UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Reitor: Prof. Dr. Zaki Akel Sobrinho Vice-Reitor: Prof. Dr. Rogério Andrade Mulinari SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS Diretora: Prof. Dr. Eduardo Salles de Oliveira Barra Vice-diretora: Profa. Dra. Ligia Negri PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Coordenador: Profa. Dra. Ana Luisa Fayet Sallas Vice-coordenadora: Profa. Dra. Maria Aparecida da Cruz Bridi SOCIOLOGIAS PLURAIS – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR. Campus Reitoria, Curitiba, v.3., n. 2, ago. 2015. Semestral ISSN: 2316-9249 COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA Diego Coletti Oliva, Elisa Tkatschuk, Felipe Amaral, Mariana Corrêa de Azevedo, Roberto da Silva Jardim, Tatiana Araújo Berghauser. CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alexandro Trindade (UFPR), Prof. Dr. André Augusto Michelato Ghizelini (UFES), Profa. Dra. Andrea Osório (UFF), Prof. Dr. Angelo José da Silva (UFPR), Prof. Antonio Carlos Richter (FAE e ESIC), Profa. Dra. Benilde Motim (UFPR), Profa. Dra. Cláudia Elisabeth Pozzi (FJAU e FADISC), Prof. Ms. Dinaldo Almendra (UNICENTRO), Prof. Ms. Fagner Carniel (UEM), Prof. Dr. Flávio Sarandy (UFF), Prof. Ms. George Gomes Coutinho (UFF), Prof. Dra. Gisele Rocha Cortes (UFPB), Profa. Ms. Janaina Matida (Universidad de Girona), Prof. Dr. Jorge Leite Junior (UFSCar), Prof. Dr. José Luiz Cerveira (UFPR), Prof. Dr. José Miguel Rasia (UFPR), Profa. Dra. Jussara R. Araújo (UFPR), Profa. Dra. Larissa Pelúcio (UNESP), Profa. Dra. Leila de Menezes Stein (UNESP), Profa. Dra. Liliane Maria Busato Batista (PUC-PR), Profa. Dra. Luciana Veiga (UFPR), Prof. Dr. Marcelo Santos (UNESP), Prof. Dr. Marcio Oliveira (UFPR), Prof. Dr. Marcos Ferraz (UFGD), Profa. Dra. Maria Aparecida Bridi (UFPR), Profa. Dra. Maria Tarcisa Silva Bega (UFPR), Profa. Dra. Marlene Tamanini (UFPR), Prof. Dr. Milton Lahuerta (UNESP), Profa. Dra. Miriam Adelman (UFPR), Prof. Dr. Mohsine El Ahmadi (Faculté de Droit Cadi Ayyad), Profa. Dra. Nadya Araujo Guimarães (USP), Prof. Dr. Nelson Rosário de Souza (UFPR), Profa. Ms. Paula Grechinski (UNICENTRO), Prof. Dr. Paulo Roberto Neves Costa (UFPR), Dra. Patrícia Branco (Universidade de Coimbra), Prof. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (UFPR), Profa. Dra. Poliana Fabíula Cardozo (UNICENTRO), Prof. Dr. Renato Monseff Perissinotto (UFPR), Prof. Dr. Richard Miskolci (UFSCar), Profa. Dra. Rosane Rosa (UFSM), Prof. Dr. Sidartha Sória e Silva (UFU), Profa. Dra. Simone Meucci (UFPR), Prof. Dr. Valdo José Cavallet (UFPR), Dr. Valério Nitrato Izzo (Università di Nápoli “Federico II”), Profa. Dra. Vania Penha Lopes (Bloomfield College), Prof. Dr. Wanderley Marchi Jr. (UFPR). APOIO Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR DESIGN GRÁFICO E WEBMASTER Diego Coletti Oliva ENDEREÇO SOCIOLOGIAS PLURAIS Coordenação Programa de Pós-graduação em Sociologia Rua General Carneiro, 460, 9º andar, Ed. D. Pedro I, Curitiba - PR http://www.sociologiasplurais.ufpr.br/ Contato: sociologiasplurais@gmail.com
SUMÁRIO EDITORIAL...................................................................................1 ARTIGOS .....................................................................................3 ENTRE O RELATIVISMO CULTURAL E OS DIREITOS HUMANOS UNIVERSAIS: O DILEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES A PARTIR DE COSTUMES CULTURAIS ........................................................................................................................ 4 Paola Stuker “SE ELA NÃO FOR MINHA, NÃO SERÁ DE MAIS NINGUÉM”: DESAFIOS DA LEI MARIA DA PENHA DIANTE DA VIOLÊNCIA CONJUGAL .................................... 20 Mari Cleise Sandalowski Gabriela Felten da Maia Paola Stuker Maruá Pereira Lock ENTRE JUÍZAS, DOMÉSTICAS E PATROAS: ANÁLISE DE TRÊS DISCURSOS DE GÊNERO ........................................................................................................ 36 Fabio de Medina da Silva Gomes ESTADO E REVOLUÇÃO PASSIVA NO BRASIL: UM BREVE ESTUDO SOBRE CAPITALISMO, ESTADO E CLASSES .................................................................. 54 Rafaela Vieira ESTRATÉGIAS DEFENSIVAS: POSSIBILIDADES DENTRO DA ANÁLISE DOS PERÍODOS DE AFASTAMENTO DE FUNCIONÁRIOS ........................................... 70 Marco Aurélio Pedrosa de Melo “MANIFESTO EM REPÚDIO AO PRECONCEITO CONTRA AS MULHERES BRASILEIRAS EM PORTUGAL”: UMA CRÍTICA AO DISCURSO DO PROGRAMA “CAFÉ CENTRAL” DA RTP ............................................................................... 82
Jéssica de Cássia Rossi Larissa Maués Pelucio Silva "OS HOMENS ATUAM E AS MULHERES APARECEM": MARCOS PORNOGRÁFICOS E PORNOGRAFIA MAINSTREAM ....................................................................103 Carolina Ribeiro Pátaro EM BUSCA DA SEGURANÇA: TECNOLOGIAS CONTRA O MEDO .......................122 Diego Coletti Oliva ESPAÇO GRADUAÇÃO...................................................................142 O PROCESSO DE REEMÊRGENCIA DA LUTA POR TERRA NO MUNICÍPIO DE VERDELÂNDIA NO NORTE DE MINAS GERAIS (ANTIGA CACHOEIRINHA) .........143 Greiciele Soares da Silva COLABORAÇÃO INTERNACIONAL ......................................................154 GENOCIDE: PERSPECTIVES FROM THE SOCIAL SCIENCES .................................155 Charles H. Anderton
EDITORIAL Apresentar a cada semestre uma nova edição da Revista Sociologias Plurais é sempre um desafio e uma enorme satisfação para nós discentes do Programa de Pós-graduação de Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Um desafio, pois implica a cada nova edição selecionar trabalhos de alta qualidade teórica, com pertinência temática para a Sociologia e de interesse mais amplo para aqueles/as que orbitam as Ciências Sociais em busca de referenciais críticos e fundamentados para pensar as sociedades; mas também uma enorme satisfação, por podermos entregar aos/às nossos/as leitores/as um material precioso para consulta e fruição, possibilitando a difusão do conhecimento em nossa área. Esta tarefa só é possível com muita dedicação e trabalho coletivo. Não apenas dos/as membros/as (incansáveis) da Comissão Editorial Executiva – que de modo hercúleo encontram espaço entre suas tantas atividades para cumprir criteriosamente com as demandas da revista – mas também de um coletivo muito maior de pessoas que contribuem direta ou indiretamente para a construção deste periódico. Assim, agradecemos ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR, às professoras e professores, funcionárias e funcionários que acreditam no potencial da revista e na importância deste espaço para a divulgação científica. Aos/às autores/as, que a cada número compartilham conosco a sua produção, contribuindo para a difusão do conhecimento como um lugar de troca entre pares. E, em especial, agradecemos aos/às nossos/as parceiros/as e colaboradores/as mais dedicados/as, os/as pareceristas, sem os/as quais não seria possível colocarmos à disposição do/a leitor/a um material de tamanha qualidade e diversidade. Para todos/as nós que lidamos com o texto como produto mais evidente de nosso trabalho, a atividade da escrita é geralmente bastante solitária e por vezes até angustiante. O texto é expressão de horas de estudo, de semanas de dedicação em trabalho de campo ou de meses de análise e tratamento crítico de material bruto. E é quando entregamos o texto ao/à leitor/a que todo o nosso esforço encontra sentido e quando finalmente podemos ter alguma gratificação. Sem o/a interlocutor/a para nossas palavras, nenhum esforço pode valer a pena.
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Por isso, convidamos mais uma vez aos/às leitoras da Revista Sociologias Plurais a dar sentido à nossa tarefa, completando a última fase deste processo árduo e contínuo da construção do conhecimento, a leitura crítica de nossos textos.
Boa leitura! Comissão Editorial Executiva
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ENTRE O RELATIVISMO CULTURAL E OS DIREITOS HUMANOS UNIVERSAIS O DILEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES A PARTIR DE COSTUMES CULTURAIS Paola Stuker1
RESUMO: Através de questões culturais e religiosas que sustentam a opressão de gênero em diferentes nações, busca-se problematizar o relativismo cultural quando se envolve a violência contra mulheres, no seu confronto com os direitos humanos. A primeira seção traz exemplos de violência contra mulheres a partir de costumes culturais. No segundo momento, coloca-se em debate o relativismo cultural e os direitos humanos universais. Na terceira seção, é realizada uma intersecção entre cultura, gênero e poder. Ao final, indicam-se possibilidades e limites do relativismo cultural em relação ao tema proposto. PALAVRAS-CHAVE: violência contra mulher; relações de gênero; relativismo cultural; direitos humanos. ABSTRACT: Through cultural and religious issues that support gender oppression in different nations, we seek to question the cultural relativism when it involves violence against women in its confrontation with human rights. The first section provides examples of violence against women from cultural customs. In the second instance, puts in debate cultural relativism and universal human rights. The third section is held an intersection between culture, gender and power. Finally, to indicate possibilities and limits of cultural relativism regarding the proposed theme.
KEYWORDS: violence against women; gender relations; cultural relativism; human rights.
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS), pela linha de pesquisa “Violência, Criminalização, Cidadania e Direito”. Integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania, da mesma universidade (GPVC-UFRGS). Socióloga pelo curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: stukerp@gmail.com.
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INTRODUÇÃO
Violência física, emocional, psicológica, patrimonial, moral, institucional, sexual e simbólica são algumas das formas de violências que assolam mulheres diariamente em todo o mundo, nos espaços públicos e privados. Desde os tempos mais remotos e nas mais diversas organizações sociais têm-se conhecimento de que as mulheres sofreram e sofrem as mais variadas formas de violências e violações de direitos. Desde violências de caráter simbólico, como, em muitos casos, a responsabilização exclusivamente feminina pelas tarefas domésticas, a repressão moral de atitudes consideradas impróprias para mulheres “direitas” e os assédios na rua, até violências consideradas reais, como as agressões físicas, as mulheres tornam-se instrumentos de um sistema que, apesar de avanços, insiste em inferiorizalas, protegido muitas vezes por legitimações culturais. Nesse âmbito, surge um controverso debate entre o relativismo cultural e o universalismo. De um lado, a primeira corrente propõe o respeito a todas as culturas, sem interferência em qualquer prática ou rito cultural, mesmo que possa causar algum tipo de prejuízo a um de seus integrantes. De outro lado, está a corrente do universalismo, através dos Direitos Humanos Universais, que defende a prevalência de determinados direitos a todas as pessoas do mundo, independente de suas nações e culturas. Diante disso, este artigo busca problematizar o relativismo cultural quando se envolve a violência contra a mulher, no seu confronto com os Direitos Humanos Universais. Em um primeiro momento, apresentam-se algumas formas de violência de gênero através de costumes culturais, de forma a situar o(a) leitor(a) sobre o que de fato trata-se o texto e realiza-se uma reflexão dialética sobre a relativização no que diz respeito a violências culturais; posteriormente, expõe-se o debate entre o relativismo e o universalismo, explorando a concepção multicultural de direitos humanos de Boaventura de Souza Santos; na terceira seção, realiza-se uma intersecção entre cultura, gênero e poder, a partir de teóricas feministas. Diante destas questões, ao final apresentam-se algumas possibilidades e limites do relativismo cultural em relação aos casos de violência contra mulher através de costumes culturais.
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COSTUMES CULTURAIS DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES: EXEMPLOS E REFLEXÕES
A violência contra a mulher, em seus diversos tipos, se perpetua desde os mais distantes tempos e nas mais diversas nações, devido a seu caráter cultural, que faz com que seja naturalizada e esteja intrínseca nas sociedades. Seu reconhecimento e enfrentamento público têm sido crescentes em diversos países. No entanto, quando se tratam de violências praticadas através de costumes ou ritos culturais, o dissenso é muito significativo, uma vez que o relativismo cultural nos propõe respeitar a diversidade e refletir sobre nossos julgamentos enquanto resultado do pertencimento a uma cultura diferente, e o universalismo nos indica que todos os seres humanos são dotados de direitos universais, independente de qualquer outra condição, não merecendo sofrerem qualquer violência ou violação, mesmo por conta de sua cultura. Vejamos alguns casos. Em 29 países, entre África, Ásia e Oriente Médio, mulheres têm suas genitais mutiladas ou circuncisadas através de um costume sociocultural que regula suas sexualidades, isenta seus prazeres e causa danos as suas saúdes, levando à exclusão social àquelas que não passaram por esta prática, ou até mesmo, à morte. Nesse contexto, se uma mulher não tiver seu clitóris removido ou toda parte externa da genitália com encerramento da vulva, conforme o grupo étnico, julga-se a mulher como impura, exclui-se ela de sua sociedade e condena-se a não casar. Percebendo este costume como ritual pré-casamento, tradição, valor e identidade cultural, famílias submetem suas filhas a tal procedimento. Conforme a Organização Mundial da Saúde, mais de 125 milhões de meninas e mulheres entre 15 e 49 anos foram submetidas a alguma forma de mutilação genital e, a cada ano, mais três milhões estão em risco de sofrer alguma intervenção similar. Embora a tradição tenha sido declarada ilegal em muitos países africanos, como o Egito, ela ainda sobrevive em muitas comunidades e famílias, até mesmo em países de outros continentes, como os Estados Unidos, onde as correntes migratórias provocam a prevalência da prática (GELEDES, 2015). Outro costume cultural que pode ser compreendido como opressão às mulheres é o uso islâmico de véus, especialmente burcas. A tradição é justificada pelo livro sagrado Alcorão, que exige a homens e mulheres que se comportem modestamente em público. No entanto, o uso da burca apenas é imposto às mulheres, 6
sendo considerado símbolo de opressão de gênero para os ocidentais, e constituinte de uma tradição cultural e religiosa para os islãs. A cultura do Islã, em proporções diferentes nas 57 nações integrantes da Organização da Conferência Islâmica, santifica outros direitos superiores aos homens, como punir uma mulher desobediente, ter até quatro esposas, possuir a obediência da mulher, receber o dobro de herança do que uma irmã. Ainda, muitas nações apedrejam até a morte mulheres adúlteras ou prostitutas e condenam às chibatadas aquelas que tiverem comportamento inadequado para os costumes que preservam, como estar sozinha com um homem que não seja seu parente. Na Índia e na China, pais matam suas filhas mulheres em preferências pelos filhos homens. Segundo estimativas da ONU, se perderam cerca de 200 milhões de meninas para o feminicídio, a maioria é destes dois países, que tem uma cultura profundamente estabelecida de primazia pelo filho homem, respaldada por tradições seculares que dizem que os meninos são mais valiosos que as meninas. Só os meninos mantêm o nome da família, herdam bens e realizam os últimos ritos dos pais quando eles morrem. As filhas se unem à família do marido quando se casam, já não sendo consideras mais parte da família de origem. No caso da China, a política do filho único, imposta pelo programa do governo de Planejamento Familiar, somada à cultura de preferência por filho homem, levam as famílias a tirarem as vidas das filhas mulheres (MERCATORNET, 2013). O documentário “It’s a girl”, do norte-americano Evan Grae Davis sobre esta temática, indica que a sentença “é uma menina” é a que mais mata no mundo. No filme, identifica-se que o feminicídio de filhas na Índia e na China é respaldado culturalmente. Em um dos depoimentos, uma mulher indiana relata de forma natural como ela mesma estrangulou oito de suas próprias filas recém-nascidas em busca pelo filho homem. Ela explica que foi entregue para casamento quando tinha 15 anos, como segundo esposa do marido da sua irmã, porque esta não podia ter filhos. Então, teria de dar um filho varão para o esposo. Não podendo sustentar muitos crianças, matou as que nasceram com o sexo feminino, até que na nona vez nasceu o esperado menino (MERCANOT, 2013). Nesses casos, há o peso da tradição e da cultura em costumes que oprimem, violentam e até mesmo matam mulheres, fazendo com que algo que rejeitamos, possa ser aceito e até mesmo louvado em outra civilização. Ou seja, mesmos atos recebem significações diferentes em culturas distintas. A compreensão disso é proposta 7
através da relativização cultural por uma corrente das ciências sociais. A partir disso, este texto propõe uma reflexão dialética sobre a relativização no que diz respeito a violências culturais. De um lado, uma de suas possibilidades nos leva a questionar: em que medida a cultura ocidental é incomparável com a oriental no âmbito do machismo e das questões de gênero? De outro lado, uma de suas insuficiências nos estimula indagar: quais são os limites da relativização cultural quando se estão em jogo a saúde, a vida e os direitos humanos? Para contemplar a primeira provocação precisamos voltar os olhos para o nosso contexto. No Brasil, em média 5.664 mulheres morrem de forma violenta a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada 1h30m, conforme dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (GARCIA et al, 2013). Além do feminicídio, que é a forma mais extrema de violência contra a mulher, diariamente milhares de mulheres sofrem as mais variadas formas de violências e violações. A todo instante há diversas mulheres sendo espancadas, torturadas e humilhadas em suas próprias casas. Não é a toa que o tema se tornou pauta diária dos telejornais, temática crescente na academia e discussão rotineira nos bares e esquinas. Além disso, mulheres são solapadas também no ocidente a todo instante por violências simbólicas que, como propõe o conceito sociológico bourdieusiano, são as violências não percebidas como tais, invisíveis e exercidas com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos (BOURDIEU, 1998). Exigência de cuidados com a beleza, salários menores para mesmos cargos, regulação social dos comportamentos e sexualidades, cantadas que transformam corpos em objetos à disposição, responsabilização pelos outros... Infinitamente incomparáveis com o que se apresenta aos homens. Tudo, assegurado por um sistema de naturalização do que é construído socialmente. A assembleia plenária 2015 do Pontifício Conselho da Cultura em torno da temática “Culturas femininas: igualdade e diferença” que ocorreu em Roma de 4 a 7 de fevereiro de 2015, procurando responder a questões sobre o papel das mulheres na Igreja Católica, trouxe à tona a afirmação de que “as plásticas são burcas de carnes”. Essa declaração serve para reflexão de em que proporção a cultura ocidental afasta-se do contexto do islamismo na exigência às mulheres de enquadramento a um padrão. Ao mesmo tempo, nos leva a pensar que os procedimentos invasivos e dolorosos aos quais se submetem as mulheres para atingir o que se espera delas
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talvez não esteja tão longe das situações as quais se reprimem as mulheres muçulmanas. Do mesmo modo, enquanto possa infligir à indignação os feminicídios de meninas na Índia e na China, pais também matam suas crianças no Brasil. Com frequência somos informados pela mídia de casos como o de “Isabela Nardoni”. Por exemplo, em reportagem transmitida no dia 4 de fevereiro de 2015 no “Jornal do Almoço” da RBSTV Porto Alegre, uma mãe assassinou a filha de cinco anos de idade porque julgava que ela não tinha boa relação com o seu atual companheiro, padrasto da criança. Ainda no âmbito comparativo, é interessante pensar nas violências obstétricas que tantas mulheres sofrem por profissionais da saúde no atendimento ao parto, em uma possível analogia com os casos de mutilação genital na África, Ásia e Oriente Médio. Conforme a pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado” divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, no Brasil uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência obstétrica. O conceito internacional define este tipo de violência como qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera, ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências. As mais comuns, segundo o estudo, são gritos, como por exemplo, “na hora de fazer não chorou”, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e negligências. Predominantemente em razão de interesses monetários e para agilizar os procedimentos, o Brasil é campeão mundial de cesarianas, ignorando muitas vezes a escolha da mulher grávida: a média nacional é de 52%, quando a recomendação da Organização Mundial da Saúde é de 15% dos partos. Ainda, em analogia com os países que praticam culturalmente a mutilação genital feminina, no Brasil mulheres sofrem a episiotomia (corte entre a vagina e ânus) nos partos via vaginal. Conforme dados da pesquisa “Nascer no Brasil”, a incidência do procedimento em nosso país é de 53,5%, quando a recomendação da OMS é não ultrapassar os 10% (LEAL, 2014). Através desses dados e informações, emerge a reflexão de que em que proporção nos distanciamos da África, Ásia e Oriente Médio no âmbito das questões de gênero, se nossos números de feminicídio e demais violências contra as mulheres são alarmantes. Além disso, simbolicamente oprimem-se mulheres nas mais variadas 9
situações. Obviamente surgem ressalvas às proporções e generalizações, mas não é porque uma opressão talvez aconteça de forma mais invisível que não mereça atenção. E, quem sabe, só considera-se assim, por ser a própria cultura. Esta reflexão nos mostra uma das contribuições do relativismo cultural. A segunda provocação do texto diz respeito aos limites do relativismo cultural quando se estão em jogo a saúde, a vida e os direitos humanos universais; no caso deste artigo, a saúde, a vida e os direitos humanos de mulheres. O embate entre estas esferas é um dilema, apartando relativistas e universalistas. Todos com princípios que podem ser levados em consideração e, na medida do possível, conciliados. Esta proposta conciliatória representa um dos objetivos da próxima seção.
RELATIVISMO E UNIVERSALISMO, CORRENTES OPOSTAS COM PREOCUPAÇÕES SEMELHANTES: POR UMA POSSÍVEL CONCILIAÇÃO
As Ciências Sociais são marcadas pelo dissenso entre correntes de pensamento. Enquanto nas Ciências Naturais e Exatas há leis, fórmulas e regras, nas ciências que estudam as sociedades e as culturas, há correntes que se distanciam na percepção sobre os mesmo assuntos. Entre elas se destacam o relativismo e o universalismo, que extrapolam os limites da ciência e se estendem a um debate no âmbito de direitos sociais e culturais. De um lado está uma corrente que identifica o moralmente certo como o que cada cultura em particular aprova e que defende que cada cultura tem o seu próprio e peculiar entendimento do que são os direitos fundamentais, portanto não se deve interferir nos seus costumes, se quer considerar uma cultura superior à outra. De ouro lado, está o universalismo, reforçado pelos Direitos Humanos e sua declaração universal aprovada em 1948 depois da Segunda Guerra Mundial, que acredita que há direitos que devem se estender a todos os indivíduos, independente de tempo ou lugar, sem nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território de naturalidade da pessoa. A corrente do universalismo acredita que a noção de direitos está relacionada diretamente ao fundamento da dignidade da pessoa humana e a um mínimo ético irredutível (embora não haja consenso sobre o sentido de “mínimo ético”). Tal concepção ganhou força histórica após a catástrofe humanitária da Segunda Guerra Mundial e seu funesto saldo de milhões de mortos. Atualmente, o universalismo 10
apresenta intenções de se tornar cada vez mais pragmático. Pretendem os seus maiores defensores a construção de um “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, no contexto de um constitucionalismo global, com um aparato técnico a aplicar, por meio de cortes internacionais, princípios criticados como provenientes de um colonialismo cultural, travestidos de universais. Em termos práticos, isso significa abrandar a soberania dos Estados independentes, permitindo-se intervenções no plano nacional com fins de proteção dos direitos humanos (MACEDO, 2012). Por sua vez, a corrente do relativismo prega que a cultura é a única fonte de validade de uma moral ou regra. Nesse sentido, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Não há moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. Sendo assim, para o relativismo há uma pluralidade de culturas no mundo e estas culturas produzem seus próprios valores (PIOVESAN, 2006). De forma prática, enquanto o universalismo propõe que nenhum tipo de violência deva ser admitida em qualquer parte do mundo, independente de se tratar de um costume cultural, o relativismo defende que cada cultura tem a sua própria definição do que é moralmente aceito e do que representa violência e, se desconsiderarmos isto, estaríamos agindo de forma etnocêntrica, ou seja, supervalorizando a cultura a que pertencemos em detrimento da outra. Contudo, em um mudo cada vez mais global, definir o que é direito torna-se essencial, embora mais complexo. Conforme Habermas:
A concepção dos direitos humanos é a resposta a um problema diante do qual outras culturas se encontram de forma semelhante à que, na respectiva época, a Europa se encontrava, ao ter que superar as consequências políticas da cisão confessional. O conflito das culturas é travado hoje, de qualquer modo, no contexto de uma sociedade global, na qual, à base de normas de convivência, bem ou mal, os atores coletivos precisam entrar em entendimento, atual do mundo, o isolamento autárquico contra influências externas já não constitui opção possível. No mais, o pluralismo cosmopolita desabrocha também no interior das sociedades ainda fortemente marcadas pelas tradições. Até mesmo em sociedades que comparativamente são culturalmente homogêneas, torna-se cada vez mais inevitável uma transformação reflexiva de tradições dogmáticas predominantes que se apresentam com pretensões à exclusividade (HABERMAS, 2003, p. 81-82).
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Habermas (2003) deixa claro seu posicionamento pela necessidade de entendimento entre atores coletivos a respeito do conflito das culturas, no contexto de uma sociedade global. Com a globalização, emerge a imprescindibilidade de se pensar em direitos universais. Nesse contexto global, Habermas afirma que o isolamento contra influências internacionais já não constitui opção possível. Contudo, para tanto é necessário acordo no conflito de culturas travado hoje. Propondo este “acordo”, Boaventura de Souza Santos (1997), sugere uma concepção multicultural de direitos humanos. Na compreensão do autor, os direitos humanos só poderão desenvolver o seu potencial emancipatório quando se libertarem do universalismo e se tornarem verdadeiramente multiculturais. Ou seja, Boaventura propõe direitos humanos atentos à fragmentação cultural e a política de identidades, com âmbito global, mas com legitimidade local. A política de direitos humanos apresenta tensões dialéticas, entre as quais está a tensão que ocorre entre o Estado-nação e a globalização que, se por um lado representa uma política de identidades, por outro pode significar a fragmentação cultural. Para Santos (1997), não existe uma globalização genuína; aquilo a que chamamos de globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Na definição do autor “globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival” (SANTOS, 1997, p. 14). A tese de Santos (1997) é de que enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado – uma forma de globalização de cima para baixo. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de baixo para cima ou contra hegemônica, Santos defende que os direitos humanos devam ser reconceitualizados como multiculturais. O multiculturalismo, conforme sua concepção, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potencializada entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra hegemônica de direitos humanos no nosso tempo. Para transformar a conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado em um projeto cosmopolita, Santos (1997) defende que a primeira premissa é a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural. Conforme o autor, 12
Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação (SANTOS, 1997, p. 21).
Acredita-se que a superação deste debate só se dará quando estas diferentes correntes perceberem nas suas aproximações um elo de conciliação. Ambas desenvolvem seus pensamentos e práticas a partir da preocupação com direitos, sejam culturais ou sociais. Isto é suficiente para indicar a possibilidade de combinação entre universalismo e relativismo, proposto através de Santos (1997) como direitos humanos multiculturais.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: GÊNERO, CULTURA E PODER
A compreensão de que a violência contra a mulher ocorre em uma relação socialmente construída entre homens e mulheres, através do conceito de gênero, é uma das maiores contribuições teóricas feministas ao campo de estudo desta temática. A construção deste conceito se deu através de diferentes sentidos, com destaque a três principais autoras: Simone de Beauvoir, Joan Scott e Judith Butler, que desenvolvem suas teorias com menção as esferas de interesse deste artigo, propostas para ponderação nesta seção. Na discussão sobre cultura, interessa-nos as contribuições de Beauvoir e Butler. No que tange ao poder, Scott. Beauvoir publica “O Segundo Sexo” em 1949 e, apesar de ainda não usar o conceito de gênero, traz à tona a dimensão social do sexo, com a perspectiva de que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1967, p. 9). Em um segundo momento, Scott difunde a categoria de gênero, denotando a ele um caráter relacional de poder. No contexto contemporâneo, na década de 1990, Butler desmonta a dualidade sexo e gênero e a ideologia da heterossexualidade hegemônica, principalmente através da obra “Problemas de Gênero”. Embora existam várias atualizações e constantes novas obras e perspectivas sobre gênero, “O Segundo Sexo” é um clássico e sua precursora contribuição do caráter cultural do que é ser mulher apresenta-se como essencial a temática deste artigo. Através dessa obra, Beauvoir (1967) nega qualquer suposta natureza feminina, apresentando que “ser mulher” é algo construído histórica e socialmente e regulado
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culturalmente, bem como sua submissão em relação ao outro sexo. A autora desconstrói a tese do “instinto biológico feminino”, considerando-o como uma condição culturalmente construída e um pressuposto mutável. Conforme Beauvoir (1967), não importa se a mulher é mãe, esposa, moça ou prostituta, ela sempre é definida por sua função em relação ao homem, encarnando aquilo que ela chamou de "outro". Nesse sentido, o corpo e existência da mulher estão culturalmente a serviço do “primeiro sexo”. A mulher não tem um destino biológico, ela é formada dentro de uma cultura que define qual o seu papel no seio da sociedade. É nesse sentido que devem ser compreendidos os costumes culturais que oprimem mulheres. Embora Beauvoir não tenha usado o conceito de gênero, foi ela quem deu margem para que ele fosse desenvolvido. Scott esteve entre aquelas que “assumiram” este compromisso, definindo-o a partir da categoria “poder”, um dos eixos de intersecção desta seção. Scott (1995) desenvolveu a perspectiva do gênero enquanto um elemento das relações de poder. Em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, a autora refaz uma construção histórica da utilização do conceito de gênero e então propõe a sua abordagem. Conforme a autora, através dos séculos, as pessoas utilizaram de modo figurado os termos gramaticais para evocar os traços de caráter ou os traços sexuais. Mais recentemente, refere a autora, as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, como uma maneira de se referir à organização social da relação entre os sexos. Posteriormente, o termo “gênero” enfatizava o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, onde a palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Em seguida, “gênero” passou a ser sinônimo de mulheres, constituindo um dos aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de legitimidade acadêmica para os estudos feministas nos anos 80. Porém, esta visão foi atualizada para uma categoria relacional, que percebeu que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens e que um implica no estudo do outro. O termo gênero passou a ser utilizado para designar as relações sociais entre os sexos, tornando-se uma forma de indicar “construções culturais”. Sobre este escopo foram desenvolvidas três proposições teóricas, conforme Scott (1995): a primeira empenhou-se em explicar as origens do patriarcado, teorizando sobre a subordinação das mulheres; a segunda se situa no interior de uma 14
tradição marxista e busca um compromisso com as críticas feministas; a terceira se inspira no pós-estruturalismo francês e nas teorias anglo-americanas de relação de objeto para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do sujeito. Scott (1995) denuncia que estas teorias tiveram um caráter limitado, pelas generalizações redutivas ou demasiadamente simples, afirmando: “sinto-me incomodada pela fixação exclusiva em questões relativas ao sujeito individual e pela tendência a reificar, como a dimensão central de gênero, o antagonismo subjetivamente produzido entre homens e mulheres” (p. 80-81). Com este posicionamento, Scott (1995) propõe uma abordagem alternativa. Para Scott (1995), é preciso substituir a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado por algo como o conceito de poder de Foucault (2008), entendido como constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em “campos de força” sociais. No interior desses processos e estruturas, há espaço para um conceito de agência humana, concebida como a tentativa para construir uma identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma sociedade estabelecida dentro de certos limites e adotada de uma linguagem, que permita negação e resistência. A autora define gênero em duas proposições que se inter-relacionam: 1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e 2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. A primeira parte de sua definição é composta de quatro elementos: a) os símbolos culturalmente disponíveis que evocam as representações simbólicas, como por exemplo, Eva e Maria como símbolos da mulher na tradição cristã ocidental; b) os conceitos normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos, propagados, por exemplo, nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas; c) a concepção de política como uma referência às instituições e à organização social; e d) a construção de uma identidade subjetiva. A segunda parte de sua definição é onde ocorre a teorização do gênero, caracterizado pela autora da seguinte forma: O gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um campo no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. O gênero não é um único campo, mas ele parece ter sido uma fora persistente e recorrente de possibilitar a significação do poder no ocidente (SCOTT, 1995, p. 88).
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A teoria de Scott (1995) é deveras pertinente para a problematização deste trabalho, pois contempla uma das possibilidades do relativismo cultural, ao demonstrar que a cultura ocidental também opera na opressão através das relações de gênero, não somente o oriente, como parece propor pensar algumas vezes o universalismo. Aprofundando esta questão, Butler (2003), provoca à reflexão através de alguns “problemas de gênero”, como intitulou sua obra. A autora tenciona algumas presunções da teoria feminista, ao erro que recai muitas vezes à hegemonia. Butler defende que o gênero não se constitui de maneira coerente ou consistente nos diversos contextos históricos e sociais e que estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Nesse sentido, é impossível separar a noção de gênero das intersecções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida. Nas palavras da autora, A presunção política de ter de haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada numa identidade supostamente existente em diferentes culturas, acompanha frequentemente a ideia de que a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível na estrutura universal ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina. A noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em anos recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos da opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe. (...) Esta forma de teorização feminista foi criticada (...) por tender a construir um “Terceiro Mundo” ou mesmo um “Oriente” em que a opressão de gênero é sutilmente explicada como sintomática de um binarismo intrínseco e não ocidental. A urgência do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparência de representatividade das reinvindicações do feminismo, motivou ocasionalmente um atalho na direção de uma universalidade categórica ou fictícia da estrutura de dominação, tida como responsável pela produção da experiência comum de subjugação das mulheres (BUTLER, 2003, p. 20-21).
