalização. Os empreendimentos considerados irrelevantes na primeira vez permaneceram com este status na segunda.

REFERÊNCIAS ANTEAG. Atlas da Economia Solidária no Brasil 2005-2007. São Paulo: Todos os Bichos, 2009. ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. 2ª. São Paulo: Boitempo, 2009. BERTUCCI, J. O. A produção de sentido e a construção social da Economia Solidária. Tese (Doutorado em Sociologia). UNB. Brasília. 2010. CARNEIRO, G.; BEZ, A. Clubes de troca: rompendo o silêncio, construindo outra história. Curitiba: Editora Popular, 2011, 160 p. CASTEL, R. Metamorfoses da Questão Social. 8ª. Ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 2009. DOMÍNIO PÚBLICO. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br Acesso em 10 abr 2014. HESPANHA. P.; SANTOS. A. M. (Orgs.) Economia Solidária: questões teóricas e epistemológicas. Coimbra: Almedina, 2011. LECHAT, N. M. P. Trajetórias intelectuais e o campo da Economia Solidária no Brasil. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). UNICAMP. Campinas. 2004. MACHADO, M. I. “Aí a gente vai sendo solidária e as pessoas vai revivendo”: O Clube de Troca e a construção da sociabilidade. 2012. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Sociologia, UFPR/PPGS, Curitiba, 2003, 127 p. ______. Economia Solidária e Emancipações: proximidades e distanciamentos. 2009. Monografia (Graduação) – Curso de Ciências Sociais, UFPR, 2009, 54 p. MASCARELLO, M. L. Economia Solidária em Dourados/MS: um conceito multivocal. In: III CEPIAL Congresso de Cultura e Educação para a Integração da América Latina. 15 a 20 de julho de 2012. Curitiba. Anais eletrônicos III CEPIAL 2013. Disponível em: <

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GT10 – TRABALHO E SINDICALISMO

http://cepial.org.br/inc/anais/eixo7/310_MagdaLuizaMascarello.pdf>. Acesso em 09 abr

2014. MASCARELLO, M. L. A Economia Solidária no Brasil: do contexto de origem aos significados da expansão. In: XIII Encontro Nacional da Abet. 28-31 out 2013. Curitiba. Anais eletrônicos XIII Abet 2013. Disponível em: < http://www.abettrabalho.org.br/anais/2013/GT%206%20Sessao%203.pdf>. Acesso em 09 abr 2014. MOTTA, E. S. G. A ‘outra economia’: um olhar etnográfico sobre a economia solidária. Dissertação de Mestrado. UFRJ, 2004. MOTTA, E. S. G. Trajetórias e Transformações no mundo da economia solidária. Tese de doutorado. UFRJ, 2010. PEREIRA, C. M. G. M. ECONOMIA SOLIDÁRIA: uma investigação sobre suas iniciativas. Dissertação (Mestrado em Economia). Campinas/SP. UNICAMP, 2011. POLANYI, K. A grande Transformação. São Paulo: Campus, 2000. PORTAL CAPES. Disponível em < www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses> Acesso em 10 abr 2014.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO

OS "ARTISTAS DA SEDUÇÃO": ENTRE MÉTODOS E TÉCNICAS, UMA MASCULINIDADE César Bueno Franco80 Resumo: Este artigo traz parte dos resultados de uma pesquisa em andamento, onde se investiga a construção da identidade masculina de homens heterossexuais participantes de um site, um fórum virtual. Autointitulado comunidade, o fórum seria um espaço onde esses homens aprenderiam métodos e técnicas para a sedução de mulheres, e se tornariam assim “artistas da sedução”. Através de uma metodologia de pesquisa qualitativa, foi realizada uma etnografia virtual analisando os ditos métodos e técnicas de sedução, bem como a recepção desses pelos participantes do fórum. A isso se articulou a fundamentação teórica do trabalho, que parte das categorias de gênero e masculinidade enquanto construções sociais, e do viés pós-moderno e pósestruturalista sobre as identidades(de gênero). Os resultados revelaram haver um padrão de comportamento generificado que é reproduzido naqueles métodos e técnicas, e dotando assim o “artista da sedução” de uma masculinidade particular invocativa de marcas como distinção, naturalidade e liderança. Deste modo, se alcança a reflexão sobre a representação de uma certa identidade masculina nos dias presentes, e se evidencia a importância de dirigir o olhar sociológico para questões de gênero expressas em mídias digitais e espaços virtuais. Palavras-Chave: masculinidade, identidade, comunidade virtual INTRODUÇÃO Entre tudo o que podemos encontrar na internet, há a comunidade virtual da sedução: uma grande quantidade de homens, de diferentes países, que se reúnem através de sites na internet, e trocam por lá supostos métodos e técnicas de sedução de mulheres(muitos já publicados em livros). Apesar de originária nos Estados Unidos(de acordo com a história que a própria comunidade conta, o primeiro site é de 1994), difundiu-se e chegou também na internet brasileira81. Foi entre os anos de 2007 e 2008, e se deu graças à publicação por aqui dos dois livros mais populares(e popularizantes) daquela comunidade: O Jogo: a bíblia da sedução, e O Método Mystery: como levar mulheres bonitas para a cama, que nos Estados Unidos foram

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Mestrando e bolsista CAPES pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: csarbf@gmail.com É importante frisar então que não é qualquer site que fale sobre sedução ou que ensine homens, de algum jeito, a seduzir mulheres que faz parte dessa comunidade virtual da sedução. Aqui, trato especificamente de um conjunto de sites que teve uma história comum e sobretudo referências comuns - principalmente em dois livros publicados, citados a seguir.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO publicados, respectivamente, em 2005 e em 200782. E por aqui, era 2009 quando foi criado então o site PUABase.com, que funciona na modalidade de um fórum de discussão. Apesar de não ser o único site do tipo na internet brasileira - que naquela época, e ainda hoje, conta com outros fóruns virtuais e muitos blogs sobre sedução -, é um dos mais antigos e certamente o maior deles ainda em atividade no Brasil. O nome do site é uma referência ao pickup artist, que na versão traduzida daqueles livros, mas também no gosto dos pickup artists brasileiros, ficou sendo artista da sedução. Seguindo a sugestão do título, o site seria, então, a base dos artistas da sedução, e como em outros, abundam nele métodos e técnicas de sedução de mulheres. Tendo este fenômeno como foco, atualmente desenvolvo uma pesquisa que o articula em relação às categorias de identidade, masculinidade e mídias digitais, do que problematizo particularmente o trânsito das identidades masculinas naquele fórum virtual - o PUABase.com. Neste artigo, porém, foi dado um primeiro passo rumo à inserção na comunidade virtual da sedução em sua ramificação brasileira, um primeiro olhar sociológico sobre aquela articulação mais complexa, e optou-se por analisar os supostos métodos e técnicas de sedução que são veiculados pelos e para os participantes daquele site. A pergunta a que se quis responder foi: qual o padrão de comportamento masculino está sendo reproduzido com aqueles métodos e técnicas de sedução de mulheres?

A SOCIOLOGIA POR DETRÁS DOS "ARTISTAS DA SEDUÇÃO" Já faz tempo que Falconnet e Lefaucheur(1977) diagnosticaram uma ideologia masculina que conduz os pequenos meninos ao papel de macho, o que hoje parece persistir. Nesta ideologia, que se nota particularmente na publicidade, está dada a condição da mulher enquanto um objeto a ser dominado, o que exige certa mobilização do homem. Não é como um produto que se adquire através da compra. O homem precisa ser homem para obter essas mulheres - e não se trata de uma tautologia. É o que a expressão de sedutor que os autores usam denuncia; ser sedutor é um dos aspectos característicos da condição masculina debaixo daquela ideologia masculina, ser homem é ser sedutor. Assim, se o homem vive em uma ideologia 82

No original, The Game: penetrating the secret society of pickup artists, e The Mystery Method: how to get beautiful women into bed.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO masculina que diz que ele precisa seduzir mulheres, e isto não se dá instantaneamente, está feita a abertura para a comunidade virtual da sedução e o PUABase.com como sua ramificação brasileira. É o que sugere o vídeo Eu mudei minha vida com o PICKUP83, que serve como recepção aos novos membros do PUABase.com e do qual transcrevo parte de seu texto. Bem-vindo ao Pua Base. Mude sua vida radicalmente. Imagine como seria se você conseguisse qualquer garota facilmente. Como você acha que seria se conseguisse falar naturalmente com as garotas? Macho alpha. Aprenda a se tornar um macho alpha com o Puabase. Qualquer um consegue não importa sua raça ou daonde você veio. Mas você vai ter que ler muito no fórum e praticar. Os melhores leram muito e praticaram mais ainda. Você está preparado? Para pegar geral? Pua Base. Aprenda tudo que seu pai não ensinou.

Sugere-se, pois, um modelo de masculinidade na tentativa de suprir um problema velado: a dificuldade em conseguir qualquer garota facilmente. E indo além, de um jeito particularmente inventivo temos aí uma sociologia espontânea acerca do gênero(masculino) como construção social; afinal, é possível aprender a ser esse homem que consegue as garotas facilmente. Simone de Beauvoir(1970) foi icônica ao problematizar as diferenças entre homens e mulheres através do social e cultural, particularmente preocupada com a condição destas. E como diz Saffioti, "aí reside a manifestação primeira do conceito de gênero. [...] é preciso aprender a ser mulher, uma vez que o feminino não é dado pela biologia, ou mais simplesmente pela anatomia, e sim construído pela sociedade."(SAFFIOTI, 1999, p. 160). Do que fica fácil estender o raciocínio aos homens e pensar que, afinal, não é a anatomia que confere a masculinidade, e sim também um aprendizado - que no PUABase, homens beuavoirianos de um jeito muito peculiar, é uma construção/aprendizado social e intencional como bem sugere o vídeo citado. Encarar os gêneros(aqui, a masculinidade) como construção social permite tensionar tal construção por contextos e tempos. Isso nos obriga a falar de masculinidade como variante. É o que Oliveira(2004) faz ao mapear a masculinidade medieval, depois moderna, e então contemporânea. Já em termos micros, focados na experiência cotidiana, a perspectiva em questão colabora para tensionar a subjetividade. Pesquisas com um viés psicológico demonstram como os homens no divã padecem de dúvidas acerca de como viver as suas masculinidades hoje(SILVA; MACEDO, 2012; BENTO, 1999). E esse hoje é na verdade, um tanto antigo; já na 83

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l7b1Kjr4csg

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO década de 1970 Falconnet e Lefaucheur(1977) diagnosticaram uma certa crise em nossa sociedade e vida cotidiana, em algo ligada à emancipação feminina e suas consequências, que provocaria nos homens um quadro de medos e incertezas diante da nova configuração social. Então cabe a pergunta: será que os homens hoje vivem algum tipo de crise existencial? (OLIVEIRA, 2004). Não é difícil enquadrar os artistas da sedução dentro dessa interpretação. Um grupo de homens oferecendo ensinar tudo aquilo que seu pai não ensinou sugere uma reação de descontentamento, talvez sensação de inadequação. No entanto, se isto configura uma crise, ou apenas mudanças nos tempos e nas relações de gênero, é uma discussão válida mas que foge do propósito deste artigo. O que cabe é notar como este fenômeno também se encaixa em uma perspectiva da pós-modernidade e suas identidades descentradas. Quando um homem identifica ter um problema com as mulheres e decide fazer algo a respeito, e isto se converte a entrar em um site para aprender supostos métodos e técnicas de sedução - que promete ser uma mudança radical de vida -, poderíamos ver aí o alerta que Domingues(2005) faz para a sociologia contemporânea. É preciso tratar do processo de individualização dos sujeitos, agora mais plásticos e diretivos em suas vidas, e que se aproveitam da flexibilidade dada na vida social. De acordo com o autor, é a noção de reflexividade que aparece, a vida que agora é aberta à ação dos sujeitos - mesmo contra aspectos petrificantes. Disto sugiro o artista da sedução encarnando uma época de intensa reflexão sobre si e intervenções conscientes em si. Para Giddens(1993, 2002) o que existe hoje é um projeto reflexivo do eu, e isto caracteriza bem a busca do sujeito por uma auto-identidade através de um processo intencional e refletido, o que subentende a possibilidade de fazer escolhas. Bauman(1998, 2005) localiza atualmente identidades marcadas pela capacidade de serem reescritas conforme preciso for - geralmente pela dupla consumo e prazer -, o que faz com que os indivíduos tenham a responsabilidade de capturar essas identidades e lidar com elas com seus próprios recursos e ferramentas. Já Hall(2005) associa a identidade contemporânea em termos de globalização, isto é, pelas distorções no tempo e espaço (provocadas pelas viagens internacionais, mídia, comunicação global) e com elementos de consumismo - um supermercado cultural -, resultando em diferentes identidades que vem fazer apelos a diferentes partes de nós, do que sentimos poder escolher entre elas. Assim sendo, a identidade é posta como uma questão a ser resolvida por 148


GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO indivíduos agora soberbamente investidos da capacidade de refletir e agir sobre ela. É o descentramento voluntarista que o viés pós-moderno propicia. Todavia, falta um descentramento particular, uma desconstrução específica, que é onde o viés pósestruturalista também vem informar sobre o artista da sedução. Neste sentido é que Butler(2008) é pertinente para contestar a aparente integralidade do gênero e da identidade à qual dá sustentação. Isto é, a construção social do gênero é dada em performatividades, coerências e práticas reguladoras, o que faz com que uma identidade inteligível seja na verdade a repetição de regras. "De fato, quanto se diz que o sujeito é constituído, isso quer dizer simplesmente que o sujeito é consequência de certos discursos regidos por regras, os quais governam a invocação inteligível da identidade."(BUTLER, 2008, p. 209). Se há repetição, se há discursos, e se há regras, o que existe é uma identidade enquanto prática significante - e assim o que não existe é um gênero, e sua identidade consequente, que seja totalizante, singular, fixo, colado em algum lugar ou dele emanando. Mesmo anteriores à discussão butleriana, Falconnet e Lefaucheur(1977) endossam a identidade enquanto prática significante quando analisam a forma como a publicidade vende a virilidade e efetua exitosas associações de adjetivos então masculinos e outros então femininos. "A um homem não se diz: continue viril, impõese: seja homem! Faça-se. E o prove. A feminilidade é um estado natural a conservar. A virilidade, pelo contrário, jamais se adquire, jamais se assegura. É necessário manifestá-la sem cessar."(FALCONNET; LEFAUCHEUR, 1977, p. 34). Se nunca se obtém, então sua procura(e venda publicitária) também nunca para. Nunca se é masculino de um modo apaziguador, é sempre preciso correr atrás de uma identidade masculina, elaborá-la continuamente de acordo com as regras do jogo(que são heterossexuais), ou seja, unidades identitárias nunca podem ser atingidas (BUTLER, 2008). Os homens do site PUABase.com vivificam esse processo. Estão buscando os métodos e técnicas de sedução como modo de se tornar artistas da sedução, uma identidade masculina que lhes parece possível. E se buscam é porque não a tem. Parecem concluir espontaneamente que a solução é uma performance repetida - ter métodos, ter técnicas - que os guiará à prometida mudança radical, ou seja, ser um artista da sedução. Mas qual é o conteúdo dessa performance? O que a sustenta? Trata-se, ao que parece, de um padrão de comportamento generificado, objetivo deste artigo. 149


GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO

METODOLOGIA Para alcançar tal objetivo, este artigo está afinado com a metodologia qualitativa, uma vontade de compreensão profunda, busca por descrições e entendimentos em vez de generalizações numéricas(GOLDENBERG, 2001). Deste modo optou-se por uma etnografia dentro do site PUABase.com84, abordagem que tomo "para compreender aspectos da cultura dos participantes, suas visões de mundo e práticas sociais e culturais (aspectos internos de um determinado grupo) e demanda observações prolongadas."(MAINARDES, 2009, p. 102). Estou consciente de que em um site com tantos números - mais de 850.000 mensagens, mais de 81.000 tópicos, e quase 90.000 membros registrados - um outro formato de trabalho caberia. Contudo, como reforça Briceño-Leon(2003), qualitativo remete a estudos preocupados com o esclarecimento - não a generalização - de um problema ou comunidade humana, escolha que me pareceu mais apropriada frente ao objetivo proposto. Sobre etnografias virtuais(como as feitas em sites), vale ressaltar que desde o surgimento da internet e sua incorporação como objeto de estudo são feitas tentativas de transpor as técnicas etnográficas para o online, do que abundam vários rótulos mas também muita indiferenciação para além desses rótulos(AMARAL, 2010). Tomo o caminho mais simples e intuitivo quando entendo por tal transposição o interesse "em revelar questões e práticas subjetivas e simbólicas que não é possível revelar a partir de métodos quantitativos.[...] é a questão de investigação - interpretativa, subjetiva, simbólica - colocada no meio tecnológico."(MITSUISHI, 2007, p. 257). Neste trabalho toda a coleta de material etnográfico aconteceu na seção85 Área dos Novatos. É uma seção que se explica pelo seu título: é para novatos. São ao todo 39 tópicos fixos86, escolhidos pelos administradores do site, sendo então uma

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Friso que é um site público, de registro aberto, localizável facilmente através de mecanismos de buscas - inclusive seu conteúdo interno. E ainda, nos Termos de Uso e Serviços do site se especifica que todo usuário ali dentro cede o direito sobre o que escreveu ao site, e este autoriza a menção em outros meios de tudo escrito ali dentro, respeitando as fontes. Essas duas particularidades, bem como permissão conseguida com os administradores do site, dilui ao menos em parte a preocupação ética desta pesquisa. Os fóruns de discussão, como o PUABase, tem uma organização interna composta de seções temáticas. Neste caso, são seções como Artigos e Debates, Dúvidas e Pedidos, ou então Vídeos; são ao todo 15 seções, sendo que algumas seções contam com sub-seções. Tópicos são criados pelos usuários do site e dispostos dentro das seções temáticas e de acordo com o conteúdo que apresentam. Tem como corpo o texto que seu autor escreve, ao que se sucedem as respostas dos leitores do tópico. Os tópicos vão sendo arquivados de acordo com a

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO seção que permanece fechada em si. A manobra de delimitar a coleta nela se deu pela própria sugestão do campo: "O que é PU[pickup]? Aprenda o básico aqui!", diz a descrição. Ou seja, ali está o básico, aquilo que se espera que todo membro do fórum saiba, tenha conhecimento, um substrato comum de todos os artistas da sedução. Ainda, sugestivamente, neste básico estão contidas os principais e mais populares métodos e técnicas de sedução difundidas na comunidade virtual da sedução - e o que quer que nelas esteja sendo reproduzido. Todavia, optou-se em não fazer referência aos autores daqueles 39 tópicos. A forma como a Área dos Novatos é posta - fixada e assim invariável - sugere que ali está a voz de um coletivo na recepção de seus membros novatos; não é um espaço para que um membro em particular fale para outros, e sim um espaço para a reprodução dos saberes básicos daquela comunidade. E por outro lado, a única certeza de autoria nos tópicos é quanto a vir de um conhecimento já popularizado por toda a comunidade virtual da sedução. Ali os textos são geralmente cópias, traduções ou adaptações de textos veiculados algures, como em sites em língua inglesa ou livos publicados. Raramente com citação das fontes. E mesmo quando o texto é (ou parece ser) autoral, realmente escrito por aquele que posta e somente ali para o PUABase.com, são ecos daquele saber disposto na comunidade da sedução. Assim sendo, aqueles 39 tópicos são a concretização local de um saber que não é individual - processo que dispensa a subjetividade e experiência de quem escreve, isto é, retira a importância da autoria, e que me autoriza a pensar que o simples fato do texto estar ali, na Área dos Novatos, é sinal de que é um texto que foi recebido pelo PUABase como válido, e também dispensa problematizar a fundo a reação dos usuários acerca de tais textos, geralmente uma reação receptiva. Sob estas orientações e feitas tais escolhas, foram obtidos os seguintes resultados.

O QUE O NOVATO PRECISA SABER Percebeu-se haver como que pré-requisitos para a compreensão dos supostos métodos e técnicas de sedução. Isto tanto para o novato (o que ele tem que saber para participar do PUABase) quanto para o sociólogo (que analisa o PUABase antiguidade, assim dificultando seu acesso; já um tópico fixo nunca é arquivado, do que o faz estar sempre visivelmente disposto ao leitor, facilitando seu acesso.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO e busca um entendimento sobre o que está acontecendo neste site). Esclareço, porém, que na análise que se segue, não me preocupo em citar nominalmente tópico por tópico. Como explicado, os tomo como um conjunto coeso com vistas à recepção do novato, e nesta condição - voltado aos novatos - está sua unidade. Ou seja, os diluo em um só discurso. Assim é que o novato pode encontrar na Área dos Novatos a definição do que seria um artista da sedução, ou pickup artist. Tais expressões serviriam para "descrever um homem que é ou se esforça para ter as habilidades de conhecer, atrair e seduzir as mulheres."87. Ou seja, o artista da sedução surge debaixo da exigência de um esforço - que podemos imaginar disciplina e dedicação - para adquirir habilidades - que como veremos, mobiliza toda uma interpretação sobre a interação/sedução. Sugere-se também que isso não é fácil; "pickup não é só seduzir", é mais, tem a ver com "construir uma vida" e por isso "deve ser uma mudança constante e não algo momentâneo", ou seja, "pick up é uma arte difícil, é para os fortes, para aqueles que aguentaram para o resto de suas vidas[...]". A palavra difícil remente a Welzer-Lang(2001), para quem a dominação masculina é mesmo difícil para o homem pois lhe exige uma aceitação do sofrimento inerente ao aprendizado de homem dominador. Aqui, ser um bom sedutor também entraria nessa lógica de aceitação do sofrimento inerente. Por outro lado, o construir uma vida em uma mudança constante faz eco na noção de identidades em livre curso(BAUMAN, 2005) e ainda ao contexto social e institucional que faz do indivíduo o determinante em termos de experiências sobre a (re)construção da própria vida, do que a identidade é um campo de atuação intencional e refletida, um caminho entre o passado coerente e o futuro planejado(GIDDENS, 2002). Na Área dos Novatos o recém-chegado também deve tomar certo espírito coletivo. Afirma-se, por exemplo, que "em grupo certamente evoluímos mais rápido(esse fórum é um exemplo disso).". Do que uma comparação seria possível e ilustrativa. "Antigamente os grandes pensadores se encontravam em ágoras, praças, em cafés, na casa de algum intelectual. Hoje fazemos isso através do fórum[...]". Surge disso um aspecto importante do PUABase, que é sua marca enquanto espaço

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A transcrição foi feita uniformizando o texto para o formato de padrão acadêmico por entender que pouco se perderia nesta transcrição - cores, símbolos e palavras de caixa alta no meio de uma frase foram uniformizados. Mas os pequenos erros, como os de concordância, foram mantidos, preservando certa originalidade da escrita.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO masculino - tal como os exemplos daquela comparação. Para Falconnet e Lafaucheur(1977), a participação de um homem em um coletivo masculino é parte constitutiva de sua virilidade já que significa o afastamento do feminino e a integração ao masculino. Do que para o novato na comunidade da sedução significaria tomar o site como um lugar que é de aprendizado, que é masculino, e que é viril(e virilizante). Tal aprendizado, contudo, é potencialmente desanimador dada a sua extensão e barreira. Naqueles 39 tópicos o novato encontrará 33 livros de leitura sugerida. E isso somente livros, o que chamam de a parte teórica - não contabiliza, pois, a prática, vista ainda como mais importante. E por outro lado, os livros indicados são, em sua grande maioria, em língua inglesa, demonstrando que o mercado editorial brasileiro ainda não é fértil aos livros da comunidade da sedução, inclusive por muitos serem ebooks amadores, e que se espera do artista da sedução que venha de um estrato social em que a formação escolar tenha incluído boas e efetivas aulas de inglês - o que podemos adivinhar um recorte e tanto na realidade educacional brasileira. O novato também precisará estar familiarizado com a linguagem da comunidade da sedução - linguagem que denota não só toda uma particularidade simbólica da comunidade, como também sua extensão internacional. É preciso aprender o que está sendo dito por siglas, e como dizer o que se pretende através do termo mais apropriado. Deste modo oferece-se um glossário(longo), tanto com a versão traduzida dos termos e siglas mais comuns quanto com a versão original(em inglês). Assim, uma abreviação comum, mantida em sua originalidade, é HB, sigla para hot babe, que remete às mulheres atraentes, que seriam então, em língua nacional, os alvos. Por outro lado, uma sigla que tem uso comum em português é o IDI, isto é, indicadores de interesse, que remete aos sinais que uma mulher oferece aos homens quando está receptiva à sedução. Deste modo, dentre aqueles 39 tópicos se encontram as orientações basilares para que o novato participe do fórum. Este homem já entende(se supõe) que ser um artista da sedução não é fácil, mas que naquele espaço masculino e coletivo a mudança constante de si pode ser facilitada - porém estar nele implica saber o que sabe o coletivo, e disso vem a abundante bibliografia e o vocábulo novo que devem, minimamente, ser aprendidos. Com estas orientações o novato pode começar sua trilha em direção ao artista da sedução, o que implica, então, saber os métodos e técnicas de sedução.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO

O PRESSUPOSTO DOS MÉTODOS E DAS TÉCNICAS Seria difícil aprender os supostos métodos e técnicas de sedução sem aceitar um pressuposto particular. E igualmente difícil compreendê-los sociologicamente se também não se alcança tal pressuposto. Há uma ideia maior, geral, abrigando métodos e técnicas, sendo condição de existência deles: são tratados como um saber que pode ser analisado, aprendido, treinado e então consolidado. Ou como é dito, a comunidade virtual da sedução transformou "sedução em ciência". São vários os tópicos que destrincham a interação/sedução como se fosse um mecanismo desmontável, e isto pode ser reflexo da relação daqueles homens, e mesmo nossa, com a tecnologia. Postman(1994) vê tecnologia como inseparável de uma carga ideológica que mesmo não-intencional se imbrica em nossa cultura atual de tal modo que poderíamos divisar um tecnopólio: tecnologia como referência e valor absoluto na medição das coisas. No tecnopólio acredita-se que a realização da humanidade e seus dilemas virá pelo progresso técnico - está em tudo, a tudo explica. O problema, diz o autor, é a transposição da tecnologia para todas as esferas de nossa vida, é o risco de enxergar tudo pela lógica da técnica e da máquina, inclusive pessoas, então comparáveis a máquinas e procedimentos técnicos. Seguindo esta ideia fica sugerido que o artista da sedução é tributário dela, caso contrário seria difícil cogitar métodos e técnicas de sedução - logo isto que sempre se associa a sentimentos e subjetividades. O efeito da tecnologia em nossa vida diária tem o poder de alterar o julgamento de nossa realidade, fazendo desta uma nova realidade com novas verdades(POSTMAN, 1994). O que tornaria possível a sedução enquanto processo controlado, progressivo e previsível. Ou como sugiro chamar, é a tecnicização da sedução. É este o grande pressuposto contido já na Área dos Novatos e que vai sendo expresso naqueles métodos e técnicas de sedução. O chamado método Mystery é icônico com seu fluxograma que estipula nove fases na interação/sedução, todas elas inter-relacionadas e dispostas de um modo que chegar a uma supõe ter superado a anterior, e que a fase final será a concretização do ato sexual. Inspirado neste método, o novato pode encontrar também um modelo de "abordagem em 13 passos detalhados" que é, literalmente, um modelo de abordagem de mulheres em 13 passos detalhados - descritos, postos em ordem, que culminam então no beijo. Se lembramos que um dos estímulos que os meninos têm desde pequenos - em atividades e

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO brincadeiras - é para o domínio através da técnica(FALCONNET; LEFAUCHEUR, 1977), isto somado a uma cultura de tecnopólio(POSTMAN, 1994) retira a surpresa que o artista da sedução e sua crença na sedução tecnicizada poderiam causar. O pressuposto da tecnicização é tão forte que até métodos contrários o expressam. Enquanto o método Mystery é indireto - isto é, seduz indiretamente - o método de David DeAngelo é direto - deixa a mulher consciente das intenções. Deste, a frase mais invocada na comunidade virtual da sedução, e que também o novato é já introduzido, é a de que a "atração não é uma escolha". Na verdade, seria "uma resposta emocional automática a certas insinuações.". Mesmo emocional há "um processo lógico de excitação", o que valida o homem buscar "todas as técnicas" possíveis para melhorar "seu poder de sedução". Se é automático, e há um processo lógico, é a tecnicização que permanece mesmo que noutro método de sedução. Sob esta constatação, deixa de surpreender a oferta feita aos novatos de um compilado com 50 conversas sedutoras padronizadas e supostamente utilizáveis com qualquer mulher. Não há distinção, só um processo supostamente científico de aplicação de métodos e técnicas de sedução. Entendido então esta presença de uma tecnicização absoluta da interação/sedução, fica mais fácil compreender os métodos e técnicas de sedução que são apresentados para os novatos, e o padrão de comportamento masculino que toma forma neles. Esclareço, porém, que em vez de focar os vários adjetivos invocados na Área dos Novatos no que se refere ao artista da sedução, estabeleço três eixos agrupadores que remetem ao teor geral daqueles adjetivos: liderança, naturalidade e distinção. É o que se segue.

O HOMEM EXERCE A LIDERANÇA A liderança é importante para o artista da sedução. O próprio pressuposto da tecnicização já sugere isso ao revelar um homem que tem domínio, controle, condução. Se acreditamos que o menino desde tenra idade é posto na direção do papel de chefe, direcionado ao lugar alto na hierarquia social(FALCONNET; LEFAUCHEUR, 1977), o artista da sedução quando busca um lugar/expressão de liderança responde a um valor social masculino que o precede. A técnica do push and pull é característica. O princípio dela está em tentar aproximar a mulher de si, e quando esta se aproximar, então afastá-la(não necessariamente em termos físicos).