A partir de Butler, percebe-se que a ideia da forma singular e hegemônica de opressão às mulheres é um equívoco. Apesar de o patriarcado e o machismo estarem presentes nas mais diversas culturas e nações, eles se apresentam de modo diferenciado em cada uma delas. O que significa que os direitos humanos e o feminismo devam ser pensados e mobilizados a partir das especificidades culturais. Somente assim, atendendo ao relativismo e respeitando as particularidades de cada cultura, será possível alcançar a universalidade de direitos às mulheres de forma efetiva.
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Desse modo, é interessante compreender as práticas de violência contra as mulheres cometidas através de costumes, bem como quaisquer outras, como resultantes da regulação cultural do que “é ser mulher”, ou seja, da construção social do que é uma mulher, dentro de cada cultura específica. Ao mesmo tempo, torna-se necessário visualizar estas práticas, através das questões e relações de gênero, que se dão através de um “campo de força” onde o poder é articulado predominantemente por homens, independentemente da cultura em questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se outros atributos culturais diversificam-se em distintos lugares, a violência contra a mulher parece ser algo comum as mais diversas sociedades, mesmo que em proporções e maneiras diferentes. O relativismo cultural nos possibilita a reflexão sobre a própria cultura e a tolerância e compreensão da diferença, porém, quando se envolve a violência e opressão, há algo que se considera maior: o direito de não sofrelas. Afinal, como aceitar que mulheres sofram violência e opressão pela justificação de algo que é construído socialmente, a cultura? Como passar por cima da dor, do sofrimento e da opressão em respeito a uma tradição? Pensa-se que o relativismo cultural já cumpre seu importante papel quando contemplamos a primeira indagação deste texto, de que em nossos contextos também há violência e opressão; quando compreendemos que tais costumes são frutos de crenças e tradições e não irracionais crueldades; e quando desenvolvemos a tolerância e respeito por culturas distintas da nossa, no que exclui os casos de violência. Se hoje percebemos avanços nas questões de gênero e enfretamento à violência contra a mulher em todos os continentes (mesmo que em alguns lugares em proporções pequenas) é em decorrência da política de direitos humanos, seus militantes e movimentos, especialmente os de mulheres e feministas, que atuam versus o relativismo através da reflexão: por que em extrema maioria os costumes culturais opressivos têm como alvo as mulheres? Porque a cima de culturas particulares, parece haver uma cultura quase universal, embora particular em cada contexto, a do machismo, e esta sim deve ser combatida.
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Contudo, os direitos humanos e o feminismo devem caminhar em direção à pluralidade, para um enquadramento apropriado em cada cultura e contexto, como propõem Boaventura e Butler. E não, de forma invasiva, etnocêntrica e ocidentalizada. Nesse sentido, acredita-se que todas as maneiras de violência contra mulher, sejam orientais ou ocidentais, culturais ou não, devem ser enfrentadas, porque, como nos mostraram ser possível os autores utilizados neste artigo, conter tradicionais atos de violência não representa necessariamente coibir uma cultura, apenas reprimir o que dela compromete a integridade de determinados sujeitos, neste caso, as mulheres. É provável e almejável um mundo diferente em culturas e igual em direitos. Somente assim, atingiremos a igualdade, sem comprometer a riqueza da diversidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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“SE ELA NÃO FOR MINHA, NÃO SERÁ DE MAIS NINGUÉM”: DESAFIOS DA LEI MARIA DA PENHA DIANTE DA VIOLÊNCIA CONJUGAL
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Mari Cleise Sandalowski2 Gabriela Felten da Maia3 Paola Stuker4 Maruá Pereira Lock5 RESUMO: Este artigo é resultado de um estudo sociológico que buscou avaliar situações de violência em relações conjugais e, com isso, os desafios da Lei Maria da Penha. A pesquisa foi realizada em uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, através de sistematização de dados de Boletins de Ocorrências de quatro anos de aplicação da Lei Maria da Penha. Observou-se que ainda que a lei seja avançada, há muito que progredir na política de proteção aos direitos das mulheres, pois a dinâmica das denúncias apontam as complexidades que envolvem as situações de violência nas relações conjugais. PALAVRAS-CHAVE: Violência conjugal; Gênero; Lei Maria da Penha. ABSTRACT: This paper is the result of a sociological study that aimed to evaluate situations of violence in marital relationships and, therefore, the challenges of the Maria da Penha Law. The survey was conducted in a Specialized Police for Assistance to Women through systematic police records data four years of application of the Maria da Penha Law. It was observed that even if that law is advanced, has long been progress in the protection of political rights of women, because the dynamics of complaints point to the complexities involving situations of violence in marital relations. KEYWORDS: Conjugal violence; Gender; Maria da Penha Law. INTRODUÇÃO A violência contra a mulher apresenta-se como uma das principais temáticas da contemporaneidade, sendo discutida pelos movimentos sociais e por setores da
1 A pesquisa de que é resultado esse artigo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: mari_ppgs@yahoo.com.br 3 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora do Departamento de Ciências Humanas da Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: gabryelamaia@gmail.com 4 Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: stukerp@gmail.com 5 Licenciada e Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: marualock@gmail.com
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sociedade civil. Reconhecida há pouco mais que três décadas como um problema social, ela é o centro dos debates sobre a operacionalidade da Justiça no Brasil. Se antes da promulgação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, estes tipos de violência eram muito pouco investigados pelos diversos órgãos do sistema judiciário, já que eram percebidos pelos seus agentes, principalmente pela polícia, como delitos brandos em relação à criminalidade urbana que comporta furtos, crimes à propriedade, dentre outros, a partir de meados dos anos oitenta delineou-se um novo espaço para a publicização destes conflitos. Nestes últimos anos, embora tenha havido a ampliação no espaço judicial para a denúncia destes delitos, já que eles passaram a ser analisados com base em uma lei específica, os estudos sobre esta temática, assim como o movimento de mulheres, tem colocado em pauta a continuidade da banalização e trivialização da violência contra a mulher pelo sistema judiciário e por outras instâncias da sociedade. Seu argumento está relacionado à “aparente” impunidade dos agressores e na dificuldade de conciliar e resolver estes tipos de conflito. Esta lógica desqualificaria o problema da violência contra a mulher, tornando-a um elemento a mais na discriminação contra as mulheres. É neste sentido que se considerou necessária uma investigação que contemplasse avaliar o impacto das mudanças implementadas pela Lei Maria da Penha em sua aplicação aos casos de violência contra a mulher, especialmente aquelas sucedidas nas relações conjugais, indagando-se acerca deste impacto em Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Acredita-se que a importância desta pesquisa contemple duas questões relevantes para a Sociologia. Primeiro, existem alguns estudos que procuram dar conta de avaliar o impacto da lei sobre a mortalidade de mulheres por agressões no Brasil (GARCIA et al 2013; IPEA, 2013; MENEGHEL et al, 2011), mas ainda há uma escassez de estudos sobre a aplicação da Lei Maria da Penha no cotidiano social e os impactos deflagrados pelas suas mudanças no cotidiano do sistema judicial em relação aos casos de violência conjugal contra a mulher. Segundo, a sua ênfase é em uma abordagem que ultrapassa o modelo fundado na dicotomização de vítimas, de um lado, e acusados de práticas de agressão, de outro. Esse artigo é parte da pesquisa “Violência Doméstica: um estudo comparativo sobre os casos de violência conjugal contra a mulher entre Brasil-Uruguai”. A pesquisa teve por objetivo realizar um estudo comparativo sobre os casos de violência conjugal 21
contra a mulher entre Brasil-Uruguai, a partir da análise dos Boletins de Ocorrências nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e Comisarías de la Mujer y la Familia. Para esse artigo, iremos apresentar os dados referentes a pesquisa realizada na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, a partir da análise dos Boletins de Ocorrências entre os anos de 2005 e 2009.
PERCURSO METODOLÓGICO A metodologia do estudo teve por partida uma investigação dos efeitos implementados pela Lei Maria da Penha em relação às situações de violência conjugal contra a mulher e a realização de um diagnóstico deste tipo de violência na cidade de Santa Maria. Estabeleceu-se contato com as delegacias das cidades pesquisadas e começou-se a coleta de dados nos registros policiais. A metodologia utilizada é mista, ou seja, qualitativa e quantitativa. Foram analisados os procedimentos policiais, onde se apreendeu as particularidades da violência conjugal contra a mulher e as formas de operacionalização desta pela instância policial. Com base no procedimento estatístico foi realizado um levantamento quantitativo de dados do acusado, da vítima e da natureza dos fatos coletados nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais, pois como indica Loche (et al). [...] para os estudos sobre a problemática da violência contra a mulher, as fontes de registro de origem policial e judicial – os boletins de ocorrência e os processos criminais – são privilegiadas. Isso ocorre porque é através da denúncia à polícia que a violência torna-se pública e torna-se objeto de políticas públicas de segurança (1999, p. 117).
As variáveis coletadas foram tanto do acusado quanto da vítima: data do crime, tipo de delito praticado, estado civil, data de nascimento, instrução, bairro, religião, profissão, cor, quem efetuou a denúncia, quantos filhos o acusado possui, se possui antecedentes criminais e se o indiciado possui (ou possuiu) algum envolvimento com drogas lícitas e ilícitas. Estes dados foram coletados em Boletins de Ocorrência e Inquéritos Policiais, totalizando 2327 procedimentos policiais analisados. Em razão do grande contingente de ocorrências registradas anualmente na Delegacia responsável
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pelos casos de violência contra a mulher em Santa Maria, foram coletados dados de um a cada dez procedimentos policiais, atendendo aos princípios estatísticos. A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Santa Maria existe desde novembro de 2001, devido ao alto índice de casos de violência contra a mulher no município, tendo ganhado força e reconhecimento a partir de setembro de 2006, com a promulgação da Lei Maria da Penha. Antes de 2001, os dados de violência contra a mulher eram atendidos por um posto policial para a mulher, criada no ano de 1989. Foram coletados dados de ocorrências do ano de 2005 (um ano antes da Lei Maria da Penha) até 2009. Analisaram-se 1.193 procedimentos policiais nesta Delegacia: 100 procedimento policiais no ano de 2005; 351 em 2006; 229 em 2007; 360 no ano de 2008; e 153 em 20096. Utilizou-se o recurso de metodologias informacionais para a sistematização e análise dos dados. Em relação ao tratamento dos dados quantitativos, contou-se com o auxílio do programa informacional SPSS v. 18, o qual permite o gerenciamento e a análise estatística de dados, onde foram construídos os gráficos e tabelas desta pesquisa, permitindo assim uma análise estatística dos dados coletados. A construção da base cartográfica foi realizada com o auxílio do programa informacional ArcGis v9.3 (ESRI), que permite a espacialização de dados de pesquisas em mapas cartográficos.
LEI MARIA DA PENHA PARA ALÉM DA CRIMINALIZAÇÃO A Lei 11.340/06, conhecida popularmente por Lei Maria da Penha, representa o ápice de um processo de reconhecimento da violência contra a mulher como um problema social no Brasil, através da sua criminalização. Invisível no ambiente doméstico até a década de 80, este tipo de violência foi ganhando espaço na cena política e jurídica devido às lutas dos movimentos sociais, em especial, dos movimentos feministas que, com a abertura democrática, denunciaram com veemência os crimes contra mulheres. No entanto, é preciso estabelecer uma análise crítica sobre as reais transformações ocasionadas por esta legislação. Como afirma Azevedo et al (2011), a ênfase nas medidas criminais, em detrimento das educativas e protetivas, indicam 6 A coleta de dados do ano de 2009 foi comprometida em razão de não terem sido localizadas algumas caixas do arquivo que continha os Boletins de Ocorrência deste ano.
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os limites apresentados pelo direito moderno na contemporaneidade, que impossibilita, pelas suas características, o caráter emancipatório dos agentes sociais. Conforme indica Pasinato (2010), apesar das medidas da Lei Maria da Penha também serem organizadas nos eixos de proteção e prevenção, a sua aplicação fática tem se centrado no eixo punitivo. O que representa impasses na real possibilidade emancipativa das mulheres em situação de violência conjugal. Para Boaventura de Sousa Santos (2010) a trajetória do direito na modernidade não pode ser pensada como o resultado de um projeto hegemônico; ao contrário, o direito moderno foi caracterizado desde o seu surgimento pela tensão existente entre regulação e emancipação. É somente no século XIX que ocorre a ruptura entre essa tensão, momento em que o direito passa a ser estritamente regulatório. Ao propor um direito mais pluralizado e multicultural na pós-modernidade, Santos (2002) defende a ideia de que o direito seja reposicionado do conhecimento-regulação para o conhecimento-emancipação, refletindo as lutas sociais e políticas concretas. Desse modo, o reconhecimento de outras formas de direito, marginalizadas na contemporaneidade, pode contribuir significativamente na resolução dos conflitos que envolvem situações de violência conjugal, visto que tais práticas sociais requerem, muitas vezes, estratégias e práticas distintas daquelas apresentadas pelas medidas criminais, principalmente quando as percepções sobre os significados de ser homem e ser mulher implicam padrões valorativos presentes na sociedade que interferem na reprodução de práticas percebidas como naturalizadas pelos agentes sociais, independente das categorias sexo e gênero analisadas. Bourdieu (1999) nos propõe pensar através da teoria da dominação masculina que os homens também são vítimas da representação social dominante em uma determinada sociedade, já que precisam demonstrar, a todo o momento, atitudes que comprovem sua honra e sua virilidade; é lhes instituído um “dever ser”, ou seja, dever de afirmar sua masculinidade constantemente. Tal processo é construído ao “longo de todo um trabalho de socialização”, calcado na “diferenciação ativa em relação ao sexo oposto” (Bourdieu, 1999, p. 63). Nesse sentido, nem sempre a violência opera em nível consciente. Sendo assim, pensar em uma ação mais efetiva de proteção à violência doméstica contra a mulher implica em uma análise mais intensa sobre as lógicas histórico-culturais que orientam as formas dos homens e das mulheres se conduzirem na sociedade. Isso requer ações que ressaltem políticas sociais e públicas voltadas para o 24
reconhecimento das especificidades dos grupos sociais e de gênero, singularidades essas não conquistadas somente por intermédio da aplicação de uma legislação pautada na racionalidade formal e no pressuposto da punição da regra infringida, mas principalmente, através de mudanças culturais e sociais em relação aos padrões valorativos da sociedade ocidental, que privilegiem tanto homens quanto mulheres.
GÊNERO E PATRIARCADO: UM DEBATE ATUAL Embora o conceito de gênero tenha introduzido nova luz aos estudos sobre a violência contra a mulher, a noção de patriarcado não foi abandonada por completo por ainda se definir a violência como expressão da dominação masculina. Autoras como Santos e Izumino (2005) entendem que o conceito de patriarcado deve ser abandonado para os estudos sobre violência em razão da noção de poder manter fixa as categorias homem e mulher, masculino e feminino, tornando-se limitado para compreender as mudanças no comportamento de muitas mulheres diante da violência. A partir da discussão sobre pesquisas em delegacia, que apontam dinâmicas diferenciadas, ambiguidades e nuances nas motivações das mulheres em realizarem denúncias, as autoras apresentam argumentos contrários ao uso do patriarcado como categoria de análise, uma vez que o poder é concebido como centralizado e estático. Afirma que para a análise das dinâmicas das queixas é preciso adotar uma outra concepção de poder em que a violência possa ser definida não como uma dominação de homens sobre a mulher, estática e polarizada, mas a partir de uma relação de poder muito mais complexa e dinâmica. O conceito de patriarcado recebeu diversas críticas como categoria de análise, pois se entendia que ao referir-se a um sistema político transhistórico e transcultural, que, por sua generalidade, ancorava a dominação masculina na diferença biológica entre homens e mulheres, tornava-se um conceito essencializante. Por isso, com o decorrer do tempo as hipóteses explicativas das origens da opressão da mulher foram sendo questionadas e abandonadas, de modo que a categoria perdeu seu estatuto de conceito para tornar-se uma referência de dominação masculina. A despeito das diversas críticas, algumas autoras tem argumentado a importância de se pensar o uso simultâneo de patriarcado e gênero. Saffioti (2004), afirma a possibilidade de reconceituá-lo, visto que o patriarcado trata-se de um 25
sistema de pensar, sentir e agir que possui um caráter abrangente, expandindo-se por todo o corpo social, de modo que ninguém está fora desta organização social de gênero. Portanto, é um conceito que não exclui gênero, mas que pode ser utilizado concomitantemente a este conceito, já que trata de relações hierarquizadas entre seres socialmente desiguais. Conforme Saffioti (1992), as diferentes perspectivas do feminismo, ao apresentarem acepções diferenciadas de patriarcado, demonstram a não univocidade do uso do conceito, na medida em que as diferentes filiações têm priorizado um dos esquemas de dominação-exploração, ora situando o patriarcado no domínio da política, ora no campo econômico. Considerando a realidade una, Saffioti (1992), usa o conceito de dominação-exploração ou exploração-dominação por considerar que o processo de sujeição de uma categoria social possui duas dimensões: a da dominação e da exploração. Nesse sentido, considera capitalismo e patriarcado como um único processo, em que tanto as condições materiais quanto os corpos, através do controle de sexualidade e de capacidade reprodutiva da mulher, estruturam a subordinação das mesmas. Para Machado (2000), ainda que a utilização do conceito tenha configuração teóricas marxistas e não tanto weberianas, possuindo acepções e denominações diferenciadas, como “uma forma de ‘dominação e exploração’, ou ‘sistema de opressão da mulher’ ou ‘relações sociais de reprodução organizadas na família e que designam à mulher o trabalho reprodutivo’” (Machado, 2000, p. 3), as teóricas feministas entendem patriarcado como um conceito historicamente referido, desnaturalizando as relações patriarcais ao demonstrar o seu engendramento social e cultural como um sistema ou uma forma de dominação. Patriarcado, conforme Saffioti (2004), é uma forma de expressão do poder político, em que o contrato original é um contrato entre homens cujo objeto são as mulheres, de modo que a diferença sexual é convertida em diferença política. Conforme a autora, patriarcado diz respeito a uma relação civil, configurando-se em um tipo hierárquico de relação, uma estrutura de poder, baseada tanto na ideologia quanto na violência, que penetra todos os espaços da sociedade, dando direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, possuindo existência material e corporificando-se, ou seja, constituindo sujeitos sexuados. Para Saffioti (2004) o conceito de gênero é mais vasto que o de patriarcado, de modo que o este conceito seria um caso específico de relações de gênero. Saffioti 26
(2001) procurando superar o binarismo presente nas análises sobre a violência e buscando um outro enfoque ao conceito de patriarcado, entende que se pode pensar em múltiplas matrizes de gênero. Tomando o conceito de gênero de Scott (1995), como “uma maneira primordial de significar as relações de poder”, entende que nem os homens nem as mulheres podem situar-se fora das relações de poder, o que implica dizer que nenhuma categoria de sexo estaria fora das matrizes de gênero. Assim, a ordem patriarcal de gênero se configura em um tipo hierárquico de relação, uma estrutura de poder, baseada tanto na ideologia quanto na violência, que penetra todos os espaços da sociedade. Somente conhecendo as características e peculiaridades da violência contra mulher, expressão material do patriarcado, será possível compreender esta estrutura. É nesse sentido que se apresentam os resultados deste trabalho.
RESULTADOS E DISCUSSÕES Os dados coletados nesta pesquisa permitem-nos averiguar algumas características da violência conjugal contra a mulher, como contexto social e geográfico, natureza do fato e relação entre os envolvidos. Quando se analisa a distribuição dos crimes por bairros das cidades, percebese uma dispersão de número de casos em cada bairro. No mapa a seguir vê-se a distribuição dos bairros da cidade de Santa Maria com uma escala de cores conforme o número de ocorrências de violência conjugal contra a mulher.
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FIGURA 1 - MAPA “BAIRRO ONDE OCORREU O FATO EM SANTA MARIA”
FONTE: elaborado pelo geógrafo João Paulo Delapasse Simioni a partir de pesquisa nossa na DEAM de Santa Maria.
A análise do mapa permite identificar os bairros que apresentam os maiores índices de violência conjugal contra mulher, dentre os quais se destacam os seguintes: Centro, com 130 casos e Nova Santa Marta, com 91 casos, seguidos pelos bairros Camobi, Salgado Filho, Tancredo Neves e Urlândia, com 70, 63, 56 e 51 casos respectivamente. Os bairros que apresentam o maior número de ocorrências possuem características socioeconômicas distintas, o que permite verificar que a violência conjugal contra a mulher é um fenômeno que está presente em todo espaço urbano de Santa Maria, independente das particularidades de cada região. Tendo como base a distribuição cartográfica das situações de violência contra a mulher, observou-se que os maiores índices de registro de boletins de ocorrência de violência conjugal contra a mulher estão localizados na região central da cidade. Isto não significa necessariamente que neste bairro há mais casos de violência conjugal contra a mulher, mas sim que estes delitos chegam mais frequentemente à esfera policial.
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Ao investigar os obstáculos ao acesso efetivo à justiça, Santos (2010) observa que ocorre uma tripla vitimização das classes populares, visto que o sistema jurídico é acionado distintamente pelos extratos sociais. Esses obstáculos são econômicos, sociais e culturais. Desse modo, para o autor, quanto menor a renda e mais baixo o estrato social dos indivíduos maior é sua distância do sistema judiciário; esse distanciamento implica no desconhecimento de operadores de direitos como advogados, por exemplo, assim como no afastamento geográfico entre o lugar em que esses indivíduos vivem e/ou trabalham e o local da cidade onde se encontram os escritórios de advocacia, as delegacias e os fóruns. A isso podemos adicionar o afastamento geográfico dos grupos populares da estrutura do sistema de justiça. Como as delegacias estão localizadas nestas regiões, é possível pensar que a localização geográfica da instituição é determinante no acesso das mulheres, vítimas de violência conjugal, ao sistema de justiça. Através da sistematização e análise dos dados constatou-se que o delito mais denunciado nas delegacias pesquisadas é a ameaça, com 472 casos, seguido pelo delito de lesão corporal, com 359 casos, conforme gráfico a seguir.
FIGURA 2 - GRÁFICO “NATUREZA DO FATO”
FONTE: elaboração nossa a partir de pesquisa na DEAM de Santa Maria
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Este dado não garante que a ameaça seja o fato mais ocorrido nas relações conjugais, mas sim é o tipo de violência que mais leva as mulheres a registrarem um Boletim de Ocorrência, tendo em vista, que muitas delas alegam no registro da ameaça que vêm sendo constantemente agredidas. Nesse sentido, são registrados mais Boletins de Ocorrência de casos de ameaça e gerados mais Inquéritos Policiais de casos de lesão corporal. Através da leitura dos registros policiais, percebeu-se que o que geralmente acontece é que a mulher vem sofrendo constantes agressões físicas e psicológicas sem denunciá-las. Porém, quando toma uma atitude diante destas situações, ao decidir romper com o companheiro agressor, é ameaçada de morte pelo mesmo. Este dado se complementa com a variável que indica o tipo de relação existente entre a vítima e o acusado. Conforme gráfico abaixo, os ex-cônjuges e excompanheiros são os maiores acusados de violência contra a mulher. Isto se explica por dois fatores principais: as vítimas são mais encorajadas a denunciarem as agressões das pessoas com quem elas não têm mais uma relação conjugal; ao mesmo tempo, há inúmeros casos em que os homens violentam as mulheres por se sentirem impotentes diante das suas escolhas de romperem a relação. FIGURA 3 - GRÁFICO “O QUE O ACUSADO É DA VÍTIMA”
FONTE: elaboração nossa a partir de pesquisa na DEAM de Santa Maria
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Sendo assim, pode-se arguir que a instância do poder apresenta duas faces, a da potência e a da impotência, indicando que “as mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens – sempre vinculados a força – são preparados para o exercício de poder. Convivem mal com a impotência” (Saffioti, 2004, p. 84). Por esta razão, os homens muitas vezes agridem as mulheres quando se deparam em uma situação de impotência, seja afetiva, econômica ou sexual. Ao mesmo tempo, como indica Saffioti (2001), assumir uma postura vitimista não permite perceber que as mulheres podem oferecer resistência ao processo de exploração-dominação. Santos e Izumino (2005) indicam que as pesquisas sobre as delegacias da mulher no Estado de São Paulo tem mostrado o aumento do número de denúncias, dado que pode sugerir que as delegacias tem se tornado uma referência para as mulheres em situação de violência e também evidencia a capacidade que essas tem de reagirem frente a violência. No mesmo sentido, para Saffioti (2001) pensar a partir de distintas matrizes de gênero possibilita ressignificar as relações de poder e compreender que as mulheres reagem às relações violentas, das mais diferentes maneiras. Além desses resultados, traçou-se o perfil das pessoas envolvidas nesses conflitos. Percebe-se que as vítimas de violência conjugal que mais acionam as delegacias são as mais jovens. Observa-se que as faixas etárias das vítimas são inversamente proporcionais aos índices de denúncia. Ou seja, os dados desta pesquisa indicam que as mulheres mais jovens estão mais encorajadas a efetuarem denúncias contra seus companheiros. Este resultado pode ser explicado pelo grau de envolvimento que as vítimas têm com os acusados, que geralmente varia conforme o tempo do relacionamento, que por sua vez tem relação com a faixa etária dos envolvidos; e pelo contexto socioeducacional que diverge nas diferentes gerações de mulheres, visto que as mulheres com mais idade foram socializadas em um contexto mais conservador, onde a publicização das relações íntimas e o término de um relacionamento íntimo-afetivo eram razões de preconceitos, de forma ainda mais forte do que contemporaneamente. Por outro lado, os dados da pesquisa mostram que apesar de todos os avanços no reconhecimento da violência contra a mulher como um problema social, este tipo de violência ainda está presente fortemente nos relacionamentos, inclusive entre os mais jovens, que nasceram em um contexto em que a violência contra a mulher já era
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denunciada pelos movimentos sociais e começava a ganhar atenção do sistema judiciário. Analisando a dinâmica das denúncias, observa-se que as motivações que levam essas mulheres a realizarem-na indicam a complexidade da violência conjugal, demonstrando que a mesma envolve uma série de significados, intensidades, contextos e sujeitos. Durante a pesquisa, verificou-se um discurso muito frequente dos acusados diante destas situações, em que afirmam “se ela não for minha não será de mais ninguém”. Este discurso contempla a estrutural patriarcal, ainda atual nas relações de gênero, mesmo no contexto de vigor de uma lei específica de proteção às mulheres. Contudo, a existência da Lei Maria da Penha e de delegacias especializadas no atendimento à mulher possibilitam que a tentativa de dominação do acusado sobre a vítima, seja rebatida por ela ao denunciá-lo. Nesse sentido, apesar das limitações desses aparatos, eles existem e possibilitam uma ação de resistências das mulheres. Apesar disso, a vítima que realiza a denúncia depara-se com o sistema penal como proposta de resolução de seus conflitos conjugais, o que em muitos casos não atende a sua demanda, fazendo-a renunciar a representação criminal. O registro do Boletim de Ocorrência nem sempre representa o interesse da mulher, vítima de violência doméstica, em punir criminalmente o responsável pela agressão. Ao contrário, o sistema judiciário é significado muitas vezes como um espaço de autoridade que pode, de alguma forma ou de outra, resolver a relação conflituosa, sem necessariamente recorrer às medidas criminais. Se formalmente os indivíduos são percebidos como iguais perante a lei, as situações fáticas analisadas permitem identificar a desigualdade da regra formal perante os agentes sociais. Esta perspectiva é identificada nos casos que envolvem situações de violência conjugal contra a mulher, nas quais, não necessariamente, a vítima da agressão busca uma condenação formal do acusado no sistema de justiça. As lógicas e diferentes racionalidades que cercam os agentes sociais envolvidos em situações de violência doméstica e/ou familiar não necessariamente condizem com as respostas e soluções apresentadas pelos tribunais; elas requerem, na maior parte das vezes, mecanismos alternativos para a sua resolução e prevenção, que não estejam somente vinculados à ordem penal vigente. Percebeu-se através do presente estudo, que o caráter penal (em detrimento da perspectiva protetiva e preventiva) apresentado pela aplicação da Lei Maria da 32
Penha, em relação ao encaminhamento dos casos que entram no fluxo do sistema judiciário, não apresenta resultados satisfatórios e esperados na diminuição dos índices de violência contra a mulher. Se por um lado observa-se um aumento significativo no registro das ocorrências que envolvam esta forma de violência a partir de setembro de 2006, por outro, isso não significa necessariamente que o sistema judiciário esteja respondendo satisfatoriamente às demandas apresentadas pelas mulheres que procuram por esta instituição. Os resultados obtidos com esta pesquisa indicam o caráter cultural da violência conjugal contra a mulher, sugerindo a complexidade deste tipo de conflito e consequente dificuldade de enfrentamento por parte do sistema judiciário. Nesse sentido, percebe-se que, apesar dos avanços, a existência de uma lei é insuficiente no combate às violações de gênero, principalmente no que tange às medidas de proteção e prevenção desta forma de violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência conjugal contra a mulher é um problema histórico, social e cultural. Esta violência é produto das relações de gênero que desprestigiam e submetem as mulheres ao machismo, solidificado pelo sistema patriarcal. Nesse sentido, não basta punir agressores para se garantir mudanças. O maior desafio da política brasileira na proteção aos direitos das mulheres é de nível cultural e educacional. É salutar destacar que a Lei Maria da Penha mesmo sendo considerada uma legislação avançada, apresenta limitações. Ora, pensar que as problemáticas de gênero, de violência doméstica, familiar ou conjugal são resolvidas e minimizadas com a promulgação de uma legislação nacional é um equívoco, mais ainda quando a mesma regra não consegue ser efetivada completamente. Mudanças concretas no que tange a esta problemática demandam ações muito mais complexas e intensas, pois requerem transformações de ordem valorativa, institucional, estrutural e geracional. Sem estas alterações e ressignificações a aplicação da regra formal torna-se limitada e ineficaz. Desse modo, a diminuição dos índices de violência conjugal contra a mulher depende de mudanças que vão muito além da implementação da Lei Maria da Penha. Elas requerem transformações de ordem estrutural, cultural e moral. Tais aspectos não são alterados a partir da promulgação de uma norma especializada, até porque, 33
no que tange ao aparato jurídico brasileiro, a equidade entre homens e mulheres já está garantida formalmente, conforme previsto na Constituição de 1988. Apreender os sentidos, símbolos e representações acerca das definições de categorias sociais clássicas como família, mulheres, homens, casamento, violência, etc., é imprescindível para a consolidação do pacto político que tornou possível a saída constitucional da década de 80. As dificuldades encontradas, no que tange à problemática deste estudo, não dizem respeito tão somente à legislação, mas correspondem às interpretações valorativas presentes na sociedade civil. É neste sentido que as mudanças e a elaboração de políticas públicas devem ser pensadas.
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ENTRE JUÍZAS, DOMÉSTICAS E PATROAS ANÁLISE DE TRÊS DISCURSOS DE GÊNERO Fabio de Medina da Silva Gomes1 RESUMO: Nesse estudo, utilizou-se o método de observação direta, visando entender os discursos sobre o trabalho doméstico remunerado em Niterói, em especial com atenção às práticas no judiciário quanto à administração de conflitos entre patroas e trabalhadoras domésticas. O trabalho de campo realizado inclui observação de duzentas audiências e entrevistas com donas-de-casa, trabalhadoras domésticas, advogados, juízes e sindicalistas. No judiciário, percebem-se muitos discursos de gênero. Pretende-se uma compreensão sobre a relação entre discurso oficial e práticas sociais nesse tipo de relação. PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Dádiva. Justiça. ABSTRACT: In this study, we used the method of direct observation, in order to understand the discourses of paid domestic work in Niterói, in particular attention to the judicial practices regarding the management of conflicts between mistresses and domestic workers. The fieldwork includes observation of two hundred hearings and interviews with stay-at - home, domestic workers, lawyers, judges and trade unionists. In the judiciary, are perceived many speeches gender. The aim is to an understanding of the relationship between official discourse and social practices in this type of relationship. KEYWORDS: Gender. Gift. Justice. O perfil do trabalho doméstico remunerado, no Brasil, sofreu profundas modificações durante as últimas décadas. Sendo uma ocupação preponderantemente feminina2, tem suscitado uma série de estudos em várias áreas do conhecimento. (POCHMANN, 2012; SAFFIOTI,1978; COELHO, REZENDE, 2013). Como a principal instituição reguladora desse setor do mercado de trabalho tem sido o próprio Poder Judiciário3, pretendi, durante o mestrado, compreender o papel dos discursos de
1 Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal Fluminense, fabiodemedina@gmail.com 2 Em 2013, 14,7% da mão-de-obra feminina estava alocada no setor de serviço doméstico. O índice de homens na mesma ocupação não chegava a 1%. (PNAD, 2013) 3 Tendo em vista a dificuldade de inspeção das condições do trabalho nos lares pelos órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego.
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gênero na administração institucional do conflito entre patroas e domésticas 4, em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Realizei pesquisa de campo, durante nove meses, entre os anos de 2013 e 2014. Assisti à 200 audiências em todas as Varas do Trabalho desse município. 5 Visitei duas vezes os sindicatos laboral e patronal dessa categoria profissional nessa cidade. Além disso, efetuei entrevistas não-estruturadas com patroas, domésticas, advogados, juízes e sindicalistas. Esforcei-me em compreender as diferentes percepções sobre as relações no espaço do Tribunal. Durante essa pesquisa, utilizei o método da observação direta, tendo sido influenciado, especialmente, por dois autores, Erving Goffman (2013) e Gerald Berreman (1990). Ambos se importaram com um aspecto específico da interação social. Goffman sugeriu a abordagem dramática, como um meio pelo qual os indivíduos controlam impressões. O autor é bem claro quando compara cena e bastidores com regiões da realidade separadas por barreiras à percepção. Já Berreman enfatizou a interação social entre o pesquisador e os sujeitos do campo. De um lado, os nativos tentavam manter uma certa zona interior fora do alcance do antropólogo. Por outro lado, o pesquisador é justamente julgado pelos seus pares por conta do conhecimento dessa região inferior. Essa tensão entre cena e bastidores, como regiões distintas e separadas por barreiras de percepção, era notória. Ela ficou muito explicitada durante a minha pesquisa. O espaço dessas audiências era uma região de fachada (GOFFMAN, 2013), no qual inúmeros papéis eram representados. Havia o Juiz, os advogados, a doméstica e a patroa, cada um deles atuando, na tentativa de controlar as impressões demonstradas aos outros.6 Era simples identificar a cena nas audiências. A dificuldade estava em compreender os bastidores. Essa tarefa me custou tempo. Só comecei a compreendê-
4 Tratou-se de algumas categorias usadas entre os nativos. Doméstica é um gênero. Diarista e empregada doméstica são espécies desse gênero. Enquanto isso, o termo patroa engloba as empregadoras domésticas e as pessoas para quem as diaristas trabalham. Comumente, no tribunal, esses dois termos confundem-se. Outro nome que se confunde com patroa é dona-de-casa, significando a mulher que desenvolve tarefas domésticas ou que paga para que alguma doméstica o desenvolva. Quando a doméstica, tal como qualquer trabalhador, postula em juízo na justiça do trabalho passa a denominar-se Reclamante ou Atora. E quando a patroa, tal como qualquer suposto empregador, é postulada em juízo recebe o nome de Reclamada ou Ré. Patroa e Domésticas são partes nos processos. 5 Presenciei 200 audiências, das quais, 37 sobre trabalho doméstico remunerado. 6 Era perceptível a necessidade das partes em transmitir uma certa imagem ao Juiz. Para isso, inclusive, os próprios advogados diziam para domésticas e patroas chorarem. Isso “amoleceria o julgamento do juiz”, diziam.
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los após meses de entrevistas e visitas ao campo. Depois, pude explorar muitas questões surgidas dessas observações. Quis, como antes referi, demonstrar os discursos de gênero entre os nativos da minha pesquisa. No primeiro momento desse artigo demonstrei alguns desses discursos na vida cotidiana. Após, construí dados sobre uma suposta “natureza feminina” do trabalho doméstico. Adiante, abordei a relação entre emoções e gênero. Por fim, demonstrei como a postura das juízas fazem parte de um caráter masculino dessa justiça. Com isso, demarquei três discursos de gênero, criando e recriando realidades sociais.
UMA CERTA GENDER ORDER
Os mais diversos discursos sobre gênero são muito perceptíveis em nosso cotidiano, mencionaram Raewyn Connell e Rebecca Pearse (2014). Elas relacionaram gênero com uma dimensão muito específica da vida pessoal, das relações sociais e até mesmo da cultura. Um tópico que envolve práticas sobre justiça, identidade e sobrevivência. Nesse sentido, as ciências humanas desenvolveram importantes instrumentos para compreensão do assunto. As autoras exemplificam os discursos de gênero trazendo ao seu livro uma cena triste da vida pessoal de Connell. Ela foi casada por vários anos com uma ativista acometida de câncer de mama. Tendo buscando um médico oncologista, descobriu que a maioria dos especialistas são homens, embora essa doença específica seja um problema quase totalmente feminino. Ela foi então a um consultório oncológico australiano, país onde viviam. O médico de Pam disse que a sua doença adveio do uso “antinatural” do seu corpo. O esperado, o correto, para ele, seria que tivesse filho cedo e amamentasse. Ela, então, abandonou o consultório, furiosa. Isso é um exemplo de política de gênero na vida pessoal. Um exemplo incisivo dos discursos sobre gênero no cotidiano. Existe toda uma série de procedimentos médicos e terapêuticos para reafirmar a feminilidade em caso de masectomia. Práticas que demarcavam o lugar da mulher na cultura feminina heterossexual. Esse discurso é um exemplo de política e está ainda mais profunda no nível das emoções.
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Connell e Pearse (2014) trabalharam com uma perspectiva muito útil para pensar sobre o meu trabalho de campo. Para essas pesquisadoras, a cena de Pam Breton foi marcante, pois, embora os padrões de criação variassem em diferentes culturas, a situação na Austrália não era incomum. Muitas pessoas, na vida cotidiana, entendem gênero como algo concedido. Homem ou mulher. Garoto ou garota. Prontamente, olham e classificam as pessoas nessas categorias. Esse arranjo como conhecemos é tão familiar que podemos achar natural. A ponto de nos escandalizamos quando alguém não segue esse padrão. Então, frequentemente, práticas não majoritárias são taxadas de “não naturais”. A nossa sociedade se preocupou em estabelecer leis (sejam como normas legais ou mesmo recomendações médicas) no sentido de coibir essas práticas. Assim, nos Estados Unidos ou no Mundo Árabe há exemplos de regras contra certos comportamentos ou contra o adultério feminino. Esses discursos, como o do médico de Pam, são parte de todo um esforço em calcificar na sociedade um certo comportamento. Isso foi criado partindo de exemplos de masculinidades e de feminilidades determinadas. Esse processo é frequentemente chamado de gender identity. Por outro lado, as gender ambiguities também são frequentes. Existem homens femininos e mulheres masculinas. Isso não é novidade. Há mulheres chefes de família e homens que criam filhos. A novidade trazida pelos estudos de gênero é que essas questões são eminentemente políticas. Existe uma micropolítica do gênero. E isso ficou latente em toda a pesquisa de campo. Nos corredores do tribunal, quando levantava o assunto, todos tinham opiniões firmes. Domésticas, patroas, juízes e advogados, todos esses nativos, logo se prontificavam em demonstrar suas ideias e representações sobre gênero. É perceptível que mesmo as advogadas e juízas, mulheres que assumem profissões antes marcadamente masculinas, naturalizem a suposta feminilidade do trabalho doméstico. Certa vez, perguntei para uma doméstica após a audiência se seu marido contribui na realização do trabalho doméstico em sua casa. Ela logo respondeu, “o meu ajuda, sabe. A gente não divide igualzinho, mas ele ajuda. ” As diferenças de gênero podem ser consideradas não simples características, mas desigualdades. A relação entre os gêneros é chamada por Connell de Gender Order. Essa ordem consubstancia-se numa firme hierarquia. As mulheres consistem
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em uma substancial parte da força de trabalho paga e são hierarquicamente inferiores aos homens. As autoras lembram que a concentração do trabalho feminino é maior em serviços específicos, como trabalho doméstico remunerado. Em vários lugares do mundo, é comum ser atribuição das mulheres limpar a casa, cozinhar e costurar roupas. Além dos trabalhos não remunerados ligados ao cuidado dos filhos e dos doentes. Ocorre que, geralmente, e isso percebi sensivelmente em meu trabalho de campo, esses afazeres são mal remunerados e há grandes diferenças entre salários femininos e masculinos. Isso tudo associou, culturalmente, as mulheres com uma imagem de serem cuidadoras, gentis, dispostas a ser sacrificarem, trabalhadoras e boas mães. Enquanto isso, um bom pai é raramente associado ao cuidado de crianças. Geralmente, eles são relacionados ao ganha pão e a tomada de decisões. Consumindo os serviços realizados pelas mulheres, além de representar a família no mundo exterior. Mas afinal, qual é a Gender Order caracterizada pelos discursos no presente estudo? Como os nativos interpretaram as relações sociais de sexo? Procurei descobrir detalhes sobre essa ordem nas audiências estudadas e também nas falas dos entrevistados e de pessoas que me procuraram.
ZULMIRA, BERTOLEZA E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO DOMÉSTICO
Nos últimos dias da minha pesquisa, presenciei uma cena interessante. Antes de começar uma série de audiências, ouvi uma conversa entre uma juíza Zulmira 7 e uma funcionária administrativa do tribunal. A primeira dizia não poder fazer audiências naquela tarde, uma vez que seu filho estava doente e a sua empregada doméstica tinha faltado. Num segundo momento, a mencionada juíza resolveu, em lugar de adiar todas as audiências seguintes, chamar os advogados e as partes que porventura estivessem adiantados. Realizou duas audiências, extremamente curtas, como de costume. Uma delas envolvia um processo de empregada doméstica, Bertoleza. Houve um acordo.
7 Mantive em sigilo as identidades dos pesquisados. Todos os nomes mencionados são fictícios.
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Os discursos proferidos nessa cena me fazem refletir sobre a invisibilidade do trabalho doméstico. Durante a pesquisa que realizei, ficou claro o prestígio dos juízes entre os advogados e as partes. Eles eram “pessoas que venceram na vida, estudaram e passaram num concurso difícil”, diziam. A atividade de julgar e conciliar era visto como algo importante. O serviço doméstico, por sua vez, era representado pelos advogados como um serviço de importância menor. Não raro, ouvia dessas pessoas que as domésticas deveriam estudar para “ser alguém na vida”. Esses discursos contrastavam com a cena mencionada. Afinal, a ausência da empregada fez mudar a rotina da juíza. Uma frase muito repetida entre os juízes do trabalho era “Eu não posso sobrecarregar o empregador doméstico na mesma medida que eu penalizo uma empresa.” Esse discurso ratifica as desigualdades, desmerecendo as tarefas domésticas e justificando os valores pequenos dos acordos entre domésticas e patroas. Nesse caso, mais do que uma desigualdade, uma invisibilidade. No judiciário, quase sempre se opta por acordos, com valores pequenos, se comparados aos de outros trabalhadores. Na verdade, todo trabalho ligado à reprodução carrega a representação de desimportante. Tratam-se de dois tipos de feminilidade. Duas formas de ser mulher que se diferenciam. E mais do que se diferenciam, se hierarquizam. O trabalho da doméstica, ainda que necessário para a juíza, é visto com demérito. E, por seu turno, o trabalho da juíza é visto com enfatizado mérito. Como querem Connell e Pearse (2014), diferente de outros lugares no mundo, os estudos empíricos parecem apontar para o fato de que pensar gênero no Sul Global8 requer uma apurada sensibilidade sobre desigualdades sociais. O demérito era algo extremamente ventilado nesse campo de pesquisa, como me disse a presidente do Sindicato dos trabalhadores da categoria dos empregados domésticos em Niterói. Após uma longa entrevista, ela revelou que muitas empregadoras reclamaram da nova regulamentação de emprego doméstico 9. Diziam que iriam pagar caro por um serviço que não era especializado. Fazendo referência
8 A expressão se opõe ao Norte Global. Esse termo faz referência à hegemonia norte-americana e de certos países europeus, não apenas no aspecto econômico, como também no sentido de produção acadêmica. (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013) 9 Refiro à Emenda Constitucional nº 72 de 2013, que aumentou o rol de direito das empregadas domésticas.
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expressa à baixa escolaridade das empregadas domésticas. E, de pronto a própria presidente do Sindicato falou:
Mas como elas poderiam estudar? Não tem tempo. Quem trabalha em residência não tem tempo. É um trabalho muito pesado. Trabalha o dia todo e a noite a pessoa está morta.
Fiquei interessado, nessas cenas, no fato da dependência mútua dessas diferentes nativas. Sem a empregada, a juíza não cuidaria dos seus filhos e de sua casa. O problema apontado é a invisibilidade da reprodução. Essa expressão complementa a ideia de produção capitalista; além disso, é uma categoria importante que significa o cuidado de todo o serviço de casa, incluindo cozinhar, lavar, cuidar de crianças e idosos. O trabalho reprodutivo pode ser remunerado (realizado pela empregada doméstica) ou não remunerado (efetuado pelas mulheres do lar). É muito aguda sua importância para a própria manutenção do sistema capitalista. Geralmente, é invisibilizado social ou economicamente. (HIRATA, KERGOAT, 2007). Em quase todos os processos assistidos sobre emprego doméstico, patroas e trabalhadoras eram mulheres. Busquei conversar com algum empregado doméstico homem. As tentativas foram em vão. Todas as ações foram propostas por mulheres. Por outro lado, apesar de qualquer um da família empregadora poder figurar como réu dessas ações, a maioria era em face da dona de casa. Durante à minha visita ao sindicato patronal da categoria, foi-me informado que quem ligava para tirar dúvidas eram mulheres. As domésticas e patroas entrevistadas confirmaram que as tratativas sobre remuneração, horário e a própria realização do trabalho doméstico eram entre mulheres. A divisão sexual do trabalho doméstico foi elemento verificado. Durante toda a pesquisa, Heleieth Saffioti (1978) me ajudou a refletir sobre o duplo aspecto da separação público e privado, no caso do emprego doméstico. A empregada doméstica teria um lugar, uma posição, muito própria na casa. Percebo, no meu estudo, a atualidade desse pensamento. Saffioti (1978) explicou como o espaço privado continua a ser feminino. Mesmo com a maior entrada no mercado de trabalho, a mulher continuou destinada à realização de tarefas privadas, domésticas. Afazeres esses desprestigiados. Não se
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verificou o fim do caráter feminino da vida privada. Isso ocorreu, pois quem continuou realizando a tarefa doméstica foi outra mulher. Essas autoras exploram essa temática da divisão sexual do trabalho. A importância delas está em superar a naturalização de uma antiga dicotomia. Segundo esse pensamento, os homens seriam responsáveis pelo trabalho produtivo assalariado. Enquanto isso, as mulheres seriam responsáveis pelos trabalhos de casa, domésticos, não remunerados e tidos como improdutivos. Durante o trabalho de campo, vi a utilização frequente da expressão “quase da família”. Referiam-se aos fortes laços emocionais supostamente existentes entre empregadas domésticas e patrões. Realmente, era um padrão observado por mim as empregadas serem pessoas íntimas daquelas famílias. Mas eu não imaginava que nem sempre esse convívio era representado como amigável. Muitas domésticas se queixavam, falando que essa relação “não é sincera”, seria assim apenas um discurso do patrão para ganhar confiança da empregada doméstica. Desenvolveram-se relações entre essas pessoas. Uma curiosa relação de amizade marcada pela hierarquia. Algumas domésticas representam isso de forma positiva, uma “amizade sincera”; já outras, de forma negativa, um “apego maldoso”. A empregada via os patrões como alguém com quem era obrigada a ser simpática, a tratar bem. O patrão via a empregada como alguém obrigada a fazer as tarefas com carinho, havendo inclusive laços de confidencialidade entre eles. Por vezes, acordam-se prestações e contraprestações que vão além daquilo estipulado pelo Direito. Essa prestação mais do que material nos remete à obra de Marcel Mauss (2013) intitulada “Ensaio sobre a Dádiva”. Em linhas gerais, sua perspectiva teórica propõe que, nas sociedades, as relações humanas se constroem com base em um encadeamento onde as trocas sociais, de distintas ordens, constituem um circuito ininterrupto. Circuito esse que envolve um ciclo de ações encadeadas, onde o ato de dar estimula alguém a receber e, por conseguinte, retribuir. Seja um presente ou uma mera troca de cumprimentos, essas três ações devem se verificar para que o intercâmbio, a troca, seja plena. Sua perspectiva teórica pode nos ajudar a entender essa relação específica da doméstica com seu empregador. De forma distinta de outros contratos de trabalho, quem contrata uma doméstica não espera apenas alguém para passar a roupa, varrer a casa ou limpar as janelas. Espera-se, para além do que é verbal ou formalmente contratado, o afeto. O fato de contratar uma doméstica significa uma curiosa circulação de valores. 43
Recordo de um caso, contado por um juiz em entrevista, de uma referida audiência. Uma empregada doméstica propôs reclamação trabalhista em busca de vários 13º salários que a patrão não pagou. No dia da audiência, a defesa do patrão trouxe vários comprovantes de depósitos bancários em poupança. Ele dizia não ter pagado nas mãos da empregada, mas ter depositado os valores numa poupança que estava em nome dela. Esse é um exemplo de circulação do valor “cuidado”. Utilizo a terminologia “cuidado”, nesse caso citado, uma vez que o próprio juiz a utilizou. O desapego pela formalidade, a indistinção entre público e privado e o caráter emocional são os valores que circulam com essa relação. Sérgio Buarque de Holanda (1995) faz alusões a essas características para enfatizar o que chamou de homem cordial. As leis são ignoradas em favor dos afetos. O caráter emocional retratado pelo autor também deve ser levado em conta para compreender esse campo. O homem (ou a mulher) que age com a córdia, com o coração, é, ao mesmo tempo, capaz do maior gesto de carinho e do maior ato de violência. Com certeza, abrir e depositar dinheiro numa conta-poupança é um gesto simbolizado como carinhoso. Por outro lado, esse ato, nesse contexto, pode significar uma violência, uma intromissão na vida pessoal. Foi uma intromissão na vida privada da empregada doméstica, informal, orientada pela emoção e muito pouco racional. O fim de muitas relações de trabalho doméstico não foi devido a um descumprimento de alguma regra legal. O término dessa relação de trabalho não se deveu ao não-pagamento de algum valor; antes, se deveu a algum descontentamento. Muitas vezes, essa terminação vinha por conta da percepção de que uma parte dava mais do que recebia. Cuida-se de uma relação muito emocional. O direito e a razão só são levados em conta mais seriamente, nessa relação, quando há algum desentendimento.
EVA, MARIA E A RHETORIC OF CONTROL
Durante a pesquisa, entrevistei algumas donas-de-casa, elas falaram da relação com as domésticas. Apenas encontrei mulheres nessa posição. Nenhum homem figurou como Réu nessas ações. As domésticas sempre propuseram suas ações judiciais contra as patroas, raramente contra os patrões. Esse fenômeno muito
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me lembrou que, nas audiências sobre doméstica, apenas figuravam mulheres como Reclamantes. Não vi nenhum “empregado doméstico”. Tudo isso ajudou a entender como essa relação específica perpassa o espaço doméstico e chega ao tribunal. O caso de Eva pôde ilustrar isso. Ela é uma senhora, católica, com aproximadamente cinquenta anos de idade. Conversando comigo, falou que eu tenho que tomar cuidado para “não focalizar apenas um lado da moeda.” Querendo dizer que precisava ouvir as empregadoras domésticas também. Percebi um dado interessante. Segundo Eva, em sua casa, quem trata da parte de pagamento da empregada é seu marido. Esse casal estabeleceu isso em conjunto, mesmo sendo incomum entre suas amigas. Ela sinalizou ser menos desgastante, para os homens, controlar essa relação. Afirmou que sua empregada doméstica, mesmo tendo uma casa própria, dorme num dos quartos de seu apartamento. A Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) foi assinada, mesmo quando isso era fato raro. Seu marido sempre cuidou do conforto da empregada. Providenciando, inclusive, um ponto de TV a cabo, em seu quarto. Pagando a contribuição ao INSS mesmo quando a lei ainda não obrigava. O marido de Eva foi imaginado, naquela relação, como a pessoa mais indicada, menos sentimental. Mesmo assim, ele jamais pediu recibo ou comprou um caderno de ponto. Eva mencionou tal fato como uma reprovação ao seu marido. Na sequência, mencionou um parente seu muito “caxias, certinho” que controlava ponto e pegava os recibos. Mas deu a entender ser isso uma exceção. A reprovação do ato de seu marido de não pegar recibos foi colocada. Ou seja, a relação entre gênero, emoções e perigo foi ressaltada. O casal entendeu que a parte mais adequada para pagar a empregada era o homem. Dado que o a mulher é “mais afetiva”. E que “os afetos são de difícil controle”. A própria mulher entendeu que “não conseguiria controlar suas emoções”. E, ainda por cima, reprovou o marido que também não conseguira dominar as emoções, sem fazer um caderno de ponto ou pegar recibos. Como se a afetividade fosse rejeitada, um sinônimo de fraqueza, tipicamente feminina. As empregadas sempre tinham medo de “não se segurar e falar demais, revelar coisas que não deve”, conta-me Maria. Maria foi uma das primeiras domésticas entrevistadas na pesquisa. O advogado de Maria não estava presente e sua audiência. Razão pela qual ela foi remarcada. Percebi que ela ouvia mal e estava com dificuldade de se comunicar com a juíza. Era uma senhora aparentando ter pelo 45
menos sessenta anos, acompanhada por outras amigas. Essas últimas não queriam que ela falasse comigo. Com jeitinho, eu me aproximei e consegui que ela conversasse comigo por alguns instantes. Falou que se sentia muito bem na casa onde trabalhou, contudo, ultimamente, vinha se sentindo cansada e sobrecarregada. Disse que se sentiu muito acuada naquela situação. “Me sentia desamparada na frente da juíza, mas Deus me ajudou. ” Ela tinha um medo enorme da figura do judiciário, a ponto de pedir para que o sobrenatural lhe guardasse. A rhetoric of control, nesse caso, era latente. Essa ligação entre gênero e emoções também foi importante nos estudos de Catherine Lutz (1990). Para a autora, esse discurso foi reproduzido tanto fora como dentro do meio acadêmico ocidental. Frequentemente, os adjetivos usados para qualificar emoções foram usados para determinar o feminino. Então, discurso pôde ser, ao mesmo tempo, um discurso sobre gênero. E as emoções, tal como o feminino, foram associado à natureza, nunca a cultura. As emoções seriam, assim, o centro do self10, uma parte “natural” do ser humano. Elas seriam caóticas, não ordenadas, incontroláveis e involuntárias. Ou seja, trataram-se as emoções de um processo desvantajoso, se comparadas à cognição ou à racionalidade. E, por extensão, o feminino estaria em desvantagem com o masculino, esse último sempre relacionado com a razão. Isso tudo, numa perspectiva evolucionista, tal como compreensão de Durkheim (1999), por exemplo. Esse autor escreveu que as mulheres teriam menos capacidade para trabalhos fora de casa, em razão da sua incapacidade cognitiva, se comparado aos homens. Como justificativa para a incapacidade intelectual feminina apontou para uma razão biológica. Os cérebros femininos eram menores do que dos homens evoluídos. O tamanho desse órgão nelas seria semelhante ao dos ditos homens primitivos. Ou seja, haveria uma ligação entre natureza, emoção e feminilidade. Há ainda outra questão. Para além dessa entre natureza, emoção e feminino. Catherine (1990) tratou da identificação entre esse bloco de ideias com a noção de 10 O conceito de self, muito antes de Goffman, foi pensando por outras áreas de conhecimento. A psicologia clínica, por exemplo, debate as muitas concepções do que seja self. Geralmente, as definições de self fazem referência ao indivíduo como ser constituído de disposições internas e mentais. Para Goffman (2013) o comportamento humano é tratado e sua situação social, como o indivíduo se apresenta para os outros.
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perigo. O que seria imperioso, incontrolável e involuntário como a natureza, como a emoção e como o feminino, também seria perigoso. Em sua pesquisa, a autora abordou uma série de entrevistas com homens e mulheres norte-americanos. Nelas, fica latente o que Catherine chamou de rhetoric of control. Ela se referiu, com esse termo, à necessidade, expressa pelos seus interlocutores, de um controle sobre as emoções, sobre o gerenciamento das emoções. Essa ideia dizia respeito a uma certa narrativa de grupos dominados. Essa espécie de desorganização intrapsíquica foi ressaltada pelos nativos, advogados, juízes, empregadas domésticas e patroas. Era “natural” para eles pensarem nos problemas do trabalho doméstico remunerado nas varas do trabalho, muitos dos quais questões subjetivas, de uma forma específica. Essas falas reproduziam e construíam uma imagem da feminilidade. Catherine Lutz mostrou que os discursos dos nativos de suas entrevistas, discurso muito próximo dos que eu ouvi no meu trabalho de campo, eram evidência de uma visão cultural largamente difundida sobre o perigo das mulheres e sua emotividade. Esses discursos todos tinham relação com os escritos de Foucault sobre sexualidade, assevera a autora. Tanto a emotividade quanto a sexualidade são domínios reprimidos pelo modelo biomédico. Existiriam assim, formas saudáveis e doentias de se vivenciar experiências sexuais e emocionais. Falar sobre emoções ou práticas sexuais controladas, significa replicar as percepções de emoções e de sexualidade como algo natural, perigoso e irracional E exatamente isso era muito recorrente, um discurso da necessidade de disciplinar as emoções. Como se as mulheres tivessem mais dificuldade de se conter. Isso contrastava com o imaginário daquelas pessoas sobre os homens. Eles teriam facilidade de desenvolver uma racionalidade capaz de separar questões financeiras de questões afetivas.
OLGA, ANASTACIA E A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA
Os casos a seguir foram presenciados em audiências realizadas em dezembro de 2013. A primeira audiência se deu no início da tarde. Foi breve, menos de dez minutos. A empregada doméstica, que propôs a ação, tinha faltado. Fato raro,
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por sinal.11 A juíza responsável pela ação, Anastácia, usava um vestido claro, sendo conhecida entre os advogados por ser uma pessoa simpática. “Ela é muito boa, solidária mesmo.” Diziam muitos nativos. Estava sempre sorridente e conversava muito com os advogados sentados na sala à espera de suas audiências. Nesse dia, ela olhou para a patroa e disse: “Poxa, que pena, você vai ter que voltar aqui. Mas a gente vai ver uma data boa.” Na sequência, olhou para o advogado e disse: “Vamos ver no dia tal? Esse dia está bom para você?” Quem estava assistindo logo falou entre si, “nossa, essa juíza é diferente mesmo. Nunca eu vi um juiz fazendo isso, perguntando se o dia está bom”. Essas pessoas que assistiam formavam uma verdadeira plateia12, com quem os alguns juízes se comunicavam por meio de olhares e, às vezes, por palavras. Era perceptível a dificuldade dela em pedir para que eles parassem de falar. Após assistir essa audiência, deixei a sala e subi a escada em caracol, de mármore branco e suja. Um verdadeiro murmurinho se alastrava, denotando a grande quantidade de pessoas que circulavam nesse espaço. Alguns lances de escada e chego em outra Vara. Enquanto espero determinada audiência, fico observando outra juíza. Ela era sensivelmente mais idosa do que Anastácia. Chamarei de Olga. As roupas de Olga eram mais escuras. Usava quase sempre um tailler13 ou uma roupa mais de senhora. Nunca a vi de vestido com alças. Naquele dia, estava com uma blusa preta fechada e com uma calça. Tinha uma forma mais áspera e contundente ao falar. Como já mencionei, eu estava esperando a audiência que me programei de assistir. Os gestos da juíza eram bruscos e expressavam certa impaciência com a mão. Durante todas essas audiências, a juíza tentou sempre propor acordos de forma incisiva. Mas, dessa vez, não houve acordo e a audiência foi remarcada. A juíza comunicou a data da nova audiência. Os advogados anotaram. Na época em que realizei o trabalho de campo, percebi que muitas dos juízes que efetivamente trabalhavam nas Varas eram mulheres. De fato, das oito Varas do Trabalho de Niterói, havia apenas uma onde o juiz sempre era um homem. As outras 11 Nas audiências assistidas no meu trabalho de campo, esse foi o único caso de ausência das domésticas. Realidade ratificada pela fala dos advogados. “Doméstica não falta audiência”, diziam. Isso contrastava com outras categorias profissionais. 12 Uso plateia no sentido de Goffman (2013) para falar das pessoas que assistiam as audiências sentadas nas cadeiras. Era sempre muita gente que conversava muito. Isso, às vezes, chegava a atrapalhar a audiência. 13 Essa peça de roupa também era chamada de terninho.
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sete Varas, muito embora em algumas delas o juiz titular fosse um homem, a maioria das juízas substitutas eram mulheres.14 Esse específico cenário me deu oportunidade de construir dados sobre a relação entre o trabalho de julgar e o gênero dos juízes. Além de propiciar observações de um caráter masculino dessa instituição, a Justiça do Trabalho em Niterói. Há inúmeras maneiras de ser homem e de ser mulher. As masculinidades são múltiplas. Os atletas e os advogados, por exemplo, expressam de forma diversa a sua masculinidade. Tratam-se de uma variedade realmente grande de formas de exercício da masculinidade, com peculiaridades e distintas formas de legitimar-se perante cada grupo ou subgrupo. Raewyn Connell e James Messerschmidt (2013) tem trabalhado com as distintas formas de masculinidades em inúmeros contextos empíricos. Convém ressaltar, nesse conjunto, uma forma de ser específica. Connell chamou de masculinidade hegemônica15. Esse conceito foi recentemente revisto pela autora, sendo certo cuidar-se de práticas legitimadoras da hierarquia entre homens e mulheres. Um conjunto de atitudes que podem ser exercidas tanto por homens como por mulheres. Essa masculinidade depende da aceitação, do consenso de grupos subalternos. Não existem padrões universais e atemporais para a masculinidade. Antes são jogos, ou melhor dizendo, práticas, não são identidades fixas. Não existe rigidez nesses modelos. Essas práticas são hegemônicas, não por serem replicadas por todo um grupo, mas por impor um padrão de superioridade a ser buscado. Connell (2013) ilustrou bem esse conceito numa pesquisa utilizando o método da história de vida. Foi a história de Roger. Era um homem, de meia-idade e australiano. Ele trabalhava com incorporações, tendo já uma carreira nesse ramo. Era casado e pai de três filhos. Morava num subúrbio, numa região elegante de sua cidade. Em casa, repetiu o tradicional arranjo de gêneros aprendido na sua infância. Trabalhava fora e sua esposa era dona de casa. Ela cuidava dos filhos e administrava a casa, realizando os 14 Havia juízes titulares de determinada Vara, quem estava à frente dos processos ali julgados. Na ausência desses (por licença, férias, etc.), quem trabalhava era um Juiz Substituto. Ambos eram Juízes do Trabalho, concursados e estáveis. 15 Alguns críticos ao conceito de masculinidade hegemônica acusam-no de seguir uma concepção heteronormativa de gênero, essencializando e biologizando a relação macho-fêmea. Connell (2013a) respondeu a essa crítica, asseverando haver muitos estudos sobre masculinidades hegemônicas em corpos ditos femininos. Como se trata de um conjunto de práticas e não de uma identidade ou de corporalidade, a masculinidade hegemônica diferencia-se conforme cada cenário social particular.
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afazeres domésticos. Roger seguia, de certa forma, um padrão esperado entre seus companheiros de trabalho e vizinhos. Trabalhava por longos períodos, deixando o cuidado dos filhos sempre com sua esposa. Reconhecia dar mais importância ao trabalho do que a família. Tinha uma postura agressiva nas relações de trabalho, no sentido de enfrentar um mercado extremamente competitivo. Mas essa característica era mitigada pela necessidade de negociação com os trabalhadores. Problemas de peso e de saúde o acompanhavam. A masculinidade exercida por Roger constitui-se numa masculinidade hegemônica, seja pensando em seu ramo de trabalho ou no contexto do seu bairro. Nos estudos empíricos sobre gênero na Austrália, os temas repetiam-se: a rígida divisão sexual do trabalho doméstico, a heterossexualidade como algo indiscutível, o enfoque no trabalho e uma postura combativa nas relações de trabalho. Roger seguia todos esses padrões. Essas características funcionam bem nas suas relações com as organizações locais ligadas ao seu ramo de negócios. Seu trabalho não apenas reforçava seu papel masculino, mas impunha o epíteto da masculinidade.16 A masculinidade hegemônica foi um conceito inicialmente proposto em relatórios de estudos sobre as escolas australianas e a desigualdade social e na pesquisa sobre o papel dos homens na política sindical. Essa masculinidade constituiu-se num conjunto padrão de práticas, possibilitando a dominação dos homens sobre as mulheres. Ela possui caráter normativo, influenciando num conjunto de expectativas de papéis de gênero. Existem ainda, estudos sobre a institucionalização das masculinidades hegemônicas em organizações específicas. Todos esses dados refletem uma certa Gender Order. Essas duas mulheres escolheram um conjunto de práticas bem diferenciadas entre si. Contudo, para legitimar-se frente a plateia, Anastácia se valia de uma postura expressando masculinidade. E não optou por qualquer postura masculina. Optou por uma especial, que remete à autoridade, como a de outro juiz mais idoso que conheci nesse trabalho de campo.
16 Era certo que a sua corporalidade podia atrapalhar seus planos. O excesso de peso era uma questão crônica nessa masculinidade, sendo frequente em alguns ramos de trabalho. Esse elemento podia se configurar como antagonista dentro de uma masculinidade hegemônica. Outro antagonismo poderia vir da educação de seus filhos. Era aparentemente é omisso, dado que o tempo de trabalho impede uma relação mais próxima aos seus filhos. Podia assim não ser o pai esperado nos padrões de seus vizinhos. (CONNELL,2013)
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Anastácia desenvolvia práticas de masculinidade hegemônica naquela instituição. Para manter o seu papel de liderança, preferiu roupas e gestos que remetiam à uma postura masculina e agressiva. Valendo-se de ironias e olhares mais frios, tentava manter a ordem, manter o silêncio naquele local. Muitas juízas optavam por essa postura. De fato, Olga era uma exceção. Esse conjunto de práticas ajudam a estabelecer padrões para a administração institucional de conflito na Justiça do Trabalho em Niterói. Trata-se de uma instituição que recebe bem essas práticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como referi anteriormente, utilizei alguns autores nessa minha tentativa de aproximação com os nativos do campo. Tentei compreender suas diversas “performances”. Para Goffman (2013), quando alguém desempenha um papel pede para que os demais acreditem nos atributos que aparenta possuir. Em alguns casos, apenas o pesquisador (ou alguém socialmente descontente) é capaz de duvidar sobre o apresentado. Esse tipo de abordagem me ajudou a ir além do controle de impressões desses nativos, ou seja, dos arranjos usados por essas pessoas para interagirem. Nesse sentido, Berreman (1990) deu ênfase à separação entre cenas e bastidores no seu trabalho de campo, para perceber além das barreiras que distanciavam o pesquisador dos nativos estudados. O autor chega a detalhar episódios, como quando usou a fotografia como forma de aproximação com os moradores de Sirkanda. Desse mesmo modo, percorri diversas Varas do Trabalho em Niterói para entender além dos discursos apresentados. Busquei compreender além das cenas e dos discursos, para descrever bastidores e práticas. Encontrei uma série de discursos e de práticas menosprezando o trabalho doméstico remunerado, em prol de determinadas compreensões sobre gênero, sempre desqualificando a feminilidade. Num primeiro momento do presente artigo, problematizei o seguinte discurso: as atividades domésticas são desimportantes. O trabalho doméstico remunerado contrastava com a atividade dos juízes. Esse último seria um trabalho digno de honra. Essas ideias, expressas com intensidade, ratificavam a desigualdade, além de servir de justificativa para os pequenos valores dos acordos.