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO "Fazer as duas coisas (dentro dos limites) pode ser emocionalmente confuso para uma mulher, e isso cria tensão", se diz. Por isso o nome, push(empurrar) e pull(puxar), que subentende a mulher como objeto de deslocamento. Para ilustrar, o exemplo oferecido seria de elogiar a mulher por ter mestrado e assim ser interessante(pull), mas depois dizer que não gosta de mulheres intelectuais demais e pouco divertidas(push). Do que cabe advertir para "ter certeza que você não está indo longe demais". Além da técnica em si - que supõe puxar e empurrar a mulher, mesmo que metaforicamente -, a advertência só confirma quem é que está na liderança da situação: o homem, a quem cabe ter certeza, a quem cabe análise e ponderação da interação/sedução e posterior decisão - se foi longe demais ou não. Compondo a importância da liderança, há um método que é exposto ao novato como o método próprio para líderes - e portanto ele, novato, talvez não devesse ainda dedicar-se a esse método. É o método direto, e que deixa as intenções claras logo de início para a mulher; "prega ser homem, ser dominante, ter presença e qualidades alpha.". Alpha, aqui, no sentido biológico de macho alpha, isto é, o macho líder. "Quer dizer que você tem que ser o cara, o que vai e sabe o que quer, sabe o que fazer, como fazer, onde vai fazer e não se importa com a opinião dos outros.". Sintetizando, o "jogador88 direto é o líder sempre, tá sempre demonstrando sua masculinidade[...]". A colocação de líder na mesma frase do demonstrando sua masculinidade

revela a dependência entre os dois termos.

Falconnet e

Lefaucheur(1977) notaram como a norma social deseja que a mulher aguarde o assédio masculino, e caso contrário ela será desmoralizada enquanto a ele cabe a frustração da impotência. Ou seja, ao homem sem liderança, que a vê destituída ou incapaz de a exercer, resta a impotência - põe em cheque sua masculinidade. A liderança chega então ao nível mais íntimo desse homem. Mais que uma técnica, e além de um método, tem de ser uma atitude profunda. Inner game é esta atitude. Em toda a comunidade virtual da sedução há uma preocupação sobre como manter ou fazer crescer o inner game do artista da sedução. E aqui, considerando os 39 tópicos sob análise, ele é conceituado - e mostrará afinidade com a liderança. Comumente é tomado como confiança, porém não é exatamente a mesma coisa. "Inner game não é confiança. Inner game é um conjunto de coisas juntas, um conjunto de vários botões apertados em sequência que te fazem ter confiança. É seu mundo 88

Na comunidade virtual da sedução é comum o uso de jogador para referir-se ao artista da sedução, acompanhando a comum expressão de sedução como sendo um jogo.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO interno.". É significativa essa expressa menção ao mundo interno sob escrutínio pois denota reflexividade, um possível afastamento dos preceitos consolidados da vida social e a abertura para que a atividade social seja sempre revisada à luz de novos conhecimentos ou informações(GIDDENS, 2002). Isto é, artista da sedução como um sujeito reflexivo. Suas reflexões, porém, voltam sempre à sedução, e nela o inner game significaria ter "uma atitude forte, assertiva e positiva", isso seria um fator de sucesso, e isso é o que os líderes fazem, "irradiam confiança e não são abalados facilmente pelos outros", e por isso "as pessoas amam os líderes, especialmente [as] mulheres [amam]". Aqui, a associação de líderes e mulheres na mesma frase, e pondo estas como aprovando aqueles, induz a pensar num discurso coerente ao da dominação individual e coletiva que os homens exercem sobre as mulheres, seja ela material, cultural ou simbólica(WELZER-LANG, 2001).

O HOMEM TEM NATURALIDADE Se espera do artista da sedução que ele demonstre naturalidade. É uma expectativa perene de que ele nunca dê a entender que o que faz e diz são técnicas planejadas - ou, o que parece pior à comunidade virtual da sedução, que foram decoradas. Na Área dos Novatos isto fica flagrante nas rotinas. São "pequenas conversas (ou em alguns casos, truques) pré-planejadas" usadas tanto para iniciar a interação como para mantê-la. Uma pequena história divertida ou uma mágica são igualmente rotinas. É importante, então, que as rotinas sejam adequadas a cada situação, bem treinadas, mas que "tenham a ver com a sua personalidade, o que vai ser mais congruente com você.". Não seguir a recomendação incorre no risco de passar a "vergonhar do set[mulheres] já ter ouvido essa rotina", ou então transparecer que era uma rotina já que "as mulheres são detectores de mentira humanos.". A última possibilidade seria ruim pois as mulheres perceberiam que o homem está tentando chamar a atenção intencionalmente, e isto seria uma "demonstração de valor inferior", isto é, um DVI. Subentende-se que uma rotina deva ser a extensão de si e da personalidade, o que reforça que estes homens se prestam a uma leitura pósmoderna enquanto sujeitos em algo voluntários(BAUMAN, 2005) pois podem elaborar cientemente tal extensão, mas também uma leitura pós-estruturalista já que são discursivamente regidos e atrelados a regras de performatividade(BUTLER, 2008) ao tentar manter-se dentro de uma norma de masculinidade, a do artista da sedução.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO O corpo será outro aspecto a ser considerado em termos da naturalidade. Sociologicamente intuitiva, a comunidade virtual da sedução percebe como o corpo media a experiência social uma vez que está também preso a uma teia de significações(LE BRETON, 2012). Assim naqueles 39 tópicos há a insistência para que o novato vigie sua linguagem corporal. Seria preciso controlar essa "subcomunicação" muda. "Uma melhor postura", se diz, "uma linguagem corporal mais controlada [e] focada vai fazer qualquer um mais atraente". E aqui a palavra congruência volta à carga. "Tem que ser congruente com suas palavras, sua voz e com sua linguagem corporal". De nada adianta o artista da sedução falar como se fosse confiante mas sinalizando(com o corpo) sua insegurança - como no evitar o contato visual. Isto é, é preciso manter a naturalidade naquilo que diz, se faz, e no modo como se porta. A noção de kino é reflexo disto. Ela remete ao contato físico com objetivos de sedução - tocar a mulher como parte da sedução e mesmo facilitador pois ajudaria a criar intimidade conforme esse toque aumenta em frequência e intensidade. Mas kino, assim como a linguagem corporal, potencialmente comunica a naturalidade do homem. "O toque reflete o fato de você ser despachado, confiante e sexual.". Para tanto esse homem deve estar a vontade e mostrar-se natural quando busca intencionalmente o contato físico com a mulher - como uma rotina que exija isso, ou no casual gesto de tocar-lhe enquanto conversam. Somada à leitura do sujeito voluntarista e performático - que luta pela confirmação de uma identidade - com o kino surge então essa sociologia do corpo como grade de leitura: corpo como uma superfície onde encontramos o social e cultural, local de projeção de significados e símbolos(LE BRETON, 2012). Trata-se da cooptação do corpo do artista da sedução de modo a reinvesti-lo - em sua postura, em seus gestos - de modo a confirmar que trata-se de um homem sedutor em sua naturalidade.

O HOMEM TEM DISTINÇÃO Na Área dos Novatos muito clara será a ideia de que o artista da sedução é diferente em relação aos outros homens; e é preciso mostrar distinção. A masculinidade apresenta clivagens internas, e assim ser homem é afastar-se superiormente das mulheres mas também almejar posições superiores a outros homens(WELZER-LANG, 2001). Para os homens do PUABase.com isso significa

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO buscar o destaque quando comparado aos homens que não são da comunidade virtual da sedução. Assim é que o novato irá se deparar com a regra dos três segundos: ao avistar a mulher deve-se abordá-la em três segundos. Isso impele o homem à ação - "análise demais atrapalha" - mas também demarca uma diferença em relação àquele "cara estranho que ficou o tempo todo no canto 'secando' as garotas.". Com isso também se conferiria "espontaneidade" à abordagem, o que agradaria às mulheres. Ou seja, se o homem fica "'escolhendo' as garotas por muito tempo", não haverá espontaneidade. Assim o artista da sedução tenta esse contraste com o cara estranho que ficou no canto, esse sujeito que fica escolhendo demais as garotas - um tipo que, de acordo com a comunidade virtual da sedução, seria bem comum. Outro contraste será perseguido através do método indireto de sedução. A premissa é "seduzir a mulher sem mostrar interesse logo de início". Isso seria agir "fora do padrão masculino" e faria "a mulher fica impressionada" já que evita-se o caminho comum de dar "presentes, falando coisas melosas, idolatrando". Assim, evitar mimos à mulher seria evitar o que vitima muitos homens. "Uma atitude desesperada e com muito interesse, é o mesmo que dizer: sou fraco, não consigo ninguém, não me valorizo e te coloco em um pedestal.". Aqui, parece, está o padrão masculino ao qual tenta-se ficar por fora, o ser desesperado, com muito interesse, colocando a mulher em um pedestal. Apesar de mais pontual e circunscrita, é o reforço de uma masculinidade vivida

com

hierarquias

e

disputas

pela

dominância

geral(CONNELL;

MESSERSCHIMIDT, 2013). Dominância aqui associada à sedução, obtida através da distinção. Talvez a técnica exemplarmente distintiva seja o neg. De acordo com o glossário da comunidade da sedução, é "uma declaração ambígua ou insulto aparentemente acidental" feito à mulher e que sugere falta de interesse. E o novato aprenderá que um neg fará também "demonstrar valor superior, tirar a mulher do pedestal e fazer ela sair da posição de prêmio.". Este seria o fator de distinção; um neg bem feito, que se supõe criativo e bem-humorado, mostraria que não se é um daqueles homens que "ficam babando nelas o dia inteiro". O opener é outra técnica muito exemplar: é uma frase que abre o diálogo com a mulher. Mas não qualquer frase. "Você deve se diferenciar de todos os outros que passaram na vida dela". O deve reforça a cobrança pelo artista da sedução não ser como todos os outros. Do que frases clichês ficam banidas, e se tenta imprimir novamente criatividade e bom 159


GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO humor - e furtividade. "Ocultar suas intenções é de suma importância aqui. Você deve passar a imagem de um cara que está ali só para se divertir.". Assim, este homem não fica babando na mulher, é diferente de todos os outros, e mostra estar ali só para se divertir - não pela mulher. Essas duas técnicas são típicas do método indireto - apesar do uso generalizado na comunidade virtual da sedução. Mas o método direto também irá expressar a vontade de distinção destes homens. O cocky and funny é uma técnica pertencente a este método de sedução; sugere um homem arrogante e divertido diante da mulher: com bom humor, a desafiaria e a inferiorizaria. Supostamente isso evita uma conversa "rotineira e tediosa", que vale o alerta: "procure evadir desse tipo de conversa". Assim, esta técnica faria o homem ser visto como desafiador e imprevisível, e portanto distinto dos demais - que, novamente, supõe-se que não iriam desafiar nem inferiorizar a mulher, e possivelmente conduziriam uma conversa rotineira e tediosa. Assim, uma das frases postas ao novato que lê sobre cocky and funny é a "Seja memorável". Surpreende esse eco de diagnósticos já antigos; não de hoje masculinidade pode ser vista como impulsionada pelo capitalismo competitivo, do que vem a mensagem do ser "o mais forte, o maior, o mais belo, tenha mais dinheiro, mais mulheres, mais poder sobre os outros."(FALCONNET; LEFAUCHEUR, 1977, p. 48). Ao que o artista da sedução responde querendo ser memorável. Assim, o que acaba dando a tônica para a ânsia de distinção são os antípodas. Em toda a comunidade da sedução são vários; aqui, para os novatos, temos apresentados os primordiais. Neste sentido, é interessante observar, outra vez mais, o lastro histórico deste aspecto. Miskolci(2013) demonstra como que nossa república nasceu dependente e propositiva de uma masculinidade branca e dominadora domínio sobre mulheres, outros homens, e também de si. Deste modo surgiram masculinidades abjetas, aquelas que deviam ser expurgadas - como a negra, a pobre, e sobretudo a homossexual(pior se todas unidas em uma só). O que tal autor possibilita pensar, e com cores nacionais, é como que um padrão de masculinidade contém sempre uma relação reflexa com seus antípodas, o contraste contra o qual se destaca. Aqui, para o artista da sedução, trata-se de evitar ser o homem comum, entendido como o que idolatra mulheres, tem conversas chatas, que as observa postado num canto. É contra este homem que o artista da sedução busca sua distinção.

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise etnográfica do site PUABase.com, circunscrita à seção Área dos Novatos em seus 39 tópicos, demonstra que os chamados métodos e técnicas de sedução de mulheres propõe um padrão de comportamento masculino baseado em três eixos: liderança, naturalidade e distinção. Tal padrão se assenta, porém, na noção de tecnicização; isto é, a crença na sedução como algo que se disseca, destrincha, se faz em processos, tem causas e efeitos lógicos, e que assim pode ser controlada rumo a um destino previsível - o que viabiliza a própria existência da comunidade virtual da sedução. A escolha de um referencial teórico simpático ao viés pós-moderno voluntarista sobre as identidades, e também à perspectiva desconstrutiva do pósestruturalismo butleriano, convergiu para cristalizar uma leitura desses homens como imersos em um contexto e dinâmica de muita reflexão e intervenção de si, mas ainda de performatividades regradas. Isto coroa a noção maior dos estudos de gênero, e aqui partilhada, de que falar em relações de gênero é sempre falar de construções sociais. Aplicado a este caso, significou entender a masculinidade como uma construção social, do que torna-se necessário problematizar suas particularidades contextuais. Esta problematização ficou, no entanto, em segundo plano neste trabalho, enquanto se tentava esboçar qual era a masculinidade construída pela comunidade virtual da sedução, especificamente na acolhida dada aos novatos do site brasileiro PUABase.com. Mas se foi possível notar aquele apego à liderança, naturalidade e distinção, é preciso ter em vista de que isto é uma proposta de modelo, do que torna-se necessário refletir sobre seu alcance, incorporação e mesmo modo de funcionamento. [...] a masculinidade hegemônica não necessita ser o padrão comum na vida diária de meninos e homens. Em vez disso, a hegemonia trabalha em parte através da produção de exemplo de masculinidade(como as estrelas dos esportes profissionais), símbolos de autoridade, apesar do fato de a maioria dos homens e meninos não viver de acordo com eles.(CONNELL; MESSERSCHIMIDT, 2013, p. 263).

Assim é que podemos pensar toda masculinidade que se propõe típica antes como um feixe de atributos valorativos compartilhados do que uma realidade concreta; uma masculinidade típica "constitui um ideal dominante, e dessa forma sustenta uma hegemonia simbólica que favorece a orientação de condutas e comportamentos

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GT12 – GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO identitários prescritos segundo sua cartilha."(OLIVEIRA, 2004, p. 246). E apesar de estarem aí variáveis que fogem do escopo deste artigo, com ele foi possível notar, ao menos, que o artista da sedução gira em torno de um modelo de masculinidade não inteiramente inédito; e quando este supõe a capacidade de escolha e auto-intervenção de seus homens(que podem entrar em um site e aprender a como ser de tal modelo), o faz envolto em uma performatividade regida por novas regras a serem repetidas, mas que não são tão criativas assim e nem mesmo tão novas - vislumbra-se facilmente uma masculinidade tradicional impulsionando o artista da sedução. Talvez, a novidade genuína nesse modelo seja sua vinculação a um fenômeno sustentado na internet, do que faz como espaço de conquista, e também performatividade, deste modelo, um fórum virtual - que como sugerido pela comunidade virtual da sedução, é o substituto da ágora, de cafés, praças, esses lugares onde homens se reuniam para trocar informações e fazer suas masculinidades. Deste modo, este artigo serve como um dos passos iniciais rumo à pesquisa maior em desenvolvimento, e nela questões aqui em aberto serão problematizadas. Assim, como se dá a passagem de um homem que não é artista da sedução mas em um momento passa a se ver e ser visto como tal pelos seus pares? Qual é o peso da internet e das mídias digitais neste processo de trânsito? Ou ainda, como inserir essa masculinidade do artista da sedução em uma história contextual das masculinidades brasileiras? Questões todas em aberto, que fogem ao escopo deste artigo, mas que, acredito, estão sugeridas já ali na Área dos Novatos e seus 39 tópicos - a pontinha de um iceberg feito com mais de 80.000 tópicos e cerca de 90.000 indivíduos.

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

ATORES E REDES NO PROCESSO DE FORMULAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR (PRONAF) Deise Donatoni Casado89 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o sistema de formulação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), a partir da atuação dos atores sociais, internacionais e governamentais, utilizando como referencial o conceito de redes e comunidades políticas. A formulação de uma política pública é influenciada pela maneira como os atores interagem em comunidades epistêmicas, redes de políticas e comunidades. O subsistema de uma política pode ser influenciado pelos ‘atores e regimes internacionais’ (consultores internacionais, membros de organizações internacionais, missões de especialistas, observadores, regime internacional com seu arcabouço de regras, normas e procedimentos que regulamentam a relação entre os atores); ‘atores políticos domésticos governamentais’ (estatais e correlatos: políticos eleitos, burocratas, partidos políticos e eleitores); e ‘atores políticos domésticos sociais’ (grupos de interesse ou pressão, think-tanks e organizações de pesquisa, consultores e mídia). Acredita-se que apesar das redes estabelecidas entre os atores nacionais, governamentais e internacionais contribuírem de forma decisiva para abertura de uma janela de oportunidade, fazendo com que a necessidade de elaborar uma política pública de fomento à agricultura familiar entrasse na agenda do governo Cardoso, esses atores não foram cooptados, instrumentalizados ou colonizados pelo Estado. Este trabalho está estruturado da seguinte forma: na primeira parte recuperaremos o conceito de redes e esquematizaremos, de maneira breve, as redes de formulação do PRONAF; em seguida apresentaremos como os atores sociais, internacionais e governamentais contribuíram para criação desta política; por fim, teceremos a conclusão do artigo. Palavras Chaves: Redes, PRONAF, Políticas Públicas.

AS REDES DE POLÍTICAS PÚBLICAS Observa-se no campo das políticas públicas uma ampliação das pesquisas sobre as relações entre a política institucional e os atores não estatais, a partir da adoção de uma perspectiva de análise que rompe com a visão do Estado como mero executor dos interesses dos atores externos e com a ideia de uma burocracia insulada, que toma decisões externas à sociedade. A abordagem relacional e adoção das redes 89

Graduada em História (UNICSUL) e Gestão de Políticas Públicas (USP). Atualmente, mestranda em Ciências Sociais (UNIFESP) e servidora da Secretaria de Planejamento Estratégico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS sociais nos estudos sobre as políticas públicas “lança luz sobre pontos nebulosos das complexas e dinâmicas relações entre sociedade e Estado” (MULLER, SILVA, SCHNEIDER, p.02, 2012). Com a doação desta abordagem, o Estado e a sociedade deixam de ser consideradas esferas estanques e separadas, ocorrendo a interpenetração e a interdependência entre eles. Essa abordagem é utilizada na análise dos diversos tipos de relações (sociais, profissionais, estudantis, culturais, familiares, de amizade) construídas durante a trajetória dos atores em diferentes espaços institucionais (Estado, sociedade civil, mercado, dentre outros) (MULLER, SILVA, SCHNEIDER, 2012). O conceito de redes foi desenvolvido inicialmente por Diane e Bison. Em “Organizações, Coalizões e movimentos” (2010), os autores analisam como uma perspectiva de rede diferencia os movimentos sociais de outros casos de ação coletiva e de realização de campanha. Para os autores, movimentos sociais consistem em “redes de interações informais entre pluralidade de indivíduos, grupos ou associações engajadas em um conflito político ou cultural, com base em identidade coletiva compartilhada” (DIANE, BISON, 2010, p.220). Um dos principais expoentes do conceito de Redes no Brasil é o pesquisador Eduardo Marques, que através da Sociologia Relacional, observa as relações estabelecidas entre os atores e as posições que estes ocupam na estrutura relacional é dimensões fundamentais na explicação dos processos sociais (MULLER, SILVA, SCHNEIDER, 2012). Para Marques (2007) as redes podem ser compreendidas de três formas: (I) maneira metafórica ou de forma descritiva ou ensaística, seguindo as diversas tradições das Ciências Sociais; (II) como prescrição normativa para uma determinada situação, como por exemplo, os estudos em administração de empresas; e por fim, (III) como conjunto de ferramentas analíticas para estudo de situações sociais específicas, através das conexões sociais nelas presentes. Marques (2007) concentra-se nesta ultima acepção do termo, pois os ganhos analíticos do uso do método advêm do fato de que os padrões de relação de diversas situações sociais apresentam complexidade tão elevada que não podem ser analisados satisfatoriamente por meio de narrativas que explorem metaforicamente as redes. (MARQUES, 2007, p.158).

Marques (2006) ressalta a importância das escolhas fundamentais às redes: (I) as redes podem ser conceituadas para reproduzir os padrões de relações centradas

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

em um ou mais indivíduos ou em um contexto mais amplo; (II) elementos que compõem as redes (indivíduos, famílias, grupos, organizações etc.) conectam-se muitas através dos atores que os originam; (III) as redes são compostas por vínculos formais e informais. Ao estudar as redes rompe-se com a simples compreensão de que o Estado seja composto apenas por atores isolados, inserindo-os em seus contextos relacionais específicos já que eles influenciam estratégias, conflitos e alianças e tornam certos resultados mais prováveis do que outros (MARQUES, 2006). Marques (2006) destaca a importância das redes na análise das relações entre os atores sociais e o Estado: como a análise de redes permite a realização de estudos detalhados sem o preestabelecimento das fronteiras entre Estado e sociedade, representa também uma importante ferramenta tanto para o estudo de lobby e de novas institucionalidades de governança como para a análise das relações entre público e privado no entorno do Estado. (MARQUES, 2007, p.158).

As redes são continuamente reconstruídas por atores organizacionais e individuais e marcam a construção institucional a importância desses últimos (atores) parece-me fundamental, seja pela relevância das relações pessoais entre nós, seja pelo fato de o tecido do Estado não ser construído de forma intencional e momentânea, mas se associa às trajetórias de longo curso dos indivíduos, o que tem escapado à tradição das policy networks. Por outro lado, ao contrário do que se costuma afirmar, as relações pessoais podem ser um importante elemento no processo de construção institucional, visto que tendem a criar coesão ao tecer internamente o campo das políticas. Essa coesão não é homogênea e leva à constituição de grupos que disputam o controle sobre as políticas de forma mais ou menos polarizada, dependendo da configuração do tecido do Estado. Nesse sentido, trata-se de uma das dimensões que transforma a configuração de atores em uma estrutura de poder. (MARQUES, 2006, p. 35).

Os grupos de atores formadores das redes, além de influenciarem o processo de formulação das políticas públicas, atuam de maneira negociada, interferindo na gestão do Estado e na implementação das políticas em troca do poder oriundo da investidura dos cargos. As estratégias dos ocupantes dos principais cargos, dentro do Estado, influenciam a maneira como a permeabilidade ocorrerá (MARQUES, 2006). As redes proporcionam a compreensão de que as relações sociais constituem unidades básicas da sociedade, ao invés de atributos dos indivíduos, e costumam ser duradouras, pois se transformem continuamente com a construção ou o rompimento de vínculos, a parcela em transformação tende a ser relativamente pequena comparada ao conjunto dos vínculos (MARQUES, 2007).

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Silva e Oliveira (2011) ultrapassam a abordagem relacional externalista nos estudos sobre movimentos sociais e políticas públicas, propondo uma perspectiva de análise que possibilite apreender diferentes padrões de relação entre política institucionalizada e política não institucionalizada, tendo como objeto de análise o movimento Economia Solidária no estado do Rio Grande do Sul. Ao invés de considerarem a inserção dos atores sociais no Estado como processo de cooptação, instrumentalização ou colonização, afirmam que essa relação é oriunda de um complexo padrão de relação entre sociedade civil e Estado, mediada por partidos políticos. A participação dos atores sociais dentro do subsistema de formulação do PRONAF, no governo FHC, pode ser explicada, em parte, pela proposta de reforma do Estado elaborada e parcialmente implementada nos dois mandatos de Cardoso (1995-2003) e tinha como elementos centrais a participação social e o envolvimento da sociedade civil na implementação das políticas públicas (Silva e Oliveira, 2011). Silva e Oliveira (2011) afirmam que a ‘infiltração do Estado’ pelas organizações de movimentos sociais é um mecanismo recorrente e de fundamental importância na interpretação na maneira como os movimentos atuam e os efeitos que produzem. A seguir, apresentaremos os atores que contribuíram para o processo de formulação do PRONAF.

OS ATORES SOCIAIS, INTERNACIONAIS FORMULAÇÃO DO PRONAF

E

GOVERNAMENTAIS

NA

O subsistema de formulação das políticas públicas é afetado pela maneira como os atores interagem na comunidade epistêmica, e nas redes de políticas públicas. Esse subsistema é afetado por mais três redes: os atores e regimes internacionais, os atores políticos domésticos societais, e os ‘atores políticos domésticos estatais. Howllett, Ramesh e Perl (2009) analisam como o subsistema de uma política pública é afetado, na maioria dos países capitalistas e de democracia liberal. De maneira simplifica, podemos afirmar que no processo de formulação do PRONAF três atores influenciaram o subsistema de elaboração dessa política pública. Como ‘atores e regimes internacionais’ podemos citar a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), que ao definir o conceito de agricultura

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

familiar, passou a cobrar do governo federal brasileiro políticas públicas voltadas ao fomento da agricultura familiar. Como ‘atores domésticos estatais’, um ator decisivo foi o próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que em parceria com a FAO, no período de formulação do PRONAF, criou critérios para definir o significado de agricultura familiar naquele período e criar estratégias para aumentar a produção de alimentos. Por fim, como ‘atores domésticos societais’, o destaque vai para os grupos e movimentos sociais que atuam no campo, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reivindicavam do governo políticas públicas direcionadas para a agricultura familiar. A seguir, analisaremos, brevemente, os subsistemas de formulação do PRONAF.

ATORES INTERNACIONAIS No Brasil, como a maior parte da produção dos alimentos destinados ao consumo, historicamente, é produzida pelos pequenos agricultores, havia a necessidade de o governo criar instrumentos que fortalecessem a agricultura familiar, e com isso contribuíssem para a redução da fome no país. Nesse sentido, o processo de formulação do PRONAF foi embasado também, em grande medida, pela pressão dos organismos internacionais, como FAO, que afirmavam que uma das obrigações intrínsecas dos Estados é assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso físico e econômico aos alimentos básicos dos quais necessitam (DESER, 1996). Em grande medida, os órgãos internacionais aliaram-se às instituições nacionais brasileiras, geralmente governamentais, para elaborar estudos ou até mesmo possíveis desenhos de políticas públicas. Um exemplo é o convênio FAO/INCRA, que ao longo do período de 1994-1998, realizou uma série de estudos sobre os sistemas de produção adotados pelos agricultores familiares, com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre o funcionamento da agricultura familiar, identificar os obstáculos enfrentados, bem como as potencialidades no sistema produtivo

utilizado

pelos

agricultores

familiares

(BUAINAIN,

GUANZIROLI, 2003).

169

ROMEIRO,


GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Destaca-se, dentre os estudos realizados pelo convênio FAO/INCRA, o documento “Diretrizes de política agrária e desenvolvimento sustentável para a pequena produção familiar” de 1994, que passou a definir com maior precisão conceitual a agricultura familiar, além de estabelecer um conjunto de diretrizes que deveria nortear a formulação de políticas públicas adequadas às especificidades dos diferentes tipos de agricultores familiares. Acredita-se que esses estudos serviram de base para as primeiras formulações do PRONAF (SCHNEIDER, 2004). Os estudos da FAO/INCRA apontam que a agricultura familiar, na década de 1990, explorava de forma intensiva os recursos escassos disponíveis e que era possível que gerasse renda. No entanto, esse potencial nem sempre se realiza, seja pela falta de recursos, pelas condições macroeconômicas negativas, pela restrição de acesso aos mercados de serviço em geral ou até mesmo a ausência/deficiência das políticas públicas que deveriam contrabalancear os efeitos negativos das políticas e da conjuntura macroeconômica. Quanto ao quadro macroeconômico adverso, os estudos desenvolvidos pela FAO/INCRA apontaram a instabilidade monetária e a inflação elevada, deficiência nos serviços públicos de apoio ao desenvolvimento rural, políticas públicas voltadas à agricultura patronal, política cambial e comercial desfavorável: “na realidade, ao invés de promover o desenvolvimento rural e local, o conjunto de políticas públicas promoveu o esvaziamento do campo e inibiu o desenvolvimento local, em favor das grandes metrópoles e cidades médias” (BUAINAIN, ROMEIRO, GUANZIROLI, 2003, p.329). Segundo relatório da ONU para a agricultura e alimentação (2005), ainda em 1994, o INCRA e a FAO realizaram um estudo propondo vários instrumentos de política destinada à agricultura familiar. Essas instituições constataram que aproximadamente 75% dos estabelecimentos rurais no Brasil tinham características de produção familiar90, representavam 22% da área total, contavam com 60% do pessoal ocupado91 e detinham 28% do valor total da produção agropecuária. Outro dado conclusivo desse estudo foi que do total de estabelecimentos agrícolas que obtiveram financiamentos, 44,2% eram familiares, porém, captavam apenas 11% do

90 91

Segundo o Censo Agropecuário, produzido pelo IBGE, em 2009, esse número aumentou para 85%. No Censo agropecuário de 2009, produzido pelo IBGE, o número de mão-de-obra que a agricultura familiar brasileira emprega aumentou para aproximadamente 75%.

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

valor total dos recursos de fontes formais de financiamento. Assim, concluiu-se que a agricultura familiar necessitava de uma política de crédito especial, como já vinham reivindicando suas entidades representativas, o que será abordado no item seguinte deste trabalho. O combate à fome exigia políticas públicas governamentais de fomento à agricultura, uma vez que o acesso aos alimentos básicos de que a população necessitava, estava, intrinsecamente, relacionada com a maior capacidade produtiva no campo. Assim, ações políticas de fomento à agricultura tornaram-se algo necessário para se atingir esse fim. Outro elemento importante que mostrou a realidade dos agricultores familiares foi o Censo Agropecuário. Realizado entre 1995-1996, o censo aponta importantes aspectos da realidade da agricultura familiar naquele período: dos quase 5 milhões de estabelecimentos rurais existentes no Brasil nesse período, 4.139.369, ou seja, 85,2% eram estabelecimentos de agricultores familiares, que ocupavam somente cerca de 30,5% da área agrícola, e que mesmo ocupando uma pequena área respondiam por cerca de 37,9% do Valor Bruto de Produção (VBP), apesar de receber apenas 25,3% dos financiamentos agrícolas. No âmbito acadêmico, destacam-se os estudos realizados por Ricardo Abramovay92 e José Eli da Veiga93: no que diz respeito à legitimação acadêmica, em razão de trabalhos de qualidade e rigor, do deslocamento da agricultura familiar para o primeiro plano do debate em torno da política agrícola. Esses professores da Universidade de São Paulo, profundamente engajados na construção do PRONAF94, insistem sobre as potencialidades da agricultura familiar em dinamizar a economia (MARQUES, 2003, p.21).