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Compreendi, também, outro discurso muito difundido. Segundo ele, a afetividade seria uma característica “naturalmente” feminina. Logo, todo o trabalho de cuidar do lar e dos filhos seria melhor desenvolvido pelas mulheres. E, para além, as demonstrações de afetividade representavam, ao mesmo tempo, uma fraqueza e um perigo. Haveria, assim, uma forte ligação “natural” entre gênero e certas emoções. Nas cenas onde esse discurso era presente, a ideia de feminilidade era associada a algo irracional e anormal. Esse discurso legitima uma hierarquia de gêneros. Nela, homens são responsáveis por tarefas administrativas por serem mais “racionais”. E as mulheres são comprometidas com as atividades de cuidado do lar. Como já mencionei, essas tarefas são tidas como trabalho desimportante. Por fim, fiz referência ao discurso da própria instituição Justiça do Trabalho em Niterói, sintetizado na performance das Juízas. Esse discurso era muito sutil, percebido nas roupas, gestos e maneiras de se portar. Em curtas palavras, resumia o caráter masculino da Justiça do Trabalho em Niterói. Percebi, dessa forma, que todos esses três discursos de gênero estavam presentes nas audiências. Seja pelas roupas, seja pelos gestos, seja pela forma de administração de conflitos. E esses discursos, reproduzidos e produzidos por diversos meios, geravam toda uma realidade social. Como visto, existiam os mais variados discursos sobre as práticas de gênero. E todos eles tinham intrínseca relação com relações hierárquicas. Muito provavelmente isso se dava por conta da forma como, nas nossas sociedades, se realizam as relações de gênero. De forma, geralmente, polarizada entre dominante e subalterno.
REFERÊNCIAS BERREMAN, Gerald. Etnografia e controle de impressões em uma aldeia do Himalaia. In: ZALUAR, Alba. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1975, p. 123-174. CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gender: In World Perspective (Polity Short Introductions). Cambridge: Polity Press, 2014. CONNELL, Raewyn; MESSERSCHMIDT, James. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. In: Revistas Estudos Feministas, vol. 21, n.1, 2013: 241282.
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CONNELL, Raewyn. Masculinidade corporativa e o contexto global: um estudo de caso de dinâmica conservadora de gênero. In: Revista Cadernos Pagu, n. 40, 2013, p. 323-344. COELHO, Maria Claudia; REZENDE, Claudia. Antropologia das Emoções. Rio de Janeiro, FGV, 2013. DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2013. HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. In: Revista Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, 2007, p. 595-609. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LUTZ, Catherine. Engerdered emotion: gender, power, and rhetoric of emotional control in American discourse. In: ABU-LUGHOD, L. e LUTZ, C. Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 69-91. MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca em sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac Naify, 2012. POCHMANN, Márcio. Nova classe média? São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978.
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ESTADO E REVOLUÇÃO PASSIVA NO BRASIL UM BREVE ESTUDO SOBRE CAPITALISMO, ESTADO E CLASSES Rafaela Vieira1 RESUMO: Este artigo pretende discutir o processo de formação sociopolítica brasileira a partir de uma revisão bibliográfica, buscando, sobretudo, apreender as dinâmicas presentes na relação entre capitalismo, Estado e classes sociais, de modo a compreender os mecanismos que levam ao alijamento das camadas populares dos instrumentos de poder. Para tanto, utilizamos o conceito gramsciano de revolução passiva, a partir do qual podemos entender grande parte das transições políticas ocorridas no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Formação social brasileira. Estado. Revolução passiva. ABSTRACT: This article discusses the process of Brazilian socio-political formation from a literature review, seeking above all to grasp the dynamics in the relationship between capitalism, the state and social classes, in order to understand the mechanisms that lead to dumping of the lower classes of instruments of power. Therefore, we use the Gramscian concept of passive revolution, from which we can understand much of the political transitions that have occurred in Brazil. KEYWORDS: Brazilian social formation. State. Passive revolution. INTRODUÇÃO
Como parte dos estudos de mestrado, buscamos compreender a inserção da classe trabalhadora brasileira na cena política, bem como as estratégias de revolução socialista já pensadas no país, a exemplo da estratégia democrática nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Para tanto, se fez necessário também um estudo mais aprofundado a respeito da formação social brasileira, o que nos revela os mecanismos que geram a exclusão das camadas populares dos processos decisórios, apesar de importantes lutas empreendidas pelos trabalhadores. O presente texto foi, portanto, extraído destes estudos e nele apresentamos: 1) O fundamento e a crítica da
estratégia
democrática
nacional;
2) Algumas
considerações
sobre
o
1 Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), licenciada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: haphynah@hotmail.com
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desenvolvimento do capitalismo no Brasil; 3) Apontamentos sobre o Estado brasileiro e o histórico de revoluções passivas que marca nossa trajetória.
ESTRATÉGIA DEMOCRÁTICA NACIONAL: O FUNDAMENTO E A CRÍTICA
Durante muito tempo persistiu no PCB, por influência das formulações do Komintern para os países da Ásia e América Latina, a ideia de que o Brasil fora feudal em seu período colonial, havendo ainda na república resquícios do feudalismo. Por esta razão, uma revolução socialista se tornava inviável naquele momento, sendo necessária primeiro uma revolução democrática-burguesa nos moldes daquelas ocorridas na Inglaterra e França. Somava-se a isso a situação de dependência do Brasil em relação às potências imperialistas. Assim, com vistas a eliminar os “resquícios feudais” e desenvolver um capitalismo independente, se fazia indispensável uma aliança do proletariado com a “burguesia nacional”, cujo objetivo era efetivar uma luta anti-imperialista para o estabelecimento de um capitalismo plenamente independente. Somente após esta etapa seria possível a derradeira etapa da revolução socialista (MAZZEO, 1999). No entanto, como observou Caio Prado Jr. (1978), a tese do feudalismo no Brasil não encontrava respaldo na realidade concreta, não havendo restos feudais a eliminar. Para ele, a maior parcela dos trabalhadores rurais inseria-se no setor produtivo na qualidade de vendedora da força de trabalho. Da mesma forma, o autor percebeu a inexistência de uma real oposição entre a burguesia brasileira e o capital externo, havendo no máximo conflitos isolados entre membros da burguesia e empreendimentos estrangeiros. Logo, a “burguesia nacional” entendida como uma força essencialmente anti-imperialista e progressista “não tem realidade no Brasil” (PRADO JR., 1978, p. 121).
CAPITALISMO E FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
A tese do feudalismo no Brasil – que não foi uma inovação propriamente dita do Komintern, já tendo aparecido anteriormente entre autores da historiografia tradicional brasileira, como Varnhagen e Capistrano de Abreu, e que em sua versão pecebista foi chamada por Hirano (2008) de teoria “feudal-marxista-ortodoxa” – foi
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amplamente refutada, inicialmente por Caio Prado Jr. (1978), seguido por diversos pensadores. Por outro lado, o entendimento a respeito da presença ou não do capitalismo no início da formação social brasileira está longe de ser consensual. Caio Prado Jr. (2011) teve o mérito de ser o primeiro a analisar o país a partir da perspectiva de totalidade, partindo do geral para explicar o particular. Em Formação do Brasil contemporâneo, de 1942, vinculou o “descobrimento” do Brasil ao processo externo de expansão de mercados. Segundo o autor, o tipo de colônia estabelecido nas zonas tropicais conservou o caráter estritamente mercantil das grandes navegações e da empresa comercial que dava sentido a elas. Foram os interesses econômicos dos países europeus que determinaram, a cada período da colonização, e mesmo depois dela, os gêneros aqui produzidos. Para o autor: Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. (PRADO JR., 2011, p. 31-2)
Caio Prado considerou, portanto, que o sentido da colonização no Brasil foi a satisfação das necessidades comerciais europeias. Logo, essa colonização não foi feita de forma aleatória, mas foi orientada em uma direção determinada, isto é, seguindo critérios externos, demandas da metrópole. Desenvolveu-se no Brasil colônia, de acordo com ele, uma estrutura econômica agrária fundada em três elementos: latifúndio, monocultura e escravismo; sendo estas as partes constitutivas de uma mesma unidade produtora. Tais elementos, junto a outros que lhes deram suporte, como a família patriarcal, a religião etc., determinaram as questões estruturais que chegaram ao período republicano. O sentido da colonização no Brasil, isto é, a empresa comercial, marcou toda a trajetória brasileira, mantendo o país dependente dos interesses das nações imperialistas, preso ao sistema agroexportador e à economia escravista, fornecedora de força de trabalho para a monocultura nos latifúndios. Apesar do desenvolvimento do trabalho livre, o autor observou traços bem nítidos do regime escravista em muitos setores ainda no século XX. Portanto, o sentido da colonização deve ser pensado em longo prazo, e é justamente ele que explica os elementos fundamentais da formação histórica brasileira, tanto na esfera econômica quanto nas esferas social e política.
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De acordo com Florestan Fernandes (2006), com a colonização foram introduzidos no Brasil os móveis capitalistas do comportamento econômico, e foram eles que orientaram as plantações, organizadas de acordo com um propósito comercial básico. Ainda que nos séculos XVI e XVII o capitalismo em si ainda não houvesse florescido nem mesmo na Europa, o sociólogo esclarece que antes que isso pudesse acontecer, o “espírito do capitalismo” já se disseminava, provocando comportamentos típicos, os quais rebateriam no posterior desenvolvimento do capitalismo, o qual, por sua vez, implicaria em mudanças no “espírito do capitalismo” em sua organização e conteúdo. Por isso, apesar da existência de móveis capitalistas, Florestan discorda daqueles que viam o Brasil colonial já como uma formação capitalista e o senhor de engenho como um burguês. Este último estava tão somente vinculado à mercantilização da produção agrícola. O debate em torno da presença ou não do capitalismo na formação colonial brasileira não ficou restrito a estes pensadores, tendo avançado para autores de gerações posteriores. Aqui citaremos dois a título de exemplo. No final dos anos 1980 os sociólogos Sedi Hirano e Antônio Carlos Mazzeo publicaram obras com concepções opostas. Hirano (2008) discorda da tese que concebe o Brasil colonial como já capitalista. Para ele, nesta tese o conceito de capitalismo é deslocado para a esfera da circulação, quando só faz sentido se relacionado ao modo de produção. O mercantilismo consiste, na verdade, em uma etapa de acumulação primitiva originária de capital, mas não capitalista. De acordo com o autor, “a única acumulação capitalista que é estritamente capitalista é a acumulação que resulta do capital industrial” (HIRANO, 2008, p. 34). Mazzeo (1989), por sua vez, concorda com Caio Pardo ao entender que o processo de colonização do Brasil esteve determinado por um processo mais amplo que levaria ao desenvolvimento do capitalismo. Por isso, ele descarta “qualquer concepção que defina a formação social brasileira como um modo de produção distinto do capitalismo” (MAZZEO, 1989, p. 15). Assim, ele faz crítica aos autores que tentaram partir do que consideraram ser o “modo de produção escravista colonial” para compreender a história social do Brasil, uma vez que estes desprezam da “análise marxista o aspecto da interação dialeticamente indissolúvel do particular e do
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universal, desconsiderando o histórico-processual do ser social capitalismo” (p. 75).2 Enquanto Hirano (2008) considera inaceitável visualizar uma estrutura de classes anterior à formação capitalista, motivo pelo qual argumenta que é mais correto afirmar que durante a colônia a sociedade possuía uma estrutura de castas ou estamentos, Mazzeo (1989) acredita que o latifundiário escravista já tinha um caráter burguês. Como vimos acima, sobre esse assunto Florestan Fernandes (2006) tem a opinião de que o senhor de engenho não pode ser considerado burguês. No entanto, ele considera que foi justamente este ator social que mais tarde daria origem à burguesia brasileira, a qual faria uma revolução burguesa sui generis no Brasil. Como afirma Almeida (2003), ao contrário das teses do Komintern e do PCB, tanto no Brasil quanto no restante da América Latina, no século XX Estados burgueses já haviam sido desenvolvidos. Os problemas eram outros. Trotsky (1977), com sua teoria do desenvolvimento desigual e combinado, nos ajuda a entender o desenvolvimento do capitalismo nas regiões periféricas. Segundo o teórico russo, a partir de determinado momento do desenvolvimento do capitalismo, este se tornou uma totalidade concreta e dinâmica capaz de integrar as mais diferentes e distantes regiões globais. Se antes, nas formações pré-capitalistas, era possível perceber nas diversas sociedades certos padrões de repetição de etapas, o capitalismo “realizou a universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade”, impedindo novas repetições das formas de desenvolvimento nos distintos países (TROTSKY, 1977, p. 24). Assim, um país atrasado tende a assimilar em pouco tempo o que fora realizado nas regiões ditas avançadas, pulando as etapas lá experimentadas. No entanto, “um país atrasado frequentemente rebaixa as realizações que toma de empréstimo ao exterior para adaptá-las à sua própria cultura primitiva” (TROTSKY, 1977, p. 25), processo esse que traz consigo um caráter eminentemente contraditório, por vezes reforçando elementos em vias de superação, de forma a aprofundar antigas contradições daquelas sociedades e gerar novas tensões entre o que está por imergir e o que tenta se consolidar. De acordo com Trotsky, a desigualdade do ritmo de desenvolvimento é uma lei comum aos processos históricos, mas nesse contexto ela se torna ainda mais díspar e complexa, uma vez que os ditos países atrasados veem-se compelidos a avançar a
2 Esta crítica de Mazzeo é feira diretamente a Ciro Flamarion Cardoso, Jacob Gorender e Décio Saes.
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despeito de suas barreiras internas. Daí deriva uma segunda lei: a do desenvolvimento combinado, “que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas” (TROTSKY, 1977, p. 25). A análise de Florestan Fernandes (2006) sobre a revolução burguesa no Brasil exemplifica o desenvolvimento desigual e combinado neste país. Embora o termo não seja facilmente aplicável na nossa história, na visão de Florestan, pensar revolução burguesa no nosso contexto significa identificar os atores das transformações histórico-sociais que resultaram na passagem do regime escravocrata para a sociedade de classes. Nas palavras do autor: Em suma, a Revolução Burguesa não constitui um episódio histórico. Mas, um fenômeno estrutural, que se pode reproduzir de modos relativamente variáveis, dadas certas condições ou circunstâncias, desde que certa sociedade nacional possa absorver o padrão de civilização que a converte numa necessidade histórico-social. Por isso, ela envolve e se desenrola através de opções e de comportamentos coletivos, mais ou menos conscientes e inteligentes, através dos quais as diversas situações de interesses da burguesia, em formação e em expansão no Brasil, deram origem a novas formas de organização do poder em três níveis concomitantes: da economia, da sociedade e do Estado. (FERNANDES, 2006, p. 37-8)
Por isso, se aqui não houve todas as etapas ocorridas em países como Inglaterra e França, o passado recente europeu foi reproduzido no Brasil de maneira peculiar, uma vez que só assim foi possível a implantação da sociedade capitalista neste país. O sistema socioeconômico aqui presente anulou o ímpeto dos móveis capitalistas e deu lugar à dominação patrimonialista. Ainda de acordo com Florestan, foi só com o rompimento do estatuto colonial que parte das potencialidades capitalistas da grande lavoura pôde ser canalizada em favor do crescimento interno. Organizado o Estado nacional – isto é, no Império – foi possível o desenvolvimento de condições que levariam à necessidade da concretização da revolução burguesa, haja vista que à medida que ia se realizando uma modernização econômica, ia se alterando também o padrão de civilização vigente, o que levava à necessidade de mudanças em outras esferas. O sistema escravocrata, por exemplo, já representava um entrave ao desenvolvimento do capitalismo. Dessa forma, “o abolicionismo foi transformado em uma revolução social dos brancos para os brancos, condenado-se os efeitos do escravismo em uma sociedade que precisava rumar para a expansão da economia de mercado” (FERNANDES, 2006, p. 35-6). A república, da mesma forma, 59
se tornou condição para as pretensões dos grupos que almejavam o desenvolvimento do mercado competitivo. Nas palavras do autor: [...] os estamentos dominantes e suas elites preferiram a solução política que adaptava, através da República, a adaptação da sociedade à sua condição burguesa. Agiram de modo inverso, mas segundo o mesmo estilo e inspiração que orientaram, politicamente, os estamentos senhoriais e suas elites na época da emancipação nacional. (FERNANDES, 2006, p. 185)
Não obstante à ascensão da burguesia, permaneceram nítidos vestígios de uma sociedade de privilégios, vestígios estes que seriam incorporados durante a transição para a sociedade burguesa, em contraposição à competição efetiva que o capitalismo pressupõe. Portanto, a revolução burguesa no Brasil se diferenciou substancialmente do tipo clássico de revolução burguesa, a saber, aquelas ocorridas na Inglaterra, França e Estados Unidos. Se nestes países houve um processo de radical transformação das estruturas políticas, econômicas e sociais, tendo a burguesia ascendido ao poder político somente depois de ter criado as bases de hegemonia socioeconômica, o Brasil chegou ao capitalismo sem grandes mudanças, e aqui a burguesia se utilizou primeiro do Estado para se unificar no plano político antes mesmo de garantir a dominação socioeconômica. Para Florestan, que buscou compreender o processo de modernização do país a partir de suas especificidades, houve no Brasil uma dinâmica de conciliação entre elementos ditos arcaicos, como a própria aristocracia rural, e elementos modernizantes. A própria burguesia, que nos países acima citados foi a responsável pelos processos modernizantes, teve aqui um comportamento peculiar. Segundo o autor: Ela se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e para ela era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do 'atraso' quanto do 'adiantamento' das populações. (FERNANDES, 2006, p. 240-1)
Em grande parte, esse comportamento se deve à ausência de um antagonismo propriamente dito entre a burguesia e o grupo até então dominante, como visto nos casos clássicos. Ao contrário, Florestan percebeu uma identificação entre burguesia e oligarquia, não sendo uma oposta à outra. A burguesia nutria forte atração pela oligarquia, assim, não podia haver divergências entre uma e outra. Estando ambas dentro do mesmo universo cultural, os conflitos surgidos, geralmente ligados a
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pequenos interesses materiais, não eram capazes de provocar mudanças drásticas. O autor notou ainda a reprodução do mandonismo oligárquico pela burguesia em suas relações sociais, o que trouxe para a contemporaneidade comportamentos típicos da colônia. Percebendo também uma relação dialética entre “arcaico” e “moderno”, Francisco de Oliveira (1988) criticou a visão dualista em voga entre os anos 1960 e 1970. Para ele, dualidades como, por exemplo, “sociedade moderna/sociedade tradicional” não se sustentam no plano real, que mostra “uma unidade de contrários, em que o chamado 'moderno' cresce e se alimenta da existência do 'atrasado', se se quer manter a terminologia” (OLIVEIRA, 1988, p. 12). Exemplo disso é a relação entre agricultura e industrialização na época de expansão desta última, no pós-1930. O autor argumenta que a indústria não suplantou o setor agropecuário, mas ao contrário, se beneficiou dele. A partir dessa ideia ele contesta o conceito de subdesenvolvimento, então utilizado para caracterizar a formação econômica, social e política brasileira. Sua compreensão é de que o que se considera “subdesenvolvimento” é uma formação capitalista, e não propriamente histórica, o que nos remete à teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Segundo ele: A evidente desigualdade de que se reveste que, para usar a expressão famosa de Trotsky, é não somente desigual mas combinada, é produto antes de uma base capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a conversão da economia pós-anos 1930, que da existência de setores ‘atrasado’ e moderno’. Essa combinação de desigualdades não é original; em qualquer câmbio de sistemas ou de ciclos, ela é, antes, uma presença constante. A originalidade consistiria talvez em dizer que – sem abusar do gosto pelo paradoxo – a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global [...] (OLIVEIRA, 1988, p. 36, grifo do autor)
O
subdesenvolvimento,
geralmente
entendido
como
uma
etapa
do
desenvolvimento do capitalismo, é na verdade um produto do próprio capitalismo, uma vez que as economias latino-americanas pré-industriais foram criadas pelo capitalismo mundial em expansão como reservas de acumulação primitiva de capital para
atender
às
necessidades
dos
países
“avançados”.
Portanto,
o
“subdesenvolvimento” não é apenas um estágio histórico, mas uma formação capitalista. Assinala ainda o autor, que até então toda a questão do desenvolvimento havia sido colocada pelos teóricos como uma oposição entre nações, quando estava
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mais ligada à oposição entre classes sociais no interior de um mesmo país.
ESTADO E REVOLUÇÕES PASSIVAS NO BRASIL
É a partir da Revolução de 1930 que a indústria passa a ser o setor-chave da economia brasileira, embora sua participação na renda nacional só tenha superado a da agricultura em 1956. A partir da década de 1930 um novo padrão de acumulação foi introduzido e, para tanto, foi necessária a reformulação da máquina estatal, bem como uma nova correlação de forças sociais. Para Oliveira (1988), o Estado remodelado não poupou esforços para fazer da empresa industrial o centro do sistema. Seu papel, em resumo, foi criar as bases para a reprodução da acumulação capitalista industrial. Assim, de Vargas a Juscelino Kubitschek, assiste-se à ampliação das funções do Estado, indo de criação de indústrias de base, transferência de recursos para o setor, até interferência no preço do trabalho etc. As leis trabalhistas, por exemplo, para ele, foram fundamentais para a instauração do sistema de acumulação pós-1930, sobretudo devido ao rebaixamento salarial, que possibilitou o incremento do capital e, ainda, permitiu maior concentração de renda. As citadas leis foram funcionais também para a criação de um “exército de reserva”, elemento fundamental para a expansão capitalista. Percebe-se, portanto, que o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil consistiu em uma revolução passiva. O conceito gramsciano significa a modernização “do Estado através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino”. Nela “se modificam as relações sociais fundamentais e novas forças políticas efetivas surgem e se desenvolvem, as quais influenciam indiretamente, com pressão lenta mas incoercível, as forças oficias, que, elas próprias, se modificam sem se dar conta, ou quase” (GRAMSCI, 2011, p. 315-6). Usado inicialmente para pensar o Risorgimento, o conceito foi ampliado pelo próprio Gramsci para explicar outros fenômenos nos quais houve uma combinação de “restauração” com “renovação”. Isto é, temerosas de uma transformação efetiva vinda “de baixo”, as forças conservadoras promovem mudanças “pelo alto”, nas quais incorpora algumas demandas populares como se fossem “concessões” das classes dominantes (COUTINHO, 2008, p. 93).
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Podemos considerar que as revoluções passivas perpassaram toda a história do Brasil, desde a Independência, proclamada pelo filho do rei de Portugal, a despeito de movimentos independentistas anteriores influenciados pelas ideias iluministas das revoluções francesa e americana.3 Tal evento fez do Brasil a única monarquia das Américas em um período em que os demais países americanos saíam da condição de colônias para se tornarem repúblicas. Já a queda da monarquia brasileira consistiu em uma disputa entre grupos divergentes da elite, sendo a Proclamação da República efetuada através de um golpe, episódio que segundo um contemporâneo, “o povo assistiu bestializado” (ARISTIDES LOBO apud SANTOS et al, 2002, p. 208). Durante o século XX, os principais eventos políticos não fugiram à regra. Coutinho (2008) considera que a Revolução de 1930 é o exemplo mais emblemático de revolução passiva em nossa história. Um de seus líderes teria dito: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Nela, setores das oligarquias agrárias, aqueles não ligados diretamente ao mercado externo, deslocam do papel de fração hegemônica no bloco do poder a oligarquia cafeeira, cooptam alguns segmentos da oposição da classe média (que se expressavam no movimento tenentista) e empreendem processos de transformação que irão se consolidar efetivamente a partir de 1937, com a implantação da ditadura do Estado Novo, quando se promove, sob a égide do Estado, um imenso e rápido processo de industrialização pelo alto. Sabemos muito bem que a industrialização brasileira, ou, pelo menos, a política de industrialização, não foi resultado consciente da ação do empresariado. […] O principal protagonista da nossa industrialização foi, desse modo, o próprio Estado, não só através de políticas cambiais e de crédito que beneficiavam a indústria, mas também mediante a criação direta de empresas estatais, sobretudo nos setores energético e siderúrgico. (COUTINHO, 2008, p. 112-3)
O autor atribui as constantes revoluções passivas brasileiras à forte presença do Estado, o que resultou do próprio processo de independência pelo alto. Para ele, “o Brasil conheceu um Estado unificado antes de se tornar efetivamente uma nação” (COUTINHO, 2008, p. 110). A nação brasileira foi construída posteriormente, mas a partir do Estado e não das massas populares. Ora, isso provoca consequências extremamente perversas, como, por exemplo, o fato de que tivemos, desde o início da nossa formação histórica, uma classe dominante que nada tinha a ver com o povo, que não era expressão de movimentos populares, mas que foi imposta ao povo de cima para baixo ou mesmo de fora para dentro e, portanto, não possuía uma efetiva identificação com as questões populares, com as questões nacionais. Para usar a 3 Referimo-nos à Inconfidência Mineira (1788-1789), à Conjuração dos Alfaiates (1798) e à Revolução Pernambucana (1817). Convêm destacar que tais rebeliões estavam mais ligadas a questões regionais do que propriamente à questão nacional, como pondera Fausto (2003), mas tinham em comum o ideal de independência.
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terminologia de Gramsci, isso impediu que nossas “elites”, além de dominantes, fossem também dirigentes. O Estado moderno brasileiro foi quase sempre uma “ditadura sem hegemonia”, ou, para usarmos a terminologia de Florestan Fernandes, uma “autocracia burguesa”. (COUTINHO, 2008, p. 111)
Ianni (1983) foi outro célebre pensador brasileiro que chegou a tais conclusões. Ele observou o caráter autoritário do Estado brasileiro já no processo de Independência. A partir de então, todas as transições são realizadas da mesma forma, de modo a atender aos interesses oligárquicos, burgueses e imperialistas, numa “espécie de contra-revolução burguesa permanente” (IANNI, 1983, p. 11). Para esse autor, as classes subalternas são vistas pelos governantes, classe dominante e por muitos intelectuais conservadores como débeis e incapazes de participar dos processos políticos, motivo pelo qual precisam ser tuteladas. Partem daí os governos autoritários e bonapartistas, que buscaram diluir e desqualificar as lutas da classe trabalhadora. Também está presente na tradição brasileira um discurso de pacto social que surge sempre que a organização dos trabalhadores avança para lutas mais intensas. Chasin faz uma síntese precisa a respeito do Estado burguês brasileiro: Este, filho temporão da história planetária, não nasceu da luta, nem pela luta tem fascínio. De verdade, o que mais o intimida é a própria luta, posto que está entre o temor pelo forte que lhe deu a vida e o terror pelos de baixo que podem vir tomá-la. Toda revolução para ele é temível, toda transformação uma ameaça, até mesmo aquelas que foram próprias de seu gênero. É de uma espécie nova, covarde, para quem toda mudança tem de ser banida. E só admite corrigendas na ordem e pelo alto, aos cochichos em surdina com seus pares. De si para si em rodeio autocrático. Não optou pela autocracia, nem a covardia foi de sua livre escolha, meramente assumiu sua miséria. (CHASIN apud FILHO, 2010, p. 80-1)
Sobre a questão, Fernandes (2006) considera que a revolução burguesa no Brasil foi em essência uma contrarrevolução em relação à tradição ideológica e utópica republicana da burguesia, e também uma contrarrevolução no que tange ao processo histórico brasileiro. Afirma ele: Os conflitos com as classes antagônicas, ao serem estigmatizados, postos “fora de ordem” e sufocados por meios repressivos e violentos, perderam sua conexão coma revolução nacional democrático-burguesa, sendo capitalizados, também por sua vez, pela própria burguesia. Ao “defender a estabilidade da ordem”, portanto, as classes e os estratos de classe burgueses aproveitaram aqueles conflitos para legitimar a transformação da dominação burguesa em uma ditadura de classe preventiva e para privilegiar o seu poder real, nascido dessa mesma dominação de classe, como se ele fosse uma encarnação da ordem “legitimamente estabelecida”. (FERNANDES, 2006, p. 369)
A forma como a classe trabalhadora foi inserida nesse processo repercutiu 64
diretamente no nível da sua consciência. De acordo com o autor: [...] o trabalho livre foi submetido, ao longo da formação e da expansão da ordem social competitiva, a um processo de corrupção secular, o qual começou por negar-lhe condições de solidariedade estamental (sob o antigo regime) e terminou, igualmente, por negar-lhe condições de solidariedade de classes (sob o regime de classes e a República), o que retirou, e ainda hoje retira, do trabalho livre as bases estruturais e dinâmicas de sua elaboração como fator social construtivo (capaz de alimentar e de dar sentido às transformações de baixo para cima da ordem social competitiva). [...] Esse universo, que se manteve largamente, malgrado os vários movimentos reivindicativos e revolucionários da população pobre e da classe operária, não podia dar eficácia econômica, social, legal e política, quer ao contrato, quer à livre competição, quer ao conflito regulado ou legítimo. Guardadas as proporções, o trabalho livre se configura (como ocorreu com o trabalho escravo), do modo mais cínico e brutal, como puro instrumento de espoliação econômica e de acumulação tão intensiva quanto possível de capital. O elemento ou a dimensão humana do trabalho bem como a “paz social” são figuras de retórica, de explícita mistificação burguesa, e quando precisam ir além disso, o mandonismo e o paternalismo tradicionalistas cedem seu lugar à repressão policial e à dissuasão político-militar. (FERNANDES, 2006, p. 232)
Em estudo sobre a consciência de classe, Antunes (1988) identifica uma incapacidade da classe trabalhadora brasileira de transitar do “em si” ao “para si”, o que se deve à incompletude da própria formação da classe, que, assim como a nossa industrialização, nasceu subordinada ao latifúndio. Soma-se a isso o fortalecimento do Estado – que para o autor é uma característica dos países de origem colonial – e a exclusão da participação das classes subalternas nos processos políticos. Nesse contexto, tem-se a repressão tanto política quanto ideológica por parte do Estado às organizações e manifestações coletivas da classe trabalhadora. O robustecimento do Estado consiste, pois, em uma limitação à prática política autônoma do movimento operário, a começar pela política sindical brasileira, com uma clara dimensão controladora. Com efeito, a revolução burguesa à brasileira permitiu o desenvolvimento do capitalismo, todavia, isso não foi acompanhado da criação de bases democráticas sólidas. Ao contrário, desde o início se forjaram sempre maneiras de afastar as classes subalternas dos instrumentos de poder. Na Primeira República, por exemplo, um reduzido grupo de políticos controlava o Estado. Como fator agravante, o sistema eleitoral era manipulado por fraudes e pelo chamado “voto de cabresto”, distorções que, aliás, representavam uma herança do período monárquico (FAUSTO, 2003, p. 262). No pós-1930, período de expansão da industrialização e por isso considerado por Oliveira (1988) como a fase da revolução burguesa, inicia-se o que se 65
convencionou chamar de populismo. Associando o populismo à teoria do bonapartismo, Demier (2013) defende que o Brasil vivenciou um longo período bonapartista, que perdurou de 1930 a 1964. Como se sabe, em 1964 teve início a ditadura militar. Segundo Fernandes (2006), naquele momento existia uma situação potencialmente pré-revolucionária, fruto do aumento dos conflitos sociais que emergiram com as crescentes industrialização e urbanização, e da própria desorientação da dominação burguesa até então. Considerando a já tradicional forma de atuação da burguesia brasileira, agindo sempre numa “contrarrevolução preventiva”, o caminho lógico foi a instauração de um regime abertamente ditatorial. Mas o controle das maiorias por uma minoria não é tarefa fácil, estando a burguesia vulnerável a constantes sustos. Assim, a ditadura estava fadada ao esgotamento. As lutas sociais que emergiram no final dos anos 1970 obrigariam o regime a se abrir. Processou-se, nesse caso, mais uma revolução passiva dentre as muitas da história do país, com a derrota da emenda Dante de Oliveira e realização de eleições indiretas para a presidência.4 Apesar de importantes manifestações populares no período pós-ditadura – a exemplo das lutas da segunda metade dos anos 1980 – num plano mais amplo, até os dias de hoje permanece um alijamento da classe trabalhadora em relação aos instrumentos de poder.
CONCLUSÃO
No Brasil, assim como em outras partes do globo, muito se pensou (e ainda se pensa) em formas de efetivar uma revolução proletária. Merece destaque a estratégia democrática nacional formulada pelo PBC. Por influência do Komintern, o partido adotou o etapismo, que previa uma primeira revolução sob controle da burguesia nacional, a partir da qual seriam eliminados os vestígios feudais, que se acreditava existirem no Brasil, e o capitalismo seria plenamente desenvolvido. Somente depois teria vez uma revolução proletária. Tal concepção desconhecia que no Brasil nunca houve feudalismo e que a burguesia já havia realizado sua própria “revolução” de maneira bem peculiar.
4 Soma-se a isso o fato do primeiro presidente civil ter sido um ex-membro do partido da ditadura, a ARENA, uma vez que com a morte de Tancredo Neves, quem assumiu o cargo foi José Sarney.