A seguir, apresentaremos os principais atores sociais que influenciaram o subsistema de formulação do PRONAF.

ATORES SOCIAIS

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93

94

Professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA/USP, disponível em: http://www.abramovay.pro.br/curriculo.htm, acessado em 02/05/2012. Professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), disponível em: http://www.zeeli.pro.br/novo/, acessado em 02/05/2012. José Eli da Veiga assumiu a função de secretário executivo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável em agosto de 2001.

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Os anos 1990 foram marcados por grandes mobilizações da sociedade organizada ao redor dos problemas sociais que colocaram o Brasil entre as nações com maiores índices de desigualdade do mundo (MATTEI, 2006). Esse período foi decisivo para mudar os rumos do desenvolvimento rural. Movimentos como a CONTAG e o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da Central Única dos Trabalhadores

(DNTR/CUT),

passaram

a

organizar-se

e

direcionar

suas

reivindicações para a chamada ‘reconversão e reestruturação produtiva’ dos agricultores familiares, que também seriam afetados pela união aduaneira do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) (SCHNEIDER, 2004). A CONTAG buscou romper com a assimilação da pequena produção à agricultura de subsistência, salientando o potencial econômico da agricultura familiar, privilegiando assim os objetivos econômicos do apoio à agricultura familiar e em certa medida, “descuidando dos agricultores familiares marginalizados” (MARQUES, 2003, p. 23), e considerava o crédito como instrumento fundamental para a sua estratégia95. O triunfo notório da CONTAG, segundo Marques (2003), deve-se a propagação para todo o país do debate sobre o lugar da agricultura familiar nas políticas públicas e o debate sobre o modelo de desenvolvimento da sociedade, propondo uma alternativa à agricultura patronal, além alijar a agricultura familiar à agroecologia e a um novo equilíbrio social, menos desigual96. É importante observarmos que por trás das reivindicações dos movimentos sociais, o grande objetivo destes era a Reforma Agrária. No período que vai de 1992 a 1996, as pautas de reivindicações dos movimentos sociais iam muito além das reivindicações por uma política pública de fomento à agricultura familiar; lutava-se por assistência técnica, infraestrutura, conservação do meio ambiente, tecnologia, dentre outros. No entanto, durante as negociações com o governo, esses atores sociais acabaram colocando essas exigências em segundo plano, focando a demanda por crédito rural diferenciado, que dentre as diversas pautas, era considerada a mais

95

96

Marques afirma que “se, no início a CONTAG se opôs a clivagem entre as categorias dos agricultores familiares, a constatação de uma profunda desigualdade na distribuição do crédito do programa provocou a revisão desta posição. O novo objetivo era permitir que a agricultura familiar em transição tivesse acesso ao crédito. Efetivamente, algumas novas linhas de crédito permitiram o acesso de muitos agricultores ao sistema bancário. No entanto, a pouca adaptação deste sistema às características diversificadas dos agricultores familiares bloqueia uma parte importante dos financiamentos concebidos” (MARQUES, 2003, p.23). Fruto das manifestações do Grito da Terra, a CONTAG participou ativamente na elaboração do PRONAF, enquanto parceiro privilegiado do governo federal.

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urgente. Segundo Bittencourt97 (2003), os argumentos utilizados pelas lideranças sindicais na época eram: “não podemos discutir assistência técnica se não tivermos créditos para produzir”; “não podemos discutir alternativas de diversificação se não tivermos crédito”; “o meio ambiente é importante, mas precisamos ter renda para discutir a sua preservação” (BITTENCOURT, 2003, p.101). O crédito era, portanto, uma necessidade urgente para a grande maioria das mobilizações dos agricultores familiares. Em 1993 ocorreu em Chapecó (SC) o seminário “Crédito de Investimento – uma luta que vale milhões de vidas” organizado pelo DNTR/CUT. Neste seminário foi estruturada uma primeira versão do que poderia ser um programa nacional de fortalecimento da agricultura familiar (DESER, 1997). Nessa época travou-se uma grande discussão sobre qual deveria ser a bandeira central do movimento sindical naquele período. Segundo o boletim do Deser (1997), a bandeira escolhida foi a do crédito. Acreditava-se que o crédito seria o estopim de uma série de outras reivindicações dos agricultores familiares, colocando em pauta outras questões inerentes como assistência técnica, educação, pesquisa, formação profissional, estrutura e habitação. A proposta elaborada pelo DNTR/CUT apresentava uma diferenciação entre agricultores e agricultores familiares, apontando a necessidade de se criar um programa de crédito que contemplasse a diversidade existente no interior da agricultura familiar. Em 1994 ocorreu o “I Grito da Terra Brasil”. Trata-se de uma manifestação nacional coordenada pela CONTAG e pelo DNTR/CUT, que contava com a participação de diversas entidades representativas e de apoio a agricultura familiar. O “Grito da Terra Brasil” é organizado anualmente em vários estados e na capital federal, sendo entregue e negociado uma pauta de reivindicações aos governos estaduais e federal Segundo Amadeu Bonato98: os movimentos sociais pressionaram o governo e fizeram com que a necessidade de elaborar-se uma política pública voltada ao fomento da agricultura familiar entrasse na agenda do governo FHC através do “Gritos da Terra Brasil”, especialmente o primeiro (1994), focado na conquista de uma política diferenciada para os “pequenos agricultores” e na implementação da Previdência Social Rural (foi ocupado o Ministério da Previdência Social).

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Engenheiro agrônomo, secretário de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Mestrado em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente, pelo Instituto de Economia da Unicamp. Amadeu Bonato. Entrevista concedida a autora. Paraná: 2012.

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Observa-se que o domínio e a reprodução de um conjunto de formas de ação coletiva constituem instrumentos de poder dentro do movimento social e também uma estratégia para ocupar uma posição diferenciada na relação entre diferentes movimentos com temáticas semelhantes. Brandão (2011) destaca o crescimento do MST no final da década de 1980 e 1990, que ao utilizar como bandeira de luta a ocupação de terras, o MST diferenciou-se do tradicional sindicalismo rural e superou a crise de mobilização oriunda do esgotamento e da ineficácia das velhas formas de ação e reivindicação. O autor afirma ainda que: A “forma ocupação” foi peça-chave para as transformações na dinâmica das lutas agrárias, tanto no que diz respeito à competição entre os diferentes movimentos, quanto no que diz respeito à competição entre as diferentes gerações no interior do próprio movimento sindical. Assim, as disputas internas se travaram em torno das formas de luta, tornando-se um aspecto essencial no posicionamento dos agentes e dos movimentos: uma geração socializada nas greves e passeatas de 1979/1980, lutando prioritariamente por direitos trabalhistas, valia-se das glórias passadas e da experiência de negociações para defender um movimento reconhecido enquanto interlocutor dentro dos marcos da lei; do outro lado, se constituiu, com o tempo, um grupo de lideranças mais jovens que tinham pouco espaço nas diretorias (dos sindicatos e federações) e foram socializadas neste momento em que as velhas práticas de mobilização já não surtiam efeito, sendo seduzidos pela disseminação e sucesso das ocupações realizadas, principalmente, pelo MST (BRANDÃO, 2011, p.132).

Diversos autores99 destacam a importância intrínseca que os atores sociais tiveram no processo de criação do PRONAF: em larga medida, pode-se afirmar que o PRONAF foi formulado como resposta do Estado às pressões do movimento sindical rural, realizadas desde o final da década de 1980. O programa nasceu com a finalidade de prover crédito agrícola e apoio institucional aos pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados das políticas públicas até então existentes e encontravam sérias dificuldades de se manter no campo (SCHNEIDER, MATTEI, CAZELLA, 2004, p.02).

Os integrantes dos diversos movimentos sociais que contribuíram para criação do PRONAF também atuam em outras organizações, constituindo redes complexas e cheias de nós.

Os membros da Confederação Nacional dos Trabalhadores na

Agricultura (CONTAG) atuam no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e também compõem o governo, assim como o professor universitário que pertence a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), atua nos movimentos sociais integra o comitê técnico de formulação do PRONAF. 99

Dentre eles: Schnerider (2008), Cazella e Mattei (2004), Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (2005), entre outros.

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Destacam-se, na criação do PRONAF, os membros comunidade da política da agricultura familiar, os membros de organização de agricultores (sindicatos, federações, movimentos sociais), militantes da agricultura familiar com participação de diversas organizações, universidades, atores órgãos governamentais relacionados ao tema da agricultura familiar e organismos internacionais de combate à fome e segurança alimentar, como veremos adiante. Na tentativa de constituir uma base empírica que desse sustentação ao argumento teórico sobre as redes, realizaremos a seguir, uma breve reconstituição das trajetórias de nove militantes100 que, ao longo do tempo, atuaram tanto nas organizações sociais, quanto no governo e academia ou órgãos internacionais.

BREVE RECONSTITUIÇÃO DAS REDES EM TORNO DO PRONAF Reconstruiremos101, de maneira simplificada, a partir de pesquisa empírica 102, a trajetória de alguns atores103 chaves no processo de formulação do PRONAF, seja ocupando cargos de gestão no governo Cardoso, seja enquanto militante dos movimentos sociais ou intelectuais. Na tabela a seguir, apresentaremos a relação dos entrevistados e suas qualificações, bem como as instituições as quais pertencem: Tabela 1: Quadro de Entrevistas “A” “B”

Agricultor do Rio Grande do Sul, sindicalista, diretor de política agrícola da CONTAG e a presidente da entidade. Pertence a “Oposição Sindical”. Integrou a equipe de formadores da ESMA - Escola Sindical Margarida Alves, que por dentro da Articulação Sindical Sul (RS, SC, PR, SP e MS) fazia formação para lideranças e dirigentes das organizações do campo (organização sindical, movimento sem terra, barragens e mulheres) da região Sul.

100 A fim de preservar a identidade dos entrevistados, atribuímos letras ao invés dos seus respectivos nomes. 101 A reconstituição foi baseada na metodologia desenvolvida no artigo de SILVA, Marcelo Kunrath; OLIVEIRA, Gerson de Lima. A face oculta(da) dos movimentos sociais: trânsito institucional e intersecção Estado-Movimento – uma análise do movimento de Economia Solidária no Rio Grande do Sul. Sociologias, 2011. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/24520, acesso em 15/11/2013. 102 Para este trabalho, entrevistamos: Joacir Aquino, Amadeu Bonato, Sidemar Nunes e Elizário Toledo. As demais entrevistas foram realizadas pelo pesquisador Fábio Pereira dos Santos em “Coalizões de interesses e a configuração política da agricultura familiar no Brasil”, que gentilmente me permitiu a utilização, desde que houvesse a concordância dos entrevistados.. 103 Como destaca Silva e Oliveira, “a busca de entrevistados que expressassem nas suas trajetórias o mecanismo de trânsito institucional e a interpenetração entre movimento e partido possibilitou, por um lado, mostrar a pertinência do modelo de análise proposto. Por outro lado, no entanto, ela define um critério de seletividade que restringe o poder de generalização na análise” (SILVA, OLIVEIRA, 2011, p. 104).

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Em 1990, a equipe da ESMA foi incorporada ao DESER, criado em 1988. Foi assessor da CONTAG. Foi assessor de política agrícola na Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (FETAG/RS) por 10 anos. Formado em Ciências Sociais na UFRGS. Mestre em Desenvolvimento Rural (2009). Assessor de Meio Ambiente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, e professor universitário em Direito Ambiental e Sociologia Geral. Presidente da Sociedade Rural Brasileira e um dos coordenadores da Frente Ampla da Agropecuária. Professor Adjunto do Departamento de Economia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte há 10 anos. Estuda, desde 2001, o tema “Agricultura familiar e políticas públicas”, com enfoque na região nordeste. Foi coordenador do Centro de pesquisa liderado pelo prof. Sergio Schneider (PGDR/UFRGS). Assessor da CONTAG nas áreas de política agrícola e relações internacionais. Foi presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); membro da secretaria do Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura e Secretário-executivo do Conselho Nacional do PRONAF. Deputado federal por Goiás, fundador e ex-presidente nacional da UDR. Foi presidente da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados. Graduado em Agronomia, mestre em Sociologia e Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná. Professor da área de Sociologia e Extensão Rural da Universidade tecnológica Federal do Paraná.

“C”

“D” “E”

“F” “G”

“H” “I”

Ao longo das entrevistas, observou-se que um único ator pertence a diferentes instituições, compondo assim um complexo sistema de redes. As trajetórias de cada ator entrevistado e as instituições a qual ele faz parte podem ser resumidas na tabela a seguir:

Tabela 02: Principais espaços de inserção, interação e criação de redes entre os diferentes atores104 UNIVERSIDADE

SINDICATO

GOVERNO

PARTIDO

ORGANISMO

MOVIMENTO

POLÍTICO

INTERNACIONAL

SOCIAL

MILITANTE DO TEMA DA AGRICULTURA

“A”

“B”

104 As células preenchidas com a cor cinza indicam a inserção do individuo em determinada instituição, já as células em branco apontam para a ausência dessa relação.

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“C”

“D”

“E”

“F”

“G”

“H”

“I”

Pelo esquema acima, observamos que um mesmo ator frequenta diversos espaços, criando assim um complexo mosaico de redes entre eles. Os dados do quadro não apontam para uma centralidade de uma única instituição no processo político de criação do PRONAF, o que se observa é uma diversidade de instituições nas quais os indivíduos fazem parte e se relacionam. De acordo com as entrevistas, pode ser constatado que existem basicamente três percursos no tocante as origens entre os entrevistados: de um lado parte dos atores originados do governo (como “H” e “G”) de outro, atores da academia que realizavam estudos em instituições nacionais de pesquisa ou junto a órgãos internacionais (“I”, “C” e “E”), e por fim, os membros dos movimentos sociais sejam de direita ou esquerda (“A”, “B”, “D” e “F”). Outro ponto de destaque é a importância da Universidade na vida dos entrevistados, presente na trajetória da maior parte dos atores, sendo um indicador do transito institucional entre os agentes e um indicativo do alto nível de escolaridade dos agentes na formulação do PRONAF e na luta política dos movimentos sociais. A militância ao redor da agricultura, seja em prol das políticas agrícolas (“A”, “B” e “F”), ou agrárias (“D”), está presente em todos os agentes que formuladores do PRONAF.

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A seguir, faremos uma microanálise das redes de formulação do PRONAF, elencadas pelo entrevistado “G”105. MICRO ANÁLISE DA REDE AO REDOR DO PRONAF - ENTREVISTADO “G” O Entrevistado “G” foi por mais de 30 anos técnico do governo, ocupando os cargos de pesquisador e presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), e durante o período de formulação do PRONAF, secretário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Ele também é membro da academia, com mestrado em Economia Rural e doutorado em Sociologia Política. Durante o período em que foi presidente da EMPRAPA, “G” introduziu a temática da agricultura familiar na revisão do planejamento estratégico do órgão. Como, historicamente, há uma dicotomia entre os agricultores familiares e a EMBRAPA, “G” tentou articular a participação dos atores sociais, que reivindicavam uma política agrícola, com o órgão, no entanto: os atores ligados a agricultura familiar rejeitavam uma aproximação com a Embrapa. A Embrapa era o demônio porque ela servia aos grandes produtores. A nossa primeira grande luta foi atrair a principal liderança da época, e quase que única, que era a CONTAG, mais tarde surgiam o MPA, a FETRAF. Naquele momento a CONTAG era a interlocutora e com muita dificuldade conseguimos abrir uma conversa com ela e com Embrapa sobre o que seria a agricultura familiar106.

“G” afirma que uma rede de atores foi muito importante no processo de construção do PRONAF dentro do Ministro da Agricultura, comandado por Andrade Vieira, destacam-se Ana Peliano, pertencente ao programa Comunidade Solidária107 e a primeira dama, Ruth Cardoso: como ela (Ana Peliano) tinha um papel muito importante de criar uma política para inclusão social, ela via na história de um programa da agricultura familiar algo importante. E ela tinha um acesso muito forte a outra pessoa, que mais distante teve um papel importante, que foi a Dra. Ruth Cardoso. Então ela subsidiava a Dra. Ruth Cardoso que cumpriu um papel importante, por exemplo, eu tinha muitas dificuldades no acesso ao governo 108

Outro ator social que se destaca, segundo “G”, foi o presidente da CONTAG, Francisco Urbano, que por pertencer ao sindicato (CONTAG) e ao Partido da Social 105 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010. 106 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010. 107 Comunidade Solidária foi criado no início do governo Cardoso, com o objetivo de promover a participação cidadã e novas formas de diálogo entre o Estado e a Sociedade civil. 108 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010.

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Democracia Brasileira (PSDB), permitiu que o tema da agricultura familiar tivesse mais espaço na agenda de Cardoso: e teve um terceiro elemento muito forte que pro bem do PRONAF que era o fato do presidente da CONTAG o Francisco Urbano ser do diretório da executiva nacional do PSDB, então o Francisco Urbano talvez fosse o único, apesar do PSDB ser social democracia, portanto pressupõe-se relações sindicais, talvez fosse o único sindicalista peesedebista, então o Francisco Urbano teve um papel fundamental (...) se não fosse mo fato dele ser do PSDB, se ele fosse do PT dificilmente teria crescido o PRONAF no governo Fernando Henrique. A presença dele na executiva do partido fazia uma pressão ele puxava as principais lideranças do Fernando Henrique pra este projeto (...) o projeto só foi viabilizado como apoio direto do presidente, porque o Ministério da Agricultura aonde o projeto estava não dava apoio aquilo, tanto que foi fácil tirar o PRONAF de dentro do Ministério da Agricultura porque ele foi criado fora da estrutura do Ministério propositalmente, eu sabia que se seu internalizasse o PRONAF nas secretarias no primeiro momento em que eu deixasse de ser secretário acabava tudo, acabava tudo109. volto a dizer, só foi pra frente porque o Urbano no PSDB, a Dra. Ruth com a liderança que ela tinha e esposa do presidente, com a Ana Peliano, perturbando ela constantemente sobre o assunto, se criou 110.

Outros atores que foram fundamentais na elaboração do PRONAF foram os atores internacionais e os membros da academia, que formam uma rede complexa e cheia de nós: o mundo acadêmico foi fundamental. Quando eles viram os primeiros passos do PRONAF, começou a haver uma rede em torno, começou a chegar pessoas que eu não tinha muito contato, Zé Eli, Ricardo, Sérgio Schneider, Zander Navarro, veio um monte de gente que falava do assunto, o pessoal do nordeste começou a chegar junto, o Zé Graziano111.

A criação do PRONAF foi embasada em grande parte pelos estudos elaborados pelos membros da academia, o que aponta para alto grau de desenvolvimento técnico desta política e o respaldo de técnicos e pesquisadores: eu tinha uma coisa que era uma rubrica no orçamento chamada Coordenação do PRONAF, o que era essa rubrica? Essa rubrica era um dinheiro que a gente encomendava estudos, projetos pilotos dos mais variados para criar, buscar coisas novas foi daí que nos contratamos consultorias, alguns trabalhos do Ricardo e inclusive o Graziano, inclusive aquele Rurbano foi financiado com recurso do PRONAF, ponto de partida da amizade que eu tenho com o Graziano até hoje, foi daquilo ali, porque ele nunca imaginou que o governo do PSDB fosse financiar o trabalho dele, então ele, quer dizer que puxa, alguém com a cabeça que não fica presa, então a gente foi encomendando inclusive de visões diferentes, financiando experiências diferentes (...) Então nos tínhamos este recurso que ia financiando, financiando equipes acadêmicas, aqui tinha turma da USP trabalhando por 109 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010. 110 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010. 111 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010.

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trás do projeto da Agreco, o Rurbano do Graziano,e isto foi dando substância, legitimidade e força política pro PRONAF, atéla;’ porque estas forças tinham diálogo com os movimentos sociais mais do que o governo Fernando Henrique tinha então isto criou-se uma rede que foi realmente fundamental pra que o PRONAF avançasse e me foi fazendo grandes amizades ao longo do tempo por conta disso112.

As relações entre os diferentes atores ia além da luta pela criação do PRONAF. Em muitos casos esses agentes tornaram-se amigos, criando laços que ultrapassavam as relações profissionais, fortalecendo os nós existentes entre eles: uma pessoa que toda vez que vinha ao Brasil abordava o tema (agricultura familiar) com o Fernando Henrique, já de sociólogo pra sociólogo, foi o Ignacy Sachs, foi aí que me tornei amigo dele, porque toda vez que ia ao presidente e eles tinham, toda vez que ele vinha eles tinham reuniões sociológicas no palácio e ele defendia, fazia uma defesa da política de credito 113.

A figura a seguir ilustra alguns atores chaves ligados a criação do PRONAF, elencados durante a entrevista com “G”. Ressalta-se que essas esferas não são estanques, em nenhum caso houve ausência de intersecção/atuação em algum espaço; há a participação dos atores em diferentes instituições e organizações, durante todo o tempo, criando intersecções entre eles. Um mesmo sujeito transita e relaciona-se em diferentes esferas (acadêmica, militância política, governo, organismos internacionais, etc.). Figura 1: Atores114 no processo de formulação do PRONAF

Academia José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay, Sérgio Schneider, Zander Navarro, Zé Graziano, Ignacy Sanches

Governo: Ruth Cardoso, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Ana Peliano, Embrapa, Incra, Emater

Organismos Internacionais: FAO, ONU, estudos da FAO/IINCRA, Banco Mundial

Movimentos: Contag, DNTR/CUT, Fetraf, MPA, PT, PSDB, Francisco Urbamo, Amadeu Bonato, movimentos sociais, trabalhadores rurais

112 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010. 113 Entrevista concedida ao pesquisador Fábio Pereira dos Santos, outubro de 2010. 114 Os atores elencados na figura nº 01 são alguns dos diversos agentes importantes na criação do PRONAF. Nesta imagem, optamos por apresentar os nomes elencados por “G”.

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A seguir, apresentaremos os principais atores (sociais, governamentais e internacionais) que influenciaram o subsistema de formulação do PRONAF. CONCLUSÃO O surgimento do PRONAF inaugurou um novo marco histórico na intervenção do Estado na agricultura brasileira, já que o Estado não só reconheceu a importância da agricultura familiar na economia do país, como também reconheceu uma nova categoria social- os agricultores familiares-, que até então eram excluídos das ações estatais, e consequentemente das políticas públicas (SCHNEIDER, 2004). Neste trabalho discutimos, de maneira sucinta, as redes de formulação do PRONAF. Vimos que a criação dessa política só foi possível graças as redes complexas e cheias de nós entre seus atores. Na análise empírica da trajetória da construção e articulação ao redor do PRONAF, descrita em entrevista por “G”, observou-se que os membros dos movimentos sociais transitavam entre diferentes instituições como a academia, órgãos internacionais, governo, partido político e até mesmo outros movimentos sociais. Observamos, a partir das nove entrevistas realizadas e pesquisa bibliográfica, que a formulação do PRONAF deu-se, entre outros fatores, devido às lutas dos movimentos e organizações sociais, internacionais e governamentais de agricultores por uma política de crédito e, consequentemente, para o desenvolvimento rural. A inserção das reivindicações de uma política de crédito na agenda das políticas públicas, na gestão Cardoso, em grande parte, só foi possível, devido a interação entre os diversos atore e as negociação de pautas de políticas públicas. Embora os membros dos movimentos sociais que integraram os subsistemas de formulação do PRONAF não foram cooptados, instrumentalizados ou colonizados 115, o acesso desses atores não ocorreu no “alto escalonamento” hierárquico, como por exemplo, o cargo de ministro da agricultura, pecuária e abastecimento. A origem acadêmica de Cardoso possibilitou o ingresso de membros da academia, portadores de now how técnico, dentro do governo. Além do mais, esse período de criação dessa política foi marcado por fortes manifestações e mobilizações dos atores sociais, já que foi um dos primeiros governos pós-ditadura militar. 115 Um dos problemas do artigo de Silva e Oliveira (2011) é que os autores não explicam como medir o grau de cooptação, instrumentalização ou colonização que os agentes sociais estariam sujeitados.

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Por fim, ressalta-se que as redes constituem um excelente instrumento de análise das políticas públicas, tornando mais rico e complexo a construção histórica do conhecimento, afinal as políticas públicas de fomento à agricultura familiar não podem ser concebidas como instrumentos isolados. É preciso ter uma visão global do problema e reconhecer que, dada sua dimensão, não se trata apenas de integrar organicamente as políticas especificas de apoio à agricultura familiar à política macroeconômica e às políticas setoriais. Ao contrário, trata-se de definir uma estratégia de desenvolvimento nacional, políticas macroeconômicas e setoriais compatíveis com a proposta de estimular um padrão de crescimento econômico com equidade social, fortalecer as iniciativas individuais da pequena e média empresa urbana, a agricultura familiar, gerar empregos urbanos e rurais, reduzir a pobreza, dentre outros (BUAINAIN, ROMEIRO, GUANZIROLI, 2003).

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GT13 – SOCIOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

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GT14 – CONTROLE SOCIAL, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS

SERPENTES NEGRAS: FANTASMA DAS COMISSÕES DE SOLIDARIEDADE OU PRECURSORA DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (PCC)? Camila Caldeira Nunes Dias116 Fernando Salla117 Gustavo Higa118 Marcos César Alvarez119 Resumo: O artigo parte de duas experiências de organização e de representação dos presos no sistema penitenciário paulista: as Comissões de Solidariedade, nos anos oitenta, e o Primeiro Comando da Capital (PCC) nos anos noventa do século XX. Nos anos oitenta, a denúncia da existência de uma organização criminosa, denominada Serpentes Negras, ainda que jamais tenha sido comprovada, gerou um clima de tensão que articulou funcionários, diretores de presídios, sociedade civil, políticos e imprensa numa campanha de oposição às políticas de humanização dos presídios do governo Franco Montoro, com impacto direto sobre as Comissões de Solidariedade (símbolo da política de humanização) que acabaram deslegitimadas e desarticuladas poucos anos após a sua criação. Mesmo nunca comprovado, o rumor da existência das Serpentes Negras serviu não só para deslegitimar as políticas de humanização dos presídios como também para fundamentar o aumento da repressão e da violência institucional que atingiu o sistema prisional paulista na sequência do governo de Montoro. Desta forma, pretende-se discutir o papel que as Serpentes Negras tiveram no contexto em que emergem as denúncias sobre a sua atuação, os impactos provocados nas políticas governamentais e na dinâmica das prisões, bem como o eventual legado deixado no sistema prisional paulista. Independentemente de sua existência factual, as Serpentes Negras aparecem como a primeira experiência de um grupo organizado de presos, mais ou menos delimitado e identificado, e que, através de uma suposta rede de contatos, apresentaria um potencial de executar ações capazes de exercer forte pressão sobre o governo do Estado. Justamente por remeterem a uma experiência inédita nos cárceres brasileiros, as Serpentes Negras são apontadas por alguns como precursoras do PCC, atualmente a principal organização de presos do Brasil. Palavras-chaves: comissões de solidariedade, serpentes negras, PCC, prisões.

INTRODUÇÃO As sociedades modernas assumiram a custódia de seus agressores e a defesa de sua dignidade humana como obrigação moral. Os sistemas penitenciários brasileiros, antes de enfrentarem paradoxos da recuperação, fracassam nos requisitos mínimos da custódia – garantir a existência do 116 Professora UFABC, pesquisadora do NEV. Email: camila.dias@ufabc.edu.br 117 Professor da UNIAN, pesquisador do NEV. Email: fersalla@usp.br 118 Graduando em Ciências Sociais (USP), bolsista de Iniciação científica no NEV. Email: gustavo.higa@usp.br 119 Professor de Sociologia da USP, pesquisador do NEV. Email: mcalvarez@usp.br

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prisioneiro e a satisfação de suas necessidades básicas. O que aprendemos no Depósito de Presos, na Ilha Grande, no Galpão da Quinta e nas inúmeras cadeias públicas brasileiras é que cada sistema penitenciário cria as “falanges” e “serpentes” que merece. (PAIXÃO, 1987).

O presente paper decorre de uma pesquisa que vem sendo realizada no Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP) sobre as dinâmicas prisionais no Estado de São Paulo desde os anos 1980. A pesquisa tem se dedicado a analisar as formas de organização dos presos, as relações estabelecidas com o staff que administra as prisões e os efeitos derivados dessas relações sobre a ordem prisional. O estabelecimento da chamada “Política de humanização dos presídios”, durante o governo Franco Montoro (1983-1986), inaugurou uma prática de condução do cotidiano prisional que buscava a participação de presos e de funcionários na gestão institucional. Foram, na época, formadas as Comissões de Solidariedade (CS) em duas unidades prisionais, reconhecidas e legitimadas pelas autoridades da Secretaria da Justiça. No entanto, as comissões tiveram existência breve, uma vez que funcionários, setores políticos, parte da imprensa, parlamentares e autoridades do judiciário condenaram aquela iniciativa de recomposição da gestão prisional. Umas das principais peças na desqualificação das comissões foi a denúncia, nunca efetivamente comprovada, de que elas estariam sendo manipuladas por uma organização criminosa chamada Serpentes Negras. A breve e frustrada existência das comissões, ou seja, de efetivos canais legitimados de expressão dos presos e de comunicação com as autoridades, juntamente com as crônicas condições degradantes de encarceramento, abriram espaço para que outras formas de organização de presos se constituíssem, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), no início dos anos noventa. No entanto, a lógica de organização e atuação desse grupo pouca correspondência guarda com a experiência das comissões dos anos oitenta (ALVAREZ, SALLA & DIAS, 2013). De fato, esse grupo de presos se impôs à massa carcerária pela violência e, ao mesmo tempo, buscou fundamentar sua “legitimidade” com base nas denúncias das deficiências do sistema prisional e também a partir dos códigos de conduta formulados a partir do mundo do crime. Pretende-se explorar neste texto a compreensão das tais Serpentes Negras a partir basicamente de material coletado junto à imprensa da época e aos documentos

pertencentes

à

Comissão

Teotônio

Vilela,

organização

não-

governamental que participou ativamente dos debates sobre as iniciativas de modificar as práticas de organização interna das prisões brasileiras. O argumento

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GT14 – CONTROLE SOCIAL, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS central é o de que a denúncia da suposta “organização” das Serpentes foi decisiva para reverter as iniciativas de democratização das estruturas de controle social, de reorganização da ordem prisional, de respeito aos direitos dos presos, segundo a Lei de Execução Penal (LEP).