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Com base em Florestan Fernandes (2006) e outros autores, vimos que a formação do capitalismo e da dominação burguesa no Brasil se deu de forma sui generis. Inversamente ao ocorrido nos países onde houve a revolução burguesa clássica, aqui essa classe se forjou primeiro no Estado para depois conquistar a hegemonia socioeconômica. Além disso, não houve um real processo de modernização, mas a fusão do novo com o velho, tendo permanecido a mesma sociedade de privilégios do período colonial. Isso fez com que a revolução burguesa à brasileira não fosse acompanhada de bases democráticas sólidas, sendo as camadas populares frequentemente alijadas dos instrumentos de poder e, em muitos casos, cooptadas e usadas a bel prazer dos governantes. Afinal, apesar de importantes movimentos sociais existentes ao longo da história do Brasil, a imensa maioria
dos
trabalhadores
se
constitui
historicamente
como
uma
massa
desorganizada. Assim, a classe trabalhadora esteve tradicionalmente à parte dos processos transitórios. Com efeito, as camadas dominantes sempre conseguiram se sobrepor às contestações populares e efetivar transformações pelo alto, incorporando algumas das demandas dos subalternos mas mantendo a essência da dominação. Foi assim na Independência, realizada pelo filho do rei de Portugal; na Proclamação da República, resultado de conflitos entre as elites; na Revolução de 1930, mais uma vez pactuada pelas elites; na redemocratização pós-Estado Novo, que atendeu a interesses da burguesia; e finalmente na redemocratização pós-regime militar, efetivada pelo alto, sendo o primeiro presidente civil eleito indiretamente a despeito do movimento das Diretas Já. Estes episódios consistem em autênticas revoluções passivas,5 nas quais as elites se colocaram na dianteira temendo a sublevação dos subalternos ou buscaram apassivar movimentos insurgentes que floresciam. Nas três décadas que sucederam o fim da ditadura houve importantes lutas de diversos movimentos organizados da classe trabalhadora. Mas ainda assim, num contexto político mais amplo, a limitada democracia representativa figura no imaginário popular como o máximo a que se pode chegar o poder decisório das classes subalternas.
5 Por outro lado, a instauração do regime militar foi uma autêntica contrarrevolução, na qual não foi incorporada nenhuma demanda popular e o controle dos conflitos sociais se deu pela repressão aberta.
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ESTRATÉGIAS DEFENSIVAS: POSSIBILIDADES DENTRO DA ANÁLISE DOS PERÍODOS DE AFASTAMENTO DE FUNCIONÁRIOS Marco Aurélio Pedrosa de Melo1
RESUMO: O trabalho permanece como alicerce para entender as relações sociais do mundo contemporâneo, o que faz ser preciso novos instrumentos metodológicos e teóricos para esclarecer as causalidades e as consequências dos afastamentos por motivo de doenças ocasionadas pelo serviço e o tratamento dado aos enfermos para restabelecerem a saúde e voltarem ao trabalho. Neste trabalho estaremos voltados para as reflexões teóricas que circundam os campos da sociopatologia e controle e disciplina do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Controle do trabalho. Organização do trabalho. Sociopatologia. ABSTRACT: The work remains a foundation for understanding the social relations of the contemporary world, which makes it necessary to new methodological and theoretical tools to clarify the causalities and the consequences of sick leave because of diseases caused by the service and the treatment of sick to restore health and back to work . This work will be focused on the theoretical reflections that surround the fields of sociopathology and control and discipline of work. KEYWORDS: Job Control. Work organization. Sociopathology. INTRODUÇÃO
A escolha para tal abordagem sobre a sociopatologia, controle do trabalho e organização do trabalho teve como motivação, a tramitação do pedido de afastamento. A observação primeiramente foi pontuando as implicações sobre o trabalhador por motivos de saúde dentro dos órgãos públicos da Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esporte de Goiás - SEDUCE2. Em segundo lugar, quis explanar quais os efeitos de políticas de controle e disciplina do trabalho em situações
1 Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás em nível de Doutorado. Docente da Universidade Estadual de Goiás. Professor do Ensino Médio da Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esporte de Goiás. 2 Na atualidade a Secretaria de Educação engloba dois outros departamentos (Esporte e Cultura), porém os dados e observações que analisamos neste trabalho são relativos a um período anterior a unificação dos órgãos, sendo toda fala referente somente aos trabalhadores da educação entre 2002-2005 e 2011 até dezembro de 2013.
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que o trabalhador tenha possibilidade de afastamento. Além de corroborar com as correntes teóricas da sociologia do trabalho que abordam o tema. Aqui é utilizado para reflexão o banco de dados do controle de licenças médicas concedidas e registradas pela SEDUCE, mesmo sabendo que o cadastro completo dos pedidos esta na Junta Médica que tem os dados do servidor. As informações são processadas e mantidos em sistemas digitais fechados os quais economizam na burocracia, mas agiliza na resposta de liberação ou permanência do trabalhador no serviço. Neste artigo apresento partes das observações sobre os registrados de afastamento do serviço por motivo de saúde, utilizo um referencial teórico do campo da psicopatologia do trabalho e do controle do trabalho na contemporaneidade. Analise e comparativo de estatísticas trazem considerações sobre estratégias defensivas do trabalhador em serviço, além de mostrar que o afastamento pode ser entendido pela situação diacrônica inerente à organização do trabalho, e desenvolver novas defesas que o trabalho apresenta nos estudos da gestão e organização do trabalho.
AFASTAMENTO, LEGISLAÇÃO, SAÚDE E TRABALHO EM GOIÁS
O período abordado3 ao longo da pesquisa tem fundamento em três pontos: 1- lógica de administração do governo do Estado goiano; 2- a existência de dados no relatório de atividades da Superintendência de Direitos e Vantagens, dados organizados em totais de pedidos de afastamento aparados por lei, as quais citamos as que regem as prioridades e direitos dos funcionários públicos do estado de Goiás (lei nº 13.909, de 25 de setembro de 2001) e especificamente os da educação (lei nº 10.460, de 22 de fevereiro de 1988); 3- a variação nos índices de pedidos de afastamento entre os profissionais da educação traz reflexões sobre as possibilidades nas estratégias defensivas que justificariam ou problematizariam o afastamento do trabalhador.
3 Explicamos a escolha dos períodos por se tratar de um governo de políticas neoliberais que nos anos de 2002 à 2005 e 2001 à 2013 se dão concomitantemente no segundo e terceiro mandato, não consecutivos, do governo do Estado goiano tendo o mesmo Governador, respectivamente, porém alterando a organização do Estado somente entre 2008-2010.
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O que podemos ficar inquietos analisando os dados (ver Tabela 1) é que num primeiro período houve um crescimento enorme no número de afastamentos, e nos últimos anos um declínio no quantitativo de pedidos liberadas para afastamentos. Os dados levantados passaram por um refinamento na mensuração, o tipo de registro como citação de licença, aposentadoria indeferida, as licenças por maternidade e acidente de trabalho, readaptação para outras funções, aposentadoria por invalidez e cancelamento da licença, todas estas foram registradas, mas excluídas para análises, como na totalização de registros médicos recebidos e incluídos na totalização dos registros de entrada de nomes de pedidos. Tabela 1 Comparativo no quantitativo geral de afastamentos por motivo de saúde dentro da Secretaria de Estado da Educação de Goiás Períodos
2002 2003 2004 2005
... 2011 2012
2013
Quantitativo de Laudos Médicos 5000 9848 7794 13873 ... 7367 5896 4614 para afastamento Fonte: SEDUC-GO/Superintendência de Direitos e Vantagens, 2007 e 2014. 4
É necessário fazer um comentário do contexto da educação, e principalmente do trabalhador da educação e posteriormente elucidarmos quais os preceitos teóricos que auxiliariam numa analise sobre aspectos da organização do trabalho, as formas de controle e optimização do trabalhador ao não abandonar o trabalho por meio de cobranças e premiações, além de apontar quais discursos que podem surgir dentro de uma exploração no trabalho ou no desenvolvimento da análise sociopatológica, psicopatológica e das estratégias de defesa que podem ser abordas na elucidação das consequências para o trabalhador sobre seu afastamento. O que podemos supor é que existe um aumento na permanência e volta ao trabalho, além de uma possibilidade de estratégia para suportar o trabalho e não sair para afastamento, já que toda justificativa de falta só é compensada com a falta de saúde. A partir deste quadro teremos algumas implicações.
4 É necessário fazer um comentário do contexto da educação, e principalmente do trabalhador da educação e posteriormente elucidarmos quais os preceitos teóricos que auxiliariam numa analise sobre aspectos neoliberais/tayloristas da organização do trabalho, as formas de controle e optimização do trabalhador ao não abandonar o trabalho por meio de cobranças e premiações, além de apontar quais discursos que podem surgir dentro de uma exploração do trabalho ou no desenvolvimento da análise sociopatológica, psicopatológica e das estratégias de defesa que podem ser abordas na elucidação das consequências para o trabalhador sobre seu afastamento.
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IMPLICAÇÕES TEÓRICAS SOBRE O AFASTAMENTO O trabalhador é aquele ser que transforma a natureza, ou seja, o meio exterior sofre a ação do trabalho na produção da mercadoria, assim o sujeito consegue meios materiais para sua subsistência. Karl Marx (2004) mostra que o trabalho não pertence ao trabalhador, pois o trabalhador garante-se na troca de valores do trabalho dentro da sociedade capitalista. Na educação pública o trabalhador tem seu valor, pois parto da ideia de que se o funcionário é necessário e se o Estado tem controle sobre o trabalhador e conseguinte ao trabalho realizado, então os menores índices de afastamento poderão mostrar isto. Ao mesmo tempo diálogo com autores que mostram a precariedade do trabalho, a doença no trabalho e a relação entre organização do trabalho. Enumerar alguns fatores estudados que contribuam para a doença do trabalhador traz à tona a formação de campos de estudo sobre o trabalho, na medida em que a organização e a flexibilização acontecem, estas são decorrente das novas relações sociais produzidas pelos meios de produção das novas vertentes com bases no que apontava Karl Marx. Entre um dos fatores que estressam os profissionais da educação e principalmente os professores é com relação a carga horária de trabalho, este tipo de foco na perda psíquica e física do corpo para suportar o trabalho pode desnudar o lado perverso do trabalho sobre o fisiológico, mas não faz entender o coletivo, que produz processos cognitivos que podem estar representados simbolicamente nas instituições de controle do trabalhador. Esta situação pode ser traduzida pela consequência da alienação do trabalhador. Karl Marx (2004) comenta que um segundo aspecto da alienação no trabalho está “na relação do trabalhador com o ato da produção dentro do trabalho” (idem, p.115) que implica numa atividade como sofrimento, a força como impotência, a criatividade, a energia física e mental que são extirpadas, não pertencentes ao trabalhador, e isso é o que se define como autoalienação. Esta situação indica no trabalho um fator que pode fazer o funcionário se afastar ou não se sentir pertencente ao processo da produção, podendo implicar numa situação psicopatológica na desistência, ou afastamento, ou depressão não sentir a produção como propriedade, parte de sua vida pessoal. Entre as características da alienação Karl Marx (2004) aponta para uma alienação do homem da vida genérica, onde o potencial existente dentro de cada
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homem para produção aliena o homem em relação ao produto e ao trabalho do outro homem. Estas situações implicam que o trabalhador pode desenvolver um potencial para se alienar da vida humana e de outras relações dentro do trabalho. A falta de percepção de pertencimento do produto do trabalho pode explicar a concretização do afastamento do trabalhador, mais adiante veremos fatores que contribuem para este acontecimento. A situação de alienação pode estar na alienação da organização do trabalho que mantém o controle sobre o trabalhador limitando o tempo de afastamento, ou forçando o trabalhador a não se ausentar, mantendo ou agravando a situação da saúde do trabalhador na medida em que o Estado ou empresa se (re)organiza um quadro profissional equilibrado com poucos afastamentos. Karl Marx (2013) sabendo que a produção tem um padrão, um ritmo e que o valor empregado no trabalhador deve ser proporcional ao trabalho realizado, traz o entendimento de que é o capitalista controlador do trabalhador e de suas relações dentro do processo produtivo. O trabalhador não pode desperdiçar nenhum segundo de trabalho, mas o processo produtivo na atualidade está além da visão da época de Karl Marx, pois o autor não previu a sofisticação dos mecanismos psicológicos e administrativos que as empresas utilizam para orientar a necessidade do trabalho e da permanência do trabalhador na produção. Sobre a potencialidade multilateral dos seres humanos na sociedade para ampliar o capital, temos que o homem possui uma infinita adaptabilidade nas diversas condições sociais e culturais para continuar amplificando a produtividade, porém o processo da produção é observado pela gerência, prevista, pré-calculada, experimentada, comunicada, atribuída, ordenada, conferida, inspecionada, registrada durante e através da produção. Ora, isto ocorrendo é fator de inibição para que o sofrimento, ou seja, suplantado na vida do trabalhador, sendo uma estratégia da administração para diminuir ou eliminar as defensivas do trabalhador que surgem pela maior intensidade de trabalho que rompe os limites da capacidade física ou mental, a qual é mantida de uma maneira até contraditória, pois ao mesmo tempo em que se quer o bem do trabalhador, existe a exploração (HELOANI, 2003). As empresas que são administradas nos limites da fragmentação e especialização criam no trabalhador insatisfação e alienação, mesmo com o pósfordismo na administração onde a participação criativa do funcionário não elimina o controle da empresa, mas esta interioriza no trabalhador as regras e normas, pois é 74
orientado a receber os benefícios, distinções ou privilégios caso evite restrições (HELOANI, 2003; LIMA, 1995). Ou seja, ao pensar em afastamento do trabalhador pode entender que o bom é ser dedicado a empresa e superando o sofrimento pessoal. Nas determinações das instituições reguladoras do afastamento do trabalhador, o que pode ser entendido é a necessidade de manter as operações de trabalho, mas para isto ocorrer existem duas vias de sustentação da situação de trabalho como definiu Christopher Dejours5. A primeira problemática é saber até quando a organização do trabalho consegue deixar o trabalhador afastado do serviço. A segunda, diz respeito aos recursos de defesa do trabalhador para suportar o trabalho e não se ausentar (DEJOURS, 1992). Dejours (1192) avalia aquilo que está fora dos limites do controle do trabalhador, pois uma doença depende de outros fatores como condições de vida do sujeito, relacionamento com o trabalho, com os indivíduos pertencentes ao convívio social dentro e fora do trabalho e com o próprio trabalhador para justificar um afastamento por motivo psicopatológico ou até fisiológico, como por exemplo, o estresse (burnout) ou gravidez (apesar de não ser uma doença afasta do serviço a trabalhadora). Lima (1995) nos estudos sobre os mecanismos de defesa entre os gerentes e as novas formas de gestão dos recursos humanos, elenca situações que podem justificar o afastamento, de exemplo temos o mecanismo da evitação fóbica; que tem o isolamento dos indivíduos do grupo onde se trabalha para evitar o conflito. Outra defesa é a capacidade de silenciar as dúvidas na aceitação da ideologia, contradições e paradoxos que são incorporadas pelo trabalhador ao seguir as normas da organização, e esta não é a única usada, a anulação da expressão física, linguística e vocabulário, além de atos que conforma o trabalhador as ideias de consenso e de harmonia de interesses preconizadas pela empresa. O laço de coletividade no trabalho pode ser intensificado com o “saber tácito” do trabalhador faz com que a troca de experiências adquiridas com o tempo eleve o 5 As reflexões sobre afastamento, principalmente relacionadas a doença e trabalho, podem ser analisadas a partir dos estudos que foram se fortalecendo no campo da Psicopatologia do trabalho iniciada em 1940, e continuada nas pesquisas de Christophe Dejours nos anos de 1980. Na análise psicopatológica acredita-se que não se nega a realidade biológica do ser humano e nem afastar o sujeito do cotidiano, pois a qualidade da vida psíquica no trabalho é diretamente ligada aos grupos e a suas condições de existência, interferindo na organização do trabalho, este último campo abordado em estudos recentes.
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controle de qualidade, porém o funcionário ao tentar compartilhar e pensar junto, pode ser repelido a não tratar de assuntos que são importantes para o equilíbrio e dedicação no trabalho. Entre os temas como política salarial; programas de assistência; horário de trabalho; promoções; atividades sindicais; ações disciplinares entre outras podem implicar em sofrimento, pois o funcionário não se vê representado e pode querer se afastar daquilo que não reflete sua proteção (HELOANI, 2003). Dejours ao fazer uma série de pesquisas sobre o que pensam os trabalhadores sobre a doença percebe que a pressão do julgamento dos outro, a não aceitação da doença e a tentativa de controla-la são processos que configuração as táticas de defesa do trabalhador. Esta defesa combinada com a ideologia da vergonha faz o trabalhador produzir esquemas nos discursos e táticas de sobrevivência no trabalho e meio social a fim de conseguir suportar a dor ou negar a doença para não se afastar do trabalho e se sentir inútil (DEJOURS, 1992). Se esta afirmação de Dejours é correta os índices de afastamento de SEDUCGO podem mostrar isto, pois para pedir afastamento os funcionários são avaliados por médicos que ouvem um histórico da doença que comprova a necessidade suspensão de atividades para recuperação, paralisação das atividades ou remoção da atual função. Em qualquer situação o trabalhador utiliza as regras e normas legais para conseguir seus objetivos o coletivo neste momento deve ser um reflexo na organização do trabalho. Este caso deixa duas possibilidades de interpretação, a primeira é que as condições de trabalho pressionaram para que a organização do trabalho tivesse um aumento de afastamentos; a segunda que noutro período posterior teriam uma pressão externa e interna do trabalhador para buscar o afastamento. O afastamento pode ser uma reação ao sofrimento, ao mesmo tempo a permanência no trabalho pode ser uma estratégia defensiva de ocultação da dor frente as exigências da organização do trabalho, da carga horária, do ritmo e frequência do serviço, da aprendizagem-formação-informação que são necessárias ao ofício e da experiência adquirida e acrescenta-se a “adaptação à cultura ou à ideologia da empresa, às exigências do mercado, às relações com os clientes, os particulares ou o público etc” como fatores de sofrimento (DEJOURS, 2000, p.28). O autor aponta que mesmo com o sofrimento as estratégias fazem o trabalhador permanecer no emprego, uma delas é a “operação padrão” ou “operação tartaruga” (greve du zèle) onde a exceção da tarefa é rigorosa e é uma demanda da organização para que o 76
trabalho seja eficaz, neste tempo lento o trabalhador pode se recuperar ou suportar suas atividades. Esta situação de permanência no emprego também pode ser por causada por falhas que existem no sistema ou na organização da instituição onde trabalha, porém estas não sendo identificadas promovem situações incomuns ou incertas que não trazem responsáveis para solucioná-las, deixando o sofrimento e a angústia existir sem prejuízo no desenvolvimento do trabalho. Somado a isto, o meio social do trabalho não coloca em questão a competência e a habilidade do trabalhador para solucionar os problemas, mas é pressionado por colegas executar mal o trabalho que não deve parar e nem o trabalhador (Dejours, 2000, p.30). Na análise de Dejours (1992) o trabalhador afastado pode ter um discurso defensivo de sua situação de enfermidade que o coloca em desvantagem ao coletivo, pois pode ser considerada como vergonhosa e ser justificada, como se fosse preciso se desculpar pela sua condição de enfermo. O interessante é que faz parte do discurso dos órgãos de representação do Estado de que o trabalhador não pode dar prejuízo, ou seja, o servidor não pode parar de trabalhar, mas sim aumentar a rentabilidade da produção ao fazer os trabalhadores serem capazes de atuarem em diversas funções, como pode ser observado no histórico da modernização do trabalho abordado por David Harvey (1999), garantindo a permanência da continuidade do trabalho. A tolerância do sofrimento no trabalho pode ser feita por ações da própria empresa, o reconhecimento pelo desenvolvimento e cumprimento das tarefas pelo trabalhador é uma estratégia que contribui para que traga “um sentimento de alívio, de prazer, às vezes de leveza d’alma ou até de elevação” (DEJOURS, 2000, p.34), inflando o ego e protegendo a saúde mental e afastando de uma crise psicopatológica (idem). Esta tática de conformidade às normas, de consenso, de adesão ao projeto proposto pela empresa, coloca o homem no centro das atenções onde o espírito de equipe, o esforço individual e o sucesso pessoal são mesclados para garantir o ritmo do trabalhador (LIMA, 1995). Interessante é que quanto aos que sofrem por causa da “intensificação do trabalho, por causa do aumento da carga de trabalho e da fadiga, ou ainda por causa da degradação progressiva das relações de trabalho [...], estes encontram muitas dificuldades para reagir coletivamente” (DEJOURS, 2000, p.43), o que temos então é uma vergonha de tornar público o sofrimento gerado pelos novos métodos de gestão de pessoal, pois o que caracteriza a empresa não é a produção, o trabalho em si, mas a sua organização, sua gestão, seu gerenciamento em práticas neoliberais. 77
Ao analisar índices de afastamento, podemos ter duas situações, no primeiro momento de aumento de afastamentos a precarização do trabalho pode aparecer com o sofrimento sendo explicito ao ter o trabalhador se colocando fora da empresa. Mas, ao termos uma diminuição no quantitativo de afastamentos podemos ter que a empresa adotou uma gestão que neutraliza uma mobilização coletiva contra o sofrimento, a dominação e a alienação, ocorrendo uma “estratégia defensiva do silêncio, da cegueira e da surdez” para resistir e deixar “a produção fluir” (DEJOURS, 2000, p.51). Porém, a gestão da empresa deve entender que a mobilização das inteligências, individual e coletiva dos trabalhadores move o processo de trabalho, o que pode ocorrer é uma infração das normas e ordens para superação dos imprevistos com a mobilização subjetiva da inteligência do trabalhador na organização da produção (idem, p.56-57), outros atores abordam as estratégias de gerência para zelar pela manutenção do trabalhador em situações diacrónicas. O que podemos ter então, na opinião de Dejours (1992) é uma crítica a Taylor que ao fazer um operário treinado para seguir um padrão, não escuta o próprio trabalhador que cria estratégias para suportar e realizar de maneira mais produtiva o serviço necessário, a defesa passa da malandragem ao afastamento necessário em momentos de maior cobrança ou incerteza nos rumos das funções e exigências na realização do serviço realizado, desviando a interpretação de outros fatores externos, pois compreender a doença como algo voluntário, da preguiça, ou vadiagem como veremos a frente, ou ser algo que pode se conviver de maneira a evitá-la, domesticála, contê-la, controla-la mas reconhecida pelo próprio trabalhador e empregador que desejam não sofrer (DEJOURS, 2012; LIMA, 1995). Somado a estas constatações podemos ter que o trabalhador não se afasta do trabalho por ter uma autonomia metal para pensar os problemas pessoais, familiares e materiais, além dos próprios conflitos no trabalho, pois os indivíduos são induzidos pela organização do trabalho a superar o desejo ou necessidade do afastamento. (DEJOURS, 2012; LIMA, 1995) A tudo isto a ideologia da vergonha impera pelo silêncio de suportar a doença ou de transformar a falta de emprego ou empecilho para trabalhar como doença. Neste caminho Dejours (1992) define a função desta ideologia defensiva do trabalhador, que procura “manter à distância o risco de afastamento do corpo ao trabalho” (idem, p.34) o que seria evitar a própria doença, morte ou desemprego, porém de maneira
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coerente, necessária, não perceptível e de participação coletiva na aceitação do combate aos conflitos inerentes a organização do trabalho. O impacto do trabalho taylorizado que engendra as divisões entre os indivíduos no trabalho, tem na vivência coletiva do tempo e espaço no local de trabalho, a estrutura da organização do trabalho que confronta cada trabalhador com sua solidão e violências da produtividade (DEJOURS, 1992, p.39). A pressão da competividade e pelo prêmio podem fazer o afastamento ser uma última opção para o trabalhador, em Goiás, a premiação para os trabalhadores professores que ao participarem do Programa Reconhecer com bonificação salarial por desempenhar suas funções (assiduidade e comprovação de planejamento e execução) pode explicar quedas nos índices de afastamento. Da mesma forma que a rigidez da organização do trabalho uniformizado pode optimizar o comum e coletivo em detrimento do individualizado, tal como o taylorismo rege a individualização, podemos ter que os motivos e consequências do afastamento geram estratégias defensivas específicas e personalizadas, desfavorecendo as defesas coletivas (DEJOURS, 1992, p.40).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A organização do trabalho e formação e a gestão dos recursos humanos nas empresas modernas assumem um papel de estimulador do sofrimento e o trabalhador assume o discurso defensivo a fim de garantir a recuperação e o prolongamento do afastamento mesmo que isto prejudique a organização do trabalho. A relação doençatrabalho deve nestes casos assumir um papel de atualizador das demandas do trabalhador e podendo servir de fator para observação e medição das inter-relações produzidas no trabalho realizado na (pós)modernidade. Os sofrimentos que eram compartilhados pelos mecanismos coletivos de defesa, tem o trabalhador com licença para afastamento, isolado. A luta pela permanência da paralisação para recuperação de enfermidades ou acidentes é algo individualizado, pois cada sofrimento do trabalhador e diferenciado do outro. A pressão do sofrimento no trabalho pesa em alguns pontos levantados por Dejours (2000) como a pressão para trabalhar mal, onde o funcionário mesmo sabendo dos erros continua trabalhado e seus colegas ao redor suportam suas falhas para que não
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tenham prejuízos para o grupo, a individualização dos atos faz com que o trabalhador procure se valorizar ao mesmo tempo em que justifica se, numa situação de crise, que sua presença é desnecessário ou menos relevante do que a conservação de sua saúde, para que isto ocorre é necessário obedecer a organização do trabalho através das normas legais que o trabalhador possui. Gaudemar (1991) contribui para estas discussões as quais se registra a disciplina do trabalho, a obediência às normas e regras da empresa confluindo para que as empresas se adequem a novas formas de dominação do trabalhador que não consegue por fatores internos e externos se afastar do processo de produção seja este material ou intelectual como acenou Dejours (2000; 1993) e Lima (1995). A ideia de que a saúde é algo conquistado, tem como base a instabilidade das garantias da realização dos desejos, na medida em que as situações mudam, transformam-se e reconfiguram a mobilidade social do trabalhador para novas melhorias na qualidade de vida, tendo reflexos diretos na saúde. Dentro do campo da saúde mental e trabalho Christophe Dejours aponta para necessidade de olhar as diversas variações das inter-relações no trabalho, sem menosprezar as experiências e dramas a qual o trabalhador passa na sociedade complexa, por isto o método das etnografias e das histórias de experiência em situação de trabalho. Saber sobre o prazer e o sofrimento é algo muito amplo para ser entendido somente nos limites do trabalho, o amparo em outras ciências proporciona uma ligação maior entre o empírico e o teórico. Se num primeiro momento Dejours estava desenvolvendo a Psicopatologia do Trabalho como ferramenta para produção de conhecimento e de teorias, Os métodos estatísticos e a própria psicanálise, em conjunto com outras técnicas, principalmente de gestão, controle e disciplina do trabalho nas organizações públicas e privadas: observações, questionários e entrevistas, contribuíram para melhorar a compreensão das causas sociais e psicológicas para manifestações de patológicas presentes entre os trabalhadores que sofrem por algum tipo de perturbação agravada pelo ambiente físico ou social de trabalho.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEJOURS, Christophe. As estratégias defensivas. In: A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5.ed. São Paulo: Cortez/Oboré, 1992. p. 27– 47.
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“MANIFESTO EM REPÚDIO AO PRECONCEITO CONTRA AS MULHERES BRASILEIRAS EM PORTUGAL”: UMA CRÍTICA AO DISCURSO DO PROGRAMA “CAFÉ CENTRAL” DA RTP Jéssica de Cássia Rossi1 Larissa Maués Pelucio Silva2
RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar como o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” questiona o discurso da personagem “Gina, no programa “Café Central”, da “Rádio e Televisão Portuguesa” (RTP), o qual depreciava as mulheres brasileiras. Para tanto, fundamentamo-nos nas reflexões dos “Estudos Pós-Coloniais” e abordamos pensamentos que envolvem a construção da identidade e da diferença. Utilizamos a pesquisa bibliográfica para levantar informações sobre o Manifesto a fim de analisar a atuação do movimento e apontamos algumas considerações a respeito. PALAVRAS-CHAVE: Estudos Pós-Coloniais. Identidade e Diferença. Mídia Portuguesa. Manifesto. Mulheres Imigrantes Brasileiras em Portugal. ABSTRACT: The goal of this study is to analyze how the "Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal" questions the discourse of the character "Gina”, the program" Café Central ", in the “Rádio e Televisão Portuguesa” (RTP), which depreciated the Brazilian women. Therefore, we base ourselves on the reflections of the "Estudos Pós-Coloniais" and approach thoughts that involving the construction of identity and difference. We use the bibliographic search to gather informations on the Manifesto in order to analyze the performance of motion and point some considerations about. KEYWORDS: Post-Colonial Studies. Identity and Difference. Portuguese media. Manifest. Brazilian immigrant women in Portugal. INTRODUÇÃO
A presença das mulheres imigrantes brasileiras em Portugal tem crescido, significativamente, nas últimas décadas; esse grupo representa 55% da comunidade de imigrantes brasileiros em Portugal (BARRETO, 2011). Entretanto, essas mulheres
1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Unesp/Marília. Docente da Universidade Sagrado Coração (USC), de Bauru. Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru. Contato: jessicacrossi@yahoo.com.br . 2 Orientadora do Trabalho. Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais pela Unesp/Marília e da Unesp/Bauru. Doutora em Ciências Sociais pela UFSCar. Contato: larissapelucio@gmail.com .
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têm enfrentado uma série de obstáculos para se manterem no país; sendo o maior problema enfrentado por essas mulheres a imagem que os portugueses têm delas, a qual está ligada à hipersexualidade3 (VIANNA, 2011; PISCITELLI, 2008) e também a um comportamento exótico4. Alguns veículos midiáticos portugueses tem contribuído com essa situação ao estigmatizar a mulher brasileira (ROSSI, 2011). Por isso, em 2011, surgiu a iniciativa de um grupo de brasileiras denominado “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” a fim de criticar o preconceito disseminado pela mídia portuguesa. Tendo isso em vista, nosso objetivo5 é analisar como esse Manifesto questiona o discurso do programa “Café Central”, da RTP, o qual tinha uma personagem “Gina” que depreciava as mulheres imigrantes brasileiras entre os portugueses. Para tanto, fundamentamo-nos nas reflexões dos “Estudos PósColoniais”, as quais desconstroem as essencializações ocidentais que desvalorizam grupos sociais subalternos, como é o caso das mulheres imigrantes brasileiras em Portugal. Além disso, abordamos reflexões que envolvem a construção da identidade e diferença e utilizamos a pesquisa bibliográfica para levantar informações sobre este manifesto. Por ele, pesquisamos informações em documentos como sites, artigos, etc. a fim de analisar a atuação do movimento. Este Manifesto teve como finalidade romper com o discurso preconceituoso em relação à mulher brasileira no programa “Café Central”, da RTP, na qual a personagem “Gina” depreciava as mulheres brasileiras. Para tanto, uma estudante brasileira de doutorado em Portugal e ativista feminista6 convocou pessoas a aderirem ao movimento pelo Facebook em 2011, que resultou em um grupo de 30 membros, aproximadamente, de mulheres e homens em Portugal e no Brasil. O grupo elaborou 3 A associação das mulheres brasileiras à hiperssexualidade está relacionada aos imaginários coloniais em que as mulheres da colônia são vistas como objetos sexuais. O colonialismo determina as hierarquizações entre homens e mulheres e entre metrópoles e coloniais (GOMES, 2013). Além disso, “[...] contribui diretamente para a produção de estereótipos, a criação de um imaginário colonial relacionado ao erótico e ao exótico e a legitimação da violência contra as mulheres das colônias” (FRANÇA, 2012, p.92). 4 Por não serem portuguesas, a mulheres imigrantes brasileiras são vistas como um grupo distante dos valores portuguesas, são percebidas como pessoas procedentes de outro país, ou seja, de um lugar diferente, estranho, por isso são associadas a um comportamento exótico (CUNHA, 2005; SAID; 1990). 5 Trabalho relacionado à pesquisa de doutorado em andamento “A construção da identidade da mulher imigrante brasileira em Portugal”. O tema do trabalho foi exposto e publicado nos anais do 17º Congresso Brasileiro de Sociologia, de 20 a 23 de julho de 2015, na UFRGS, em Porto Alegre/RS. 6 Na pesquisa bibliográfica realizada não conseguimos identificar a estudante e ativista brasileira que convocou o movimento.
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uma denúncia contra a forma como a mulher brasileira é exotizada e hiperssexualizada pelo programa “Café Central” da RTP.
O documento exigiu
também atitudes das autoridades lusitanas contra as práticas discriminatórias apontadas; foi uma forma de ciberativismo que teve alguma repercussão tanto nos meios de comunicação portugueses como no Brasil (FRANÇA, 2012). Dessa forma, analisamos o movimento em questão e apontamos algumas considerações sobre ele à luz do objetivo do nosso artigo.