O CONTEXTO Depois de vinte anos de regime militar autoritário, no início dos anos 1980 o Brasil entrou numa fase de transição para a democracia. Os aparatos de controle social, como a polícia e os presídios, estavam entre os principais espaços a serem democratizados, depois de darem respaldo para as arbitrariedades do regime autoritário. Em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os governos que haviam sido eleitos para o período de 1983-1986 deram início a políticas que tentaram democratizar aqueles aparatos, o que significava retirar deles parte da herança de violência, de arbitrariedade e de autoritarismo. Em São Paulo o governador Franco Montoro instituiu a Política de Humanização dos Presídios, que entre outros aspectos, buscou criar canais de representação e de participação dos presos no cotidiano institucional por meio das Comissões de Solidariedade (CS)120. Incentivadas pela própria administração da Secretaria da Justiça, então responsável pelos presídios em São Paulo, as Comissões se constituíam como um campo de negociação entre presos e funcionários em torno da agenda dos direitos estabelecidos na Lei de Execução Penal (LEP) de 1984. As Comissões foram formalizadas por meio de um regulamento que previa a forma de sua organização dentro de uma lógica de previsibilidade e de transparência das regras. Foram constituídas duas comissões no sistema penitenciário paulista – uma na Penitenciária do Estado e outra na Penitenciária de Araraquara. Ambas tiveram, no entanto, vida efêmera e sofreram forte resistência de alguns setores da sociedade. O principal ataque desqualificador das Comissões surgiu com a denúncia de existência de um grupo de presos matadores, supostamente denominado Serpentes Negras, que teria como objetivo dominar a massa carcerária utilizando-se, para tanto, das CS (Góes, 1991). Além de forte oposição às Comissões, promovida pela própria administração prisional e funcionários, juntaram-se membros do poder judiciário, parte 120 Para uma análise do sistema carcerário na década de 1980, ver Coelho (1987[2005]) para o caso do Rio de Janeiro, Ramalho (1979) para São Paulo e Paixão (1987) para Minas Gerais.

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da imprensa, a oposição política etc., que sustentaram a existência, nunca efetivamente demonstrada, das Serpentes Negras.

AS SERPENTES NEGRAS Em junho de 1984 o juiz-corregedor Haroldo Pinto da Luz Sobrinho finalizou uma investigação acerca da situação dos presídios no Estado de São Paulo, efetuada durante dois meses nas penitenciárias de Itirapina, Araraquara, São José do Rio Preto, Bauru, Pirajuí e Avaré, colhendo depoimentos dos diretores, guardas, detentos e seus familiares. As informações levaram-no a concluir que havia uma situação de crise latente no sistema, devido à existência de uma organização carcerária clandestina denominada Serpentes Negras.

No mesmo mês, o juiz-corregedor

encaminhou a denúncia121 da existência de tal organização diretamente ao Conselho Superior de Magistratura. Segundo o juiz, a organização visava exercer o poder interno e paralelo nos presídios por meio das comissões de solidariedade122, formadas na administração do então secretário da Justiça, José Carlos Dias, sobretudo na Penitenciária do Estado e na Penitenciária de Araraquara. Esse grupo estaria relativamente bem organizado e com capacidade de ação conjunta em outras unidades prisionais em São Paulo. As ações estratégicas esperadas para pressionar as autoridades seriam, em grande parte, greves de trabalho e de fome, recusa de apresentação em processos, não sair das celas, não permitir revistas pessoais, não se barbear e fugas em massa. Tanto o secretário de Segurança Pública, Michel Temer, quanto o secretario de Justiça, José Carlos Dias afirmaram desconhecer a existência de um grupo organizado nas proporções da denúncia e encaminharam uma investigação, por meio da instalação de uma sindicância administrativa, para averiguar a situação 123. José Carlos Dias acreditava que a denúncia era um ataque direto à política de humanização dos presídios que estava sendo paulatinamente aplicada no período, sendo as Comissões de Solidariedade seu principal símbolo. No final do mês de junho de 1984, o Conselho Superior de Magistratura decidiu também encomendar uma minuciosa 121 A denúncia foi publicada na íntegra no jornal O Estado de S. Paulo no dia 23 de junho de 1984. 122 Durante o governo Franco Montoro (1983-87), na gestão José Carlos Dias houve um forte incentivo da própria administração à formação das comissões havendo inclusive uma assessora para assuntos penitenciários (Maria Ignez de Oliveira Sampaio) encarregada de acompanhar a instalação e funcionamento das comissões. 123 Folha de S. Paulo, 23/06/84.

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investigação a uma comissão de desembargadores da seção criminal, liderada por Prestes Braga, que, em 60 dias, daria uma posição final e oficial sobre o caso, que estava gerando agitação entre autoridades e presos. O ponto essencial da denúncia foi a vinculação das Comissões de Solidariedade com as Serpentes Negras. De acordo com Haroldo Sobrinho, esse grupo havia se infiltrado e dominado as comissões – e agia por meio delas. O caso efetivamente foi utilizado como elemento no campo das disputas políticas em torno do programa de humanização dos presídios. Segundo Haroldo Sobrinho, as liberdades e “regalias” concedidas às comissões deram espaço e oportunidade para que um determinado grupo se organizasse e impusesse de maneira violenta sua influência sobre os demais presos e a administração do presídio. O caso tinha tom de gravidade e foi recebido de forma conflituosa entre as autoridades governamentais, assim como entre os presos e funcionários dos presídios, ao polarizar opiniões acerca da existência do grupo e em torno do objetivo da própria denúncia de Haroldo Sobrinho. Mesmo a secretaria da justiça tendo proibido que funcionários e presos se manifestassem publicamente, a imprensa conseguiu inúmeros depoimentos, muitos deles expressando revolta e insegurança. Na Penitenciária do Estado, por exemplo, a existência das Serpentes era supostamente conhecida como coisa antiga pelos guardas, que diziam ter conhecimento da existência de muitos grupos organizados com um tipo de acordo de proteção mútua, mas que não necessariamente eram, até o momento, denominados Serpentes Negras124 e não sabiam se realmente controlavam as Comissões visando interesses específicos. O espaço cedido pelos jornais era utilizado pelos funcionários principalmente para relatar como as comissões de solidariedade operavam de modo a favorecer a organização do crime. Colunas inteiras foram dedicadas às opiniões, investigações e andamento do caso. Em geral os agentes carcerários na época sentiram-se indignados com as “liberdades” concedidas aos presos e se viam em uma situação desvantajosa, pois, além de sentirem sua autoridade diminuída pelas reformas do governo, também frustravam-se com a imagem que a imprensa e organizações pró-direitos humanos faziam, ao inverter os papeis que acreditavam ocupar: eles, os agentes, vistos como criminosos, por violarem direitos, e os presos, como vítimas que sofriam as arbitrariedades heroicamente (COELHO, 2005).

124 O Estado de S.Paulo 26/06/1984.

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Apesar de pressionado, José Carlos Dias não recuou em relação à defesa das comissões, que, segundo ele, apresentavam resultados positivos como um elemento tranqüilizador e que conscientizava os presos de seus deveres e direitos, ao estimular o constante diálogo na base do respeito com a direção do presídio e retrair cada vez mais as atitudes revoltosas e violentas, como os assassinatos e rebeliões. Para Dias, as comissões eram um canal de comunicação que trazia tais benefícios e era fundamental que continuassem a operar125. De fato, a denúncia da existência das Serpentes e o possível vínculo com as comissões acabaram gerando um retrocesso nas tendências reformistas que buscavam alcançar o sistema penitenciário. A política de humanização dos presídios foi “deslegitimada”, houve a reconfiguração de alguns avanços obtidos pelos presos, em termos de seus direitos, e, embora já tivesse sido paralisada em 1984, a extinção oficial da própria Comissão de Solidariedade se deu em 1987126. A massa carcerária, nesse processo, revoltou-se contra os efeitos negativos do rumor, aumentando ainda mais a tensão no sistema, pois grande parte frustrava-se com os efeitos negativos que o boato gerava para sua condição; diziam não ser justo pagarem por algo que não existia, mas que funcionava como um pretexto para justificar ações políticas que comprometiam seus direitos. Para estimular ainda mais a indignação de uns e justificativas de outros, todas as mortes, as fugas e as desobediências eram imediatamente associadas, pelo setor que defendia a existência da facção, como um plano da mesma – assim como a maioria dos problemas de indisciplina eram associados às tais Serpentes. A secretaria da Justiça responsabilizou a imprensa por estimular o clima de agitação, medo e revolta nos presídios. A maneira como a situação se tornava pública, variava de acordo com as fontes e o objetivo de cada órgão. Ficava evidente que a mídia nada tinha de imparcial, ao seguir interesses políticos e, operar em muitos casos como ferramenta de difusão e de formação de opiniões, por vezes com teor sensacionalista e finalidade comercial - ainda mais em um período de transição de regime e de certa instabilidade política. Houve uma disputa pela verdade sobre a existência das Serpentes e um dos palcos foi o espaço que os jornais davam para as autoridades envolvidas com o caso e seus atores, como guardas e presos, que ganharam canais para expressar sua posição e descontentamento com a situação. As 125 O Estado de S.Paulo 23/06/1984. 126 Folha de S. Paulo, 19/05/1987.

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opiniões se polarizaram relativamente em duas frentes: por um lado a Folha de S. Paulo que buscava o tempo todo mostrar o caráter fictício da denúncia e sua tentativa de desestabilizar a política de humanização de acordo com interesses de setores conservadores; por outro lado, O Estado de S. Paulo que afirmava de forma veemente a existência das Serpentes e a incapacidade da secretaria da Justiça em manter o controle nos presídios. Esses dois veículos foram, de certa forma, “palcos” dessa disputa e polaridade de opiniões, ao servir como uma espécie de vitrine para o caso. Em decorrência dos debates públicos sobre as Serpentes, algumas mudanças na dinâmica administrativa das prisões vieram à tona e muitas proibições entraram em vigor, inclusive a interrupção das visitas de familiares e o acesso da mídia a qualquer unidade prisional, por decisão da Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado de São Paulo (Coespe), que buscava diminuir principalmente a agitação dos internos127. Pouco depois,a Coespe propôs reformas na estrutura e modo de atuação das comissões de solidariedade, iniciando na prática a desarticulação dessas comissões e o processo de decomposição 128 do programa de humanização dos presídios, de acordo com as pressões políticas que se colocavam. O juiz Haroldo Sobrinho, apesar das afirmações, não apresentou provas concretas sobre o caso, mesmo dizendo que possuía documentos comprobatórios. Seu principal informante era o detento Derney José Gasparino, que dizia ter certeza acerca da existência das Serpentes e possuir documentos com nomes e atividades do grupo que, segundo ele, atuava desde 1973 visando proteção mútua, representação e defesa dos direitos dos presos129. Derney se apresentou em uma coletiva de imprensa para falar sobre o caso, seguindo um acordo feito com o juiz Haroldo Sobrinho, o que resultaria em sua transferência para o regime de prisão domiciliar em troca da colaboração com as investigações. Seguindo a tendência da recompensa por informações, cada vez mais presos se disponibilizaram a “cooperar” com depoimentos que, com o tempo, ganharam dimensões e enredos nebulosos, tais como a existência de supostos pactos de sangue, estátuas de cobra, formação de seitas e planejamento de conspirações, que indicariam a existência e poder do grupo. Todos os depoimentos desse gênero foram encarados, pela secretaria de Justiça,

127 Folha de S.Paulo, 27/06/1987. 128 Folha de S.Paulo 8/07/1984. 129 Folha de S.Paulo 9/7/1984.

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como ficções cujo objetivo era desqualificar a política de humanização dos presídios e obtenção de benefícios políticos. Cumprido o prazo de 60 dias, a Comissão Especial de Inquérito concluiu as investigações e entregou o esperado relatório sobre o caso. O Conselho Superior da Magistratura recebeu as conclusões do relatório e, em linhas gerais, Prestes Braga, presidente da comissão, anunciou que a organização existia nominalmente e em pequena proporção; mas de fato não possuía as dimensões que a denúncia relatava e tão pouco detinha o controle das Comissões. O que pôde ser comprovado foi a existência de “quadrilhas dos tempos modernos”, perigosas e que tinham por objetivo fugas – grande ideal dos presos – com o uso de violência, audácia e arrojo. O relatório concluiu que o sistema penitenciário estava em crise e suas principais deficiências eram a falta de assistência judiciária, vagas e oficinas aparelhadas para evitar a ociosidade dos presos. A comissão propôs também a criação de uma subprocuradoria destinada especificamente a atender as solicitações dos presos, em uma tentativa de atender essa necessidade imediata130. Haroldo Pinto da Luz Sobrinho se negou a comentar o relatório e pouco a pouco foi distanciando-se da esfera pública, saindo definitivamente da corregedoria no ano seguinte, início de 1985131. Após a apresentação dos resultados da CEI, o caso deixou de ocupar espaço relevante nos jornais. Porém, as denúncias, ainda que infundadas, e o debate público que as acompanharam foram suficientes para acabar com a experiência das comissões nas duas penitenciárias e neutralizar em grande parte a política de humanização que tentava implementar novas formas de gestão do cotidiano prisional. As Serpentes funcionaram como uma espécie de pretexto para justificar a oposição política à democratização dos espaços prisionais. Mais do que isso, a desarticulação dessa experiência inovadora de organização dos presos, legitimada pelas autoridades, a manutenção de uma perspectiva de negação dos direitos dos presos e de um controle autoritário sobre eles foram em grande parte os elementos responsáveis pela emergência, no início dos anos 1990, de vários grupos de presos, organizados, violentos e operando numa lógica mais do mundo do crime do que da luta por direitos

130 Nota-se que a proposta procura estabelecer um canal de comunicação com os presos, o que representa em parte o reconhecimento de que havia uma situação não solucionada de atendimento das demandas dos presos em torno dos seus direitos. 131 Folha de S.Paulo 27/02/1985.

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CONCLUSÃO A prisão configura-se como um complexo sistema social, com regras próprias e bem compartilhadas, que operam por meio da relação estabelecida entre os atores sociais envolvidos, principalmente os presos e funcionários que vivenciam diariamente essa sociedade “intramuros”. Cada condenado que chega à prisão deve se adequar (ou será coagido) a essas regras e logo será posicionado socialmente nesse espaço (COELHO, 2005). Existe uma rede social interna que possibilita o desenvolvimento de toda uma “economia delinqüente”, dotada de circulação de bens, de serviços, de capitais e de códigos de conduta compartilhados entre os presos e os guardas, que configuram, no convívio mútuo, uma complexa ordem social, com seus modos próprios de representação e de relações de poder específicas da condição cativa (SYKES, 1974). Os resultados da CEI que confirmou a existência de vários grupos organizados nas prisões em São Paulo são compreensíveis tendo em vista a condição cativa dos presos, que permite certo nível de organização, com regras próprias e bem estabelecidas. A questão a ser levantada não é a de se a organização Serpentes Negras existiu ou não, mas situar esse fenômeno no período em questão e analisar seus efeitos, mapeando o contexto de mudanças que propiciou a existência desse boato, de acordo com as ressonâncias políticas e sociais da época. Sustenta-se aqui que esse rumor contribuiu para obstruir canais de comunicação e de representação dos presos, que, por sua vez, ao serem eliminados, estimularam posteriormente a organização de um grupo que construirá sua legitimidade a partir da denúncia das arbitrariedades da instituição prisional. É interessante cogitar até que ponto os efeitos desse caso estimularam as disposições e posições que os presos tomaram em relação à reivindicação de direitos básicos, conscientizando-se de seu papel como atores legítimos na sociedade. Não se pode afirmar com precisão se houve qualquer ligação efetiva entre Serpentes Negras e PCC. Novas pesquisas podem avançar nessa direção procurando identificar, ainda na década de 1980, possíveis organizações de presos que seriam embriões daquelas que se formariam na década seguinte e que tiveram maior consistência e maior capacidade de liderança sobre a massa carcerária.

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De qualquer modo, talvez o Primeiro Comando da Capital (PCC), que surgiu dez anos depois da experiência das Comissões de Solidariedade e que tem sido visto como o maior dos pesadelos das autoridades nas duas últimas décadas, possa ser melhor compreendido a partir da análise de experiências anteriores como a aqui descrita. Nesse sentido, a recuperação da história de experiências de mudança do sistema prisional pode revelar obstáculos ainda presentes quando se pretende efetivar políticas de democratização das relações estabelecidas dentro dos cárceres 132. Se isso, em si, não chega a ser novidade, a experiência das comissões de solidariedade e o seu suposto lado reverso, as Serpentes Negras, constituem valioso material empírico cuja análise pode jogar luzes sobre questões contemporâneas, como o fortalecimento, a partir da prisão, de organizações de presos que têm desafiado o Estado brasileiro e que são consideradas pelas autoridades como um dos principais problemas na área da segurança pública.

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132 Aqui, não entraremos em detalhes sobre o .processo de expansão do PCC e nem em relação ás práticas do PCC. Sobre o PCC, ver: Dias (2013);ALVAREZ, SALLA & DIAS (2013)

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GT14 – CONTROLE SOCIAL, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS GÓES, E. M. A recusa das grades: Rebeliões nos presídios paulistas – 1982-1986. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Assis, 1991. GOES, E. M. “Transição política e cotidiano penitenciário”. História [online]. 2004, vol.23, n.1-2 [cited 2013-06-24], pp. 219-238 JOZINO, J. Cobras e lagartos: A vida íntima e perversa nas prisões brasileiras – Quem manda e quem obedece no partido do crime. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. PAIXÃO, L. A. Recuperar ou Punir? como e Estado trata o criminoso. São Paulo: Ed. Autores Associados, 1987. RAMALHO, J. R. Mundo do Crime. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. SALLA, F. “De Montoro a Lembo, as políticas penitenciárias em São Paulo”. Revista Brasileira de Segurança Pública, Ano 1, Edição 1. 2007, pp. 72-90 SALLA, F. “Considerações sociológicas sobre o crime organizado no Brasil.” Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.71, 2008, p. 364-390. SYKES, G. M. The socyety of captives: a study of a maximum security prison. Princeton: PrincentonUniversity Press, 1974. TEIXEIRA, A. Do sujeito de direito ao estado de exceção: O percurso contemporâneo do sistema penitenciário brasileiro. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2006.

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CORPOS ATLETAS: DOPING E POLÍTICAS DA AGÊNCIA MUNDIAL ANTIDOPING (WADA-AMA) Viviane Teixeira Silveira133 Resumo: Neste artigo nosso objetivo é, fundamentalmente, apresentar a estrutura organizacional de uma agência que promove, coordena e monitora a luta contra o doping no esporte mundial – a Agência Mundial Antidoping. Nossa intenção foi utilizar os conceitos de biopolítica e de governamentalidade para pensar as políticas transnacionais de doping que visam governar corpos dopados e não-dopados. Traçamos nossa reflexão a partir da análise dos testes “fora de competição”. O funcionamento, a estrutura e as políticas da WADA são aqui analisados como dispositivos biopolíticos que operam fundamentalmente no policiamento dos corpos atléticos. Os estudos de governamentalidade de Michel Foucault auxiliam no sentido de pensar a WADA como instituição transnacional com suas práticas de regulamentação que formalizam as políticas antidoping em todos os países. A partir de todo conjunto de políticas antidoping proposto pela WADA, sugerimos que ela constrói uma cultura de vigilância sobre o corpo atleta, produzindo uma disciplina e uma regulação das condutas dos corpos atléticos. A WADA não se limita a operar para detectar quem está dopado e quem não está por meio da realização de testes de drogas e penalizar os atletas que se supõe terem consumido substâncias proibidas. Pelo contrário, as tentativas da WADA são para governar práticas de dopagem por meio da administração de uma série de programas e a implantação de mecanismos disciplinares e biopolíticos. A WADA constrói uma cultura de vigilância sobre o corpo atleta, não somente um disciplinamento dos corpos atléticos, mas também um governamento sobre a saúde e o desempenho tanto dos atletas de alto rendimento, como também expandindo suas ideias de esporte e saúde para toda população, posto que o corpo atleta é considerado como a norma do corpo saudável, padrão a ser seguido, guardadas as proporções, por toda a população. Nesse sentido o antidoping é tomado aqui como uma tecnologia fundamental de governamento dos corpos atletas, de como os seus efeitos se refletem na produção de corpos sadios, em uma ligação entre esporte e saúde. Palavras-chave: Antidoping, WADA, biopolítica, governamentalidade. A AGÊNCIA MUNDIAL ANTIDOPING (WADA-AMA) Com a Segunda Guerra Mundial surgem no mercado duas substâncias extremamente eficientes para aumentar a performance dos atletas de modo artificial: o anabólico esteroide e a anfetamina. Os anabólicos esteroides foram utilizados no período pós-guerra como um meio para auxiliar na reestruturação do sistema muscular dos prisioneiros, principalmente dos que foram encontrados em um estado 133 Profª Dra do Departamento de Educação Física da Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, vivianeteixeirasilveira@gmail.com

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avançado de desnutrição, debilitados pelas batalhas e pelas condições difíceis do cárcere (HOBERMAN, 1992). A utilização dos anabólicos para aumentar a massa muscular chegou ao esporte por meio da modalidade de levantamento de peso, alcançando atletas de atletismo, em provas de velocidade e lançamentos. A anfetamina, por sua vez, fora usada para melhorar a capacidade dos comandos de guerra, eliminando a fome, a sede, o sono e a fadiga. (HOBERMAN, 1992). A anfetamina, utilizada nos esportes do tipo aeróbico, e os anabólicos esteroides, nos esportes de força e potência, foram as substâncias mais usadas entre 1936 e 1964, período no qual seis Jogos Olímpicos foram realizados (excluindo o período da Segunda Guerra Mundial). Segundo material elaborado pelo Comitê Olímpico Brasileiro para informações sobre o uso de medicamentos no esporte, “o doping nos Jogos culmina com a morte de um ciclista finlandês por overdose de anfetamina em Roma (1960), e com o uso massivo de esteroides anabolizantes em Tóquio (1964), que repercutiu de uma forma extremamente negativa para o Movimento Olímpico.” (COB, 2009, p.11). A necessidade de vigilância e de controle operacional dos atletas passa a ser evidente em virtude de algumas “descobertas” de casos de doping. Até a década de 1960, o controle antidoping era feito pelo próprio Comitê Olímpico Internacional (COI), que, em 1967, instituiu uma Comissão Médica para lidar com o uso de substâncias proibidas entre atletas de alto nível134. Em 1968, nos Jogos Olímpicos do México, foi realizado o primeiro teste antidoping. A comissão médica argumentou três razões para a realização do exame: proteger a saúde das atletas, preservação médica e ética esportiva, reforço da igualdade entre todos os competidores. Os Jogos de Munique (1972), Montreal (1976) e Moscou (1980) já contavam com uma lista de classes farmacológicas proibidas, incluindo três tipos de estimulantes (estimulantes psicomotores, aminas simpaticomiméticas e estimulantes do sistema nervoso central), bem como os narcóticos analgésicos. Os anabólicos esteroides foram acrescentados pouco antes das Olimpíadas de 1976.

134 Essa Comissão Médica era dirigida pelo Príncipe belga Alexandre de Merode e formada por especialistas em Medicina do Esporte e Toxicologia, entre eles três integrantes do Comitê Executivo da Federação Internacional de Medicina do Esporte (FIMS): Giuseppi Lacava (Itália), Ludwig Prokop (Áustria), Albert Dirix (Bélgica) e Eduardo Hay (médico-chefe dos Jogos Olímpicos do México, 1968) (COB, 2009).

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Os Jogos de Los Angeles (1984)135, Seul (1988), Barcelona (1992)136 e Atlanta (1996) tiveram um alto número de casos positivos de doping. Em função desse aumento no número de casos, algumas modificações foram implementadas pela Comissão Médica do COI na lista de substâncias e métodos proibidos. Por exemplo, nos Jogos de Los Angeles, após a descoberta da utilização de betabloqueadores por atletas do tiro e do uso de diuréticos no boxe e no judô, com efeitos positivos sobre a performance do atleta, o COI incluiu essas substâncias, até então legais, na lista das proibidas. Pouco tempo depois de Seul, o controle fora de competição sem aviso prévio137 foi implantado, inicialmente pela Federação Internacional de Atletismo (IAAF) e, logo após, pela Federação Internacional de Halterofilismo (IWC) e pela Federação Internacional de Natação (FINA). Após algumas críticas quanto à efetividade dos testes antidoping, apontou-se a necessidade de um controle independente, com o argumento de que somente isso poderia resolver as disputas políticas no sentido de normas mais rígidas para o cumprimento das penalidades138. Na Conferência Mundial sobre Doping no Desporto, realizada em Lausanne em fevereiro de 1999, alguns representantes do desporto internacional sugeriram corrupção, falta de responsabilidade e falha na liderança do Comitê Olímpico Internacional no controle de drogas, solicitando então, a criação de uma agência antidoping totalmente independente do COI139 (HOBERMAN, 1999). O COI e outras federações desportivas internacionais, dirigentes esportivos, atletas, representantes governamentais e intergovernamentais (tais como a Organização Mundial da Saúde e das Nações Unidas), apontaram as limitações

135 Foi também nos Jogos de 1984, pela primeira vez, que se proibiu um método: a transfusão de sangue. Pouco antes das Olimpíadas de Seul, incluiu-se álcool, anestésicos locais e corticoesteróides (COB, 2009). 136 Uma decisão tomada após os Jogos Olímpicos de Barcelona diz respeito à introdução da coleta de amostras de sangue para permitir uma melhor determinação de hormônios peptídicos, complementando as técnicas usadas na urina. 137 O controle sem aviso prévio foi introduzido com o intuito de que não fosse mais possível para os atletas usar anabólicos esteroides durante o período de treinamento para o incremento da massa muscular, interrompendo a utilização nas vésperas das competições, como era recorrente até então. 138 Por exemplo, as demandas das federações internacionais de Ciclismo e de Futebol, por meio de seus presidentes Hein Verbruggen (UCI) e Joseph Blatter (FIFA), respectivamente, solicitaram flexibilização em relação às penalidades. Além disso, Verbruggen foi protestar contrariamente à realização de testes de sangue para EPO nos atletas, mesmo com todo o escândalo de doping do Tour de France de 1998. 139 A Declaração de Lausanne, emitida pelo COI após a Conferência Mundial sobre Doping no Desporto (1999), incluiu uma resolução pedindo uma agência internacional antidoping independente para funcionar já nos Jogos Olímpicos de Sydney (2000) e com um capital inicial estimado no valor de US$ 25.000,000 (Declaração de Lausanne, 1999).

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existentes no sistema de controle de doping e, simultaneamente, discutiram maneiras para controlar efetivamente o uso de drogas proibidas. Eles propuseram criar uma agência antidoping transnacional, que poderia, de forma independente e eficaz, reger as práticas de doping. Diversas organizações e Estados declararam que iriam apoiar a agência a ser chamada de World Antidoping Agency – Agence Mondial Antidopage – WADA-AMA. Em 10 de novembro de 1999, cerca de dez meses após a conferência de Lausanne, a WADA foi oficialmente criada, com sede permanente, a partir de 2002, em Montreal, Canadá (PARK, 2005). O CÓDIGO MUNDIAL ANTIDOPING (CODE)140 Dos Jogos Olímpicos de Sidnei (2000) em diante, a lista de produtos proibidos passou a ser elaborada pela Agência Mundial Antidoping, e não mais pela Comissão Médica do COI, como até então acontecia. A partir desse momento, a Comissão perdeu o poder de julgar casos de doping nos Jogos Olímpicos. Em Atenas (2004)141, foi utilizada, pela primeira vez, a Lista de Substâncias e Métodos Proibidos feita pela WADA. Segundo a WADA, o código é o primeiro documento para harmonizar e reforçar as ações em matéria de antidoping em todos os esportes e países. O código trouxe objetivos, regras e formas de controle mais rigorosos do que os anteriormente em vigor, sendo configurado para fornecer uma estrutura básica para as políticas antidoping, regras e regulamentos no seio das organizações desportivas e entre autoridades dos setores públicos, com o intuito de garantir um coordenado e eficaz programa no que diz respeito à detecção, à dissuasão e à prevenção do doping. Os princípios fundamentais do Código Mundial Antidoping são: “Ética, fair play e honestidade; Saúde; Excelência no rendimento; Personalidade e educação; Divertimento e satisfação; Trabalho de equipe; Dedicação e empenho; Respeito das regras e das leis; Respeito por si próprio e pelos outros participantes; Coragem e Espírito de grupo e solidariedade” (CODE, 2003, p. 8).

140 A versão do Código Mundial Antidoping utilizada nesta pesquisa é uma tradução oficial para a língua portuguesa, datada de 2003, disponível on-line no site da WADA. 141 Em Atenas, pela primeira vez, o hormônio de crescimento foi pesquisado no sangue, em caráter experimental, com 380 amostras coletadas em todos os esportes.

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Esses princípios reafirmam o ideário olímpico de Pierre de Coubertin 142, que seria uma conciliação entre valores românticos (noções de honra, dever, autossuperação, fair play, excelência moral) e valores iluministas (individualismo, universalismo, crença no poder transformador da educação e valor da competição) (TAVARES, 2003). Courbetin tinha como pressuposto que, pela educação, a personalidade poderia ser moldada, crença na tradição humanista e racionalista, herdeira do projeto pedagógico baseado na razão como fonte de aperfeiçoamento da natureza humana. Para ele, “os Jogos representavam a institucionalização da crença no esporte como um empreendimento moral e social. Neste sentido, os Jogos Olímpicos deveriam ser uma ‘manifestação pedagógica’ dos valores que atribuía à prática esportiva.” (TAVARES, 2003). Portanto, os Jogos Olímpicos legitimam valores da modernidade, tais como a presença da ética meritocrática, a excelência moral individual e a crença em um humanismo universalista. A WADA também assumiu o papel de publicar a lista de substâncias proibidas, que está continuamente sob revisão e é formalmente atualizada no mês de janeiro de cada ano. Entretanto, ela pode ser revista e publicada sempre que for necessário, pois, a WADA mantém um Programa de Vigilância para substâncias que não se encontram na lista de proibidas, mas que são acompanhadas para detectar quaisquer padrões de utilização indevida143. Para ser incluída na lista da WADA, a substância ou método tem que reunir dois dos três critérios seguintes: a) melhorar o desempenho, b) ser perigoso para a saúde do atleta, c) ser contrário ao espírito do desporto. “A missão da Agência Mundial Anti-Doping (WADA) é liderar uma campanha colaborativa em todo o mundo para o esporte livre de doping”. Assim a WADA é apresentada em seu site: Como uma organização internacional independente que

142 Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos Olímpicos da era moderna, atribuía ao esporte um valor educativo e um papel de mimesis das relações numa sociedade democrática. Neste sentido, a prática esportiva, para ele, estava primariamente endereçada a educar os indivíduos através da experiência e, por meio deles, reformar a sociedade. Como outros líderes de seu tempo, Coubertin fundou um comitê destinado a promover sua causa e guardar seus valores. Todavia, essa organização – o Comitê Olímpico Internacional (COI) – foi estruturada por seu fundador em bases formalmente não democráticas, o que sempre se configurou em um foco de tensão, críticas e controvérsias (TAVARES, 2003). 143 “A AMA publicará, antes da realização de qualquer Controlo, as substâncias que serão objecto de vigilância. Os laboratórios comunicarão periodicamente à AMA os casos de presença dessas substâncias de forma agregada por modalidade desportiva e indicando ainda se as Amostras foram recolhidas Em Competição ou Fora de Competição [...]. A AMA disponibilizará às Federações Internacionais e às Organizações Nacionais Antidopagem, pelo menos uma vez por ano, informação estatística agregada por modalidade desportiva relativa às substâncias adicionais”. (CODE, 2003, p. 20).

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promove, coordena e monitora a luta contra o doping no esporte, o estatuto da WADA foi estabelecido para garantir os direitos fundamentais dos atletas de participarem no desporto livre, promover justiça e igualdade para todos os competidores no âmbito mundial e manter-lhes a saúde (Disponível em: <http://www.wada-ama.org/en/AboutWADA>). Garantir igualdade e justiça para todos os atletas está baseado no conceito de fair play, ética fundante do esporte, que tem como base um conjunto de comportamentos regulados. Por um lado, relaciona-se ao cumprimento das regras e regulamentos a que os competidores têm que aderir, pois é base comum da existência de qualquer disputa esportiva, necessária para que ocorra o jogo/esporte. No entanto, ainda que a adesão a um conjunto formal de regras seja necessária à própria realização do jogo/esporte, ela não fornece em si nenhuma razão moral que abstenha um jogador da violação às regras do jogo. Pelo contrário, essa demarcação (entre o que é permitido e o que não é) pode ser interpretada como o oferecimento de escolhas, entre a obediência estrita às regras ou sua quebra, inaceitável para o esporte, mas ainda assim possível. Em outro sentido, o fair play pode ser entendido como um comportamento esportivo baseado nos valores morais do atleta. Mesmo que as regras existam, o atleta pode escolher entre cumpri-las ou violá-las, entre obedecê-las estritamente ou burlar ao preço de certas sanções: “As próprias regras ao estipularem diferentes sanções para diferentes violações, oferecem a necessária referência para uma tomada de decisões.” (TAVARES, 2002, p. 45) O princípio de igualdade formal de chances não é mencionado quando pensamos que as competições internacionais podem ser muito injustas em relação aos países que possuem condições desiguais de recursos materiais, treinamentos e pesquisas para produzirem drogas e métodos mais eficientes para não serem detectados em controles de doping. Tavares (1998), em pesquisa realizada com atletas brasileiros que participaram dos Jogos Olímpicos de Atlanta (1996), concluiu que seus argumentos, ao se posicionarem contra o doping, eram, fundamentalmente, em relação às diferenças tecnológicas entre os países desenvolvidos e não desenvolvidos. Para esses atletas, a proibição do uso de substâncias consideradas dopantes é a situação menos condenável. O argumento da manutenção da saúde dos atletas talvez seja o que tem mais força e visibilidade no meio esportivo. Podemos relacionar esse argumento a um 201


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discurso médico, de ordem moral, sustentado na cientificidade, regulador do comportamento individual e social, que diz que o doping é potencialmente perigoso144. Entretanto, ao mesmo tempo, várias drogas são comercializadas legalmente na sociedade, entre elas, as bebidas alcoólicas e o cigarro. Há um grande número de pesquisas que comprovam que o cigarro e o álcool trazem muitos malefícios para a saúde, tornando-se questões de saúde pública, conforme explicitado nos relatórios da Organização Mundial de Saúde145. Outra relação que podemos fazer é com a Isenção de Uso Terapêutico (Therapeutic Use Exemptions – TUE), que é o direito que um atleta tem de solicitar a aprovação para a utilização de uma substância proibida ou um método proibido (da Lista de Substâncias Proibidas da WADA) para tratamento de uma patologia. Segundo definição do Comitê Olímpico Brasileiro (2008), Atletas asmáticos, por exemplo, necessitam eventualmente usar Beta-2 agonistas ou corticosteróides, enquanto atletas hipertensos não podem muitas vezes prescindir de um diurético, bem como atletas diabéticos insulino-dependentes devem continuar usando insulina. Nestes e em outros casos, torna-se necessário contatar a respectiva Confederação (ou Federação Internacional no caso de atletas no exterior) para solicitar uma permissão especial, que poderá ser concedida após a análise do diagnóstico e da indicação apropriada de um determinado medicamento. (COB, 2008, p. 25)

A isenção é solicitada por meio do preenchimento de um formulário confidencial por um médico responsável, declarando a necessidade da administração de um medicamento proibido para o tratamento correto de alguma condição médica. Além disso, o atleta também assina o formulário, solicitando a aprovação da isenção e autorizando a liberação da informação médica pessoal a todos os membros da sua Federação ou outros órgãos que estejam diretamente envolvidos na gerência ou na administração do uso. A esse formulário deve ser anexado e enviado um histórico clínico do atleta, exames, investigações e relatórios médicos especializados. Tavares (2002), refletindo sobre os argumentos antidoping, pergunta-se:

144 Apesar de pesquisas indicarem que o uso de esteroides anabólicos acarreta efeitos danosos à saúde, nossa pesquisa não tem como intenção discutir especificamente os efeitos das substâncias sobre a saúde dos atletas, mas sim, focar nos argumentos que pretendem justificar as proibições 145 Rapport OMS sur l'épidémie mondiale de tabagisme 2011 - Mise en garde sur les dangers du tabac. <http://www.who.int/tobacco/global_report/2011/fr/index.html> Acesso em 28/10/2012. Global status report on alcohol and health 2011 <http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_alcohol_report/msbgsruprofiles.pdf> Acesso em 28/10/2012.

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Uma segunda e mais complexa questão é saber se, sendo possível determinar que o uso de determinada droga proibida é necessária a um dado atleta, isto legitima seu uso no esporte. Qual o critério a ser adotado? Sem se precisar exatamente qual a diferença entre a necessidade de uso e o fator de ganho obtido pelo atleta com a ingestão de determinado produto, qual seria a decisão mais justa e adequada? Permitir que ele compita usando por motivo de saúde algo que aos outros é proibido? Ou impedi-lo de participar justamente por usar algo sem o qual ele não pode competir em condições de igualdade? (TAVARES, 2002, p.47)

Outro dilema pode ser derivado dessa questão146. Se, por um lado, é direito do atleta solicitar a utilização de uma substância proibida para tratamento de alguma patologia; por outro, colocamos em jogo a legitimidade das decisões médicas tomadas. Nos Jogos Olímpicos de 1984 (Los Angeles), por exemplo, “atletas de dois países, militares de carreira e com uma média de idade de 22 anos, apresentaram certificados médicos de hipertensão arterial para justificar o uso de betabloqueadores em tiro.” (COB, 2008) Isso sugere que, dentro dos limites que a legislação vai estabelecendo, o uso de drogas no mainstream esportivo acaba sendo legítimo. O caráter terapêutico, no entanto, parece ser determinante para que se considere legítima a ingestão de substâncias químicas (HOBERMAN, 1998), em função das lesões e das doenças desenvolvidas pelo excesso de competições e treinamentos que exigem recuperação. Afinal, “o corpo precisa recuperar-se mais rápido da fadiga, é preciso tirar as dores, metabolizar melhor e mais velozmente. Quais são os limites entre uma e outra situação?” (VAZ, 2005, p. 30). Para tornar o Código Mundial Antidoping aceito obrigatoriamente por todos os governos, visto que a WADA é uma organização não governamental de direito privado, a promulgação de uma convenção antidoping pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) foi necessária. Atualmente, essa convenção é aceita por 192 países. O Brasil comprometeu-se em adequar sua

146 No Código Mundial Antidoping (2003), em relação a TUE, há um comentário que vem ao encontro da discussão feita por Tavares (2002): “É importante que os processos para concessão de isenções para usos terapêuticos se tornem mais harmonizados. Atletas que usam Substâncias Proibidas sob prescrição médica poderão estar sujeitos a sanções a menos que tenham obtido previamente uma isenção para uso terapêutico. No entanto, atualmente muitas entidades esportivas não possuem regras que permitam a concessão de isenção para usos terapêuticos; outras seguem políticas não regulamentadas por escrito; e somente algumas poucas elaboraram códigos de políticas a serem incorporadas em suas regras antidoping. Este Artigo procura harmonizar a base sobre o qual são concedidas isenções para usos terapêuticos e transfere a responsabilidade para conceder ou recusar isenções às Federações Internacionais para Atletas de Nível Internacional e às Organizações Nacionais Antidoping para Atletas de Nível Nacional (que não sejam também Atletas de Nível Internacional) e outros Atletas sujeitos ao Controle de Doping de acordo com o Código” (CODE, 2003, p.19-20).

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legislação antidoping à convenção, tornando suas fronteiras permeáveis a amostras de urina em termos de importação e exportação. A Convenção Internacional contra o Doping nos Esportes tornou-se lei no Brasil com o Decreto da Presidência da República nº 6.653, de 18 de novembro de 2008, que promulga a Convenção Internacional contra o Doping nos Esportes, celebrada em Paris, em 19 de outubro de 2005 (COB, 2009). O objetivo desta Convenção, no âmbito da estratégia e do programa de atividades da UNESCO na área de Educação Física e Desporto, é promover a prevenção e o combate ao doping nos esportes, com vistas a sua eliminação (Artigo 1, 2008), baseada nas definições do Código Mundial Antidoping. Ou seja, a relação dessa Convenção com o Código é “coordenar a implantação, nos níveis nacional e internacional, do combate ao doping nos esportes, os Estados Parte comprometemse a respeitar os princípios do Código.” (Artigo 4, 2008) Entretanto, nada nessa Convenção proíbe os Estados de adotarem medidas adicionais complementares ao Código. Ao comprometerem-se com os artigos desta Convenção, os Estados adotarão as devidas medidas para cumprir com as obrigações deles emanadas. Tais medidas podem incluir a legislação, a regulamentação, políticas ou práticas administrativas (medidas financeiras, medidas para facilitar o controle do doping, apoio à missão da WADA, cooperação internacional, educação e treinamento, promoção de pesquisas na área, entre outros). A WADA147 coordena também o desenvolvimento e a implementação, em todo o mundo, de códigos antidoping que formalizam as políticas dos esportes em todos os países. Suas políticas têm foco na divulgação do movimento antidoping ao redor do mundo e nos diferentes tipos de programas utilizados para a educação antidoping148. No website da WADA, além de um conjunto de informações sobre 147 No Brasil a entidade responsável por combater o doping é a ABCD – Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem, criada em 2011 como condição para a candidatura do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016, porque os países que recebem um evento esportivo precisam de um órgão específico para esse trabalho. Recentemente, a ABCD já se envolveu em polêmicas quando realizou coletas de urina de mulheres atletas com a presença de um fiscal homem, apesar de constar no Código que o acompanhante tem de ser do mesmo sexo do atleta (Annex D – Collection of urine samples: D.4.6 “The DCO/Chaperone who witnesses the passing of the sample shall be of the same gender as the athlete providing the sample”, CODE, 2003, p.81). Presença masculina na coleta deixa atletas constrangidas no antidoping. 26/10/2012. <http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2012/10/presenca-masculina-na-coleta-deixaatletas-constrangidas-no-antidoping.html>, acesso em 12/11/2012. 148 Em seus dois primeiros anos de funcionamento, a WADA recebeu financiamento diretamente do Comitê Olímpico Internacional, a quantia de US$18.300.000,00. A partir de 2002, conforme já previsto em estatuto da Agência, ela passa a ser financiada 50% pelo Movimento Olímpico e 50%

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doping, existe também um quiz para os atletas testarem seus conhecimentos a respeito do assunto, reforçando a ideia de que o atleta é, em última análise, responsável por si mesmo em relação ao doping. No artigo 21 do Código Mundial Antidoping (Papel e responsabilidades dos atletas), o item 21.1.3 é muito claro em relação a essa regra: “os atletas devem assumir a responsabilidade, no contexto da luta contra a dopagem, por aquilo que ingerem e utilizam” (CODE, p. 49, 2003). Adotou-se como base normativa o Princípio da Responsabilidade Estrita Objetiva (Strict Liability Principle), que consiste, em linhas gerais, na responsabilidade do atleta independente de dolo, culpa, negligência, imprudência ou imperícia de médicos e técnicos. Dessa forma, todo atleta é responsável por qualquer substância presente em seus fluídos corporais, independentemente da forma com que ela entrou em seu organismo (ZOGAIB, 2008). O atleta deve estar preparado para demonstrar cabalmente como a substância proibida entrou em seu corpo, em casos de testes positivos, para que tente atenuar ou extinguir excepcionalmente a sua pena, em face da infração de doping, caracterizada pela descoberta de uma substância proibida em seus fluídos corporais. Para atingir seus princípios, a WADA criou uma estrutura organizacional sofisticada para a execução de seus programas, executada pelos Comitês e Conselhos que a compõem (Representantes de Governo, Representantes do Movimento Olímpico, Conselho de Fundação, Comitê Executivo, Painel de Especialistas em Questões Éticas, Comitê Atleta, Comitê de Educação, Comitê de Finanças e Administração, Comitê de Saúde, Medicina e Pesquisa). Seus principais programas e atividades incluem: 1) Desenvolver o Código Mundial Antidoping; 2) Controlar os testes de doping; 3) Financiar a investigação científica para desenvolver novos métodos de detecção do doping; 4) Conduzir, sem aviso prévio, os testes fora de competição entre os atletas de elite; 5) Fornecer educação antidoping para atletas, técnicos e dirigentes; 6) Fomentar o desenvolvimento de sistemas nacionais (locais) de organizações antidoping; 7) Gestão do Programa Passaporte do Atleta (PARK, 2005).

pelos governos (com percentuais diferentes conforme a região olímpica, definida na Declaração de Copenhague contra o doping no esporte): África: 0,5 %; Américas: 29 %; Ásia: 20,46 %; Europa: 47,5 %; Oceania: 2,54%. <http://www.wada-ama.org/fr/A-propos-de-lAMA/Financement/> Acesso em 29/10/2012 <http://www.wada-ama.org/fr/A-propos-de-lAMA/Financement/Financement-par-lesgouvernements/> Acesso em 29/10/2012.

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BIOPOLÍTICA E GOVERNAMENTALIDADE: ALGUMAS DELIMITAÇÕES Com a intenção de apresentar os conceitos foucaultianos de biopolítica e de governamentalidade para a reflexão crítica que propomos fazer a respeito das políticas transnacionais de doping, é necessário introduzir brevemente a discussão desses conceitos, para, num segundo momento, mencionar o movimento necessário para empregá-los ao universo do esporte. Obviamente, os problemas analisados por Foucault eram de outra ordem e, portanto, é preciso aqui rever conceitos, para que possamos pensar possíveis agenciamentos entre biopolítica, governamentalidade e as políticas antidoping, levando em conta o contexto da genealogia foucaultiana na modernidade. No curso das reflexões genealógicas que traça sobre o exercício das relações de poder nas instituições modernas – sobretudo nas obras “Vigiar e Punir” (1987) e “História da Sexualidade I” (1988) – , Michel Foucault adiciona às discussões desenvolvidas sobre a anátomo-política do corpo disciplinado individualmente e os efeitos da normalização e da moralização as análises em torno do conceito de biopolítica das populações, entendido como a gestão estatal do corpo e da vida da espécie humana. Ou seja, a biopolítica aparece (ao longo da segunda metade do século XVIII e, sobretudo, na virada para o século XIX) como um poder disciplinador e normalizador exercido sobre o corpo da espécie humana ou população e não mais sobre os corpos individuais. (DUARTE, 2010) Conforme explica Duarte (2010), Foucault: [...] enfatizou que não havia contradição entre as análises precedentes a respeito do poder disciplinar e as novas discussões relativas à bio-política, reunindo ambas as estratégias de poder sob a denominação conceitual do “bio-poder”. Com este novo conceito, Foucault englobava os resultados de sua análise dos micropoderes disciplinares, entendidos como uma tomada de poder sobre a vida dos indivíduos, e os resultados das pesquisas que indicavam a constituição de novos poderes que se projetavam sobre a vida da população, ambas as estratégias sendo orientadas por processos de normalização das condutas. (DUARTE, 2010, p.221).

A questão que a constituição da biopolítica traz é um deslocamento no modo de exercício de poder pelo Estado: desde a Antiguidade até o século XVIII, um poder soberano que garantia a vida (direito de causar a morte ou de deixar viver), transformar-se-ia num “poder que gere a vida” (FOUCAULT, 1988, p. 128). A partir do

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século XIX a biopolítica colocada como uma nova forma de exercício de poder se exerce por um “poder de ‘fazer’ viver e ‘deixar’ morrer” (FOUCAULT, 1999, p. 128). A partir de então, o interesse do Estado, com foco na capacidade de gerar e fomentar a vida, estabelece políticas higienistas e eugênicas, visando estimular e controlar as condições de vida da população. [...] ao discutir os chamados “dispositivos de seguridade” que se constituíram a partir de meados do século XVIII, Foucault os definiu como novas técnicas de governamento, isto é, novas formas de implemento da ação administrativa de governar a população, o que, por sua vez, o levou a elaborar o conceito da governamentalidade (DUARTE, 2010, p.235).

A noção de governo149, desde o platonismo até a constituição do poder pastoral cristão, é discutida em algumas das aulas do curso Segurança, território, população (FOUCAULT,

2008b).

No

entanto,

foi

com

a

introdução

da

noção

de

governamentalidade que Foucault privilegiou um sentido específico da noção de governo compreendido como um conjunto das instituições e práticas, técnicas e métodos por meio das quais se conduzem os homens. As conexões entre governamentalidade, esporte e doping são importantes para compreender a análise que faremos das políticas antidoping. Como já dito, a governamentalidade moderna focalizou a população como seu principal alvo e objeto de intervenção, envolvendo um conjunto de técnicas de governo do corpo social, incluindo a garantia da saúde da população. O esporte, entendido aqui como uma tecnologia central do governo do corpo social, ajuda a manter a população saudável, eficiente e produtiva e, por isso, pode ocupar um lugar central na história da governamentalidade moderna (PARK, 2005). O esporte desempenha um papel de destaque na demonstração nacional do poder e na política internacional, como podemos observar em grandes eventos esportivos tais como Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas. Na segunda metade do século 20, o esporte se tornou uma gigantesca e lucrativa indústria, que disponibiliza uma série de drogas que podem impulsionar o desempenho atlético. Na busca de melhoramento da performance a disseminação do doping foi intensa e, com a descoberta de alguns casos positivos que tiveram grande repercussão internacional, a necessidade da institucionalização de testes de drogas em eventos desportivos 149 A noção geral de governo, entendida em sentido amplo como a arte de conduzir as condutas humanas, já havia sido objeto de interesse de Foucault no curso Os anormais. (FOUCAULT, 2001).

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internacionais torna-se urgente. Deriva daí a criação de uma agência transnacional responsável pelas políticas antidoping mundiais, que tem como um dos argumentoschave a proteção à saúde dos atletas, mas que tem efeitos sobre a população. O caso da

WADA,

conforme

governamentalidade

veremos

das

a

seguir,

instituições

nos

ajuda

transnacionais

a cujas

compreender

a

competências

administrativas e disciplinares são exercidas fora dos limites do Estado-Nação.

TÉCNICAS DE CONTROLE DE DOPING: ALGUMAS (BIO)POLÍTICAS DA AGÊNCIA O funcionamento, a estrutura e as políticas da WADA são aqui analisados como dispositivos biopolíticos que operam fundamentalmente no policiamento dos corpos atléticos. Os estudos de governamentalidade de Michel Foucault auxiliam no sentido de pensar a WADA como instituição transnacional (porque rompe com as fronteiras territoriais, mostrando que é possível uma nova geografia de governo), com práticas de regulamentação que formalizam as políticas antidoping em todos os países. Segundo Park, No mundo globalizado, o governo não está mais circunscrito pelo limite do Estado-nação. É indispensável para chegar a um acordo de uma nova geografia da cultura e do governo em função das alterações política, econômica, social e cultural que os processos de globalização trouxeram para nós. Considerando a proliferação das instituições culturais transnacionais e o recém-emergente modelo de governo, é oportuno investigar como governamentalidade opera nas novas configurações de instituições transnacionais culturais. (2005, p.176).

Ainda de acordo com Park (2005), a WADA pode ser explorada como um caso útil, que nos ajuda a compreender a governamentalidade das instituições transnacionais culturais e descobrir como a cultura torna-se instrumento de governo que vai, na era da globalização, além do limite Estado-Nação. A partir de todo o conjunto de políticas antidoping proposto pela WADA, sugerimos que ela constrói uma cultura de vigilância sobre o corpo atleta, produzindo uma disciplina e uma regulação das condutas dos corpos atléticos. A WADA não se limita a operar para detectar quem está dopado e quem não está por meio da realização de testes de drogas e penalizar os atletas que se supõe que tenham consumido substâncias proibidas. Pelo contrário, as tentativas da WADA são para governar práticas de dopagem por meio da administração de uma série de programas 208


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e da implantação de mecanismos disciplinares e biopolíticos. A disciplina é um mecanismo de controle e de indução de comportamentos corporais individuais que atua de maneira a produzir efeitos individualizadores sobre os sujeitos, ao passo que as biopolíticas visam regular processos vitais relativos ao organismo vivo dos atletas, entendidos como população específica. Enquanto as disciplinas agem sobre corpos individuais, aperfeiçoando suas potencialidades, as biopolíticas agem sobre a vida do corpo-organismo, visando regular e controlar sua dinâmica de funcionamento, tendo em vista obter determinados efeitos normalizadores e uniformizadores. Para Ortega (2004), as questões referentes à saúde estudadas por Foucault tomam outra forma durante o século XX: A biopolítica da saúde é um caso que merece uma atenção especial dentro do espectro biopolítico. As biopolíticas oitocentistas clássicas estudadas por Foucault estavam, como vimos, ao serviço da formação dos Estados nacionais e das classes burguesas - as quais, substituindo uma simbólica do sangue por uma analítica da sexualidade, opunham uma série de novos valores: saúde, higiene, vitalidade, prole, ao sangue e à linhagem aristocrática. Durante o século XX essas questões deixaram de ser objeto de gerenciamento estatal, tornando-se ora problemas privados, ora assuntos sociais. No entanto, pela formação de grupos biopolíticos a saúde está sendo repolitizada biopoliticamente enquanto metáfora de pureza moral. É um projeto de cunho conservador, reação ao culto da promiscuidade das drogas e dos excessos próprios da permissividade dos anos 1960. (ORTEGA, 2004, p.13)

Os estudos sobre governamentalidade, inspirados pelos cursos de Foucault, intitulados Segurança, Território, População (2008b) e Nascimento da Biopolítica (2008a), tematizam, em termos gerais, as práticas e os saberes do governamento moderno, além de analisarem as atualizações do conceito e sua efetividade em diversas dinâmicas contemporâneas. Foucault buscou descrever e explicar por que e como governamos os outros e governamos a nós mesmos: O que é governar? Quem pode governar? O que ou quem é governado? Como isso é feito? Veiga-Neto, ao debruçar-se sobre o governo na obra de Michel Foucault, propõe a utilização da palavra governamento quando se tratar da “questão da ação ou ato de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p.19). Para esse autor, é fundamental demarcar essa diferença entre governo e governamento, para traduzir a proposta de Foucault entre o que é instância governamental e administrativa e a ação de governar. Segue Veiga-Neto: “o que se está grafando como “práticas de governo” não são ações assumidas ou executadas por um staff que ocupa uma posição central no Estado, mas

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são ações distribuídas microscopicamente pelo tecido social; por isso soa bem mais claro falarmos em “práticas de governamento” (2002, p.21). A ideia de práticas de governamento, enquanto condução das condutas alheias, é profícua na medida em que nos possibilita pensar uma tecnologia permanentemente em uso. Sobre isso, Foucault disse: “Esse contato entre as tecnologias de dominação sobre os outros e as tecnologias de si, eu chamo de governamentalidade.” (FOUCAULT, 2004, p. 324) Em sua palestra em 1978, ele afirma que a governamentalidade moderna tem como alvo e objeto de intervenção a população, visando normalizar a própria conduta da espécie, bem como garantir bemestar, aumento da longevidade e saúde. Para tanto, deve-se ter um conjunto de técnicas, de operações, estratégias e práticas de governamentalidade, centralmente associadas à governança do corpo social. Ou seja, o objetivo das tecnologias de poder é a gestão da população, por meio de dinâmicas de individualização ou de totalização que perfazem um processo de governamento. O governo da saúde do corpo social, na forma do esporte, faz parte das práticas de governamento (FRAGA, 2006), tal como o autor se refere ao analisar um programa de promoção de atividade física que integra diferentes formas de governo dos corpos e toma o discurso de vida ativa presente na educação dos corpos, na regulação da saúde e no governo de si. O esporte é reconhecido como uma tecnologia de governo do corpo social (MILLER et al, 2001) e, por isso, deve ocupar lugar central na história da governamentalidade moderna. É uma tecnologia para ajudar a manter o corpo da população saudável, eficiente e produtivo150. Passeti (2011) faz algumas considerações sobre a noção de ecopolítica, que é o modo como ele está pensando a atualidade da noção de biopolítica num contexto transnacional. A partir de um projeto de pesquisa que ele vem desenvolvendo – “Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle” –, a ecopolítica seria a passagem da biopolítica – controle da vida da população –, para a ecopolítica – controle da vida do planeta –, que deuse, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, mas também, mais profundamente, emerge a partir dos movimentos de contestações ecológicos, que vieram denunciar situações de desastres planetários produzidos tanto pelo capitalismo como pelo socialismo, porque “mais do que vigiar e combater deslocamentos de mar, terra e ar, 150 Gomes (2008) analisou o desenvolvimento de propostas midiáticas e acadêmicas para a educação do indivíduo saudável na modernidade.

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uma nova maneira de pensar a segurança de pessoas e espaços se tornou imperativa”. Dessa forma, “o território e a população são assimilados por ‘ecossistemas’ e são deslocados para o espaço: a importância da humanidade se torna imediata e esta passa a ser o alvo de direitos, políticas, programas e resistências”151. A WADA constrói uma cultura de vigilância sobre o corpo atleta, não somente um disciplinamento dos corpos atléticos, mas também um governamento sobre a saúde e o desempenho tanto dos atletas de alto rendimento, como também expandindo suas ideias de esporte e saúde para toda população, posto que o corpo atleta é considerado como a norma do corpo saudável, padrão a ser seguido, guardadas as proporções, por toda a população. Na notícia “Escolas aplicam exames antidoping152”, Kathy Kiederer, mãe de uma aluna de 12 anos de uma escola americana, conta que, certo dia, sua filha levou para casa uma autorização a ser assinada pelos pais. O papel dizia que, para participar do clube ou da atividade esportiva, ela teria que concordar em fazer exames antidoping153. Segundo a reportagem, “como acontece com atletas profissionais, crianças de apenas 12 anos estão ouvindo que precisam fornecer uma amostra de urina para poder praticar esportes na escola ou participar da aula de teatro”. Estes testes seriam efeitos de políticas de governamento do antidoping? Conforme a reportagem, algumas autoridades do sistema escolar disseram que os exames antidoping servem para desencorajar os alunos a entrar em contato com esteroides, maconha e álcool e que a escassez de resultados positivos é um indicativo de que os exames estão funcionando bem como dissuasão. Nesse sentido, o antidoping é tomado aqui como uma tecnologia fundamental de governamento dos corpos atletas, de como seus efeitos se refletem na produção de corpos sadios, em uma ligação entre esporte e saúde. Assim, uma análise das tecnologias políticas do antidoping torna-se um terreno fértil de investigação para os

151 Entrevista disponível em: https://vimeo.com/couchmode/user9403359/videos/sort:date/33342925, acesso em 05/12/2012. 152 Escolas aplicam exames antidoping. 22/10/2012. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/newyorktimes/73339-escolas-aplicam-exames-antidoping.shtml, acesso em 23/10/2012. 153 Em 2003, o Departamento de Educação dos EUA começou a financiar exames antidoping para crianças. Os estados em que há escolas que já testaram seus alunos para verificar o consumo de drogas incluem Flórida, Alabama, Missouri, Virgínia Ocidental, Arkansas, Ohio, Nova Jersey e Texas. Esse tipo de exame antidoping abrange escolares da 6ª à 9ªséries.