ESTUDOS PÓS-COLONIAIS
O saber científico ocidental, por muito tempo, dominou o conhecimento produzido no mundo e, por isso, foi visto como uma forma de saber universalista, neutro e objetivo. Entretanto, é importante salientarmos que todo conhecimento é produzido por um lugar de fala com determinada localização na estrutura de poder. Todo discurso científico é influenciado pelas características contextuais em que é construído, sejam elas de classe, sexuais, gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais. Embora haja essas marcas em todos os processos de enunciação, a Filosofia e as Ciências Ocidentais escondem o lugar de fala daqueles que constroem o seu saber a fim de criar um “mito” que não permite questionar de onde se origina o conhecimento construído e visto como “neutro”. O “ponto zero”, como denomina Grosfoguel (2008), o ponto de vista neutro, que se esconde, ou seja, o qual não tem ponto de vista. Ao esconder o lócus de enunciação, o saber ocidental conseguiu, por meio das expansões coloniais europeias estabelecer “[...] por todo o globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores” (GROSFOGUEL, 2008, p.120). Estabeleceu-se uma “geografia do conhecimento” que determina o que tem validade ou não, que se articula com a divisão internacional do trabalho (a qual estipula o que é o centro e o que é a periferia) e com a hierarquia étnico-racial global (a qual classifica os povos ocidentais e “nãoocidentais”). Desta forma, tudo o que está ligado a Europa, e também aos Estados Unidos, é visto como um lugar “avançado” em detrimento dos países não ocidentais vistos como “atrasados”. Essas diversas hierarquias europeias levadas à América e outros lugares colonizados pelo homem serviram para envolver os povos colonizados em uma 84
atmosfera de dominação que perdura há séculos. Por isso, às vezes, alguns indivíduos que se encontram em alguns locais oprimidos nas relações de poder não assimilam,
automaticamente,
essa
subordinação,
eles
podem
não
pensar
epistemicamente, a partir de um lugar subalterno A partir disso, podemos entender que a influência da ciência ocidental é expressiva e faz com que alguns indivíduos, em casos específicos de exploração, enxerguem sua situação pelo olhar dominante ocidental. Desse modo, essas pessoas não questionam a hierarquia euro-americana, na qual estão envoltas7. Contudo, é importante salientar que também ocorrem adaptações, re-ações e questionamento que colocam em xeque esse saber ocidental como é feito pelos Estudos Pós-Coloniais (conforme apresentamos mais adiante). A colonização europeia, em alguns casos, não terminou quando as nações marginalizadas8 se tornaram “independentes”, quando as administrações coloniais foram extintas. Na verdade, em alguns casos, passamos de uma situação de exploração para outra. A primeira, conhecida como “colonialismo”, é uma forma de dominação direta em que há uma administração colonial presente no lugar dominado, comandado por uma metrópole, como ocorreu com a colonização portuguesa no Brasil, do século XVI ao século XIX. Já a segunda forma de exploração, refere-se a ideia de “colonialidad del poder” cunhado por Quijano no seio do grupo “Modernidad/Coloniadad”9, o termo trata do momento atual que estamos vivendo, uma forma de dominação indireta em que não há presença de uma administração colonial. O termo “coloniadad del poder”: [...] designa um processo fundamental de estruturação do sistema mundo moderno/colonial, que articula os lugares periféricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial global com a inscrição de migrantes do “Terceiro Mundo” na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas globais. Os Estados - nação periféricos e os povos não-europeus vivem hoje sob o regime da “colonialidade global” imposto pelos Estados Unidos, através 7 Reconhecemos que todas as formas de exploração são passíveis de resistência. Dessa forma, nem todos que vivem em situação de opressão se sujeitam ao poder dominante. 8 Podemos entender como “nações marginalizadas” os países que foram colonizados e/ou explorados pelas nações euro-americanas como alguns países da América Latina, África e Ásia e aqueles países cuja economia, política, cultura, etc. não seguem os padrões ocidentais como alguns países do Oriente Médio e de outros continentes. 9 O grupo “Modernidad/Coloniadad” (M/C) é um programa de investigação crítico que surgiu em 1998, composto principalmente por intelectuais principalmente da América Latina como Anibal Quijano (Peru). O grupo elaborou uma série de noções, raciocínios e conceitos que propõe uma renovação de análise nas ciências sociais latino-americanas no século XXI, sendo uma contribuição latinoamericana mais genuína para o pós- colonialismo, o qual dominado por autores das ex-colônias britânicas e francesas em outros continentes (BALLESTRIN, 2013).
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do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Pentágono e da OTAN. As zonas periféricas mantem-se numa situação colonial, ainda que ja não estejam sujeitas a uma administração colonial. (GROSFOGUEL, 2008, p. 126).
Por essa noção, podemos compreender as posições periféricas dos povos não europeus na visão ocidental, podemos, particularmente, entender a situação, conforme propõe o autor, quando fala dos migrantes do “Terceiro Mundo”, das mulheres imigrantes brasileiras em um país como Portugal. A descolonização, ocorrida nos séculos XIX e XX, em algumas nações da América Latina, África e Ásia não nos libertaram da exploração euro-americana, de fato, mudou apenas as formas como as dominações ocorrem. Em alguns casos, ainda “respiramos” hierarquias sexuais, de gênero, espirituais, epistêmicas, econômicas, políticas, linguísticas e raciais comandadas pelo ocidente. Tendo isso em vista, os “Estudos Pós-Coloniais” passaram a pensar a situação das nações marginalizadas, por outra perspectiva que não aquela dominante. Embora reúna uma variedade de contribuições teóricas distintas, tem como característica comum o esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes da modernidade. Essa corrente de pensamentos surgiu por meio da crítica literária, principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra, a partir dos anos 1980, e, após isso, expandiu-se geograficamente para outros lugares e disciplinas. Entre os principais autores, temos situados dentro ou fora da Europa, Homi Bhabha, Edward Said, Gayatri Spivak, Stuart Hall e Paul Giroy. O termo “pós” de pós-colonial não significa simplesmente um “depois”, trata-se de uma operação de reconfiguração do campo discursivo, no qual as relações hierárquicas são significadas. Já o termo “colonial” alude a situações de opressão diversas. Não é fácil delimitar os “Estudos PósColoniais”, pois é uma reflexão que vai além da teoria. As principais perspectivas teóricas que contribuíram com a elaboração dos “Estudos Pós-Coloniais” foram o pósestruturalismo, Estudos Culturais e autores como Foucault, Derrida, Gramsci (com as noções de hegemonia e subalternos). Para essa concepção teórica, em algumas situações ainda estaríamos expostos à alguma forma exploração, como na época da colonização. A diferença é que essa dominação agora é descentralizada e indireta, ela se constitui por meio de
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um discurso que valoriza o ocidente em detrimento dos outros povos “não-ocidentais”. Dessa forma, essa linha de pensamento critica os binarismos existentes na ciência ocidental como faz Edward Said na obra “Orientalismo” (1978), ao abordar a concepção binária de ocidente versus oriente. Para o autor, o ocidente construiu uma visão reducionista sobre o que é o oriente, limitando-o a um lugar exótico, cheio de fantasias (SAID, 1990). Entretanto, Bhabha crítica Said por não ter superado todos os binarismos, pois ele idealiza uma visão binária de mundo ao pensar em ocidente versus oriente. Apesar dessas limitações, utilizamos o pensamento de Said em nossas reflexões porque ao pensar a hegemonia do discurso ocidental sobre os outros discursos, assim como faz Hall, ele nos ajuda a compreender porque grupos minoritários, como as mulheres imigrantes brasileiras em Portugal, são discriminadas. Tendo em vista a perspectiva de Said, Hall (1992) generalizou o caso do orientalismo mostrando que a polaridade entre o ocidente e o “resto” do mundo (West/rest) se encontra na base de constituição das ciências sociais. Na obra “Occidente y el resto discurso y poder” [1992], Hall explica como o discurso ocidental se tornou dominante e essencializou os países periféricos. Segundo o autor, o conceito de ocidente vai muito além da ideia de lugar e geografia; ele refere-se a um tipo de sociedade e desenvolvimento cujos limites são complexos porque envolve nações que se aproximam de um modelo de dominação mundial, significa muito mais do que uma porção geográfica. O termo “ocidental” é o resultado de uma série de processos históricos específicos (econômicos, políticos, sociais e culturais), os quais funcionam como uma ideologia; é um termo que está associado ao que é “moderno”. Hall acredita que, para compreender a ideologia ocidental10, precisamos entender os discursos que mantêm a ideia de ocidente e “não-ocidente”. Para ele, o discurso é uma maneira de representar uma forma particular de conhecimento sobre um tema que tem efeitos reais na pratica. Embora um mesmo discurso possa ser usado por grupos com interesses diferentes e, às vezes, contraditórios, ele não é ideologicamente neutro ou inocente. Los discursos son formas de hablar, pensar o representar una materia o tema en particular. Producen conocimiento significativo acerca de un tema. Es conociminento influye las práticas sociales, y asimismo tiene consecuencias 10 O termo ideologia é bastante discutido e possui uma série de significados nas diferentes áreas do conhecimento, contudo, na perspectiva sociológica, podemos entendê-lo como um conjunto de representações e ideias dos países ocidentais que são tidas como referência para se enxergar o mundo em que vivemos (HALL, 1992).
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y efectos realies. Los discursos no son reducibles a los intereses de clase, pero siempre operan em relacíon al poder – son parte de la manera que el poder circula y es disputado. El cuestionamento de si un discurso es veradero o falso es menos importante que si es efectivo en la prática. Cuando es efectivo – organizar y regular las relaciones de poder (digamos Occidente y el Resto) – es llamado un “régimen de verdad” (HALL, 1992, p.20).
Para Hall, o discurso do “Occidente y el resto” é um regime de verdade que foi produzido entre os séculos XV e XVIII. As fontes de conhecimento comum, arquivos de outros discursos, que contribuíram para a construção desse discurso foram (HALL, 1992): 1. O conhecimento clássico 2. Fontes Religiosas e Bíblicas; 3. Mitologia; 4. Relatos de Viajantes. Nessas representações sobre o “Occidente y el resto”, Hall destaca que a sexualidade foi um elemento poderoso na fantasia construída pelo ocidente sobre o “não-ocidente” e as ideias de inocência e experiência sexual, dominação e submissão sexual, “[...] pusieron em escena uma danza compleja em el discurso de “Occidente y el Resto” (HALL, 1992, p.24). Por essa perspectiva, povos “não-ocidentais”, como é o caso das mulheres imigrantes brasileiras, são exotizados, principalmente em relação ao sexo. Assim, o discurso sobre o “Occidente y el resto” é construído por meio de termos bipolares, os quais geram pares de significantes opostos. Exemplo: bom x mau, nobres x selvagens, nações primitivas x nações civilizadas, etc. Esse discurso persiste, em alguns momentos específicos, até os dias atuais em algumas reflexões científicas da Sociologia Tradicional. Por isso, o objetivo comum dos teóricos póscoloniais é buscar “[...] entender a dominação colonial como cerceamento da resistência através da imposição de uma episteme que torna a fala do subalterno, de antemão, desqualificada e, assim, o silencia. (COSTA, 2006, p.89). Seu papel é desessencializar o discurso binário de “ocidente superior” e o ““não-ocidente inferior”. Enxergar as nações exploradas a partir de outra perspectiva que entenda sua própria complexidade. Contudo, cabe salientar que existem algumas críticas em relação aos “Estudos Pós-Coloniais”. A primeira delas, segundo Shohat, é que: [...] o pós-colonial é politicamente ambivalente porque obscurece as distinções nítidas entre colonizadores e colonizados até aqui associados aos paradigmas do “colonialismo”, do “neocolonialismo” e do “terceiro mundismo” que ele pretende suplantar. Dissolve a política de resistência, uma vez que não propõe uma denominação clara, nem tampouco demanda uma claraoposição. Como os outros pós como os quais se alinha, o pós-colonial funde histórias, temporalidades, e formações raciais distintas em uma mesma categoria universalizante (SHOHAT, 1992, p.1).
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Além disso, de acordo com Dirlik (1994), os intelectuais pós-coloniais estão deslocados do “Terceiro Mundo”, encontram-se na atualidade em universidades americanas prestigiosas, por isso tendem a adotar a linguagem ocidental com pretensões universalizantes. Além disso, diz que essa linha de pensamento não leva em conta a estrutura capitalista do mundo moderno, por isso é um “culturalismo”. E também, Ruth Frankeberg e Lata Mani (1993) alertam que nem todas as nações são pós-coloniais da mesma forma e que a situação pós-colonial não ocorre sozinha, ela é influenciada por outras relações dinâmicas. De fato, não podemos ignorar as limitações dos “Estudos Pós-Coloniais”, há características dessa perspectiva teórica que precisam ser repensadas, pois senão ela corre o risco de conceber um mundo binário e de ser uma teoria universalizante, desconsiderando as diferenças, assim como a visão ocidental, a qual busca criticar. Embora haja essas limitações, pensamos que essa corrente teórica nos ajuda a desconstruir os essencialismos que envolvem o discurso ocidental. Por isso, utilizamo-la em nossas análises a fim de verificar como o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” desconstrói o discurso do programa “Café Central” da RTP em relação à personagem “Gina” que depreciava as mulheres brasileiras entre os portugueses.
IDENTIDADE E DIFERENÇA
Tendo em vista a perspectiva discursiva, usualmente, parece fácil definir o que é identidade11, para muitos refere-se a determinar o que cada um é como: “sou americano”, “sou negro”, etc. Trata-se de algo que remete a si próprio, sem relação alguma com as outras pessoas. Da mesma forma, é entendida a diferença, ela referese ao outro, é oposta à identidade como: “ele é português”, ele é “homossexual”, etc. E também, apresenta-se como uma característica independente; que existe por si só. Na realidade, ambas são relacionais, uma determina a outra; elas são produzidas pela linguagem, dessa forma elas não são naturais, são definidas a todo o momento já que fazem parte das relações sociais e culturais. Por pertencerem a 11 Escolhemos utilizar a perspectiva discursiva para se referir à construção da identidade e da diferença, entretanto reconhecemos que existem outras perspectivas na antropologia que enxergam a construção da identidade e da diferença por outras formas.
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linguagem, se encontram em um sistema de diferenças em que “[...] ser isto significa ‘não ser isto’ e ‘não ser aquilo’ e ‘não ser mais aquilo’ e assim por diante’ (SILVA, 2000, p.74). O signo além de substituir alguma coisa, também apresenta o traço daquilo que ele não é, no caso a diferença e pelo adiamento da presença daquilo que representa.
Dessa maneira, a linguagem não é um sistema seguro, porque a
diferença de um signo em relação a outro e o adiamento da presença da coisa representada tornam o processo de significação indeterminado. Por isso, Silva acredita que “[...] a identidade e a diferença são tão indeterminadas e instáveis quanto a linguagem da qual dependem” (2000, p.75). Ao estar relacionada à linguagem, a identidade e a diferença são instáveis, estão sujeitas as relações de poder existentes em uma sociedade, elas são impostas e disputadas pelos grupos sociais. Mais do que isso, há uma concorrência por recursos valorizados socialmente, por isso os grupos que detêm o poder podem definir a identidade e marcar a diferença. Nesse sentido, elas não são neutras porque pertencem a uma visão específica de um grupo social dominante. Podemos dizer que onde existe diferenciação – ou seja, identidade e diferença – aí está presente o poder. A diferenciação é o processo central pelo qual a identidade e a diferença são produzidas. Há, entretanto, uma série de outros processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela guardam uma estreita relação. São outras tantas marcas de presença do poder: incluir/excluir (“estes pertencem, aqueles não); demarcar fronteiras (“nós” e “eles”); classificar (“bons e maus”; “puros e impuros”; “desenvolvidos e primitivos”; “racionais e irracionais”); normalizar (“nós somos normais; eles são anormais”) (SILVA, 2000, p.81).
Quem detém o poder determina a diferenciação dos grupos sociais, ligadas a processos mais amplos que incluem e excluem, demarcam fronteiras, classificam e normalizam as pessoas. Por essa perspectiva, podemos dizer que, em relação ao nosso objeto de estudo, alguns membros da mídia portuguesa por representar a sociedade portuguesa e, consequentemente os seus valores, apresentam práticas discursivas que influenciam, algumas vezes, na classificação da mulher brasileira na visão lusitana dominante (ROSSI, 2011). Por isso, de alguma forma, alguns meios de comunicação podem ajudar a demarcar fronteiras, fazer distinções entre o que está dentro e o que está fora, “nós” versus “eles”; este último, no caso a mulheres imigrantes brasileiras, as quais se sujeita as relações de poder que envolvem a sociedade portuguesa. Contudo, temos que reconhecer que a mídia portuguesa não 90
é um bloco monolítico, em sua composição há divergências e disputas entre aqueles que apoiam o que é português, assim como aqueles não apoiam12 “Dividir O mundo social entre ‘nós’ e ‘eles’ significa classificar”, cuja forma mais importante, “[...] se estrutura em torno de oposições binárias, isto é, em torno de duas classes polarizadas” (SILVA, 2000, p.77-78). Essa divisão, algumas vezes, não é simétrica13 porque sempre um dos termos é valorizado em detrimento do outro, no caso “nós” (alguns componentes da mídia portuguesa) em relação a “eles” (mulheres imigrantes brasileiras), como ocorre com os binarismos: masculino x feminino, branco x negro, etc. Dessa forma, “Questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam” (IBIDEM). Fixar uma identidade é estabelecer uma norma, a qual é eleita como positiva e usada como parâmetro para se avaliar e hierarquizar as outras identidades. Dessa maneira, ela passa a ser vista como algo natural e nem sequer é vista como uma identidade como ocorre na sociedade ocidental, cuja supremacia é branca, “[...] ‘ser branco’ não é considerada uma identidade étnica ou racial. Num mundo governado pela hegemonia cultural estadunidense, ‘étnica’ é a música ou a comida dos outros países. [...] A força homogeneizadora da identidade “normal” é diretamente proporcional à sua invisibilidade” (IBIDEM, p.78). Por isso, as nações “não-ocidentais” ou a mulheres imigrantes brasileiras, ou seja, para alguns, os “anormais”, constituem as nações ocidentais, a mídia portuguesa, ou seja, o que, para outros, são os “normais”. O que é deixado de fora determina o que está dentro. O outro é sempre um fantasma que incomoda a identidade hegemônica. Tendo isso em vista, os “Estudos Pós-Coloniais” questionam o lugar de fala da ciência ocidental, assim como faz o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” em relação ao programa “Café Central” da RTP, a fim de desconstruir alguns discursos que fixam as identidades desses grupos sociais subalternos, conforme analisamos mais adiante.
12 Podemos citar como exemplo o “Diário Liberdade” o qual é um portal de notícias alternativo sobre Portugal e países lusófonos, com uma proposta contrária os valores dominantes portugueses. Disponível em: http://www.diarioliberdade.org/portugal.html. Acesso 16 fev. 2015. 13 Embora as relações binárias sejam na maioria assimétricas, devemos reconhecer que nem todos os binarismos são hierárquicos.
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PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
Para analisar como o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” questiona o discurso da personagem “Gina” no programa “Café Central” da RTP, utilizamos a pesquisa bibliográfica a fim de levantar informações em sites, artigos, revistas e jornais sobre o movimento em questão. Vale ressaltar que o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” é resultado de um movimento que articulou pessoas por meio de blogs e redes sociais, por isso reúne uma série de informações que foram publicadas sobre o tema. Dessa maneira, à luz dos “Estudos Pós-Coloniais”, analisamos como o movimento questiona o discurso da personagem “Gina” do programa “Café Central” da RTP a fim de desconstruir os essencialismos elaborados pela ciência ocidental que inferioriza grupos sociais “não-ocidentais” como é o caso da mulheres imigrantes brasileiras em Portugal.
MANIFESTO EM REPÚDIO AO PRECONCEITO CONTRA AS MULHERES BRASILEIRAS EM PORTUGAL
As representações do que é ser mulher e brasileira, em algumas situações são bem antigas. Datam do período colonial português no Brasil, em que os colonizadores se aproveitaram da mulher indígena e negra para satisfazer suas necessidades sexuais (FREYRE, 1998). Esse fato histórico relaciona a mulher brasileira ao sexo e à nudez. Essa herança colonial permanece viva na história oficial contada pelos portugueses porque foi um discurso do colonizador em relação ao colonizado sobre as relações entre os dois países e são reforçadas na atualidade por alguns veículos da comunicação social portuguesa como: as diversas novelas brasileiras que são exibidas em Portugal; alguns anúncios publicitários que são promovidas pela Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) em Portugal para incentivar o turismo no Brasil; algumas matérias de jornais, revistas e televisão na mídia portuguesa e internacional, etc. Todos esses “arquivos” são fontes de conhecimento que estão alinhados ao discurso ocidental dominante, por isso são
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conteúdos que tropicalizam14 as brasileiras em torno de elementos como o “à vontade” e o “calor humano”. São enfoques que não abrem espaços para outras abordagens sobre a mulher brasileira (ROSSI, 2011), já que elas são exotizadas e, por isso, representadas como hiperssexualizadas. Uma identidade outra (ou seja, a diferença) definida por quem detém o poder em relação a identidade “normal”, no caso alguns portugueses, ligados a grupos sociais dominantes naquele país. Tendo isso em vista, em 2011, uma ativista feminista e estudante brasileira 15 de doutorado em Portugal convocou pessoas a aderirem, voluntariamente, ao movimento pelo Facebook em 2011. Dessa forma, constituiu-se um grupo de 30 membros aproximadamente, de mulheres e homens em Portugal e no Brasil. Seu objetivo foi denunciar o programa “Café Central”, da “Rádio e Televisão de Portugal” (RTP), que retratou uma personagem brasileira (“Gina”). Trata-se de uma animação gráfica que satirizava questões cotidianas portuguesas, exibida de segunda a sexta feira às 20 h. As situações do programa ocorriam em um café, no qual havia cinco personagens: “Conde”, “Silva”, “Félix”, “Águas” e “Gina”. Esta última “[...] era a única mulher [da série], uma prostituta que falava com sotaque do Brasil e reproduzia todos os estereótipos da imigrante brasileira em Portugal: voz sexy, roupas sensuais, comportamento e discurso hipersexualizado” (FRANÇA, 2012, p.8). Para ilustrar as colocações da autora, apresentamos abaixo uma fala da personagem “Gina” que ilustra essa visão: Oi queridinhos, como correram as férias? Tudo legal? Foram à praia mergulhando e nadando muito no mar? Ou ficaram no quarto mergulhando na piscina do amo erótico feito a dois, ou a três, ou a quatro, né? [...] Se fosse eu a mandar nos destinos do país, seria tudo feito na base do sexo. Esqueçam as privatizações, comigo o négocio são as sexualizações. [...] Faça como eu: tem de pagar IVA, paga com sexo; paga IRS, paga com sexo, ué? Negociações com a Troica? Sexo! (GINA, PROGRAMA CAFÉ CENTRAL, RTP, 2011).
Vale ressaltar também que na série, “Gina” era representada como uma mulher branca e loira. Apesar disso, seu discurso e lugar ocupado no programa, assim como suas características físicas, levaram a um processo de racialização (o qual
14 Nesse ponto, não podemos esquecer do conceito de “lusotropicalismo” de Gilberto Freyre, para o qual a cultura portuguesa tem a habilidade de se adaptar aos países tropicais. Dessa forma, a tropicalização da mulher brasileira tem a influência dessa noção cunhada pelo autor. 15 Conforme dissemos anteriormente, na pesquisa bibliográfica realizada não conseguimos identificar a estudante e ativista brasileira que convocou o movimento
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intersecciona raça e sexualidade) que a transforma em uma mulata sensual e erótica. Essa condição não é atribuída pela cor da pele, mas sim pela nacionalidade ligada ao discurso colonial (FRANÇA, 2012; PISCITELLI, 2008). A condição de mulata está ligada à ideia de raça, a qual é um marcador de diferença fundamental na experiência das mulheres imigrantes brasileiras em Portugal. Por muitos anos, a noção científica de raça legitimou as formas de segregação, opressão e exclusão existentes nas relações sociais e o racismo continua na atualidade, ao reforçar as hierarquias sociais existentes. É relevante entender esse fenômeno como “[...] uma prática social e discursiva que leva ao “[...] processo de racialização ao qual as mulheres brasileiras imigrantes estão submetidas e Portugal (FRANÇA, 2012, p.92). Em alguns países da Europa como Espanha, Itália e Portugal, as mulheres brasileiras são racializadas como mulatas e mestiças (PISCITELLI, 2008). Isso ocorre por conta das essencializações hierarquizadas, as quais os “Estudos Pós-Coloniais” questionam, de “ocidente versus “não-ocidente”” ou de “metrópole versus colônia” (GOMES, 2013), as quais fazem com que as práticas racistas recaiam sobre esse grupo. É uma situação que exotiza e hipersexualiza a mulher brasileira, por isso os manifestantes questionaram tal situação como podemos ver abaixo: Vimos por meio deste, manifestar nosso repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal e exigir que providências sejam tomadas por parte das autoridades competentes. [...] Exigimos, das autoridades competentes, que se faça cumprir a “CEDAW – Convenção para ao Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres”, da qual tanto Portugal, como o Brasil, são signatários. Destacamos, também, o “Memorando de Entendimento entre Brasil e Portugal para a Promoção da Igualdade de Gênero”, no qual consta que estes países estão “Resolvidos a conjugar esforços para avançar na implementação das medidas necessárias para eliminação da discriminação contra a mulher em ambos os países [...] (MANIFESTO, 2011, p.1).
Ademais, o movimento exigiu também atitudes das autoridades lusitanas contra as práticas discriminatórias apontadas. Uma cópia do documento foi enviada à “Secretaria de Políticas para as Mulheres” da Presidência da República do Brasil, a qual enviou um ofício ao “Alto Comissariado para Imigração e Diálogo Intercultural de Portugal” com a cópia do Manifesto a fim de exigir o cumprimento do acordo firmado entre os países por meio do “Memorando para a Promoção da Igualdade de Gênero” (MANIFESTO, 2011). A iniciativa do movimento pela internet foi uma forma de ciberativismo, que é uma “[...] forma de atuação politicamente engajada que se dá através da 94
internet/ciberespaço, buscando fazer frente ao discurso da mídia dominante, de forma livre e independente” (FRANÇA, 2012, p.89). O grupo utilizou também outras ferramentas digitais como blogues, Twitter, petições on-line, mailing lists e Orkut conforme o movimento foi se estruturando. É um movimento, cujos membros têm algum grau de conscientização sobre a situação de estigmatização das brasileiras em Portugal. Por isso, vejamos, segundo o Manifesto, as implicações que a personagem “Gina” provoca na construção da imagem das mulheres imigrantes brasileiras em Portugal: Trata-se da personagem “Gina”, do Programa de Animação “Café Central” da RTP (Rádio Televisão Portuguesa). A personagem é a única mulher do programa, a qual, devido ao forte sotaque brasileiro, quer representar a mulher brasileira imigrante em Portugal. A personagem é retratada como prostituta e maníaca sexual, alvo dos personagens masculinos do programa. Trata-se de um desrespeito às mulheres brasileiras, que pode ser considerado racismo, pois inferioriza, essencializa e estigmatiza essas mulheres por supostas características fenotípicas, comportamentais e culturais comuns. (MANIFESTO, 2011, p.1).
No exemplo em questão, podemos notar a influência do programa “Café Central” da RTP na construção do discurso em relação à mulher brasileira na sociedade lusitana denunciado pelo “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal”. Por representar de alguma forma o poder, alguns membros da mídia portuguesa ajudam a estabelecer o que é a diferença em relação à identidade dominante portuguesa. Nessa perspectiva, a “identidade outra” vista como “étnica” é a brasileira quando se refere ao “forte sotaque brasileiro”, já que o português de Portugal é tido como padrão
e o português brasileiro visto como
desviante; quando a personagem “Gina” é vista como “prostituta e maníaca sexual”, pois como nos mostrou Hall (1992), o ocidente, representado nesta situação por alguns componentes da mídia portuguesa, associa os povos “não-ocidentais” (no caso a mulheres imigrantes brasileiras) à sexualidade, etc. Percebemos também o questionamento do discurso dominante pelo Manifesto, quando o movimento alega que: Trata-se de um desrespeito a todas as mulheres, pois ironiza/escarnece sua sexualidade, sua possibilidade de exercer uma sexualidade livre, o que pode ser considerado machismo e sexismo. Trata-se, ainda, de um desrespeito às profissionais do sexo, pois ironiza o seu trabalho, transformando-o em símbolo de deboche/piada/anedota, sendo que não é um trabalho
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criminalizado em Portugal, portanto, é um direito exercê-lo livre de estigmas (IBIDEM).
A partir dos “Estudos Pós-Coloniais”, vemos que o movimento questiona o lugar de fala do programa da RTP e mostra que essas associações não são naturais, há um discurso com efeitos práticos que são dessencializados pelo movimento. Ainda mais porque essa classificação cria uma “identidade outra”, ou seja, a diferença que é estigmatizada, levando a uma forma de racismo; discursos binários que autores como Hall (1992) buscam descontruir. Esse discurso discriminatório acerca das mulheres imigrantes brasileiras está relacionado às hierarquias sexuais, de gênero, de raça e geográficas impostas pela ciência e filosofia ocidental (GROSFOGUEL, 2008). Os indivíduos, movimentos e associações que encabeçam o Manifesto tem consciência da condição subalterna à qual países “não-ocidentais” como o Brasil estão submetidos. Essa consciência pode ser percebida também no trecho abaixo: O estigma da hipersexualidade remonta aos imaginários coloniais que construíam as mulheres das colônias como objetos sexuais, escravas sexuais, e marcadas por uma sexualidade exótica e bizarra. Cita-se, por exemplo, a triste experiência da sul-africana Saartjie Baartman, exposta na Europa, no século XIX, como símbolo de uma sexualidade anormal. Em Portugal, esses imaginários coloniais, infelizmente, ainda são reproduzidos pela comunicação social (MANIFESTO, 2011, p.1).
O movimento questiona imaginários coloniais como o da hiperssexualidade 16 construídos pelas hierarquias ocidentais que escondem o lugar de fala euroamericano por trás de um conhecimento neutro, objetivo e universal. A história de Saartjie Baartman, citado pelo movimento, refere-se a uma mulher negra que nasceu em 1789 na África do Sul, que foi “convidada”, aos 21 anos para trabalhar na Inglaterra por um homem como dançarina. Lá, ela passa a se apresentar publicamente em uma série de espetáculos circenses com movimentos animalizados. Em Paris, em 1814, o corpo de Saartjie passou a ser objeto de interesse científico. Por isso, o anatomista George Curvier a “comprou” de seu antigo proprietário e desse modo, Curvier e sua equipe “[...] observavam, desenhavam, escreviam tratados sobre, modelavam, modelevam em cera, escrutinavam cada detalhe e sua anatomia” (HALL, 1997,
16 Conforme apontamos anteriormente, a associação das mulheres brasileiras à hiperssexualidade está relacionada ao imaginário colonial em que as mulheres da colônia são vistas como objetos sexuais pelo colonizador (FRANÇA, 2012).
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p.265). Pouco tempo depois, Saartjie morre e seu corpo passa a ser exibido no “Museu do Homem em Paris”, somente em 2002 os restos mortais dela retornaram à África do Sul. A história de Saartjie Baartman mostra a tentativa dos europeus em provar, de acordo com Damasceno (2008, p.1), “[...] a inferioridade dos povos não europeus”. Para eles, era importante desqualificar o “Outro” a fim de que o homem branco e europeu fosse visto como um ser superior frente aos demais povos, principalmente aqueles colonizados. O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução (BHABA, 1998, p.111).