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estudos de governamentalidade. Desse ponto de vista, é importante levar em conta tanto o conjunto de políticas antidoping realizado pela WADA, que são o Programa Passaporte do Atleta, o Código Mundial Antidoping e o desenvolvimento de novos e sofisticados métodos de teste de drogas, como os seus efeitos de verdade, expandidos para a população em geral. Os corpos dos atletas de alto rendimento deverão se apresentar como o modelo de saúde e moral para o restante da população, instada, a todo o momento, à prática de esportes. O esporte também age sobre a moral. Assistimos a todo momento à difusão dos discursos em relação ao esporte como produtor de saúde física e moral para a população, e os atletas devem servir como exemplos a serem seguidos. Lembremos, por exemplo, os jogadores de futebol que estão sob os holofotes e que, por vezes, quebram essa equação na qual esporte = saúde física e moral. O jogador de futebol Ronaldo Nazário quase teve de deixar o cargo de Embaixador da Boa Vontade do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento após se envolver em um escândalo com travestis no Rio de Janeiro, em 2008. Naquela época, da sede da ONU em Nova Iorque, dirigentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) acompanharam as investigações da polícia do Rio e aguardaram a conclusão do inquérito para decidir o futuro do craque na entidade. A Unicef logo se pronunciou, em nota de assessoria de imprensa, dizendo que o jogador não era Embaixador do Fundo das Nações Unidas para a Infância154, descolando a imagem do órgão à do atacante, já que a imprensa brasileira havia divulgado que o atleta era embaixador da Unicef, e não da ONU155. Sfez (1996) apontou a “saúde perfeita156” como um novo projeto mundial, cuja gênese estaria no ser liberto do envelhecimento e da morte. Apoiando-se nos saberes

154 Em ação internacional, Unicef se afasta de Ronaldo, 06/05/2008. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u398848.shtml>, acesso em 25/11/2012. 155 ‘Ronaldo não é nosso embaixador', 05/05/2008. <http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,ronaldo-nao-e-nosso-embaixador-dizunicef,167570,0.htm>, acesso em 25/11/2012. 156 Lucien Sfez participou e acompanhou nos Estados Unidos, na Europa e no Japão os projetos Genoma, Biosfera II e Vida Artificial, para escrever seu livro “A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia”. O primeiro projeto propunha-se a mapear até 2025 todos os genes humanos e, assim, diagnosticar aqueles responsáveis por determinadas doenças. O segundo, concebido nos Estados Unidos, consistiu em colocar em imensos hangares de vidros quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos – setembro de 1991 a setembro de 1993 – monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes. O terceiro, o Artificial Life, preconizava originar no computador seres virtuais capazes de realizar as mesmas funções humanas. (SFEZ, 1996).

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das tecnologias (segundo Sfez, a tecnologia é uma utopia que tem as pretensões de resolver todos os problemas do mundo, inclusive os relativos à saúde) e das ciências da comunicação, com seus discursos, cria-se uma nova moral, que estrutura a biopolítica da saúde: [...] moral do bem-comer (sem colesterol), beber um pouco (vinho tinto para as artérias), ter práticas sexuais de parceiro único (perigo de AIDS), respeitar permanentemente sua própria segurança e a do vizinho (nada de fumo). Trata-se de restaurar a moralidade plugando-a de novo no corpo. O controle sobre o corpo não é um assunto técnico, mas político e moral (SFEZ, 1996, p.68).

A WADA é uma instância de biopoder que funciona gerando um conjunto de mecanismos de controle para a produção de um corpo engendrado no esporte, reafirmando a ligação esporte-saúde. A governamentalidade funciona por meio dessa equação, e a WADA é um órgão criado para garantir a relação entre esporte, saúde e moral, em nível transnacional. Tentaremos ilustrar esse argumento a partir da análise sobre os testes fora de competição. Primeiramente, gostaríamos de tecer alguns comentários sobre os testes fora de competição (sem aviso prévio), incluídos a partir de 1999, após a Conferência Mundial de Doping. Antes de 1999, os testes eram realizados somente no período das competições. A WADA acrescenta aos testes em competição os “sem aviso prévio”, permitindo testar individualmente os atletas, à vontade, durante todo o ano, mesmo em períodos nos quais não há competições. Para tanto, os atletas precisam estar permanentemente disponíveis, 365 dias do ano sob vigilância. Segundo o Código Mundial Antidoping, Os Controlos Sem Aviso Prévio Fora de Competição são um elemento fundamental de um Controlo de Dopagem eficaz [...] exige que os Praticantes Desportivos que foram identificados para realização de Controlos de Dopagem Fora de Competição sejam responsáveis por fornecer e actualizar informação sobre os locais onde se encontram normalmente, de forma a poderem ser localizados para realização de Controlos Fora de Competição sem Aviso Prévio [...] Uma violação deste Artigo pode basear-se tanto numa conduta intencional como negligente do praticante desportivo. (CODE, 2003, p.13-14)

A WADA alega que os testes fora de competição ajudam a monitorar os atletas que utilizam doping em períodos não competitivos ou de testagem. Esses testes são efetuados por funcionários da Agência, em qualquer lugar e em qualquer momento,

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estando livres para escolher quais atletas serão testados. Esta introdução e intensificação do teste sem aviso prévio abre caminho para que as autoridades desportivas estejam constantemente ligadas à vida privada e cotidiana dos atletas, os quais se adaptam à iminente inspeção. Cria-se uma cultura de vigilância global, na qual todos os atletas, em todo o mundo, dopados ou não, são objeto de controle no âmbito da WADA (ou estão sob a sensação permanente de vigilância). No Brasil, a Agência Nacional Antidoping (ANAD) é a entidade com autoridade para a adoção e a implementação das normas antidoping, direção da coleta das amostras, gerenciamento dos resultados dos testes e da condução das audiências. No site da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) há um link para o “Regulamento para controle de doping da IAAF”, traduzido da versão original no inglês, bem como um link denominado “Fora de competição – Para informar sua localização, clique aqui”. Esse sistema, no qual os atletas participam de seu próprio controle, remete ao conceito deleuziano de sociedade de controle157, que delimita uma situação em que a comunicação virtual é imediata, regida por um sistema globalmente disseminado. Segundo Duarte (2010, p.207), “[...] o conceito deleuziano de sociedade de controle ressaltou uma vez mais a centralidade dos fenômenos vitais da população como alvo constante e insistente de investimentos, produções e controles que, na maioria das vezes, são inclusive desejados pelos próprios cidadãos”. Bastante visível, esse link deve ser preenchido pelos atletas. Eles devem manter um cadastro junto a cada entidade, no qual devem informar a cada quatro meses onde podem ser localizados. Se não o fizerem e forem procurados para testes fora de competição e não encontrados, podem ser punidos, como se houvessem tido um resultado positivo em controle de doping158. A IAAF publica em seu site uma 157 “Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (DELEUZE, 1992, p.222). 158 Segundo o site da CBAt, “os controles fora de competição são de fundamental importância para o combate ao doping voluntário no Atletismo. A Agência Mundial Antidoping – WADA, assim como a IAAF determinam a adoção de programas para controle de doping fora de competição, com a existência de Grupos de Atletas Registrados para Testes, ou seja, grupos de atletas que se encontram entre os melhores em suas provas que devem estar disponíveis a qualquer tempo para serem controlados fora de competição. Para que isto seja possível, eles devem manter um cadastro junto a cada entidade, onde informam, a cada quatro meses, onde podem ser localizados, ou seja, seus locais de treinamento e competição, quando estão em seus locais de residência ou não. É de extrema importância que os atletas mantenham seus cadastros atualizados, pois a ausência de informação, a informação inadequada e a não localização do atleta no local informado,

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lista159 com o nome dos atletas selecionados para participarem do programa, que é revista e revisada quando necessário, conforme informações do documento no site. Essa Federação também atenta para a obrigatoriedade dos atletas de manter as agendas atualizadas160. Caso o atleta não seja encontrado para os testes, ele pode ser considerado culpado161. Não basta somente estar fisicamente presente nos momentos de teste de controle, mas sim, permanentemente presente em termos de um controle do corpo no espaço físico: onde podem ser localizados, seus lugares de treinamento e competição, se estão em suas residências ou não162. Trata-se de uma biopolítica na qual organismos transnacionais de controle da vida e do organismo dos atletas devem produzir atletas “puros”, os sujeitos ideais que conformam a norma que identifica esporte, saúde e moral, insistentemente transformada em padrão de conduta da população em geral. Ao analisarmos os discursos oficiais das políticas antidoping pudemos compreender o que estava visível, ou seja, o governamento sobre os corpos atletas. Entretanto, não descartamos a possibilidade de existirem ações de atletas que se negam a aceitar passivamente as regras, os códigos e normas da WADA, recusandose à submissão a essa agência. Seria necessário mapear se existem esses atletas e quem são eles, porque poderia se supor a existência de uma subjetividade desses “governados”. Numa linha foucaultiana, as tecnologias de si podem tornar-se um ponto de partida para a reinvenção de uma identidade atlética, bem como para produzir contradiscursos que desafiem a autoridade da WADA.

que são todos considerados Testes Perdidos, podem levar a um atleta a ter isto tudo considerado como se houvesse tido um resultado positivo em controle de doping. Todo cuidado deve ser tomado pelos atletas para manterem tais cadastros atualizados”. <http://www.cbat.org.br/anad/fora_competicao/default.asp>, acesso em 01/10/2012. 159 Três atletas brasileiros participam, atualmente, do programa da IAAF. São eles: Caio Bonfim (marcha atlética), Jonathan Silva (salto triplo) e Fabiana Murer (salto com vara). Disponível em: <http://www.iaaf.org/about-iaaf/documents/anti-doping>, atualizada em 09/01/2013. Acesso em 14/01/2013. 160 Disponível em: <http://www.iaaf.org/about-iaaf/documents/anti-doping>, atualizada em 24/10/2012. Acesso em 10/11/2012. 161 Disponível em: <http://www.iaaf.org/about-iaaf/documents/anti-doping>, atualizada em 24/10/2012. Acesso em 10/11/2012. 162 No site também consta uma lista com os nomes de todos/as os/as atletas testados/as nos exames antidoping desde o ano de 2003, com a data do teste, o nome do atleta, o local e o resultado do exame. ATLETAS TESTADOS: “Conheça aqui o nome dos atletas brasileiros controlados pela ANAD/CBAt”: <http://www.cbat.org.br/anad/atletas_testados/atletas_quadro.asp?ano=2011>

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Como parte da tentativa de mostrar que as formas de governo no antidoping são importantes marcas da governamentalidade, analisamos a estrutura e as políticas da WADA, buscando expor como um conjunto de políticas por ela desenvolvido permite retirar amostras biológicas do corpo de um atleta dentro ou fora da competição, com ou sem aviso prévio. Sugerimos que a WADA constrói uma cultura de vigilância sobre o corpo, produzindo uma disciplina e uma regulação das condutas dos atletas. Além disso, aproximamos o debate entre os discursos biopolíticos e a WADA, para mostrar como essa agência, com suas políticas antidoping, produz um governamento sobre a saúde e o desempenho dos atletas de alto rendimento, como também na expansão de suas ideias de esporte e saúde para toda população. A maioria dos discursos antidoping assume uma forte ligação entre exercício e saúde. No entanto, a formação ao nível da elite esportiva visa melhorar o desempenho. O quanto disso é saudável? Os riscos de lesões, a curto e a longo prazo, são enormes; as pressões psicológicas são abundantes; e as tensões durante as competições são óbvias. Então, para assumir que as drogas precisam ser banidas porque violam a saúde, seria necessário encobrir a realidade do treinamento e da competição esportiva. A WADA é uma instância de biopoder que funciona gerando um conjunto de mecanismos de controle para a produção de um corpo engendrado no esporte, reafirmando a ligação entre este e a saúde. A governamentalidade funciona por meio dessa equação e a WADA é um órgão criado para garantir essa relação entre esporte, saúde e moral em nível transnacional. Em alguns países, por exemplo, como é o caso da França, a luta contra o doping surge como parte de uma luta contra as drogas e o tráfico. A partir disso, é possível sugerir, ao menos parcialmente, que o controle do doping provém também de uma questão de saúde pública. Os esforços antidoping no desporto contemporâneo repousam sobre duas, entre outras possíveis, questões fundamentais: primeiro, em uma concepção humanista de um corpo atlético que pode ser universalmente produzido e disciplinado por meio de treinamento para alcançar resultados desportivos de pico e cada vez mais superar os limites de velocidade, altura ou força produzidos. Segundo, em uma ética correspondente ao fair play, que sugere modelos normativos de comportamento

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atlético dentro e fora de competição e que tem seus efeitos populacionais e transnacionais. Dada a disposição científico-tecnológica que domina as práticas corporais, pode-se argumentar que os mecanismos específicos de controle e regulação utilizados pela WADA são o resultado do valor supostamente universal dos corpos atléticos, influenciados pela ética ocidental na constituição do projeto do esporte moderno. As novas tecnologias no controle antidoping alargaram as fronteiras espaciais e temporais, invadindo todo o domínio social, aumentando o âmbito de substâncias e métodos considerados ilícitos no esporte porque comprometeriam a pureza biológica do corpo atlético. Isso fez com que aumentassem os limites de intervenção no corpo do atleta nos termos da avaliação do cumprimento das normas esportivas. A crescente penetração do antidoping evoluiu, por exemplo, dos testes de urina para exames de sangue e DNA. Sugerimos que a WADA é constituída não com base em sua capacidade de resolução de assuntos esportivos, mas sim em sua capacidade de apresentar qualquer dispositivo necessário para preservar as reivindicações de fair play e de outros ditames do esporte moderno, como, por exemplo, a manutenção do território esportivo classificatório, baseado também na separação dos sexos.

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REFORMA PSIQUIÁTRICA E POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL: UMA ANÁLISE DOS ATORES Camila Muhl163 Fábia Berlatto164 Resumo: O campo da saúde mental é um campo complexo, cheio de divergências, marcado por conflitos e disputas em todos os países. No Brasil, com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciada nos anos 70, acontece uma grande transformação nesse campo, onde se passa de um modelo marcado pelas internações psiquiátricas para um modelo de atenção psicossocial. O objetivo deste trabalho, que se caracteriza como um estudo teórico-conceitual, é analisar os atores que fizeram parte desse processo: profissionais, usuários, familiares, Movimento da Luta Antimanicomial e Partido dos Trabalhadores, numa tentativa de articular as diversas forças que atuaram no campo da saúde mental no período entre 1978 e 2001. Através da vontade individual dos atores e da sua organização em prol da luta antimanicomial, foi possível que a Reforma Psiquiátrica se desenvolvesse no Brasil, trazendo consigo avanços para o atendimento às pessoas com sofrimento psíquico. Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica, Saúde Mental, Políticas Públicas. INTRODUÇÃO

Em nosso país, foram muitas as modificações nas políticas públicas na área de saúde mental, desde a construção do Hospício de Alienados Pedro II em 1841, que é o marco inaugural da Psiquiatria no Brasil e era regido pelo lema “Aos Loucos, o hospício”, passando pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica que ganha força no final dos anos 70 com o bordão “Por uma sociedade sem manicômios”, até as práticas atuais intituladas de Atenção Psicossocial. O objetivo desse estudo é pensar esse processo tendo como foco de análise os atores que possibilitaram (ou tentaram impedir) que as mudanças ocorressem. Quem são as pessoas, ou as instituições, que atuando na saúde mental fizeram parte dessa história, mas precisamente, parte da Reforma Psiquiátrica brasileira? É essa pergunta que nos move, tentando responder qual o papel de cada uma delas nas políticas públicas de saúde mental no Brasil.

163 Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR. 164 Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR.

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O campo da Reforma Psiquiátrica é de uma grande complexidade pela diversidade de atores que o constituem, são “trabalhadores de saúde, gestores, usuários, familiares, parlamentares, acadêmicos, pesquisadores, estudantes e simpatizantes de vários segmentos sociais” (YASUI, 2010, p. 71) que produzem discursos sobre o sofrimento psíquico e os modos de cuidar. E é justamente essa multiplicidade de atores que faz com que esse campo seja social e político por excelência, um campo de disputas, de confrontos, de alianças e contradições. Nosso trabalho se dedica então a pesquisar a interação e confronto político existente no campo da saúde mental, mais especificamente os atores que se posicionam a favor da Reforma Psiquiátrica. Os atores por nós escolhidos são os profissionais, usuários de saúde mental, familiares, Movimento da Luta Antimanicomial (MLA) e Partido dos Trabalhadores (PT) que foram analisados a partir de suas ações políticas mais significativas. Entretanto, não teremos espaço hábil aqui para tratar de todos os eventos, todos os congressos ou mesmo todas as ações, destarte, deixamos claro ao leitor o recorte por nós operado, de selecionar os fatos importantes e as principais contribuições dos atores aqui tratados para a Reforma Psiquiátrica brasileira.

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Diante da impossibilidade de contemplarmos toda a evolução das políticas públicas em saúde mental em nosso país – por um lado pela complexidade das mesmas e por outro pela natureza e brevidade desse estudo – optamos por analisar os atores e as políticas presentes no movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira. Justamente por esse movimento ser um movimento e não ter um marco inicial utilizamos como recorte temporal de início (e sabemos que fazemos isso de maneira arbitrária) a greve dos médicos da Divisão Nacional de Saúde Mental em 1978 e percorreremos o caminho até a Lei 10.216 de 2001 que instaura, além dos direitos das pessoas com transtornos mentais, a mudança no atendimento das mesmas para o modelo de atenção psicossocial. Este trabalho se caracteriza como um estudo teórico-conceitual, onde utilizamos livros e artigos que foram mobilizados para pensar o problema desse estudo. Entre os atores chave da Reforma Psiquiátrica Brasileira dedicaremos as nossas análises aos profissionais, familiares e usuários de saúde mental, Movimento 221


GT16 – SOCIOLOGIA DA SAÚDE

da Luta Antimanicomial e o Partido dos Trabalhadores. Cabe aqui ressaltar que não apresentaremos os nossos argumentos de forma cronológica, mas sim pelos atores que aqui serão apresentados.

REFORMA PSIQUIÁTRICA: SAÚDE, POLÍTICA E SOCIEDADE

A Saúde é um campo de interesse do Estado e da sociedade justamente por ela ser um valor universal e parte integrante das condições mínimas de sobrevivência, sendo então, um componente fundamental para a manutenção da democracia e da cidadania (YASUI, 2010). Isso também não deixa de ser verdade no que diz respeito à saúde mental. Yasui (2010) em diálogo com a obra do sanitarista Sergio Arouca, afirma que os conceitos de saúde e doença precisam estar ligados ao trabalho, ao saneamento, ao lazer e a cultura, o que significa dizer que ela precisa ser pensada e problematizada muito além das políticas do Ministério da Saúde, ela deve ser uma preocupação do Estado e ser entendida como uma função do Estado. A partir da década de 70, começa um movimento ideológico/político/cultural que quer tornar a saúde um referente fundamental, e é desse movimento que bebem a Reforma Psiquiátrica e a Reforma Sanitária165 no Brasil. A premissa básica desse movimento, segundo Paim (2008) é que as práticas de saúde sejam reconhecidas não só por sua natureza técnica, mas também como práticas sociais com dimensões econômicas, ideológicas, políticas, culturais e simbólicas. É a partir dessa perspectiva que pensamos a saúde neste trabalho, não como algo meramente biológico, relacionado com a prevenção e o tratamento de doenças em lócus específico, mas sim, como um processo que perpassa as outras dimensões da vida de uma pessoa, para então compreendermos a pessoa em seu todo, e não apenas um recorte nosográfico. Enfim, a saúde como uma preocupação que não deve aparecer apenas mediante a ausência desta. Dentro das várias subáreas da saúde, a saúde mental é um campo de conhecimento e também de atuação técnica, no âmbito das políticas públicas. Para 165 A Reforma Sanitária no Brasil começa na década de 70, com o objetivo de buscar a democratização da saúde, o reconhecimento da saúde como um direito de todos e dever do Estado e da implantação de um Sistema Único de Saúde (SUS) descentralizado e democrático, garantindo a participação social na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas de saúde (Paim, 2008).

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GT16 – SOCIOLOGIA DA SAÚDE

Amarante (2007) nenhum outro campo de atuação e conhecimento em saúde é tão complexo, plural, inter-setorial e com tanta transversalidade de saberes. Um campo que esta mudando, mas que por muito tempo foi marcado pelas grandes instituições psiquiátricas de caráter asilar. Temos que atentar para o fato de que esse sistema hospitalar psiquiátrico se aproxima muito das instituições carcerárias – ambas são o que Goffman (1961) chama de Instituições Totais166 - tendo seu sistema fundado na vigilância, no controle, na disciplina e no uso de dispositivos de punição e repressão (AMARANTE, 2007). É essa a situação que os partidários da Reforma Psiquiátrica olham e querem mudar, não é uma perseguição ao hospital em si, mas a esse modelo que pune ao invés de tratar, que segrega ao invés de acolher. Um modelo que em última instância serve para manter a ordem, retirando da sociedade os seus membros desviantes, tal qual, uma prisão. Dentro do campo da Saúde Mental, a Reforma Psiquiátrica se apresenta como: [...] um processo social complexo, caracterizado por uma ruptura dos fundamentos epistemológicos do saber psiquiátrico, pela produção de saberes e fazeres que se concretizam na criação de novas instituições e modalidades de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico e que buscam construir um novo lugar social para a loucura. Esse processo situa-se, no caso brasileiro, no contexto histórico e político do renascimento dos movimentos sociais e da redemocratização do país, na segunda metade dos anos 70 (YASUI, 2010, p. 27).

Amarante (1997), ao questionar-se sobre os objetivos da Reforma Psiquiátrica, entende que o principal deles é a transformação das relações que a sociedade, os sujeitos e as instituições estabeleceram com a loucura e com o louco. Nesse sentido, as relações precisam ser conduzidas para gerarem a superação do estigma, da segregação e da desqualificação dos sujeitos, para permitir então que a loucura exista, num ambiente de troca, de solidariedade e de cuidados. Ao pensarmos em termos históricos, o movimento pela Reforma Psiquiátrica chega com certo intervalo de tempo em nosso país, enquanto as nações européias começam a erguer seus movimentos antimanicomiais logo após a Segunda Guerra Mundial, essa discussão só começa a ser feita com maior abrangência no Brasil, na

166 Conceito proposto por Erving Goffman no livro Asylums – Essays on the social situation of mental patients and other inmates, e que foi traduzido para o português como Manicômios, prisões e conventos. Nas palavras do próprio autor, uma instituição total é “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situações semelhantes, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1961, p. 11).

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década de 70. Estamos considerando aqui como Reforma Psiquiátrica, os movimentos que para além da crítica, começam a efetivamente se organizar em projetos mais delimitados, no sentido de formar um conjunto de enunciados e propostas que se desenvolvam em intervenções práticas (AMARANTE, 2010). A Reforma Psiquiátrica é um processo que provoca tensões e conflitos, que ativa e muda os atores sociais, que modifica o aparato jurídico do Estado, cria contradições, inventa instituições de cuidado, provoca a universidade, modifica as políticas e é em função de todas essas reverberações que Yasui (2010) aponta para a necessidade de compreendê-la na sua origem, como movimento social, composta de múltiplos atores e interlocutores que diante das suas demandas e necessidades, foram buscar junto ao Estado a concretização dos seus direitos. É a busca por essa compreensão que dedicamos o nosso trabalho.

OS ATORES Para chegar ao nosso objetivo – analisar a ação dos atores frente às políticas públicas em saúde mental – é preciso pensar em como esses atores se mobilizam para conseguir mudanças na sociedade. Para tal, entendemos o campo da saúde mental no Brasil como um jogo de forças, com vários interesses envolvidos: econômicos, políticos, sociais, culturais, sendo, portanto, um campo de confronto por excelência. Nesse sentido, um confronto político começa quando de forma coletiva as pessoas fazem certas reivindicações e outras pessoas, que são diretamente afetadas por essas reivindicações, não as atende (MCADAM, TARROW, e TILLY, 2009). No caso

da

Reforma

Psiquiátrica,

são

múltiplas

essas

reivindicações:

desinstitucionalização, atendimento comunitário, garantia de direitos humanos, verbas estatais, luta contra os estigmas, mudança de paradigmas sobre a loucura, para citar algumas. Definido por McAdam, Tarrow, e Tilly (2009, p. 11) como dependendo “da mobilização, da criação de meios e de capacidades para a interação coletiva”, o confronto político se mostra como um ótimo caminho para pensar as mudanças que ocorreram no campo da saúde mental. A interação coletiva do confronto político é formada por um lado pelo governo – organização que controla os principais meios de coerção – e pelo menos um grupo de terceiros. No caso da Reforma Psiquiátrica no 224


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Brasil conseguimos identificar dois grupos distintos de terceiros: um grupo a favor da luta antimanicomial e um grupo pró-manicômios; como na época do inicio das reivindicações pela implantação da Reforma Psiquiátrica a posição do governo era favorável aos manicômios, nesse trabalho vamos nos dedicar apenas ao grupo antimanicomial, o que deixará mais clara as posições nesse conflito. Independente da identificação desse movimento, ora como luta antimanicomial, ora como alternativa à psiquiatria, ora como reforma psiquiátrica, e independente se as propostas em alguns momentos assumem um caráter revolucionário e utópico e em outro as propostas são pragmáticas e normativas, foi sempre o ator social, enquanto agente político, que construiu as transformações no campo da saúde mental. Algumas das propostas acabam sendo incorporadas por entidades e instituições, mas não se pode negar que foram os atores sociais os principais disparadores da Reforma Psiquiátrica no Brasil, então, vamos a eles para nos aprofundar nesse movimento.

PROFISSIONAIS

Dentro dos serviços de saúde mental, fica clara a importância da equipe de profissionais como agentes de intervenção e produção de cuidados junto às pessoas com transtornos mentais. Mas a nossa intenção nesta sessão é pensar as contribuições dos profissionais para além dessa importante tarefa, é pensá-los enquanto agentes políticos fundamentais para o desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Entre as várias categorias profissionais que atuam em saúde mental, podemos citar: médicos, psiquiatras, psicólogos, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, artesãos, assistentes sociais, técnicos em enfermagem, farmacêuticos, fisioterapeutas, etc. Apesar

de

ser

grande

a

força

dos

profissionais

na

luta

pela

desinstitucionalização das pessoas com transtornos mentais, Basaglia (1979) atenta para o fato de que uma equipe de saúde mental nem sempre será partidária da Reforma Psiquiátrica, e pode até mesmo criar uma situação de dificuldade se não houver uma finalidade política comum ou se esses profissionais são motivados apenas pelo salário que recebem ao final de cada mês. Ressalva feita quanto a não adesão de todos os profissionais no processo da Reforma continuemos com a nossa exposição sobre os profissionais que se mobilizaram em prol dela. 225


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Para comprovar a importância dos profissionais na implantação do modelo de atenção psicossocial, é só olharmos para o fato de que o primeiro serviço desse tipo – o Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira – foi organizado, basicamente, a partir de um grupo de técnicos que atuavam em um ambulatório de saúde mental (YASUI, 2010). Esse primeiro CAPS foi inaugurado na cidade de São Paulo em 1987 (BRASIL, 2004). Mas os trabalhadores de saúde mental começaram a se organizar muito antes disso: a primeira organização dos profissionais se dá no episódio que ficou conhecido como “Crise da DINSAM” (Divisão Nacional de Saúde Mental) em 1978. DINSAM era um órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das políticas de saúde mental e controlava as instituições psiquiátricas. Em quatro dessas instituições – Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, todos no Rio de Janeiro – houve uma greve dos profissionais que não eram concursados para trabalhar no serviço, e ali eram contratados como “bolsistas”, mesmo ocupando cargos importantes (AMARANTE, 2013). Num primeiro momento as reivindicações dos profissionais grevistas eram por melhores condições salariais, melhores condições para o atendimento dos pacientes e contra o autoritarismo da instituição. Esse grupo começa crescer e, em 1978, eles criaram no Rio de Janeiro o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que no mesmo ano acabou se tornando um movimento nacional. A partir de então, com o grupo mais forte e melhor direcionado, foram organizados vários congressos no país com a temática de saúde mental e que possibilitou a vinda de grandes autores desse campo para o nosso país, como Robert Castel, Erving Goffman, Thomas Szasz, Felix Guattari e também Franco Basaglia (AMARANTE, 2007). Com a vinda para o Brasil de Franco Basaglia167, representante da Psiquiatria Democrática Italiana, o seu lema de “Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática” (BASAGLIA, 1979) contagiou e muito os profissionais brasileiros, que voltando para os seus locais de trabalho, começaram a questionar as instituições psiquiátricas, fortalecendo e politizando o discurso e a prática dos trabalhadores de saúde mental

167 Franco Basaglia foi um médico psiquiatra italiano bastante reconhecido por suas experiências na área de Saúde Mental, nos hospitais psiquiátricos de Gorizia e Trieste. No ano de 1979, Basaglia esteve no Brasil e proferiu uma série de conferências e debates nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

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(YASUI, 2010). Para Amarante (2013) as idéias de Basaglia passam a ser fundamentais para a conformação do pensamento critico do MTSM. A proposta de Basaglia é bastante direta: os psiquiatras não trabalham mais só com os doentes, claro continuam cuidando do doente e da sua loucura, mas também percebem que toda a população deve ser trabalhada. Além disso, a instituição deve se preocupar em atender as necessidades reais do povo (e do doente): Estou de acordo que um esquizofrênico é um esquizofrênico, mas uma coisa é importante: ele é um homem e tem necessidade de afeto, de dinheiro e de trabalho; é um homem total e nós devemos responder não só a sua esquizofrenia mas ao seu ser social e político (BASAGLIA, 1979, p. 89).