É um exemplo de hierarquias, não somente geográficas, mas também de gênero e raça, já que Saartjie pertencia a um grupo “não-ocidental”, ou seja, era sulafricana; mulher, ou seja, não era homem; e ainda era negra, ou seja, não era branca. Ela é o exemplo extremo da “diferença” em uma sociedade cuja identidade dominante é ocidental, masculina e branca. Dessa maneira, o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” desvela o lócus de enunciação em questão e coloca-o em xeque a fim de desmitificar um saber que associa a mulher brasileira à hiperssexualidade e à exoticidade que é reproduzido por alguns veículos midiáticos portugueses como o programa “Café Central” da RTP. A iniciativa do Manifesto teve repercussão em vários jornais televisivos e impressos, tanto em Portugal como no Brasil. Entre eles podemos citar: jornal “Público” em 29/09/2011, jornal “Destaka” em 20/09/2011, revista “Valor Econômico” em 11/11/2011 e revista “Carta Capital” em 26/09/2011. Além disso, a própria emissora RTP discutiu em seu programa “A voz do cidadão”, em 12/11/2011 a denúncia apresentada pelo Manifesto. Já, no ano seguinte, em 2012, a personagem “Gina” foi retirada do elenco da nova temporada do programa, embora não tenha havido nenhuma notificação relacionando a saída da personagem com o Manifesto, o movimento acredita que isso seja resultante da pressão social gerada. Vale ressaltar também que a petição on-line elaborada pelo movimento teve a adesão de mil assinaturas de pessoas, de vinte movimentos sociais e associações de Portugal e do Brasil, de sete representantes do “Conselho de Brasileiros no
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Exterior” e, por fim, contou com a ajuda de mais vinte organizações sociais e comunitárias de ambos os países (algumas delas são: “Acção para a Justiça e Paz” (AJPaz) de Portugal; “Articulação de Mulheres Negras Brasileiras”; “União Brasileira de Mulheres”; “Casa do Brasil de Lisboa”, “Coordenação Portuguesa da Marcha Mundial das Mulheres”; “coordenação Rio Grande do Sul”, etc.) (FRANÇA, 2012). Já em 2012, a coordenação do Manifesto recebeu um comunicado oficial da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Brasil, em que a instituição informou que o governo português formalizou uma denúncia contra o Programa Café Central da RTP à Entidade Reguladora para a Comunicação Social portuguesa. Esta entidade não tomou nenhuma providência em relação ao programa por julgar que não houve “atentados contra a dignidade humana e igualdade de gênero ou a promoção do racismo, da discriminação e da xenofobia” (MANIFESTO, 2012, p.1). Apesar disso, o movimento acredita que a resposta dos órgãos brasileiros e portugueses seja uma vitória, pois trata-se do reconhecimento oficial da importância do Manifesto. A formação do movimento em questão foi uma iniciativa pontual para questionar um programa de televisão específico, o Café Central da RTP, o qual tinha a personagem, Gina, que depreciava as mulheres brasileiras e não em relação ao tratamento dispensado pela mídia portuguesa como um todo. Em 2012, após o Núcleo Central do movimento considerar que o Manifesto tenha cumprido sua finalidade, o movimento se desarticulou e este Núcleo acredita que discussões provocadas tenham ajudado a problematizar o tema em questão (FRANÇA, 2012). Embora as formas de opressão e sexualização das mulheres imigrantes brasileiras em Portugal sejam diversas e continuem na atualidade, acreditamos que o “Manifesto em Repúdio ao Preconceito contra as Mulheres Brasileiras em Portugal” tenha alcançado seus objetivos. Isso por conta da saída da personagem “Gina” do programa “Café Central” da RTP, por ter gerado um intenso debate acerca de um tema desconhecido por muitos e por ter dado destaque a iniciativa de um grupo de mulheres imigrantes brasileiras em Portugal, ou seja, foi possível elaborar um discurso por um grupo “não-ocidental”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Por meio dos “Estudos Pós-Coloniais”, vimos que é possível refletir sobre as nações ““não-ocidentais”” por outras perspectivas que não seja aquela dominante, no caso a visão ocidental. Para esta linha teórica, temos que desessencializar as hierarquias sociais e binarismos existentes que acometem grupos “não-ocidentais”, como o “Manifesto em Repúdio ao Preconceito contra as Mulheres Brasileiras em Portugal” buscou fazer em relação ao programa “Café Central”, da RTP, que depreciava as mulheres brasileiras em Portugal ao associá-las à hiperssexualidade e à um comportamento exótico. O movimento surgiu a partir de uma articulação espontânea de um grupo de 30 pessoas por meio do Facebook em 2011 para denunciar o discurso da personagem em questão. Pela pesquisa bibliográfica realizada, analisamos como esse fenômeno questiona o discurso da personagem “Gina”. Para tanto, apresentamos um exemplo da fala da personagem, alguns trechos do Manifesto e analisamos como os argumentos do movimento dessencializam as hierarquias sociais e binarismos que as mulheres brasileiras são relacionadas pelo programa “Café Central” da RTP à luz dos “Estudos Pós-Coloniais”. Na mesma linha de pensamento desta teoria, o Manifesto critica o discurso da personagem “Gina”, dessencializado-o, mostrando que associar as mulheres imigrantes brasileiras à exoticidade e à hiperssexualidade não é algo natural. É uma cristalização construída por aqueles que detêm o poder (a identidade padrão), no caso alguns membros da mídia portuguesa, em relação a outros grupos sociais (o outro, a diferença), como é o caso das mulheres imigrantes brasileiras na sociedade lusitana, vistas como algo estranho, exótico e abjeto, ou seja, étnico. Apontamos também que o Manifesto obteve resultados expressivos como: uma ampla discussão do assunto em diversos veículos de comunicação social portuguesa; a retirada da personagem “Gina” do programa “Café Central” da RTP em 2012; a adesão de pessoas, movimentos sociais e associações de Portugal e do Brasil à petição on-line elaborada pelo movimento; e o reconhecimento oficial das autoridades brasileiras e portuguesas em relação ao problema, etc. Embora o movimento tenha sido pontual e terminado em 2012, consideramos que suas contribuições para a problematização sobre a questão, os debates provocados e a conscientização entre os grupos envolvidos em Portugal, tenham sido consideráveis. Contudo, não acreditamos que o mesmo tenha resolvido o problema que as mulheres imigrantes brasileiras enfrentam na atualidade em Portugal.
Isso porque outras
formas de discriminação e hiperssexualização desse grupo ainda persistem na 99
atualidade. À luz dos “Estudos Pós-Coloniais” percebemos que ele o “Manifesto em repúdio ao preconceito contra as mulheres brasileiras em Portugal” questiona o lugar de enunciação do programa “Café Central” da RTP e nos ajudam a pensar as mulheres imigrantes brasileiras em Portugal por outras perspectivas que não a ocidental. Esperamos que o presente trabalho estimule novas reflexões sobre o tema a fim de que se possam elaborar outras perspectivas sobre o objeto de estudo em questão.
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"OS HOMENS ATUAM E AS MULHERES APARECEM" MARCOS PORNOGRÁFICOS E PORNOGRAFIA
MAINSTREAM Carolina Ribeiro Pátaro1 RESUMO: Este artigo analisa a pornografia mainstream a partir de três marcos históricos: o filme Garganta Profunda, a premiação AVN Awards e a revista Playboy. Buscando elucidar a episteme das conceituações, relacionando genealogicamente com a ideia de como os discursos são construídos, pautados com aparência de fixidez na sociedade. Estudar pornografia é parte de um importante processo de falar mais abertamente sobre sexualidade, mirando em quebrar preconceitos e desfazer prénoções muito arraigadas. PALAVRAS-CHAVE: Pornografia Mainstream. Mídias. Genealogia dos Discursos. ABSTRACT: This article analysis the mainstream pornography from three historical marks: the movie Deep Throat, AVN Awards and Playboy magazine. Trying to elucidate the episteme of conceituations, genealogicaly relating to the idea of how the discourses are built, driven with an aparent fixity in society. To study pornography is part of an important proccess of talking more openly about sexuality, looking to break prejudices and undo very rooted prenotions. KEYWORDS: Mainstream Pornography. Medias. Discurses Genealogy. INTRODUÇÃO
A partir da pesquisa feita no mestrado em Sociologia, este artigo visa traçar um panorama geral da pornografia, retomando alguns importantes marcos históricos, busco compreender quais os debates e expressões da pautam a categoria mainstream de pornografia altamente comercializada. Estudar pornografia é parte de um importante processo de falar mais abertamente sobre sexualidade, mirando em quebrar preconceitos e desfazer pré-noções muito arraigadas. Com um mercado bilionário, falar sobre as mídias pornográficas é uma questão importante para a Sociologia e para a compreensão de fenômenos sociais tão impactantes e com tamanha adesão das pessoas, como o pornô.
1 Atualmente doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, onde pesquisa pornoterrorismo. Mestra em Sociologia pela mesma universidade, pesquisou pornografia feminista. Mestra, UFPR. E-mail: carola.ribp@gmail.com
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Para atingir esses objetivos, farei uma revisão sobre a pornografia mainstream, começando por compreender o próprio termo “pornografia”, ressaltando momentos marcantes, como o AVN Awards, o filme Garganta Profunda e a Playboy, analisando e problematizando o cenário de produção de um pornô voltado para o olhar masculino. O que essas produções nos mostram e o que elas marcam? São rupturas? Continuidades? Ou um pouco dos dois? Neste artigo buscarei, portanto, compreender como se formaram os discursos, elucidando a episteme das conceituações, e relacionando genealogicamente como esses discursos são construídos e fixados na sociedade. Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade (FOUCAULT, 2008, p. 172).
1 PORNOGRAFIA
Conceituar pornografia é um desafio por si só. Não há um consenso entre pesquisadores sobre uma definição que seja a definitiva, não há um conceito que compreenda todos os tipos de estudos sobre pornografia, pois esse é um campo muito amplo, com uma infinidade de possíveis abordagens. Por isso, fez-se necessário pesquisar a terminologia pornografia, fazendo algo similar a uma arqueologia do saber, cavando significados, buscando fontes, compreendendo como outros estudiosos trabalharam tal conceito, para então sintetizar qual definição perpassa este texto. A palavra pornografia vem da grafia grega pornographos, que significa "escritos sobre prostitutas". De acordo com Leite Jr. "a pornografia visando excitação sexual de seu público como única motivação e um fim em si mesma é um conceito recente, datando apenas do final do século XIX." (LEITE JR, 2006, p. 45). Antes disso, a pornografia era ligada à vida boêmia e à política, sendo usada para retratar a vida na noite e lutar contra os poderes instituídos: Na França do século XVIII, textos hoje considerados distintos em áreas como política, filosofia e pornografia eram genericamente chamados de "livros filosóficos". Em comum, tinham potencial de subversão da ordem estabelecida e a proibição de sua reprodução e venda – o que tornava estes itens mais atraentes, difíceis de encontrar e, principalmente, caros. (LEITE JR, 2006, p. 48).
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Assim, todo o caráter mutável visto dentro da história da pornografia faz com que seja um desafio ainda maior conceitua-la. Hoje a ideia de uma pornografia ligada à prostituição e a um mundo libertino está cada vez mais sendo desvinculada, buscando atrair públicos mais diversos. Então, embora o significado seja muito importante para pautar do que falamos e de onde falamos quando dizemos a palavra pornografia, ela pouco é útil para uma definição conceitual sociológica dentro dessa pesquisa. Procurando o termo pornografia nos dicionários encontramos: s.f. Tudo o que se relaciona à devassidão sexual; obscenidade, licenciosidade; indecência. / Caráter imoral de publicações, gravuras, pinturas, cenas, gestos, linguagem. (Dicionário On Line de Português). 1 estudo da prostituição; 2 coleção de pinturas ou gravuras obscenas; 3 característica do que fere o pudor (numa publicação, num filme etc.); obscenidade, indecência, licenciosidade; 4 qualquer coisa feita com o intuito de ser pornográfico, de explorar o sexo tratado de maneira chula, como atrativo (p.ex., revistas, fotografias, filmes etc.); 5 violação ao pudor, ao recato, à reserva, socialmente exigidos em matéria sexual; indecência, libertinagem, imoralidade (Houaiss, 2013).
O conceito de pornografia veiculado nos dois maiores dicionários brasileiros associa a pornografia diretamente à devassidão, à imoralidade, à indecência, há um pânico moral que envolve a pornografia, colaborando somente para compreensão de que as definições da língua para a pornografia ainda veiculam um forte sentido moral no significado das palavras, demonstrando assim o quanto o discurso político-social sobre pornografia é moral e não é possível usarmos nenhuma dessas definições dentro das pesquisas. Vale ressaltar ainda que Houaiss sugere como sinônimo de pornografia a palavra indecência. Desse modo, aponta Foucault: “não são elementos perturbadores que, superpondo-se à sua forma pura, neutra, intemporal e silenciosa, a reprimiriam e fariam falar em seu lugar um discurso mascarado, mas sim elementos formadores”. (FOUCAULT, 2008, p. 75) Buscando então definições menos morais e menos condenatórias, seguimos para o meio acadêmico, buscando em três pesquisadores importantes, os termos que eles utilizaram para definir pornografia: Maria Filomena Gregori, Jorge Leite Junior e Beatriz Preciado. Em outros trabalhos usei a definição de Gregori que, como a autora aponta, é uma das definições mais difundidas entre os estudiosos que trabalham com pornografia: "expressões escritas ou visões que apresentam, sob a forma realista, o
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comportamento genital ou sexual com a intenção deliberada de violar tabus morais e sociais" (GREGORI, 2003, p. 94). Contudo, tal definição passou a me incomodar, pois não acredito que hoje haja realmente a intenção deliberada de violar tabus sociais em todas as pornografias. Embora a pornografia nasça com essa ideia clara, atualmente é feita mais visando o lucro, podendo causar violações da ordem moral, mas não vejo que seja algo feito com esse objetivo. Além disso, não quero associar a simples retratação sexual como algo que viola tabus, pois a pornografia é algo prescritivo. Buscando no livro de Jorge Leite Junior, encontrei diversas partes de uma possível definição de pornografia espalhadas pelos capítulos. O autor vai trazendo o conceito conforme o texto demanda, por isso selecionei alguns trechos que pareceram mais determinantes para uma definição. Para o autor, a pornografia retrata a sexualidade visando à excitação erótica, totalmente ligada ao que é considerado obsceno, e constrói uma produção padronizada para cada tipo de público. Além disso, considera que "a pornografia é comumente considerada como aquilo que transforma o sexo em produto de consumo, está ligada ao mundo da prostituição e visa à excitação dos apetites mais ‘desregrados’ e ‘imorais’." (LEITE JR., 2006, p.32). Elucidando nessa definição que o fato da pornografia violar tabus é algo muito ligado à nossa cultura de separar apetites saudáveis, bons, dos anormais, impuros e depravados. Por fim, Beatriz Preciado deteve-se durante alguns parágrafos definindo pornografia, em seu livro Testo Younqui: 1 A pornografia é um dispositivo virtual (literário, audiovisual, cibernético) masturbatório. A pornografia como indústria cinematográfica tem como objetivo a masturbação planetária multimídia. O que caracteriza a imagem pornográfica é sua capacidade de estimular, independente da vontade do espectador, os mecanismos bioquímicos e musculares que regem a produção do prazer. (...). 2 A pornografia é a sexualidade transformada em espetáculo, em virtualidade, em informação digital, ou, dito de outro modo, em representação pública, onde "pública" implica direta ou indiretamente comercializável. Uma representação adquire o status de pornografia quando põe em voga o "tornar-se público" daquilo que se supõe como privado. Há aqui outra definição possível de pornografia: dispositivo de publicação do privado. (...) 3 A pornografia é teletecnomasturbação. (...) 4 A pornografia reúne as mesmas características de qualquer outro espetáculo da indústria cultural: virtuosidade, possibilidade de reprodução técnica (...). A única diferença, nesse momento, é seu status underground. (PRECIADO, 2008, p. 170-171, tradução nossa).
A definição de Preciado é a que mais se aproxima do que esta pesquisa retrata, contudo, ainda não a compreende plenamente. Por isso, como definição final
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optamos por uma mescla das ideias dos autores aqui retratados, pautando a seguinte definição: A pornografia é um dispositivo virtual (literário, audiovisual, cibernético) masturbatório, é a sexualidade transformada em espetáculo, em representação pública, onde "pública" implica direta ou indiretamente comercializável, ou seja, um dispositivo de publicização do privado, apresentando comportamento genital e sexual explicito. (PRECIADO, 2008; LEITE JR, 2006; GREGORI, 2003). 2 A PROFUNDIDADE DOS PROBLEMAS E A PORNOGRAFIA CULT
Não há uma data definida para o início da pornografia, sequer podemos encontrar uma definição rica e profunda que sirva para qualquer trabalho ou contexto do que exatamente seja a pornografia, como foi explicitado no tópico anterior. Contudo, podemos trazer à tona alguns fatos que se relacionam com o objeto desta pesquisa, preocupando-nos com a relevância de cada um deles e buscando contextualizá-los no lugar e no tempo. Surgindo em um contexto político diferente do qual os filmes pornôs se desenvolveram, a pornografia surge nas cortes e nos diferentes meios intelectuais e retratava a vida boemia e na noite através das palavras de homens que viviam da escrita, da poesia, das ideias, considerados à margem da sociedade, junto às prostitutas. Era essa vida, diferente da vida nobre e da alta classe, que a pornografia e seus escritores retratavam. Diferente desse momento inicial da pornografia, e também afastado de seu caráter de "escritos sobre prostitutas", embora ainda ligada aos homens como definidores das palavras e, neste momento, das imagens, foi lançado o filme Garganta Profunda em 1972, dirigido por Gerard Damiano. O filme, por diversas razões que apontaremos a seguir, mudou o cenário da pornografia até então conhecida e colocou novas formas de se filmar o sexo e também um novo estilo de se fazer sexo: o tipo garganta profunda. Hoje, pelos diversos sites de compartilhamentos de filmes pornográficos pela internet, como Red Tube ou X Videos, dentre outros, há uma sessão de vídeos dedicados ao estilo garganta profunda e, também, ao estilo lançado no filme Garganta Profunda: o cumshot ou moneyshot, onde o homem ejacula diretamente para a câmera.
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Contudo, não são só esses primeiros apontamentos que foram inovações lançadas pelo diretor Gerard Damiano a nível internacional. Encontramos, também, uma nova forma de retratar o sexo e uma nova era de atrizes e atores pornôs, os atualmente conhecidos como pornstars ou estrelas do pornô. Garganta Profunda é o primeiro filme que traz a ideia de que é preciso contar histórias para se ter bons filmes, não necessariamente ter um enredo, mas é preciso que se siga uma sequência lógica, o que raramente acontecia em filmes pornôs anteriores. Garganta Profunda aponta também que é preciso ter belos atores e atrizes, e é preciso saber filmar, não necessariamente saber as técnicas, mas Damiano preocupa-se com o que vai comunicar ao seu público. A história contada em Garganta Profunda é de uma mulher chamada Linda, interpretada pela atriz Linda Lovelace, que não sentia prazer em suas relações sexuais e descobre, através do sexo oral, que possui o clitóris, retratado como o centro do prazer das mulheres, em sua garganta. O slogan em uma das capas do filme diz: "How far does a girl have to go to untangle her tingle?", uma tradução possível seria: Até onde uma garota tem que ir para libertar seu ardor (no sentido de excitação e tesão). Assim, para a personagem Linda, quanto mais profunda fosse a penetração do pênis durante o sexo oral mais ela sentia prazer. Essa não foi só a marca do filme, mas é também uma marca de um modo de fazer sexo, que não é só um sexo oral, mas um sexo oral extremamente profundo. O filme tem trilha sonora e uma história estruturada e consistente, características inexistentes nos filmes pornôs do mesmo período. Foi filmado em 6 dias, com gastos próximos de 25 mil dólares e cerca de 60 minutos de duração. Garganta Profunda é um dos filmes mais conhecidos dentro do cinema pornô e estima-se que faturou mais de 600 milhões de dólares até hoje. Garganta Profunda gerou um abalo social para o período, os Estados Unidos acabavam de sair da Guerra do Vietnã, havia uma crise grave do petróleo abalando a economia mundial, a revolução sexual acontecia no mundo todo e desdobrava-se em novidades para os corpos e as performances, especialmente para mulheres, os movimentos sociais mantinham suas vozes firmes e diversas conquistas já estavam sendo sentidas, como, por exemplo, o aborto que havia sido legalizado até o sexto mês de gravidez em 1973. Nesse período, a Guerra Fria também mantinha acordos políticos tênues e a sensação de medo constante, além da influência do consumismo nos países capitalistas em contraposição e oposição aos países comunistas. Nixon 108
renuncia ao cargo em 1974 e em 1976 lança-se um novo paradigma dos filmes pornôs apoiado nas novas tecnologias. Além disso, "o filme marca o primeiro encontro do público com o hard core "fálico", uma conjugação sem precedentes de estrutura narrativa de longa-metragem, sexo explicito" (ABREU, 1996). Garganta Profunda é o primeiro, não só a trazer o elemento do falo como central para a pornografia, mas a inserir a ejaculação direta para a câmera (cumshot), colocando o prazer do homem como o ápice do prazer e a verdadeira imagem da potência. Os críticos agraciaram as novidades do Garganta Profunda, revelando também as habilidades de Linda Lovelace que, antes trabalhou como engolidora de espadas, e trouxe realismo para as cenas de alta dificuldade ao fazer a penetração oral profunda, como ressalta Gerard Damiano: Eu escrevi o filme para a Linda. Se não fosse ela, uh, e a habilidade particular que ela desenvolveu, não haveria nenhum 'Garganta Profunda'. Naquela época, meus parceiros disseram que o título não era muito bom, mas eu estava irredutível: eu disse que ia se tornar uma palavra comum. E tornouse. (DAMIANO in EBERT, 1974, s. p., tradução livre).
Linda foi mais um dos marcos dentro do mundo pornô, ela é considerada a primeira pornstar, uma das mulheres mais lindas e com técnicas sexuais inovadoras, como podemos ver na fala acima de Damiano. Para além dos elogios tecidos a Lovelace, a relação da atriz com os diretores não é das melhores até hoje. A vida e carreira de Linda Lovelace é uma polêmica. Anos depois de fazer diversos filmes pornôs, a atriz escreveu um livro no qual declarava os abusos sofridos pelo marido e que havia sido obrigada a estrelar Garganta Profunda. Com essas declarações, Lovelace começou uma guerra contra a indústria pornô e participou de diversos levantes políticos nos Estados Unidos. Abraçada pelas militantes antipornografia, Lovelace se tornou a cara do movimento das feministas antipornô, além de ser uma das porta-vozes do que elas acreditavam ser a realidade desse mundo da pornografia. Como feminista e trabalhando com temática de gênero e sexualidade, não posso ignorar, como outros autores o fizeram, a história polêmica por trás de Lovelace e de seu trabalho nos filmes pornôs. Gloria Steinem, em seu livro Memórias da Transgressão (1997), relata a história de Lovelave. Steinem diz que Linda foi obrigada a participar dos filmes e que tentou fugir de casa por três vezes, mas o marido sempre a encontrava. Hoje temos o filme Lovelace, que embora não foi sucesso de bilheteria, 109
teve participação direta da ex-atriz que ajudou a produzir o roteiro que conta parte de sua história. No livro, Steinem conta, a partir do conhecimento que tem sobre a história de Lovelace, que a atriz foi estuprada por diversas vezes, inclusive um estupro coletivo, quando chorou e apanhou severamente do marido, pois ele não recebeu o dinheiro do grupo que fez sexo com Lovelace. A atriz foi obrigada a fazer sexo, também, com um cachorro. A história foi contestada por tabloides, jornalistas, pesquisadores e pela própria produção de Garganta Profunda, pois diziam que ela não deveria ter passado tantos anos em silêncio se realmente tivesse sofrido esses abusos. Todos contestavam dizendo que a atriz teve muitas chances de dizer o que passava, mas optou por se calar por muitos anos e só resolveu falar quando precisava voltar a ter publicidade e dinheiro. Claramente, Lovelace passou anos e anos no silêncio, contudo, não cabe a mim, muito menos no contexto deste artigo, descartar a história de abuso de outra mulher, além disso, o filme é realmente impressionante e tem cenas chocantes, como relata a história a seguir: No auge da popularidade de Garganta profunda, por exemplo, Nora Ephron escreveu um artigo sobre ter ido assisti-lo. Ela estava decidida a não reagir como "estas feministas enlouquecidas que saem por aí criando caso, fazendo críticas políticas sobre filmes não políticos". Não obstante, ela ficou apavorada diante da cena em que um consolo oco, de vidro, é inserido na vagina de Linda Lovelace e em seguida enchido com Coca-Cola — bebida através de um canudo cirúrgico. ("Eu não conseguia parar de pensar", ela confessou, "no que aconteceria se o vidro quebrasse.") Sentindo raiva e humilhação, seus amigos homens lhe disseram que ela estava tendo uma reação excessiva e que a cena da Coca Cola era "hilariante". Como redatora, conseguiu uma entrevista telefônica com Linda Lovelace. "Eu não tenho inibição alguma em relação ao sexo. Eu só espero que todo mundo que for ver o filme... perca um pouco de suas inibições." E assim Nora escreveu um artigo que supunha que Linda fosse rainha pornô por vontade própria e que vivesse feliz, ganhando "US$250 por semana... e participação na bilheteria". Ela descreveu sua reação como sendo de uma "feminista puritana que perdera o senso de humor ao assistir um filminho de sacanagem". O que ela não sabia (e como poderia qualquer entrevistador saber?) era que Linda, mais tarde, incluiria esta resposta na lista das muitas ditadas por Chuck Traynor para ocasiões jornalísticas como aquela. (STEINEM, 1997, p. 312).
Até hoje a polêmica continua, entre dizerem que Linda é uma mentirosa, ou uma verdadeira vítima da violência, Garganta profunda, quase como se separado de todos esses problemas, é classificado como cult, junto a diversos outros filmes com roteiros imaginativos e muitas cenas de sexo inovadoras que foram lançados depois
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dele. Depois do impacto da estreia, Garganta Profunda foi exibido até mesmo em cinemas hollywoodianos e foi o primeiro filme pornô que obteve um comentário do jornal New York Times (SILVA, 2012). O termo cult é associado a todos os impactos sociais que o filme promoveu, mas não as polêmicas que causou. Esse termo cult usado para classificar Garganta Profunda e filmes afins em nada se relaciona com o pornô alternativo conhecido hoje. Pornôs cult foram grandes sucessos de venda, tornaram-se do conhecimento de todos, foram comentados pelos principais jornais, criaram atrizes popstars. Em contraposição, o pornô alternativo que está surgindo segue um movimento contrário, fugindo das grandes mídias, buscando outros espaços para retratar novas formas de prazer, ao mesmo tempo trazendo à tona novas formas de representações. A maior parte da pornografia considerada cult foi assim nomeada pela Mídia, já a pornografia alternativa surge como um movimento consciente de novas narrativas. Os filmes cult foram feitos sem se propor a quebrar padrões normativos, o que é parte constituinte dos pornôs alternativos, pelo contrário, foram os pornôs cult que colocaram os primeiros padrões para o cinema pornográfico mainstream. Mais a frente veremos a definição mais utilizada para o pornô alternativo e esse contraponto ficará mais claro. 3 AVN AWARDS E A NORMATIZAÇÃO “GLAMOROSA” DA INDÚSTRIA PORNOGRÁFICA Hoje a indústria mainstream de pornografia possui uma espécie de “Oscar” que leva os atores, atrizes, diretores/as a uma grande noite de gala com premiações na cidade de Las Vegas (EUA) no AVN Awards. A partir da criação dessa premiação há um novo olhar dos meios de comunicação e do público para com a pornografia mainstream, pois ela passa a ficar envolta em uma legitimidade e credibilidade graças ao espaço sério e legítimo marcado pelo "Oscar" de produção cinematográfica, uma espécie de autolegitimação desse gênero de filmes. O AVN surgiu em 1984 e buscou em todos esses anos premiar os melhores e maiores nomes da indústria pornô, tornando-se uma referência mundial de qualidade. Em 2006, a atriz Savanna Samson, consagrada pelo filme "O Novo Diabo na Carne de Miss Jones" (2005), um remake do filme lançado em 1973 "O Diabo Na Carne De Miss Jones" que seguia a mesma linha de Garganta Profunda, hoje considerado um filme cult, teve no corpo de Savanna Samson, e através da direção 111
de Paul Thomas, a sexta sequência altamente premiada pelo AVN Awards. Ao ganhar o prêmio de melhor atriz pornô Savanna sobe ao palco e diz: "A maior parte da minha família está bem envergonhada com o que eu faço"2, com isso levantou não só as vozes das críticas conservadoras, mas também agradeceu ao apoio do público que lhe dava força para seguir com sua carreira. Savanna se tornou um marco do AVN Awards, demonstrando também em sua fala que ser atriz pornô não é simples e não é fácil, como se dizia. Os conflitos estavam sempre em torno da carreira e as polêmicas eram inúmeras. Contanto tais polêmicas não impediram a atriz que continuou uma carreira bem-sucedida de diversos filmes e outros prêmios dentro do grande “Oscar” da pornografia. Uma coisa importante a ressaltarmos sobre o AVN Awards são as categorias de premiação, pois, embora mudem e se adaptem aos anos, mantém sua forma de divisões muito similar. Um dos mais recentes prêmios inclusos no AVN Awards foi o "melhor lançamento em 3D" que gerou um grande assunto na mídia, pois se creditava aos filmes 3D a crise em que as grandes indústrias de pornografia estavam inseridas desde o advento dos sites da Internet. Embora os números do lucro na indústria não sejam muito precisos, houve uma inegável redução nos ganhos e um leve aumento nos custos de produção. A Revista Galileu traz um bom panorama desse momento: Antes da crise econômica que perdurou até o ano passado, a indústria pornô dos EUA era avaliada em US$ 6 trilhões. Hoje, a produção de novos títulos caiu pela metade. Algumas companhias menores quebraram, e as grandes encontram dificuldade para continuar. A primeira reação dos magnatas do cinema adulto foi aquela que todo magnata tem quando as coisas não vão bem: bateram na porta do Congresso dos EUA e pediram um socorro de US$ 5 bilhões. A grana não veio, mas aí os empresários do setor lembraram que movimentam uma indústria sempre à frente das demais na hora de testar novas tecnologias. Foi assim com as fitas VHS, o cd-rom, o DVD e a internet. Os sobreviventes apostam que dá para seguir adiante. E, para isso, vão atrás de novas tecnologias. (COLLETTA, 2013, s. p., grifo nosso).
Dessas novas tecnologias, o uso de 3D ganhou destaque, embora seja um processo caro, dá um bom retorno financeiro às produtoras com a proposta de trazer maior realismo aos filmes. Além da categoria de premiação aos filmes 3D, atentamos para as diversas categorias que, em 30 de janeiro de 2013, somavam mais de 142 categorias de
2 Disponível em: <http://www.smh.com.au/news/film/the-oscars-ofporn/2006/01/09/1136655116166.html>. Acesso em 12 abr. 2013.
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premiação3, dentre elas algumas como melhor produto para homens e melhor produto para mulheres. Contudo queremos ressaltar o grandioso número de categorias que premiam corpos ou performances de mulheres. Das 142 categorias 37 são voltadas a premiação de performance ou corpo feminino, incluindo as categorias que premiam transexuais, pois todas são mulherestrans. Dentro dessas 37 categorias não incluímos alguns estilos de câmera que normalmente são voltados somente para o corpo da mulher como POV (Point of View), categoria na qual o narrador é quem segura a câmera, dando uma experiência ao espectador de ver o sexo em primeira pessoa. Usualmente são os homens narradores que seguram as câmeras, contudo seria necessária uma pesquisa mais aprofundada para caracterizar tal categoria, como este não é o foco deste texto preferimos não incluir tal categoria. Também é interessante observar que dentre as premiações, diversas são voltadas para premiar o corpo feminino, como melhores seios grandes e melhor bumbum grande, ambas premiadas em duas diferentes categorias: lançamentos e séries. Outra premiação interessante é a "corpo preferido", premiando qual o melhor corpo na pornografia, é usual que se premiem somente corpos femininos. Ressaltamos que não há categorias como "melhor peitoral" ou "melhor pênis", as categorias que premiam os homens são mais relacionadas a suas performances do que a seus corpos. Além disso, não há uma categoria para premiar o melhor pornô gay, ou sexo entre homens, nem tampouco, uma categoria sobre pornô lésbico, mas sim a categoria girl-on-girl (garota-com-garota), que vai dar um significado diferente às cenas, não será um olhar homossexual que deseja, mas sim um olhar heterossexual de fetiche e fantasia. Um último ponto a se considerar são os prêmios étnicos, nessas categorias são premiadas asiáticas, negras e latinas, tais mulheres tem um prêmio especial, voltado só para seu público, mas não existe uma categoria para mulheres brancas, o que podemos presumir é que na categoria "melhor atriz" está implícita a etnia "branca". Coloca-se, assim, as mulheres brancas como o padrão, a norma e as outras como exóticas, étnicas, diferenciadas. Como aponta Gilroy: "os racismos que codificam a biologia em termos culturais têm sido facilmente introduzidos em novas
3 Lista das categorias em apêndice A
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variantes que circunscrevem o corpo numa ordem disciplinar e codificam a particularidade cultural em práticas corporais." (GILROY, 2001, p. 19) Embora, aparentemente diverso, o mundo da pornografia pressupõe que as pessoas brancas são a norma, e as outras são externos, são fetiches, estão além da chave do normal, reforçando o que o imaginário social tem como regra. A cor era um definidor claro de status social, contudo hoje, através de uma pretensa democracia racial essas fronteiras ficaram mais nubladas, mas continuam a ser reproduzidas, através de simbolismos e preconceitos. Gilroy ressalta, também, que as diferenças de gênero e raça estão profundamente ligadas, as identidades raciais são assumidas a partir do que entendemos por “identidades de gênero profundamente assumidas, ideias particulares sobre sexualidade e uma convicção tenaz de que experimentar o conflito entre homens e mulheres num tom específico é, em si mesmo, expressivo de diferença racial.” (GILROY, 2001). O AVN Awards é um dos importantes marcos pornográficos, pois é nele que se dá visibilidade aos pornstars, que se premia sites e filmes, que se criam normas e se recriam status, pela simples observação das divisões entre os prêmios podemos ver o caráter claro de uma pornografia feita para um olhar masculino, heterossexual, branco e heteronormativo, que só considera "o outro" como algo à parte, além, fora de si mesmo.
4 PLAYBOY E ARQUITETURA DO HOMEM MODERNO
O mundo da pornografia é muito amplo, e não é só o AVN Awards que reitera e normatiza corpos e ideias. Um dos principais veículos de uma sociedade que incita ao sexo, corpo, desejo e uma vontade constante de sentir prazer, é o nascimento da revista Playboy, que também é considerada um grande marco pornográfico. Se o Garganta Profunda e os outros filmes que se relacionam a esse são a passagem de uma pornografia escondida para uma pornografia mainstream, sendo comentada pela mídia e passando nos cinemas dos Estados Unidos, a Playboy e todo seu estilo de vida é a passagem do pornô para seu contato íntimo, direito e, consequentemente, sua inclusão definitiva como parte da cultura de massa. É a Playboy, e a figura de Hugh Hefner, que colocam novas relações entre pornografia,
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sexo, gênero e os corpos com os espaços em que esses circulavam (PRECIADO, 2010). Talvez o que se escondia por trás da ameaça da "arquitetura playboy" era a possibilidade de uma "revolução", já não óptica, mas sim política e sexual, que modificaria não somente formas de ver, mas também modos de segmentar e habitar o espaço, assim como afetos e formas de produção do prazer, pondo em questão tanto a ordem espacial viril e heterossexual dominante durante a guerra fria, assim como a figura masculina heroica do arquiteto moderno. (PRECIADO, 2010, p. 20, tradução nossa).
Embora a primeira revista Playboy tenha surgido anteriormente ao Garganta Profunda, em 1953, os dois movimentos foram similares pornograficamente, levando o que se considerava obscuro, ilegal, estranho e exterior a um público amplo, ao debate popular, trazendo novas formas de se ver e de se fazer o sexo, de se compreender o prazer, nublando os limites entre o privado e o público, pois um sexo privado, passa, a partir da Playboy, a ser vendido em bancas de jornais de acesso massivo, e uma performance sexual antes só vista dentro das quatro paredes passa aos cinemas populares e às graças de críticos da mídia mainstream, com o Garganta Profunda. A revista Playboy, como muito bem aponta Preciado, é feita para um tipo de homem: masculino, urbano, heterossexual, mas que é diferente do homem branco que cuidava da moral e dos bons costumes como o discurso do Estado delimitava. Esse era um novo modelo de homem que sabia desfrutar dos prazeres da vida, contudo, esse homem playboy desfruta de seus prazeres dentro de sua casa, é um homem que desfruta de seu espaço privado, é um homem solteiro, urbano e caseiro (PRECIADO, 2010). O masculinismo heterossexual do interior promovido pela Playboy ataca as segregações espaciais que regiam a vida social nos Estados Unidos durante a guerra fria. Quando Playboy defende a ocupação masculina do espaço doméstico não pretende encaminhar o solteiro a uma reclusão forçada em uma casa suburbana, até esse momento espaço tradicionalmente feminino, mas anuncia a criação de um novo espaço radicalmente oposto do que vivia a família nuclear americana. (PRECIADO, 2010, p.35).