São essas idéias que influenciam os trabalhadores de saúde mental a não serem apenas técnicos, mas também agentes políticos. Amarante defende que o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental é o sujeito político fundamental no projeto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. O MTSM “é o ator a partir do qual originalmente emergem as propostas de reformulação do sistema assistencial e no qual se consolida o pensamento crítico ao saber psiquiátrico” (AMARANTE, 2013, p. 51). O projeto do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, ao contrário de muitas propostas da mesma época que visavam apenas à reorganização dos serviços, era muito mais radical. O MTSM assume um caráter marcado pelas fortes críticas ao saber psiquiátrico, onde para os membros do grupo apenas o processo de desospitalização168 não basta, esse fato dá origem a um processo original e prolífero, com iniciativas práticas de transformação, que geram novos atores e protagonistas para a saúde mental (AMARANTE, 2010). O MTSM se caracteriza como um grupo plural, contando com a participação de profissionais de todas as categorias, assim como simpatizantes não-técnicos da saúde. Outra característica marcante é a não existência de estruturas institucionais solidificadas, não há sede ou secretaria, por exemplo. Amarante (2013) analisa essa composição interna do MTSM como uma estratégia proposital: mais uma

168 Faz-se necessário, nos determos um pouco na diferenciação entre “desinstitucionalização” e “desospitalização”. Nesse sentido, Sales e Dimenstein (2009), explicam que é natural que o trabalho de desinstitucionalização abrange também as ações de desospitalização, mas não se resumem a elas, esse processo trata não somente da saída do manicômio, mas também de colocar como real objeto das intervenções o sofrimento do individuo, possibilitando a ele dar sentido a sua vida, já que as marcas da institucionalização acompanham a pessoa para além dos muros, inscrita em seus corpos.

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manifestação de repúdio a institucionalização, que traria com ela, a perda de autonomia, a burocratização e até mesmo a instrumentalização utilitarista do movimento por parte dos poderes políticos. Entre os membros do MTSM acaba existindo uma divisão em dois grupos de identificações pessoais distintas: um grupo acredita que é preciso entrar no setor público, em cargos de chefia, para ter poder de decisão sobre os caminhos que a saúde mental vai tomar no país, e, por outro lado, há profissionais que preferem entrar nas instituições públicas para fazer a mudança começando pela base, de dentro dos serviços e pela luta dos trabalhadores. O primeiro grupo vai focar suas ações em superar o manicômio pela transformação das práticas assistenciais na gestão das instituições. O segundo grupo assume um caráter sindical, atuando na organização dos trabalhadores e na luta por melhores condições de trabalho e assistência (AMARANTE, 2013). O MTSM ganha força rapidamente e a partir de 1985 e seus membros começam a assumir importantes cargos, alguns deles de chefia, nos programas estaduais e municipais de saúde mental e a direção de hospitais públicos e universitários. Amarante (2013) atribui essa ampliação do MTSM a sua capacidade de formar recursos humanos, que na reprodução das suas idéias começa a operar uma substituição de uma prática psiquiátrica conservadora, ou voltada para os interesses privados, por uma ação política de transformação da psiquiatria como prática social. USUÁRIOS DE SAÚDE MENTAL 169 E FAMILIARES

No final dos anos 80, a Reforma Psiquiátrica Brasileira ganha um novo ator importante: os familiares, agora organizados em associações. Destarte, os profissionais deixam de ter a participação majoritária na Reforma para dividi-la com os familiares, usuários e outras pessoas preocupadas com a saúde mental. Essas associações se constituem para atuar “na construção de novas possibilidades de

169 O termo “usuário” foi introduzido pela legislação do SUS (Lei 8.080/90 e Lei 8.142/90) no sentido de destacar o protagonismo de quem anteriormente era apenas um paciente. Esse termo que foi considerado uma grande evolução mas atualmente já começa a receber criticas pelo fato de ainda manter uma relação do sujeito com o sistema de saúde.

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GT16 – SOCIOLOGIA DA SAÚDE atenção e cuidados e na luta pela transformação da assistência em saúde mental” (YASUI, 2010, p.50). Amarante (2013) traz uma problematização a respeito das associações de familiares e as associações de usuários: nem todas as associações têm os mesmos objetivos, como é o caso de alguns grupos de familiares que compartilham os ideais pró-manicômio por entenderem que a internação psiquiátrica é o melhor tratamento que seus entes com transtornos mentais podem receber ou associações que são instrumentalizadas pelas empresas farmacêuticas para lutarem em prol dos seus interesses. Mesmo com essa observação importante feita por Amarante, optamos por discutir esses dois grupos de associações – de familiares e de usuários – e também as mistas numa única sessão por entendermos que todas elas trazem uma importante contribuição: a inserção da sociedade civil na discussão sobre as políticas públicas na área de saúde. Yasui (2010) apresenta algumas dessas associações: a primeira delas surge no Rio de Janeiro, em 1978, e chama-se Sociedade de Serviços Gerais para a Integração (Sosintra), logo depois se formaram o Grupo Loucos pela Vida de Juqueri, a Associação Franco Basaglia com sede em São Paulo, a Associação Franco Rotelli de Santos e o grupo SOS Saúde Mental. Essas foram as primeiras associações de familiares conhecidas do país, mas com o passar do tempo, essas associações se popularizaram, aumentaram de número e começaram a dividir espaço com algumas organizações não governamentais (ONGs) que também lutam pelos direitos das pessoas em sofrimento psíquico. Amarante (2007) observa que essa luta pelos direitos das pessoas com transtornos mentais não deixa de ser uma luta pelos direitos humanos, para que esses contemplem todas as pessoas. Nem sempre direitos básicos como direito a educação, ao trabalho, ao lazer, ao esporte, a cultura são assegurados aos que são “desprovidos da razão”. Amarante (2007, p.69) completa: “Trata-se de uma inclusão de novos sujeitos de direito e de novos direitos para os sujeitos em sofrimento mental”. Depois do I Encontro Nacional de Usuários e Familiares realizado na cidade de São Paulo em 1991 e do II Encontro realizado em 1992 no Rio de Janeiro, no III Encontro Nacional de Usuários e Familiares, realizado na cidade de Santos em 1993, houve um avanço significativo na organização dos familiares: nesse encontro foi redigida a “Carta de Direitos dos Usuários e Familiares de Serviços de Saúde Mental”, um documento elaborado e discutido exclusivamente pelos familiares e usuários e 229


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que, se não traz nenhuma novidade de conteúdo, deixa claro que os familiares ali reunidos estão de acordo com os preceitos da Reforma Psiquiátrica (YASUI, 2010). Além da organização dos próprios encontros e congressos, os usuários e familiares começam também a participar dos congressos “oficiais” como delegados e representantes da sociedade civil. Amarante (2013) destaca a participação das organizações de usuários e familiares, por exemplo, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, um importante marco pela luta da Reforma Sanitária no Brasil. A partir do momento em que o processo da Reforma Psiquiátrica sai do campo exclusivo dos técnicos e das técnicas, e chega aos usuários, aos familiares, enfim, a sociedade como um todo, surge uma nova estratégia de luta, através de ações culturais (AMARANTE, 2013). São blocos de carnaval (Tá pirando, pirado, pirou – RJ; Bibi tantã – SP; Lokomotiva – Natal; entre inúmeros outros), caminhadas (em várias cidades do país no dia 18 de maio que foi instituído como Dia Nacional da Luta Antimanicomial), televisões e rádios comunitárias com a temática da saúde mental (TV Tam Tam – Santos; TV Pinel – RJ; TV Parabolinóica – Belo Horizonte; entre outras) e até mesmo camisetas com frases provocativas (De perto ninguém é normal; Gente é para brilhar; etc) que tentam levar a Reforma Psiquiátrica para as discussões cotidianas de todas as pessoas, não só as envolvidas nesse processo (AMARANTE, 2007). Essas novas formas de mobilização – através de ações culturais – tomam a forma de um espetáculo, que segundo Dowbor e Szwako (2013) são uma forma de mudar a opinião do público em favor da sua causa. Essa apresentação dramática dos movimentos tem um caráter estratégico: ao forjar palcos e vitrines e dramatizar sua ações, os militantes conseguem adesões para o seu movimento. O que ocorre nesses casos é a opção por outro caminho para o confronto político, não aquele normalmente utilizado que é o do conflito e das metáforas bélicas, mas um caminho alternativo que busca politizar os atores por meio das metáforas teatrais (DOWBOR e SZWAKO, 2013). Afinal, quem disse que um desfile carnavalesco provocativo não pode levar conscientização as pessoas e se tornar um dispositivo de desestigmatização da pessoa com transtorno mental na sociedade? Esse é o propósito do Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou! que teve origem na rede de saúde mental da cidade do Rio de Janeiro e que desfila e integra os usuários de saúde mental ao carnaval de rua da cidade (XISTO, 2012).

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GT16 – SOCIOLOGIA DA SAÚDE Com esse progressivo aumento da participação dos familiares – portanto não de profissionais e técnicos, mas da população – nos debates sobre a saúde mental, e na saúde como um todo, foi possível a participação real de atores sociais na construção de políticas de atenção psicossocial. Para Amarante (2007), foi essa participação social que deu o impulso decisivo para a introdução do capítulo da saúde na Constituição Federal de 1988 e para a implantação do Sistema Único da Saúde SUS (Lei 8.080 de 1990). Esta participação da sociedade foi considerada tão importante que acabou sendo incorporada pela legislação dos serviços de saúde com o nome de “controle social” e estabelece a participação da sociedade na gestão do sistema (Lei 8.142 de 1990). MOVIMENTO DA LUTA ANTIMANICOMIAL 170

Barbosa, Costa e Moreno (2012) localizam o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA) como um dos movimentos sociais que compõe o cenário nacional da luta em prol dos direitos das pessoas com transtornos mentais e seus familiares. E como movimento social, o MLA precisa ser pensado e entendido dentro do seu contexto histórico e da conjuntura em que ele surge. O Movimento da Luta Antimanicomial tem sua origem no II Encontro de Trabalhadores de Saúde Mental, que aconteceu em dezembro de 1987, na cidade de Bauru – São Paulo. Esse movimento busca pensar a loucura em seu âmbito sociocultural e a partir disso repensar as relações com a loucura. O MLA tem na frase “Por uma sociedade sem manicômios” o seu lema (YASUI, 2010). O MLA tem uma característica bastante singular, conforme relata Yasui (2010), que foi (e é) a de sempre existir enquanto movimento, sem se tornar uma instituição: não há sede, não há fichas de inscrição nem filiação, todos os que tiverem a disposição, podem fazer parte desse movimento. O MLA funciona como um dispositivo social que congrega e articula as pessoas, os trabalhos e os lugares, tendo

170 Existe uma divergência entre os autores ao nomear esse movimento, como por exemplo, Luchmann e Rodrigues (2007) nomeiam como “Articulação Nacional da Luta Antimanicomial” e Lobosque (2001) nomeia como “Movimento Nacional da Luta Antimanicomial”. Para fins desse estudo utilizaremos a denominação utilizada por Yasui (2010) de “Movimento da Luta Antimanicomial” por ser mais geral e assim conter as outras denominações no seu núcleo de sentido.

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uma presença material no cotidiano de profissionais, familiares e usuários nos serviços de saúde mental. A escolha desse grupo de atores por se intitular como luta antimanicomial não foi ao acaso. Lobosque (2001) explica o sentido e a razão da escolha desse nome: Movimento, por constituir um modo político singular de organização, não constituindo um partido, entidade ou instituição; Nacional pela sua intenção de atingir o país como um todo e não apenas um ou outro ponto específico; Luta, aparece aqui como um não ao consenso, como um enfrentamento que coloca em questão poderes e posições; e Antimanicomial é assumir uma posição e também uma palavra de ordem, é o que vai levar ao combate político por uma sociedade sem manicômios. Em 1993 na cidade de Salvador, foi realizado o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, onde as pessoas participantes do MLA buscaram discutir o seu próprio movimento e decidiram que este deveria ser plural, independente, autônomo, e que deveria manter alianças com outros movimentos sociais com o objetivo de sair do caráter meramente teórico e técnico, para uma intervenção política na sociedade (YASUI, 2010). Podemos destacar esse espaço de tempo entre 1987, ano de fundação do Movimento da Luta Antimanicomial e 1993, ano do I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial como o espaço de consolidação para esse movimento. Nesses seis anos ocorreram várias articulações que possibilitaram que o MLA se inserisse em outros espaços como fóruns sociais, entidades de categorias e até mesmo em setores políticos (LUCHMANN e RODRIGUES, 2007). Consideramos importante ressaltar que, na medida em que a luta antimanicomial foi se estruturando e somando atores, os representantes prómanicômios também se organizaram e mudaram a sua atuação, para não serem tão facilmente suprimidos. Amarante (2013) chama a atenção para o fato de que a psiquiatria modernizou seus meios de controle social, abrindo mão dos recursos mais violentos e repressivos, para instaurar outros mais preocupados com as normas e os desvios e com a normalização social da saúde, soando, portanto, bem mais agradável e bem mais aceitável para a sociedade. Nos últimos anos o MLA vem enfrentando conflitos e impasses internos. Com o grande crescimento numérico de participantes, se tornou mais difícil a preparação e formação política dos membros o que gerou um empobrecimento nos debates e a elaboração de propostas sem reflexão. Esse fato acaba gerando uma ruptura no 232


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movimento depois do V Encontro Nacional no ano de 2001, e o grupo dissidente organiza a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial em 2003 (LUCHMANN e RODRIGUES, 2007), mas como esse fato extrapola o nosso recorte temporal vamos apenas citá-lo nos eximindo de analisá-lo com maior profundidade.

PARTIDO DOS TRABALHADORES

A presença do Partido dos Trabalhadores - PT neste trabalho se deve a experiência inovadora em saúde mental, e que rendeu bons frutos, que ocorreu durante a gestão desse partido na cidade de Santos – SP. Alguns poderiam argumentar que a organização dessa experiência surgiu da própria cidade e da sua população, o nosso entendimento é de que a organização, claro, também se desenvolveu a partir da cidade e da população, mas nesse caso, o PT foi crucial para a implantação e manutenção de um serviço diferenciado em saúde mental, já que com a troca da gestão municipal, essa experiência inovadora foi desmontada. Ao longo dessa sessão vamos discorrer sobre essa experiência. Com a prefeitura sob o comando do Partido dos Trabalhadores, a cidade de Santos, a partir de 1989 produziu uma experiência singular em saúde mental que abrangia duas grandes características da Reforma Psiquiátrica: adentrar o aparelho estatal para poder participar das decisões e a partir disso, desencadear (e conseguir sustentar politicamente) um processo de transformação no modelo de atenção a saúde mental (YASUI, 2010). Essa experiência começou no dia 03 de maio de 1989 quando a Secretaria de Saúde de Santos, mediante denúncias de violência e óbitos, fez uma intervenção no hospital psiquiátrico privado chamado Casa de Saúde Anchieta com o objetivo de fechá-lo. Esse ato inicial desencadeou as condições necessárias para a implantação de um sistema psiquiátrico com características substitutivas ao modelo manicomial. Com o apoio da prefeitura foram instalados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), cooperativas, associações e residências num processo que é um marco importante na psiquiatria pública nacional (AMARANTE, 2013). No intuito de montar os serviços territoriais (NAPS), o hospital foi dividido em cinco mini-equipes, cada uma responsável por uma determinada região de Santos. As equipes organizaram-se a fim de construir os NAPS e realizar a desativação da Casa de Saúde Anchieta. O primeiro NAPS foi inaugurado em setembro de 1989, na zona noroeste de Santos. Pouco tempo depois foram

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inaugurados outros quatro serviços. Em junho de 1994, ocorreu o fechamento definitivo da Casa de Saúde Anchieta. Tal período é caracterizado por uma grande mobilização política por parte dos trabalhadores de saúde mental do município (KODA e FRENANDES, 2007, p.1456).

Continuando a sua análise, Koda e Fernandes (2007), falam sobre como as instituições dizem respeito a um contexto mais global, de toda a sociedade, com sua cultura, seus valores, suas normas, que ditam como as pessoas vão agir. Por isso, não é possível pensar a mudança ocorrida no atendimento à saúde mental na cidade de Santos sem pensar também nos aspectos sociais e políticos envolvidos nesse processo. O pesquisador Silvio Yasui (2010), ao realizar uma análise das diferentes experiências da Reforma Psiquiátrica Brasileira, afirma que elas se alteram muito dependendo do partido político que está no poder. Em sua grande maioria, as experiências mais inovadoras e avançadas em saúde mental nas cidades, se deram em gestões municipais de lideranças ligadas a partidos de esquerda, que se opunham aos poderes conservadores locais. A implantação dos NAPS em Santos ocorreu durante o mandato de Telma de Souza, do Partido dos Trabalhadores, no mandato entre 1989 e 1992. O seu sucessor foi David Capistrano Filho, também do Partido dos Trabalhadores, que governa até 1996. Em 1997, o Partido dos Trabalhadores perde a eleição para a prefeitura da cidade de Santos, sendo substituído pelo Partido Progressista, na figura do prefeito Paulo Roberto Gomes Mansur. É justamente no final da década de 90 que a experiência dos NAPS em Santos começa a enfrentar dificuldades. Koda e Fernandes relatam: A falta de respaldo da administração para os serviços gera um empobrecimento das práticas. A desarticulação da rede, a falta de investimentos e de infra-estrutura limita o campo de ações possíveis. Vemos a desmobilização da equipe e dos projetos que, ao invés de se dirigirem ao território, refluem para dentro da instituição, reforçando o modelo médico/ambulatorial tão criticado anteriormente (KODA e FERNANDES, 2007, p. 1458-1459).

A desarticulação dos Núcleos de Atenção Psicossocial gera um grande pessimismo nos profissionais que atuam na saúde mental nessa cidade, pela perda da segurança que o ambiente oferecia e também pelos ideais que foram abandonados. Koda e Fernandes (2007) relatam a nostalgia com que os profissionais falam daquele tempo, colocando um “antes” e “depois” na história da saúde mental em Santos. E nesse caso, o depois é retrocesso.

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Outra importante contribuição do Partido dos Trabalhadores para a Reforma Psiquiátrica foi o projeto de Lei nº 3.657/89, do deputado federal mineiro, Paulo Delgado171, que propõe a extinção dos manicômios e sua substituição por serviços extra-hospitalares e que vai dar o tom do movimento e dos debates do setor com toda a sociedade, nos anos 90 (ROSA, 2003). A apresentação do projeto de lei nº 3.657/89, que ficou conhecido posteriormente como “Projeto Paulo Delgado” acontece em meio a muitos eventos e acontecimentos importantes para a Reforma Psiquiátrica, entre eles, 8ª Conferência Nacional de Saúde, I Conferência Nacional de Saúde Mental, II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial em São Paulo e criação do primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial em Santos. Portanto, podemos entender que o Projeto Paulo Delgado é um reflexo das lutas da sua época. Amarante (2013) fala um pouco da importância desse projeto de Lei e da sua repercussão na época em que foi apresentada: As principais transformações no campo jurídico-politico tiverem inicio a partir desse Projeto de Lei, que provocou enorme polêmica na mídia nacional, ao mesmo tempo que algumas associações de usuários e familiares foram constituídas em função dele. Umas contrárias, outras a favor, o resultado importante deste contexto foi que, de forma muito importante, os temas da loucura, da assistência psiquiátrica e dos manicômios, invadiram boa parte do interesse nacional (AMARANTE, 2013, p.84).

Mas além de gerar polêmica, o Projeto de Lei nº 3.657/89 trouxe também grandes avanços. Estimulados pela idéia de uma lei que siga os preceitos da luta antimanicomial, vários estados elaboraram e aprovaram as suas próprias leis para a assistência em Saúde Mental, são eles: Rio Grande do Sul, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Norte (AMARANTE, 2013). O projeto de Lei nº 3.657/89 é de onde parte a Lei 10.216/2001 conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, que apesar de ser considerada mais conservadora172, é a lei que atualmente rege a atuação no campo da saúde mental no Brasil. Também de autoria do Deputado Paulo Delgado, a Lei 10.216 legisla sobre a 171 Paulo Gabriel Godinho Delgado, Sociólogo, pós-graduado em Ciências Políticas, professor universitário, foi deputado federal por seis mandatos a partir da Constituinte iniciada em 1987. É um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. É autor da Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira e também autor da Lei das Cooperativas Sociais. Informações disponíveis no site www.paulodelgado.com.br. 172 Não iremos nos deter aqui sobre a diferença no texto das duas leis, já que o nosso foco são os atores e o impacto de suas ações nas políticas públicas em saúde mental no Brasil.

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proteção e os direitos das pessoas portadoras de saúde mental e redireciona o modelo de assistência à saúde mental no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Reforma Psiquiátrica tem sua origem primeira na vontade individual de cada uma das pessoas que se levantou para lutar, vontades essas que somadas fizeram uma grande diferença no cotidiano das pessoas que sofrem com algum transtorno mental e diferença essa que é reconhecida como uma das mais avançadas do mundo (AMARANTE, 2007). Mas essas vontades individuais não podem cessar, porque essa mudança é processo, não está concluída, e ainda há muito a ser feito para alcançarmos o objetivo do Movimento da Luta Antimanicomial: “uma sociedade sem manicômios”. Por outro lado, todo esse processo da Reforma Psiquiátrica não seria possível sem um certo nível de organização, que una todas essas vontades individuais. A maioria dos atores se uniu em grupos - ainda que não institucionalizados - que têm como característica central a pluralidade. Não é possível destacar uma classe profissional ou um grupo de pessoas como centrais nessa luta, e é por isso que ela se tornou tão forte: pela participação popular. São profissionais, familiares, usuários, pessoas que se identificam com a causa que deram esse contorno tão plural para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e que começam a deslocar o jogo de forças sociais e políticas com a sua luta. Além dos atores citados nesse trabalho, Luchmann e Rodrigues (2007) listam outros atores que fazem parte do campo as saúde mental no nosso país como a Associação Psiquiátrica Brasileira que busca o aprimoramento científico nessa área; a Federação Brasileira de Hospitais, representante do setor privado, mas que disputa as verbas da previdência social e a indústria farmacêutica que divulga a ideologia do medicamento como recurso fundamental no tratamento dos transtornos mentais. Amarante (2010) acrescenta ainda a Universidade como local de produção de conhecimento sobre a saúde; e a mídia, que articula informações e, de alguma forma, vende posições. Seria possível ainda listar mais atores envolvidos nesse processo e dos quais não foi possível tratar nesse trabalho, colocamos então um ponto final aqui, sabendo que a análise desses outros atores seria fundamental para uma compreensão mais ampla da Reforma Psiquiátrica Brasileira. 236


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ANONYMOUS NAS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO: UMA PROPOSTA TEÓRICA Michele Caroline Torinelli173 Ana Luisa Fayet Sallas174

Resumo: Uma máscara se destacou nos protestos de junho de 2013 no Brasil. Tratase do símbolo dos Anonymous, uma rede que não se identifica como grupo ou movimento, mas como uma ideia. A máscara pode ser vista em registros de manifestações ao redor do globo: desde mobilizações no norte da África a partir de 2011, passando por diversos outros países. Além de ter sua máscara-símbolo amplamente adotada, eles atuaram como importantes mediadores dos protestos brasileiros de junho de 2013. Entende-se aqui que essa atuação não é um evento isolado, mas insere-se num processo que envolve transformações culturais nos âmbitos de juventude, comunicação e política – aspectos que dialogam entre si e convergem na aplicação do conceito de rede à situação pesquisada. Trata-se de delinear as bases para a investigação do significado sociopolítico da atuação dos Anonymous nas manifestações de junho, sob uma perspectiva de movimentos sociais em rede que integra comunicação, cultura e política. Palavras-chave: Anonymous. Movimentos sociais em rede. Cultura política. INTRODUÇÃO Brasil, junho de 2013. A tarifa de ônibus sobe nas maiores cidades do país. O Movimento Passe Livre, que já contava com uma trajetória de quase uma década – tendo protagonizado relevantes manifestações em anos anteriores em Florianópolis e Salvador – convoca protestos ao redor do Brasil. Manifestações na cidade de São Paulo já alcançavam milhares de participantes na primeira dezena do mês, quando no dia 13 o uso da violência por parte da Polícia Militar choca o país. Desencadeia-se uma onda de manifestações massivas protagonizadas por jovens que extrapolam a pauta do transporte, com reivindicações difusas, mobilizadas digitalmente e

173 Michele Caroline Torinelli é mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná na linha de pesquisa de Cultura, Comunicação e Sociabilidades com a temática de Juventude: Cultura e Participação. 174 Ana Luisa Fayet Sallas realizou pós-doutorado no ano de 2012 no Colégio do México, México. Concluiu o Doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná em 1998 e o Mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Brasília em 1987. Atualmente é Professora Titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná.

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divulgadas em tempo real pelas mídias sociais, de modo a surpreender as instituições políticas e seus representantes, assim como a imprensa e a população em geral, devido à sua amplitude, densidade e ao seu caráter de novidade. (GOHN, 2013; MARICATO et al, 2013; MALINI, 2013a). Nas manifestações que se seguiram, bem como nas repercussões em fotos, matérias e vídeos na mídia de massa e nas redes sociais digitais, um elemento destacou-se: a máscara de Guy Fawkes, adereço emblemático da História em Quadrinhos (HQ) V de Vingança (MOORE, LLOYD, 2006), posteriormente transformada em filme homônimo (2006)175. A quase onipresente máscara é o símbolo adotado pelos Anonymous. Similarmente às manifestações, eles não possuem líderes explícitos ou pautas específicas. Aliás, nem se denominam um movimento, mas uma ideia, um conceito (ANONYMOUS). Seu universo de organização é majoritariamente digital e seu papel se destaca não só no Brasil, mas em manifestações e ações ao redor do mundo (MACHADO, 2013). Segundo a proposta de investigação aqui apresentada, a atuação dos Anonymous nas manifestações de junho176 não é um evento isolado, mas insere-se num processo que envolve transformações culturais nos âmbitos de juventude, comunicação e política – aspectos que dialogam entre si e convergem na aplicação do conceito de rede à situação pesquisada. Trata-se de delinear as bases para a investigação do significado sociopolítico177 da atuação dos Anonymous nas manifestações de junho, sob uma perspectiva que trata de movimentos sociais em rede (CASTELLS, 2013) integrando comunicação, cultura e política.

ANONYMOUS NO BRASIL E OS PROTESTOS DE JUNHO DE 2013

175 O filme baseou-se na HQ desenvolvida por Moore e Lloyd (2006) na década de 1980, que por sua vez inspirou-se na trajetória de Guy Fawkes, católico inglês que tentou explodir o parlamento de seu país em 1605, com o rei James I dentro, no que ficou conhecido como “Conspiração da Pólvora”. Ele foi impedido e condenado à forca. (FEBBRO, 2012). 176 As manifestações de junho de 2013 no Brasil serão indicadas apenas como “manifestações de junho”. Apesar de ter sido essa a opção da presente pesquisa, outras denominações surgiram, tais como “Jornadas de Junho” (MALINI, 2013b; MARICATO et al, 2013). 177 Acredita-se que, “além do marco das 'democracias realmente existentes', é necessário observar em que medida os movimentos sociais adotam referências, geram discursos e criam práticas espaciais de resistência, nas quais a democracia aparece como uma criação coletiva, como a instituição de um novo imaginário, de tensão permanente entre projetos e territorialidades.” (BRINGEL, ECHART, 2008, p. 467).

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A rede Anonymous originou-se nos primeiros anos do século XXI num fórum na internet178 no qual jovens compartilhavam bizarrices. A maioria dos usuários identificava-se simplesmente como anônimo (anonymous, em inglês), o que fazia parte da dinâmica de relacionamento no fórum. Quando sofreram ameaças da igreja de Cientologia de serem processados por escrachar, nas redes digitais, um vídeo com Tom Cruise falando das crenças da igreja (que a instituição afirmaria tratar de conteúdo interno), eles “derrubaram”179 seu site (entre outras ações tal como ligações telefônicas em massa para interditar os canais de comunicação da igreja). A partir disso os até então anônimos digitais encontraram-se presencialmente pela primeira vez para protestar em diversos locais ao redor do planeta em 2008 contra a “caça” que se instaurou contra eles a partir desse caso, o que corroborou para a consolidação da rede sob uma perspectiva política. Entre outras iniciativas dos Anonymous, destaca-se uma ação levada a cabo em 2011, quando foram responsáveis por “derrubar” as plataformas de pagamento online da Visa, Mastercard e Paypal em protesto contra a atitude dessas empresas de bloquear doações para o Wikileaks. (MACHADO, 2012a; 2013; COLEMAN, 2011; WE ARE LEGION, 2012). ¨Nós não somos uma organização e não temos líderes. Oficialmente nós não existimos e não queremos existir oficialmente. Nós não seguimos partidos políticos, orientações religiosas, interesses econômicos e nem ideologias de quaisquer espécies”, informa a página digital Anonymous Brasil. Mais do que um movimento, acredita-se tratar de uma cultura comum, que se forja principalmente nos ambientes digitais e entre jovens em escala mundial (WE ARE LEGION, 2012; COLEMAN, 2011; MACHADO, 2013). Durante as manifestações de junho, eles “derrubaram” páginas virtuais – como do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo –, hackearam contas em mídias sociais da presidente Dilma Rousseff e da revista Veja, identificando-se como “Anonymous” ou “Anons” e incitando as manifestações, e vazaram documentos da Polícia Militar e da

178 Trata-se de uma página do 4chain denominada b: <http://boards.4chan.org/b/>. 179 Costuma-se “derrubar” uma página digital por meio de ações distribuídas de negação de serviço (DDoS – Distributed Denial of Service), que consistem “em acessar repetidas vezes determinado servidor de maneira tal, que este acaba por não suportar a sobrecarga. Com isso, ele para de oferecer seus serviços.” (MACHADO, 2012a).

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Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Uma cartografia digital acerca das manifestações, que partiu das mensagens publicadas no Facebook no dia 13 de junho, identificou que das cinco páginas que mais geraram repercussão nessa data, três estão relacionadas aos Anonymous (INTERAGENTES, 2013). A partir disso, é preciso levar em conta em que medida a atuação dos Anonymous nas manifestações de junho remete a hacktivismo180 ou ativismo online181 (entendido como sinônimo de ciberativismo), sendo que, além de empreender ações de hacking, destacaram-se como mobilizadores e divulgadores dos protestos182. Entretanto, o enfoque da pesquisa não se centrará no aspecto hacker (apesar de ser impossível ignorá-lo, por fazer parte da constituição dos Anonymous), mas no papel de mediação e símbolo que assumiram durante as manifestações de junho, e como sua atuação digital se combinou com a dinâmica das ruas. É importante destacar que a atuação dos Anonymous, assim como as manifestações de junho em si, fazem parte de um contexto global. Movimentos que surgiram no norte da África em 2011, se espalharam por outros continentes e se desdobram até o momento têm em comum a emergência de um ativismo político de características horizontais protagonizado por jovens que ocupa os espaços públicos e se utiliza de tecnologias digitais para se articular em redes, de forma a ampliar sua atuação nas ruas e questionar a política institucional vigente. (HARVEY et al, 2012; GOHN, 2013; MARICATO et al, 2013; CASTELLS, 2013).

A MÁSCARA E A MULTIDÃO A simbologia da máscara, o caráter carnavalesco das manifestações de junho e o conceito de multidão são abordagens nas quais se apoiará a investigação do imaginário que constitui a ideia Anonymous e sua relação com o formato das 180 “Para um dos principais coletivos de hacktivistas, autodenominado Cult of the Dead Cow […] hacktivismo [é] uma prática de hacking, phreaking ou de criar tecnologias para alcançar um objetivo social ou político.” (SILVEIRA, 2010, p. 32). Já phreaking é um espécie de hacking no âmbito telefônico. 181 De acordo com Machado (2013, p. 44), ativismo online consiste em “disseminação de informações, publicação de cartas-protesto, envio em massa de e-mails, blogagem coletiva –, que raramente envolve as habilidades presentes no hacking de computador”. 182 Machado (2013, p. 29) sugere que os Anonymous se engajam politicamente de quatro formas principais: “promovendo o anonimato; evangelizando; formando redes distribuídas; exibindo e possibilitando várias formas de ações políticas.”

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manifestações de junho. Tal análise implica em explorar a dinâmica da atuação dos Anonymous entre o meio material (nas ruas) e o meio digital durante os protestos de junho e seu movimento de enfrentamento e cooptação frente ao status quo. A máscara é o embuste, o disfarce, o artefato de carnaval – festa na qual não importa seu nome ou quem é você, mas como você age. É elemento cênico, de brincadeiras e conexão com o imaginário, adereço de vilões e heróis, que facilita a libertação do indivíduo frente aos papeis sociais. “Anota aí, eu sou ninguém”, disse uma integrante do Movimento Passe Livre em entrevista sobre as manifestações de junho (PELBART, 2013), numa postura que poderia ser de V, o protagonista mascarado de V de Vingança. Ao mesmo tempo em que permite ser ninguém, a máscara possibilita ser todos183 – como proclama Subcomandante Marcos, portavoz do EZLN – Exército Zapatista de Libertação Nacional (MACHADO, 2012b)184. Seguindo a perspectiva de Bakhtin, Martín-Barbero (2003, p. 107-8) identifica o potencial subversivo da ocupação das ruas pela cultura popular no carnaval, primeiramente por meio do riso, mas principalmente através da máscara: A máscara, outro dispositivo do cômico e do carnaval, exprime ainda mais plenamente a negação da identidade como univocidade. A máscara está na mesma linha de operação que […] os apelidos: ocultação, violação, ridicularização da identidade, e ao mesmo tempo realiza o movimento das metamorfoses e as reencarnações, que são o movimento da vida. Mas a máscara joga também sobre um outro registro de sentido, é estratégia de encobrimento e dissimulação, de engano da autoridade e inversão das hierarquias.

Gutiérrez (2013) aponta para o aspecto carnavalesco que assumem os protestos no Brasil, caracterizado não só pela máscara, mas também pela alegria, pela chacota e pela ocupação do espaço público, que consistem em formas de

183 A simbologia da máscara é essencial para investigar a identidade nos Anonymous que, segundo Machado (2013, p. 93), “consiste em relegar momentaneamente a segundo plano sua identidade. Isso significa que a identificação com os Anonymous implica adotar uma identidade coletiva e pretensamente consensual em detrimento das próprias individualidades de seus apoiadores. […] por um lado, todos fazem parte da ideia Anonymous e, em tese, contam com uma voz ativa sobre ela. Por outro, no entanto, ninguém está habilitado a falar em nome dela, muito menos a representá-la de alguma forma. Por isso, quando colocam a máscara que imita o rosto de Guy Fawkes, os rostos por trás dela são sobrepujados por todo o ideário por ela carregado. Não obstante, ela valeria muito pouco sem essa atuante multiplicidade de rostos.” 184 Silveira (2010, p. 32) indica que o EZLN também está na origem do que denomina desobediência civil eletrônica e hacktivismo. Segundo o autor, em 1998, “o grupo autodenominado Electronic Disturbance Theater lançou uma série de ações de desobediência civil eletrônica contra o governo mexicano, em apoio ao movimento zapatista.”

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subversão e resistência política185. Segundo Chauí (2013), Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, [os manifestantes] modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicando uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.

Esta nova práxis política, para Hardt e Negri (2005), se dá por meio do “poder em rede”, que é a outra face da globalização que se opõe ao Estado-nação. Os autores acreditam num projeto de democracia em escala global como potencial da multidão não hierárquica e descentralizada que ocupa as ruas. Para eles, “a multidão pode ser encarada como uma rede: uma rede aberta e em expansão na qual todas as diferenças podem ser expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona meios da convergência para que possamos trabalhar e viver em comum” (ibid., p. 12). Este conceito de multidão se contrapõe aos de povo e massa: enquanto o primeiro abarca a pluralidade, o segundo prevê unidade e o terceiro, indiferenciação. Também se contrapõe ao de classe operária, ao entender que o conceito proposto por Marx considera somente o proletariado industrial e ignora os diversos outros setores populares. Acredita-se que a produção “deve ser encarada de maneira mais ampla como produção social – não apenas a produção de bens materiais, mas também a produção de comunicações, relações e formas de vida” (ibid., p. 13). A internet serve como modelo dinâmico dessa perspectiva de rede multitudinária, pois ambas permitem constantemente novas conexões e rearranjos (ibid.). Essa multidão que tomou as ruas em junho é composta por coletivos, redes e indivíduos que reivindicam diferentes pautas num formato que mais lembra o carnaval, com pessoas fantasiadas – entre elas as que trazem sobre a face a máscara de Guy Fawkes. Essa máscara dissimula identidades reais que se protegem da repressão (física e/ou simbólica) – tanto aquelas envolvidas com ideias de emancipação social, quanto aquelas que se apropriam desse símbolo para outros fins: o que inicialmente eram manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público e pelo direito à cidade em alguns momentos tomaram ares fascistas (MARICATO et al, 2013).

185 Ao analisar as manifestações de junho no Brasil, Szaniecki (2013) também destaca seu caráter carnavalesco, caricato e antropofágico.

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A multiplicidade da multidão inclui não só a dinâmica de formas de organização em rede em prol do comum – mas também ideias e práticas das mais autoritárias. Além

do

que,

todo

movimento

contra-hegemônico,

por

mais

revolucionário e radical que seja, traz em si aspectos da cultura dominante186: o que vai determinar seu poder de resistência e confronto é o modo como se apropria deles, que os ressignifica (MARTÍN-BARBERO, 2003). O mesmo se dá em relação ao papel das mídias (de massa e digitais em rede) nas manifestações de junho: trata-se de um ciclo de enfrentamentos e amálgamas, de afastamentos e aproximações, num processo em que a contestação da ordem vigente envolve a reprodução de alguns aspectos da ideologia dominante, que por sua vez captura a revolta em prol da manutenção do status quo – sendo, contudo, instada a assimilá-la.

CULTURA DE JUVENTUDE, CULTURA DE COMUNICAÇÃO E CULTURA POLÍTICA: UMA CONVERGÊNCIA Ao analisar as manifestações multitudinárias, que atuam simultaneamente e de maneira convergente nas redes digitais e nas ruas, e se proliferam pelo planeta desde 2011, Pelbart defende que possivelmente uma outra subjetividade política e coletiva esteja (re)nascendo, aqui e em outros pontos do planeta, para a qual carecemos de categorias. Mais insurreta, de movimento mais do que de partido, de fluxo mais do que de disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum, sem que isso garanta nada, muito menos que ela se torne o novo sujeito da história. (PELBART, 2013).

O autor destaca a importância do percurso, independente dos seus resultados a curto prazo187 – e as dinâmicas de comunicação têm tido relevante papel nos processos de juventude na atualidade. Na década de 60, a juventude foi protagonista 186 Entende-se que a globalização faz com que os produtos da indústria cultural, através dos meios de comunicação de massa e da internet, cheguem a quase todos os rincões do planeta – e aqueles onde não chegam vivem à parte, relegados à invisibilidade, aquém de disputas com a civilização por estarem excluídos do cenário comunicativo global (CASTELLS, 2009). 187 Segundo Sallas e Bega (2006, P. 49), “a procura por autonomia e diferenciação, por um lado, e de cooperação e integração, por outro, não pode ser vista como expressão de processos antagônicos ou paradoxais. São apenas faces de um mesmo processo que tem marcado a vida dos jovens nas modernas sociedades industriais. Esses elementos poderiam ser pensados, aqui, como algo constitutivo da juventude, marcados por aquilo que simmel definiu como próprio de um espírito aventureiro, em que, mais do que se chegar a qualquer ponto, importa o caminho, o percurso do aventureiro.”

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de intensas mudanças culturais e políticas por meio do movimento hippie e insurgências como o Maio de 68. Nessa época os jovens manifestavam uma vontade de autonomia na sociedade através de uma cultura própria, entre outras maneiras, por meio do rock. Um dos grandes diferenciais da atualidade é a apropriação das novas tecnologias da comunicação, que permitem que, mais intensamente que na década de 60, jovens dialoguem em âmbito global. Feixa (2000) reflete sobre como o consumo cultural e as mudanças de percepção do tempo relacionam-se com a mudança na cultura juvenil das últimas décadas (elementos que contribuem na constituição do que o autor denomina geração @) utilizando como metáfora a evolução do mecanismo que mede o tempo – o relógio – em suas versões de areia, analógica e digital. Ao contrário da primeira – originária de um período em que não havia diferenciação entre tempo e espaço e a cultura de juventude correspondia à da sociedade como um todo –, a segunda, característica da era industrial, representa uma concepção linear do tempo num momento em que a juventude passa a construir uma cultura própria de âmbito predominantemente nacional; já atualmente as tecnologias digitais permitem o deslocamento temporalespacial de maneira rápida e global, assim como o surgimento cada vez maior de micro-culturas juvenis que se prospectam, se mesclam e se reproduzem em escala planetária188. O documentário que conta a história dos Anonymous (WE ARE LEGION, 2012) é bastante ilustrativo nesse sentido: jovens que dialogam em redes sociais digitais em escala global vão criando todo um universo de referências comuns, até mesmo uma linguagem comum, e acabam descobrindo que são muitos. Em alguns casos eram adolescentes que se sentiam solitários e, quando os Anonymous se constituíram como tal, deram-se conta de que faziam parte de uma grande comunidade. Além disso, descobriram que suas habilidades no uso das novas tecnologias, até então utilizadas basicamente para entretenimento e aprofundadas pela curiosidade, tinham poder num mundo em que os mais relevantes fluxos financeiros e comunicacionais são intermediados pelas tecnologias que eles, esses jovens, em alguma medida dominam. Assim como o personagem V, eles têm acesso 188 Contudo, essa juventude vive o acúmulo desses três períodos históricos – o digital se dá em continuidade e concomitantemente ao natural e ao linear (FEIXA, 2000).

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a Destino – o computador que guarda todas as informações do sistema –, e podem, em determinado aspecto, lutar de igual para igual com grandes Estados e corporações189. (ibid.; MOORE, LLOYD, 2006). A partir disso, a questão que se coloca é como esse poder é utilizado. A postura dos Anonymous muitas vezes parece ser irresponsável (WE ARE LEGION, 2012; COLEMAN, 2011), e essa mesma crítica também é comum aos jovens que participaram das manifestações de junho. Chauí (2013) questiona nesse sentido tais movimentos em rede que tomaram as ruas do Brasil recentemente, tendo em vista as diferentes apropriações das forças das ruas que a estrutura difusa das manifestações permite: Assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas: 1. Estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte, que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais? 2. Estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais? 3. Estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa? 4. Estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?

Para Pelbart (2013) parece mais plausível encarar as circunstâncias atuais como parte de um processo de empoderamento político. Por isso, antes de simplesmente descartar o potencial transformador desses jovens brasileiros, é preciso compreendê-los. Como constatou a própria Chauí (2013), mesmo que se declarem contra a política, ao ocupar as ruas e extravasar sua indignação, os manifestantes estão realizando um ato político, dizendo não ao modo como ela se dá. De acordo com Honneth (2003), não é possível pensar os conflitos coletivos apenas sob o prisma de fins objetivos, ou de questões materiais – que são inerentes, em maior ou menor grau. Os pesquisadores costumam negligenciar que grande parte da motivação das lutas sociais se deve a “sentimentos morais de injustiça, em vez de 189 “Se o poder nas sociedades complexas se baseia cada vez mais no controle privilegiado de informação, é potencialmente um poder muito frágil, porque a simples aquisição de informação situa os atores no mesmo plano”, acredita Melucci (1999, p. 91). Entretanto, não basta ter acesso às informações: é preciso (re)significá-las, ou seja, conferir-lhes sentido.

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constelações de interesses dados” (ibid., p. 255). Esses sentimentos de desrespeito são vivenciados no cotidiano, de forma individual, e se transformam em luta social a partir do momento em que se reconhece que tal experiência é típica de um grupo inteiro (ibid., p. 257). Muitos dos jovens que tomaram as ruas não se sentem representados pelos políticos que estão no poder, sejam do partido que forem: não se sentem representados pelo sistema político (GOHN, 2013). E essa juventude, que frequentemente não encontra espaço para expressar suas opiniões na escola, na família e no sistema hegemônico como um todo (ibid.; SALLAS, BEGA, 2006) e que enfrenta um déficit de reconhecimento (HONNETH, 2003) encontrou dois espaços para extravasar sua rebeldia, que ultrapassam a tribo: a grande rede digital, na qual tribos locais podem se articular em tribos globais, e a rua190. A juventude está exigindo seu espaço e, “como condição simbólica, adianta a possibilidade e o direito à redefinição, à variabilidade, à reversibilidade das opções de vida” (MELUCCI, 1999, p. 94), questões que dizem respeito não só aos jovens, mas à sociedade em seu conjunto. De acordo com Habermas, Basta tornar plausível que os atores da sociedade civil, até agora negligenciados, podem assumir um papel surpreendentemente ativo e pleno de consequências, quando tomam consciência da situação de crise. Com efeito, apesar da diminuta complexidade organizacional, da fraca capacidade de ação e das desvantagens estruturais, eles têm a chance de inverter a direção do fluxo convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte o modo de solucionar problemas de todo o sistema político. (2003, p. 115).

Diferentemente do que indica o autor, agora a desvantagem estrutural, pelo menos em um aspecto, já não é tão grande – as tecnologias digitais permitem uma reconfiguração dessa balança, o que impacta na capacidade de atuação desses atores. De forma evidente a juventude (que, apesar de contar com o protagonismo nas manifestações de junho, se articula a outros atores também negligenciados) conseguiu inverter o fluxo de comunicação de maneira eficaz, exigindo novas maneiras de solucionar velhos problemas: sem desconsiderar o poder que a mídia de massa e as instituições políticas exercem e exerceram especificamente durante os 190 Esses dois ambientes compõem uma mesma realidade (malini, 2013b) que contempla uma relação dialógica entre o digital e o material, pois “nas ruas e nas redes as formas analógicas e digitais demonstram que não são antagônicas e sim complementares” (SZANIEKI, 2013).

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protestos de junho, é preciso reconhecer que as ruas e as redes digitais também pautaram a mídia de massa e o poder público191.

AÇÃO COMUNICATIVA, RECONHECIMENTO MOVIMENTOS SOCIAIS EM REDE

E

DEMOCRACIA

NOS

O termo “movimentos sociais em rede” é empregado por Castells (2013) para designar movimentos contemporâneos que se utilizam da internet e ocupam espaços públicos, numa contínua movimentação entre redes e ruas. Eles se conformam em redes distribuídas, sem liderança formal ou um centro de controle; conectam-se em amplitude global com outros movimentos; são autorreflexivos, pois se autoquestionam e se auto-avaliam constantemente; a indignação impulsa seu desencadeamento; não contam com programa político (exceto quando se encontram baixo regimes ditatoriais); entre outros quesitos. Mas o que significa atuar em rede? No que tange às redes digitais, Hakim Bey já tratava do tema em 1985, quando a internet era um esboço da que conhecemos hoje, e influenciou toda uma geração de hackers e adeptos da corrente libertária. Fazendo alusão à “ética pirata”, que se opunha à lógica colonialista de exploração e desenvolvia redes de colaboração nos mares interconectada por povoados costeiros e ilhas, o profeta do caos traça elementos de uma dinâmica em rede que precede a internet e se potencializa com ela. Bey contrapõe o termo net, pelo qual designa a “internet oficial”, ao termo web, uma espécie de submundo livre e criativo da internet. Ele acredita que a web seria a plataforma que propiciaria um suporte de conexão para as várias Zonas Autônomas Temporárias192, termo que cunhou para identificar experiências de emancipação similares a levantes – pois ao contrário das revoluções, que derrubam um sistema

191 Segundo análise de Pimentel e Silveira (2013), “partidos e sindicatos perderam no mês de junho o posto de intermediário privilegiado de convocação e organização de multidões, e a mídia de massas perdeu o monopólio de interpretação dos acontecimentos”, o que sugere que novos intermediários se destacaram nas ruas e nos meios digitais, na esfera da política e da comunicação, tais como os Anonymous. 192 “Trata-se de uma operação anárquica de guerrilha que torna livre uma área, podendo esta ser de terra, de tempo, ou mesmo de imaginação. […] Sua principal característica é a invisibilidade, pois o Estado não pode reconhecê-la e, com isso, destruí-la. Assim que desaparece, surge novamente noutro lugar, novamente invisível, novamente livre.” (MACHADO, 2013, p. 67)

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institucionalizado e, por sua vez, institucionalizam-se também, os levantes simplesmente desconstroem a aparência de ordem do cotidiano tolhedor, geram uma mudança na percepção rumo à autonomia e depois se desfazem e se rearranjam a partir da recombinação de nós, para surgir sob outras formas em outros lugares. A potência dessas zonas, articuladas em rede, estaria justamente em não se institucionalizar, não existir oficialmente, e poder se desentrelaçar e se reagrupar em outras combinações de forma espontânea. Pode-se aplicar essa perspectiva, analogamente, aos protestos brasileiros e aos Anonymous: os primeiros desempenharam um papel de Zona Autônoma Temporária, causando um imenso impacto simbólico, denunciando as estruturas vigentes, contudo não se institucionalizando e se dispersando novamente em diferentes redes; os Anonymous, apesar de adotarem um nome, escolheram justamente “um nome sem nome”, anônimo, e recusam-se a ser chamados de grupo ou movimento – tais como as redes, sob as perspectivas de Bey e Castells, rejeitam a permanência e a estagnação e se rearranjam constantemente. Mas antes das tecnologias digitais, as redes já se constituíam como estruturas comunicativas, mas foram subordinadas pela lógica do poder hegemônico. Sob tais condições, redes eram uma extensão do poder concentrado no topo de organizações verticais que moldaram a história da humanidade: estados, aparatos religiosos, senhores da guerra, exércitos, burocracias, e suas subordinadas encarregadas da produção, do comércio e da cultura. (CASTELLS, 2009, p. 22 [tradução nossa]).

Depreende-se daí que o modelo hegemônico de comunicação numa sociedade está intensamente relacionado ao modelo hegemônico de organização sócio-política que nela se configura – o que permite entrever uma inter-relação entre modelos de comunicação e modelos sócio-políticos de uma forma geral. Mas hoje o potencial operativo das redes é outro, e assim como os hackers hackeiam o sistema hegemônico nas redes digitais, poderíamos dizer que o sistema hegemônico hackeou a dinâmica de rede – pois essa se tornou a mais eficiente forma organizacional na atualidade (ibid.; SANCHO, 2012, p. 92). Sendo assim, uma sociedade em rede não é necessariamente uma sociedade democrática193.

193 Segundo Galloway (2004), redes podem ser centralizadas, descentralizadas ou distribuídas. Na lógica dos novos ativismos aqui abordados, as redes podem ser classificadas como distribuídas

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Devido à imposição do caráter opressor da globalização, indivíduos e coletivos que se recusam a deixar-se absorver pela lógica dominante engendram formas de resistência no âmbito cultural. Para superar as problemáticas disputas que emergem da exploração globalizada, Castells acredita ser necessário desenvolver protocolos194 de comunicação, sendo este o preceito que constituiria uma cultura de sociedade de rede. Entretanto, não se trata de uma cultura que compartilhe valores (a não ser a comunicação como valor em si), e dessa maneira se sobrepõe às demais, mas justamente uma cultura de comunicação, que permita o diálogo entre as diferentes culturas em âmbito global, cada uma com seus valores. (CASTELLS, 2009, p. 37-8). Contudo, será possível estabelecer tal diálogo em âmbito global sem preceitos básicos que garantam seu caráter democrático? Honneth (2003) se deparou com esse dilema ao tratar da luta pelo reconhecimento, e chegou à conclusão da necessidade de princípios abstratos universais que possam ser adaptados às realidades locais – e revisados de acordo com os contextos históricos –, assim como Habermas (1989), que acredita que a ação coletiva democrática precisa ser guiada por uma consciência moral. Enquanto os protocolos político-comunicacionais de Castells indicam a construção de acordos de convivência a partir de diálogos que trazem à tona a diversidade, Habermas vê no agir comunicativo uma prática que desvela o senso comum e, por meio da discussão lógico-argumentativa, propicia o entendimento mútuo. Trata-se de um agir guiado por discernimentos morais: o respeito às leis, por si mesmo, deixa de ser um imperativo ético, e a responsabilidade passa a ter outra conotação, não convencional, baseada na autonomia, pois “age moralmente quem age com discernimento” (ibid., p. 196). Tal suposição vai ao encontro do conceito de desobediência civil, colocado em prática pelos Anonymous, assim como por grande parte dos hackers e militantes sociais (SILVEIRA, 2010, p. 32). (CASTELLS, 2013). Já as redes que hegemonizam o poder (id., 2009, p. 22) seriam centralizadas ou descentralizadas (estas, mesmo contando com centros de poder plurais, estariam submetidas a um poder central). 194 Galloway (2004, p. 7) aborda os protocolos sob a perspectiva do controle no ambiente digital e acredita que a resistência a esse controle também deve ser protocológica. De acordo com o autor, os protocolos governam o modo como “tecnologias específicas são acordadas, adotadas, implementadas e usadas pelas pessoas no mundo”. Tal seria o sentido do hacktivismo: subverter os protocolos.

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É característico dos ativismos políticos desnaturalizar práticas convencionais e questionar códigos legais em nome da justiça. Mas a questão, a partir de Habermas, é até que ponto encontros e espaços que reúnem atores sociais em prol de causas comuns

promovem

discussões

baseadas

em

informações

compartilhadas,

constituindo acordos democráticos por meio da argumentação racional de forma justa, livre e igualitária – pois o fato de afrontarem a moral dominante não significa que não constituam outras formas de autoritarismo e/ou senso comum. O mesmo se dá no meio digital, com as diferenças de que nele: supera-se a barreira presencial, o que aumenta as possibilidades de participação (mas ao mesmo tempo exclui os que não têm acessos as tecnologias digitais); é mais fácil atrelar argumentos a informações, pela facilidade que a busca online nos permite de pesquisar sobre determinado assunto (contudo aumenta proporcionalmente a dificuldade de verificação da validade das informações e acarreta outras limitações, como a fragmentação característica desse ambiente) (PAPACHARISSI, 2002). A autora alerta que um novo espaço público não caracteriza uma nova esfera pública: o primeiro, promove discussão; o segundo, democracia (ibid., p. 11). Contudo, a revisão do próprio Habermas sobre sua teoria de esfera pública a flexibiliza, a partir do conceito de esfera pública parcial, que se divide em três tipos: esfera pública episódica, esfera pública de presença organizada e esfera pública abstrata (referentes a encontros cotidianos casuais, encontros organizados e troca de informações e ideias possibilitadas pela mídia, respectivamente) (LOSEKANN, 2009). As manifestações de junho mobilizaram essas três categorias de esfera pública parcial, e a comunicação via internet teve destaque nesse processo. Conclui-se que apesar de não ser possível simplesmente substituir as instâncias políticas e a esfera pública pela comunicação via internet, como se isso por si só pudesse ter efeito democratizante, definitivamente ela é também constituinte do debate democrático e da práxis política contemporânea. Além disso, apesar dos movimentos sociais em rede não constituirem práticas democráticas ideais e de a internet não ser uma esfera pública em si, trata-se de um processo de experimentação e inovação rumo a uma outra democracia que não a instituída. É preciso considerar também que a emoção tem um papel determinante no engajamento dos movimentos sociais em rede – e especificamente nas manifestações

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de junho (MALINI, 2013a; PELBART, 2013), como explicitam as críticas à ênfase de Habermas ao consenso democrático que destacam o papel do dissenso e daquilo que não é dito (colocando em xeque a centralidade do debate lógico-argumentativo), dos silêncios e afastamentos, dos conflitos e crises – que seriam importantes catalisadores de profundas mudanças –, assim como da inter-relação entre esfera pública e esfera privada e entre o que Habermas denominou “sistema” e “mundo da vida” (SANTOS, 1989, p. 152-5; HONNETH, 2003). Para Santos o “mundo da vida” habermasiano, que contempla as esferas privada e pública em contraposição ao sistema (Estado e mercado), “é o espaço e o tempo do consenso, da cooperação, da comunicação e da intersubjetividade”, que sem dúvida são aspectos importantes e que devem ser ampliados e fortalecidos (ibid., p. 154). Mas não se pode ignorar a “tensão dialética com o conflito, com a violência, o silenciamento e o estranhamento […], na maioria das vezes, latente, e essas últimas dimensões não aparecem à superfície senão de modo indireto e subjetivista, enquanto mal-estares, alienações, doenças, escapismos, insultos, desabafos, etc” (ibid., 154-5) – analogamente ao que Honneth (2003) traz à tona com sua teoria do reconhecimento. Entende-se que com suas complexidades e contradições os movimentos sociais em rede constituem laboratórios democráticos – no aspecto local, de ocupação de espaços urbanos, mobilização e realização de assembleias populares, e no global, no que tange à interconexão de diversas lutas ao redor do planeta principalmente via internet – e mesmo que não incidam diretamente na democracia instituída, podem ser instituintes de novas formas de democracia (BRINGEL, ECHART, 2008). Defende-se a superação da dicotomia excludente entre emoção e razão nas análises das ações coletivas, pois esses dois aspectos perpassam a atividade social195, e a produção – ou a ressignificação – de códigos culturais que se dá na luta por reconhecimento (HONNETH, 2003) precisa ser considerada na análise dos movimentos sociais contemporâneos que se articulam em rede, levando em conta que sua principal incidência e sua condição de visibilidade, para Melucci (1999, p. 87), corresponde à elaboração de significados alternativos sobre os comportamentos individuais e

195 Os autores destacam que no Brasil os estudos contemporâneos acerca dos movimentos sociais costumam dar ênfase aos atores que exercem influência principalmente no âmbito da institucionalidade, marginalizando as experiências de democracia radical (ibid., p. 465).

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coletivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo buscou tecer uma trama entre um apanhado de discussões relevantes para a investigação da atuação dos Anonymous nas manifestações de junho – passando por seu histórico, sua simbologia, sua dinâmica e seu potencial democrático. O tema é recente e complexo, mas seu impacto na práxis dos movimentos sociais e seu poder de contestação têm despertado o interesse da sociedade em geral e de pesquisadores, como pode ser percebido pela quantidade de material analítico rapidamente produzido sobre as manifestações de junho. A ênfase desta proposta recai sobre a relação entre comunicação, cultura e política: como essa cultura que surgiu no universo online e dialogou com as ruas durante as manifestações de junho, que defende a horizontalidade e adota a lógica de rede sob anonimato, impacta no embate democrático. De acordo com Bringel e Echart (2008, p. 461), a partir de uma hipótese compreensiva, é possível visualizar as dimensões mais esquivas à verificação empírica, mas que são fundamentais para a compreensão do objeto de estudo: intuições, práticas internas, convicções, subjetividades coletivas. Poder-se-iam analisar, assim, o sentido da mobilização, suas simbologias, práticas internas e sua incidência, nesse caso, na democratização.

Os autores entendem a análise dos sentidos como complementar à análise empírica, de modo a “abordar a realidade social como uma totalidade, manifestando seus antagonismos estruturais e suas contradições” (ibid., p.461). Tal sugestão dialoga com esta proposta: junto ao retrato desse ator mascarado, sua trajetória e subjetividade coletiva, será abordada sua atuação nas manifestações de junho – a popularidade da máscara-símbolo, a dinâmica da multidão e os clamores contra a representação política –, de modo a explorar temas sensíveis que são fundamentais para o debate político atual: a máscara e o anonimato (que, além de revelarem uma lógica identitária, permitem problematizar horizontalidade, representatividade e liderança), a relação entre a dinâmica de rede na comunicação e na política, o movimento entre o enfrentamento ao sistema hegemônico e sua cooptação por ele, bem como sua contribuição direta e indireta para a construção democrática.

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Novas formas de organização política evidentemente surgem. Elas carregam em si a ambiguidade de demandar transformações radicais mas, concomitantemente às resistências e inovações, reproduzir ideias e padrões de comportamento desse mesmo sistema contra o qual se revoltam – e do qual, mesmo que em oposição, fazem parte (como ocorre com qualquer movimento social, variando em cada caso a partir de seu contexto histórico, sua situação, suas opções políticas e sua capacidade de ressignificação). Entretanto, seu viés por vezes considerado anti-democrático (quando são acusadas de negar a representatividade e a liderança de modo irresponsável e de não apresentar um programa) pode ser uma importante pista para a compreensão do amplo descontentamento, principalmente entre os jovens, frente à democracia representativa – característica comum a diversos protestos e movimentos ao redor do planeta – e as alternativas político-culturais que se engendram.

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