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FIGURA 4 - MANSÃO PLAYBOY E O ESTILO URBANO
FONTE: Site The Inquirist (2011).
Nas imagens acima podemos ver partes da mansão Playboy e o seu dono, Hugh Hefner, que quase nunca sai da Mansão, somente quando necessário para ir até Hollywood, colocando que os prazeres que o novo homem da Playboy aproveita em sua vida são diferentes do homem trabalhador, pai de família, esse é o novo modelo de exercício da masculinidade, Hefner propõe um homem que não está a procura de casamento, mas sim é um construtor de sua própria vida e do seu prazer. Mas nesses contextos de novas propostas de masculinidade, de um homem urbano e caseiro, onde estavam as mulheres? Quais os lugares que elas habitavam e por onde poderiam circular? Vale lembrar que parte central do sucesso da Playboy são as belas mulheres expostas, normalmente com roupas curtas, cabelos loiros, corpos bronzeados e torneados, chamadas de "coelhinhas da Playboy", que são mulheres contratadas para usar as roupas de Coelhinhas, típicas da marca, e são como "adornos" aos eventos promovidos pela Playboy, tanto na mansão, quanto no hotel ou boate. Hefner costuma posar em suas fotos junto às suas coelhinhas, sempre no centro, sendo desejado por elas, como vemos na FIGURA 2.
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FIGURA 5 - HUGH HEFNER E AS COELHINHAS DA PLAYBOY
FONTE: Blog Simão Pessoa (2011) e Site Nino Carvalho (sem data)
As fotos expressam muito bem o papel das coelhinhas, como parte do cenário de Hugh Hefner e desse novo solteiro urbano, cercado também da beleza das mulheres, mas tirando do espaço doméstico as figuras das mães, avós e esposas. Em 1953 Hefner deixa claro que a Playboy não é uma revista para famílias ou para mulheres: Queremos deixar bem claro, desde o começo, que não somos uma revista para a família. Se você é a irmã de alguém, ou sua esposa, ou sogra, por favor, nos coloque nas mãos do homem da sua vida e volte a leitura de Ladies Home Companion4. (HEFNER apud PRECIADO, 2010, p. 61, tradução nossa).
Além da Coelhinha, Preciado aponta para uma ressignificação da "garota da porta ao lado" ou “garota da vizinhança” (girl next door), pautando que haviam belas mulheres, possíveis "deusas sexuais", prontas para serem descobertas em seus trabalhos, na sua vizinhança, nos mais diversos espaços de sociabilidade. Hefner transformou sua secretária na "Garota do Mês" em 1955, trazendo um novo conceito de mulher, tirando-a do privado e a trazendo para a vida pública. Essa nova mulher cria também um novo conceito: playmate, nas quais suas imagens eram trabalhadas de forma semelhante as das pin ups, mas em cores, muitas vezes vibrantes, com as mulheres nem sempre nuas, mas sempre em poses sensuais, com roupas provocantes, partes do corpo à mostra, dando uma ideia de dimensão quase "surreal" para as imagens, mas trazendo uma "garota da porta ao lado" como a estrela. As playmates são diferentes das Coelhinhas, elas são escolhidas para participar da
4 A revista a qual Hefner se refere foi uma das revistas voltadas para o público feminino mais importantes da época, com assuntos variados como crochê, limpeza da casa, louças, culinária e moda.
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revista e fazer ensaios sensuais, consideradas como modelos, tentam, a partir da participação na revista, lançar uma carreira em diferentes ramos midiáticos. Na década de 50, conhecida como os Anos Dourados, quando a playboy foi lançada, os Estados Unidos passavam por um período de mudanças intensas, a Guerra Fria atingia seu ápice com a assinatura do Pacto de Varsóvia e o golpe revolucionário de Fidel Castro em Cuba. Estados Unidos serviam como padrão de vida capitalista para o resto dos países e o american way of life era vendido para o mundo todo mostrando a oposição entre países capitalistas e países socialistas. Uma mudança importante no modo de viver e de se relacionar aconteceu também com a popularização massiva da televisão em cores e com isso também a popularização das propagandas, das vendas de produtos que conversavam com o modo de vida dos telespectadores. O jornal The New York Times, publicou, no começo da década, uma reportagem falando o quanto a televisão estava mudando a forma que as pessoas se conectavam e se relacionavam, não só entre elas, mas com o lazer, a política, a cultura e tudo mais. As relações entre homens e mulheres estavam muito ligadas ao casamento, com as donas de casa perfeitas, cozinhando em suas cozinhas perfeitas com seus filhos perfeitos, enquanto os maridos saiam de casa para seus empregos e voltavam para um lar acolhedor e bem arrumado. A mensagem para as mulheres e seus desejos era reiterada, elas deviam ser donas de casa e mães. O pós-guerra trouxe um retrocesso sensível para as mulheres que haviam ocupado postos de trabalho enquanto os homens lutavam na guerra. Quando a guerra acabou, o Estado e a sociedade diziam voltem para suas casas, para suas famílias que este é o seu lugar. Como aponta Adelman: As mulheres, nas décadas de 1940 e 1950, eram verdadeiras “outsiders” das instituições acadêmicas e literárias. Talvez nada mostre isto tão claramente quanto a história da escritora e poeta Sylvia Plath, cuja vida ilustra a trágica luta de uma mulher brilhante que - apenas uma década antes do começo de uma revolução na relação entre as mulheres e a produção cultural nas “democracias ocidentais” - ainda não conseguia seu devido reconhecimento. (ADELMAN, 2011, s. p.).
Hefner se dizia defensor da liberdade sexual e apoiava a inclusão de negros na sociedade norte americana, contudo, não foi compreendido por todos dessa forma. Alguns diziam que era imoral, outros diziam que era uma liberdade sexual fajuta, que
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servia só aos homens e não as mulheres, enquanto algumas coelhinhas e playmates falavam que encontraram a liberdade depois de trabalhar para Playboy. Dentro de todo esse contexto, Playboy foi um marco pornográfico, a qual Preciado dedicou todo um livro para compreender sua influência dentro de um cenário macro. Para o objetivo deste artigo apontamos apenas os principais momentos da revista e de seu criador Hefner como parte central para compreendermos os contextos em que os debates entre pornografia e feminismo se desenvolveram, além de compreendermos um cenário econômico e social classificado por Preciado como farmacopornográfico. Playboy mantem a excitação-controle-frustração de forma muito nítida em sua revista, pois as mulheres nuas nem sempre mostram todo o corpo e controlam a excitação do leitor com a mensagem: você não pode passar daqui. Um marco na sociedade farmacopornográfica de Beatriz Preciado, uma mudança nos parâmetros da sexualidade e um escândalo para a época, na qual um dos ápices da sexualidade eram Elvis Presley e Marilyn Monroe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se levarmos em conta o que aponta Beatriz Preciado, a sociedade farmacopornográfica vai muito além de um mercado, já se aliou a contemporaneidade como modo de vida e de escolhas, muito mais do que uma venda de produtos, ela é criadora de subjetividades e identidades. A sociedade farmacopornográfica impulsiona um mercado que, embora dito decadente, tem uma movimentação constante de sites, filmes e novidades, sejam elas feministas, alternativas ou mainstream. Refletir sobre as performances e expressões de gênero são também formas de buscar saídas para problemas como esse que são aparentemente intransponíveis. Dessa forma, aponto a urgência de se pesquisar mais temas relacionados a este mercado tão rentável e polêmico, ignorar os feitos da pornografia não é uma forma nem de combatê-la, nem de incentivá-la. Ao tentarmos ignorar a existência de um fenômeno social enquanto possível objeto de estudos, ligado diretamente a diversas outras problemáticas, como sexualidade, gênero, violência, trabalho, mercado, identidades, representações, entre muitos outros, não estamos deixando de
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incentivar uma temática polêmica, mas estamos, na verdade, deixando de conhecer os potenciais de compreensão dentro da lógica existente no fato. A pornografia é, dessa forma, uma linguagem que fala sobre sexo a partir de imagens, ou seja, uma proposta sem limitações, pois a técnica para se construir um filme, por exemplo, é possível de ser feita em qualquer formato, seja com milhões de dólares e tecnologia 3D ou com uma câmera de celular, totalmente amador, fora do circuito das grandes produtoras. A indústria proporciona uma imensa variedade de formatos e de possibilidades de acesso. Então, todos os tipos de pornografias são possíveis e podem ser encontradas em qualquer lugar do mundo virtual e a sexualidade se mostra dinâmica e diversa no mundo real.
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RIBEIRO P., C. Tchau Tchau Velho Pornozão?: a pornografia feminista de Erika Lust como narrativa reflexiva da sexualidade. Curitiba. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal do Paraná. 2014. SILVA, P. H. "Garganta Profunda", o pornô que virou cult completa 40 anos (2012). In: Hoje em dia. Disponível em: <http://www.hojeemdia.com.br/pophd/2.678/garganta-profunda-o-porno-que-virou-cult-completa-40-anos-1.16158>. Acesso em: 12 abr. 2013. STEINEM, G. A Verdadeira Linda Lovelace. In: Memórias de transgressão: momentos da história da mulher no século XX. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos tempos, 1997.
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EM BUSCA DA SEGURANÇA: TECNOLOGIAS CONTRA O MEDO Diego Coletti Oliva1 RESUMO: Neste artigo, baseado na pesquisa realizada para obtenção do título de Mestre em Sociologia, busco trazer para a pauta a discussão sobre o atual contexto da segurança pública, apontando para a disseminação de uma cultura do medo e da busca incessante por uma sensação de segurança que se apoia sobre a percepção de que securização urbana, por meio de novas técnicas e tecnologias voltadas para a segurança, pode oferecer a solução para as questões da violência e criminalidade urbanas. Busco aqui questionar esse determinismo tecnológico, ressaltando os limites dessa perspectiva, que apontam para uma discussão maior sobre os temas aqui apresentados. PALAVRAS-CHAVE: Segurança Pública. Cultura do Medo. Securização Urbana. Vigilância. Determinismo Tecnológico. ABSTRACT: In this article, based on the research conducted for obtaining a Master's degree in Sociology, I seek to bring to the agenda the discussion about the current context of public safety, pointing to the spreading of a culture of fear and an incessant search for a sense of security based on the perception that urban securization, through new techniques and technologies for security, can provide the solution to the issues of urban violence and crime. I seek here question this technological determinism, highlighting the limits of this perspective, pointing to a further discussion of the topics presented. KEYWORDS: Public Safety. Culture of Fear. Urban Securization. Surveillance. Technological Determinism. INTRODUÇÃO
Vivemos hoje sob um constante sentimento de insegurança e convivemos diariamente com a presença processos de militarização e securização urbana empreendidos como uma forma de combater o medo e buscar a segurança. Seja por meio de circuitos fechados de TV ou através de cadastros biométricos e outras tecnologias de reconhecimento e monitoramento, a presença das câmeras e outros dispositivos de vigilância eletrônica se tornaram cada vez mais comuns, não apenas em ambientes privados, mas também em espaços de circulação pública e sob a tutela do Estado. 1
Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: oliva.dc@gmail.com.
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Nesse contexto, a questão da vigilância e do monitoramento destinado à segurança conecta-se a importantes transformações e a diferentes temas pesquisados nas Ciências Sociais. O foco acerca da presença destas tecnologias em espaços de circulação pública abre diversas possibilidades de análise, seja por sua proximidade com o campo da Sociologia da tecnologia, seja pela interface que se pode estabelecer com áreas como o Urbanismo, a Arquitetura e a Geografia Urbana ou temas como violência, criminalidade e segurança. Reconhecendo, assim, que este artigo não é de forma alguma um trabalho pioneiro no que diz respeito ao arcabouço teórico mobilizado para interpretar os dados coletados sobre o tema e chegar às conclusões aqui expostas, busco aqui construir uma breve síntese do contexto que envolve a pesquisa realizada para a dissertação de Mestrado em Sociologia Entre olhos eletrônicos e olhares humanos (OLIVA, 2013) e das principais contribuições teóricas que a literatura sobre o tema ofereceu para a realização da mesma e para a compreensão da instalação e expansão dos sistemas de videomonitoramento urbano, tanto na cidade de Curitiba, onde a pesquisa tomou lugar, como no contexto brasileiro em geral. No entanto, recorro à Becker (2007) para deixar claro que essa revisão da literatura tem o objetivo maior de recuperar interpretações diferentes sobre o tema e apontar para perspectivas as quais eu talvez não pudesse chegar sozinho, ou que demandariam muito mais tempo, esforço e conhecimento para que fossem alcançadas. Todos os assuntos que estudamos já foram estudados por muitas pessoas com muitas ideias próprias; além disso são os domínios das pessoas que realmente habitam esses mundos, que têm ideias próprias sobre o que está em jogo neles, e sobre o que significam os objetos e eventos que neles têm lugar. Esses especialistas por profissão ou pelo grupo a que pertencem têm em geral um monopólio de ideias sobre “seu” assunto que não é examinado nem questionado. Os recém-chegados ao estudo do assunto, seja ele qual for, podem ser facilmente seduzidos a adotar essas ideias convencionais como premissas não examinadas de sua pesquisa. A estimável atividade da “revisão da literatura”, tão cara aos corações das bancas de tese, nos expõe ao perigo dessa sedução. (BECKER, 2007, p. 24-25)
Neste sentido, as considerações apresentadas neste artigo não têm a intenção de limitar o alcance da pesquisa, ou de estabelecer pressupostos para a análise dos dados coletados, ao contrário elas servem como referências, como bases de comparação que devem ser também examinadas e questionadas. Penso que a teoria deve ser acionada sempre visando ampliar as possibilidades da análise e da
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interpretação, problematizando os temas estudados, e não limitar a compreensão ou oferecer respostas absolutas e definitivas.
EM BUSCA DA SEGURANÇA
Devemos ter clara desde o princípio a distinção entre segurança e sensação de segurança, e manter em mente que essas são duas ideias que não necessariamente irão coincidir. Podemos, por exemplo, estar em um ambiente perfeitamente seguro e livre de ameaças e ainda assim não nos sentirmos em segurança, e também ao contrário, podemos estar em uma situação que ofereça alguma forma de perigo e nos sentirmos completamente à vontade e protegidos. Invertendo os conceitos podemos também estabelecer a diferença entre o risco e a insegurança: enquanto o primeiro é compreendido como a probabilidade real de se sofrer alguma forma de violência, a segunda está mais ligada ao campo das emoções, relacionada à sensação de ansiedade e medo, mesmo que não existam ameaças reais presentes (MELGAÇO, 2010). Compartilho aqui da definição de segurança que Melgaço faz em sua tese, compreendendo a mesma como um conceito que trafega entre as esferas do concreto e do imaginário, consistindo tanto na inexistência de riscos e ameaças reais, quanto na sensação de tranquilidade e ausência de insegurança e medo. Podemos ainda definir a segurança tanto como um resultado almejado, quanto como os meios práticos para alcança-lo. Assim, por mais ambíguo que pareça à primeira vista, podemos falar em segurança como sinônimo de paz, para descrever uma situação livre de riscos e ameaças, e podemos também falar em segurança para nos referirmos à intervenção policial ou técnicas de prevenção e repressão postas em prática para se alcançar aquela situação de paz (MELGAÇO, 2010). Em poucas palavras poderíamos dizer que a segurança representa a garantia, ou a busca pela garantia, do não sofrimento de qualquer violência. Entretanto, como Bauman nos alerta, a segurança ao extremo não significaria a paz absoluta, visto que a própria busca por segurança pode ser promotora de outras formas de violência, o que traz a segurança para uns pode trazer também a violência para outros, como, por exemplo, a restrição/privação da liberdade: “a liberdade e a segurança, ambas
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igualmente urgentes e indispensáveis, são difíceis de conciliar sem atrito” (BAUMAN, 2003). Aqui, a superproteção é invasiva, lá, as ameaças são permanentes. Deve-se, então, encontrar e reinventar permanentemente esse difícil ponto de equilíbrio. A história nos ensina que devemos manter juntos dois imperativos aparentemente contraditórios: a necessidade de segurança e a liberdade criativa. O Estado de direito e a cidadania, ou seja, o respeito pelos outros, são condições indispensáveis de uma síntese harmoniosa entre paz pública e democracia. (DELUMEAU, 2002, p.82, tradução nossa2).
Não podemos, portanto, considerar a segurança como um fim em si mesma, como uma busca que se auto justifica, tampouco podemos abolir quaisquer ideais de segurança em prol da liberdade individual absoluta. Pelo contrário, devemos problematizar os efeitos da busca pela segurança, analisar as consequências positivas e negativas que seus instrumentos e técnicas trazem à sociedade, e contrapor seus benefícios aos riscos e injustiças que ela própria traz ao se confrontar com as liberdades individuais, visto que, como já afirmamos anteriormente, aquilo que traz segurança para alguns pode trazer também violências para outros. Desdobrando um pouco mais o conceito de segurança podemos ainda destacar a diferença entre as noções de segurança pública e segurança privada. A primeira, considerada principalmente como responsabilidade do Estado e de algumas de suas instituições, como as Polícias e Guardas Municipais, refere-se principalmente à manutenção da ordem, mas não deve ser confundida, como frequentemente acontece, com a noção de justiça, visto que em muitos casos a manutenção da ordem estabelecida é claramente injusta para determinados grupos sociais. O conceito de segurança privada, por outro lado, é definido de maneira mais pragmática, envolvendo um conjunto de iniciativas, instrumentos e técnicas com a finalidade de proteger a integridade e o patrimônio de uma pessoa ou um grupo específico, sendo representada principalmente por empresas de segurança eletrônica, que trabalham com instrumentos como alarmes, cercas elétricas e câmeras de vigilância. Podemos dizer de forma mais simplista que a segurança privada é aquela que pode ser comprada por cada indivíduo para sua própria proteção, enquanto a segurança
2 “Aquí, la hiperproteción és invasora, allá las amenazas son permanentes. Um difícil punto de equilibrio se debe entonces encontrar e reinventar permanentemente. La historia nos enseña que tenemos que mantener juntos y reunir dos imperativos aparentemente contradictorios: la necesidad de seguridad e la libertad creadora. El Estado de derecho y el civismo, és decir, el respeto al prójimo, son las condiciones indispensables de uma síntesis armoniosa entre tranquilidad pública y democracia”.
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pública é aquela oferecida pelo Estado para a manutenção da ordem social e da sensação de segurança dos cidadãos. Nas últimas décadas a segurança pública no Brasil foi, em certa medida, invadida por práticas típicas da segurança privada, entre elas a própria política de videomonitoramento urbano, e apesar do aumento da atenção da União para este tema através de programas como o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança com Cidadania), o vazio da segurança pública e a mercadorização da segurança no país é uma questão que merece destaque.
OS MEDOS QUE NOS AFLIGEM
O debate sobre a segurança tem recebido crescentemente mais destaque, tanto na academia quanto na mídia nos últimos anos porque vivemos hoje em uma sociedade em que a cultura do medo tem se tornado, a cada dia, mais presente e mais intensa. Tal fato compreende inúmeras implicações acerca da maneira como as sociedades se organizam e reagem às questões que lhes são postas – o que, por vezes, pode acarretar em uma transformação deste mesmo medo em uma poderosa ferramenta de controle social e político. Essa cultura do medo afeta inúmeros aspectos da vida em sociedade, desde o comportamento das pessoas em suas interações sociais – onde o medo e a insegurança redefinem as expectativas entre os indivíduos, dificultando a capacidade de ação, associação e participação política através de um sentimento de desconfiança generalizada, que reforça o individualismo –, até as influências acerca das políticas públicas voltadas para a segurança, o que acaba por gerar uma exploração política e econômica do medo e legitimar certas práticas sociais que auxiliam na sustentação das instituições que se favorecem desta cultura do medo e na manutenção de determinados padrões de estigmatização e segregação social. No contexto atual, o medo passa então a fazer parte do imaginário coletivo, tomando proporções inéditas e sendo constantemente disseminado e reproduzido, e por vezes criado intencionalmente para justificar determinadas ações. No período da ditadura militar brasileira, por exemplo, foi a figura assustadora do comunista que carregou a carga de temor utilizada para justificar os abusos e práticas autoritárias do governo, enquanto nos Estados Unidos de hoje o terrorismo é o bode expiatório para
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legitimar práticas imperialistas e políticas autoritárias, e ainda mais recentemente os adeptos da tática conhecida como Black Bloc tem sido o alvo e a justificativa da brutalidade policial na repressão e criminalização de movimentos sociais. Assim, o medo aparece frequentemente como uma justificativa para o discurso da busca por segurança, e para a implantação de diversos processos de securização urbana, entre eles a instalação de sistemas de videomonitoramento eletrônico. De acordo com o sociólogo Barry Glassner, a mídia, o mercado e a política tem historicamente feito uso desta poderosa ferramenta de controle social, e a disseminação desta onda de medo gera distorções e interpretações errôneas da realidade, fazendo com que os indivíduos temam coisas que não deveriam, ou enxerguem relações causais que nada tem a ver com os fatos, ignorando assim os reais motivos de certas mazelas sociais (GLASSNER, 2003). O que é ainda mais paradoxal em nossa cultura do medo é que, comparados com o passado, as sociedades ocidentais contemporâneas tem menos contato com a dor, o sofrimento e a morte do que em qualquer outro momento da história. Nossas preocupações vão muito além do razoável e não emergem mais de nossas experiências pessoais imediatas. São medos contra os quais não podemos lutar nem fugir, medos que somente podemos temer passivamente, e mais importante, medos que muitas vezes não estão ali: “Há muito mais infortúnios sendo proclamados iminentes do que aqueles que acabam realmente ocorrendo, de modo que sempre podemos esperar que este ou aquele desastre recentemente anunciado acabe nos ignorando. Que computador foi danificado pelo sinistro "bug do milênio"? Quantas pessoas você conhece que foram vítimas dos ácaros de tapete? Quantos amigos seus morreram da doença da vaca louca? Quantos conhecidos ficaram doentes ou inválidos por causa de alimentos geneticamente modificados? Qual de seus vizinhos e conhecidos foi atacado e mutilado pelas traiçoeiras e sinistras pessoas em busca de asilo? Os pânicos vêm e vão, e embora possam ser assustadores, é seguro presumir que terão o mesmo destino de todos os outros.” (BAUMAN, 2008, p.14)
Dentre as infindáveis ameaças que cercam nosso imaginário cotidiano, os perigos contra o corpo e contra a propriedade são talvez aqueles que mais facilmente podem ser percebidos e observados, são os perigos que mais saltam à nossa vista e que se destacam em primeiro plano quando pensamos na expressão cultura do medo. Podemos listar aqui os medos causados pela violência que inunda os noticiários televisivos e a mídia impressa, inclusive ganhando programas específicos que não mais abordam notícias em geral, mas se dedicam exclusivamente à cobertura de
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casos de violência e criminalidade. O perigo representado pela violência é o que mais claramente alimenta nossos medos e influencia nosso comportamento, encorajando e incentivando um sentimento geral de insegurança fazendo parecer que todos estão igualmente submetidos ao risco de serem assassinados, sequestrados ou assaltados a qualquer momento e em qualquer lugar. De acordo com o último relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre a percepção social em relação à segurança pública no Brasil, 62,4% da população afirma ter “muito medo” de assassinatos, 62,3% de sofrer assalto à mão armada, e 61,6% de ter sua residência arrombada3. Há uma pequena redução do sentimento de medo nas estatísticas na comparação entre os dados de 2012 e de 2010, entretanto, ainda é uma parcela muito grande da população vivendo sob uma constante sensação de insegurança em relação a ameaças que não sujeitam a todos da mesma forma. Também se encaixam nos perigos contra o corpo e a propriedade nossos medos relativos às novas doenças que de tempos em tempos assombram o imaginário contemporâneo, com ameaças de pandemias capazes de trazer morte e sofrimento em escala global, como as recentes ondas de pânico causadas pelas gripes aviária em 2006 e suína em 2009. Além destes temores, há ainda nessa categoria o medo causado pelo risco de acidentes e catástrofes naturais, que ameaçam destruir não só a vida e a integridade física dos indivíduos, mas também seu patrimônio, como a destruição de suas casas e seus bens materiais. Aqui poderíamos citar o medo de deslizamentos como os acontecidos no Rio de Janeiro no início de 2011 ou da destruição causada pelos terremotos no Haiti em 2010, ou mesmo o recente terremoto que atingiu o Nepal. Vale ressaltar aqui que terremotos e catástrofes como os deslizamentos no Rio de Janeiro e os terremotos no Haiti e Nepal estão longe de ser uma ameaça geral para a sociedade, tampouco podem ser considerados acontecimentos frequentes. Os temíveis vírus mutantes das gripes aviária e suína, anunciados como capazes de causar a morte de milhões de pessoas tiveram menos vítimas letais do que a gripe comum no mesmo período, e apesar da importância da questão da violência em 3 Os dados sobre a sensação de segurança no Brasil foram retirados do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) sobre segurança pública de 2010 (disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110330_sips_seguranapublica.pdf>) e 2012 (disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/120705_sips_segurancapublica.pdf>).
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comunidades marginalizadas como as favelas das grandes cidades, afirmar que todos estão constantemente sujeitos aos mesmos riscos de serem vítimas da violência tratase de apenas inflar a já altíssima taxa de ansiedade e insegurança dos indivíduos. Além dos perigos que ameaçam diretamente a integridade física de cada um, existem ainda outros que alimentam a cultura do medo, ameaças que se fazem presentes de maneira mais sutil e indireta e que geram medos de outra ordem, medos que não são de ordem material, mas sim de ordem social e moral. Estes medos são mais profundamente interiorizados pelos indivíduos, e por esse motivo escapam mais facilmente à nossa percepção, mas nem por isso exercem menor influência sobre a sociedade, muito pelo contrário, são estes medos exatamente que sustentam e legitimam internamente questões como preconceito e segregação social. Estes perigos contra a ordem social representam o medo do caos, o medo do inadministrável, o medo de tudo aquilo que, de uma forma ou de outra, vá contra as normas estabelecidas pela sociedade e represente uma ameaça, real ou não, à ordem vigente, esse é o medo da diferença. Aqui podemos incluir o medo em relação às minorias e a certos grupos sociais que causam desconforto e insegurança para as classes estabelecidas. Este medo, que toma forma como preconceito, está direcionado aos moradores de favelas e outras regiões marginalizadas das grandes cidades, aos negros – vistos de forma generalizada como criminosos em potencial –, aos homossexuais, travestis e prostitutas – que encarnam uma ameaça moral às normas da sexualidade –, e a outras minorias como moradores de rua, usuários de drogas, e grupos de jovens, especialmente das classes mais pobres. É importante atentar-se aqui a quem tem medo de quem. As classes mais altas da sociedade temem, sobretudo, os pobres e as minorias e para evitar o contato com estes criam uma série de técnicas e estratégias de segregação enquanto tem ao seu lado o aparato policial e da segurança pública garantindo seus interesses. Essas mesmas minorias, entretanto, tem tanto medo da polícia quanto dos criminosos graças à violência policial e as arbitrariedades cometidas pelo sistema de justiça, o que ressalta o nosso ponto de vista sobre a amplitude do conceito de violência, evidenciando que os constantes investimentos em segurança pública não resultam necessariamente em uma diminuição da violência para todos. Em Curitiba não é diferente, e os ameaçadores indesejáveis são facilmente reconhecidos. Na capital paranaense são especialmente os pobres, os negros, as 129
travestis e prostitutas, e os imigrantes nacionais que se mudam para a cidade modelo 4 em busca de oportunidades que devem ser temidos e excluídos dos espaços nobres da cidade, enquanto os imigrantes europeus, a elite rica, branca e culta da capital, enfim, a famosa família curitibana, deve ser protegida a todo custo. Aqui também se faz necessário ressaltar o caráter fictício, ou no mínimo equivocado desses medos das elites. Em relação ao estigma do negro como perpetrador de atos violentos, por exemplo, existe um poderoso discurso que constantemente legitima e reafirma esse preconceito, entretanto, analisando atentamente as estatísticas, o percentual de homens negros vítimas de crime é muito maior que o de homens brancos. Como afirma Glassner, nos Estados Unidos, um dos países com os maiores índices de preconceito racial, um homem negro corre 18 vezes mais risco de ser assassinado do que uma mulher branca, no entanto os noticiários televisivos levam a figura do criminoso negro para a sala de estar das famílias estadunidenses todas as noites, reforçando um sentimento de medo desnecessário que só faz aumentar o preconceito (GLASSNER, 2003). No Brasil, os dados se repetem, de acordo com uma pesquisa recente do Governo Federal apresentada ao Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) em 2010, 70,6% das vítimas de homicídio no país eram negros; 74,6% dos jovens de 15 a 29 anos assassinados eram negros e 91,3% destas vítimas eram do sexo masculino5. Esse é apenas um dos casos de perigos contra a ordem social que se proliferam em nossa cultura do medo, mas podemos aplicar os mesmos efeitos e causas à homofobia ou à marginalização das classes mais pobres, e até casos de preconceito que recebem menos destaque como usuários de drogas, moradores de rua e algumas minorias religiosas. Assim, por meio deste conceito de cultura do medo, podemos compreender de forma um pouco mais clara, como algumas práticas securitárias são legitimadas e aceitas sem grandes discussões pela sociedade, abrindo espaço para um discurso do combate à violência e da busca constante por segurança, sem dar mais atenção às consequências negativas e aos usos efetivos dessas práticas. 4 O termo cidade modelo está ligado à construção de um imaginário sobre a qualidade de vida e do planejamento urbano modernista da cidade de Curitiba, discussões mais aprofundadas sobre esse tema podem ser encontradas nas obras de Dennison de Oliveira (OLIVEIRA, 2000) e Nelson Rosário de Souza (SOUZA, 1999). 5 Os dados foram recolhidos do DataSUS/Ministério da Saúde e do Mapa da Violência 2011.
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O CASO BRASILEIRO: PREENCHENDO O VAZIO DA SEGURANÇA PÚBLICA
O debate sobre as políticas de segurança pública no Brasil não pode ser deixado de lado ao se estudar quaisquer temas relacionados à violência, criminalidade e segurança, visto que em nosso país, há certo vazio de atuação da União nesta área, que só começou a ser preenchido recentemente, e mesmo assim, marcado por uma invasão de práticas da segurança privada na esfera pública. Entretanto, frente ao amplo debate que existe sobre o tema, neste artigo me restrinjo a fazer um breve resgate dessa discussão de modo a apenas contextualizar essa questão tão rica e importante, e que mereceria outra dissertação para dar conta de todos os fatores envolvidos. Essa distância entre a segurança pública e a atuação da União deu-se graças ao caráter descentralizador da constituição de 1988 que, ao promover a separação entre segurança pública e defesa nacional transferiu para os estados a responsabilidade no combate à violência urbana e na manutenção da ordem pública. Uma tarefa bastante complexa em um contexto de transição democrática, sob a influência de uma insegurança urbana crescente e uma demanda por mudanças na atuação dos órgãos públicos de segurança, ainda carregados de resquícios autoritários da ditadura militar. Nesse contexto, apesar do discurso de defesa da cidadania e proteção de direitos, o que se encontrava de fato na área da segurança pública, em especial na atuação das polícias, era a garantia dos direitos de alguns e a velha brutalidade arbitrária para as classes populares, em especial negros e moradores das periferias e favelas. Esse processo de criminalização da pobreza e segregação das classes mais baixas, ao lado do esvaziamento do Estado nos âmbitos econômico e social vivenciado nesse período, não apenas no Brasil mas em escala global, desenhava uma situação contraditória no que se refere ao papel do Estado, onde temos um “Estado para os pobres” com menos assistência, mais controle e repressão policial, e um “Estado para os ricos” com menos controle econômico e fiscalização (CARVALHO; SILVA, 2011). No caso estudado, esta segregação espacial e invisibilização da pobreza é ainda mais evidente e se conecta a uma organização do espaço urbano 131
planejada e praticada desde o final do século XIX na cidade de Curitiba, construindo o mito da cidade modelo através da exclusão da diferença. Pode-se então afirmar que a “constituição cidadã” não culminou na construção de uma política de segurança pública baseada em ideais democráticos e, apesar das demandas dos movimentos sociais, não houve a necessária participação da sociedade nesse sentido. Assim, durante as décadas de 1980 e 1990, apesar do crescimento da violência criminal e do aumento significativo da sensação de insegurança e medo experimentada pelos cidadãos, especialmente nos grandes centros urbanos, o campo da segurança pública foi marcado por indiferença e imobilismo por parte da União (SOARES, 2007) e por medidas paliativas em situações emergenciais por parte dos estados (CARVALHO; SILVA, 2011), o que resultou em políticas públicas deslocadas da realidade social, desprovidas de articulação com as demais entidades federativas e sem um sentido de continuidade necessário para se alcançar resultados efetivos nessa área. Em poucas palavras, a transição democrática da constituição de 1988 não se estendeu à segurança pública, trazendo consigo heranças de nosso passado autoritário e ineficiência do ponto de vista da cidadania, deixando um vazio sobre a atuação do Estado para a garantia da segurança de seus cidadãos, vazio esse que, antes de ser corrigido pelo Estado, abriu espaço para que a iniciativa privada tomasse a frente da questão, e assumisse a responsabilidade – e a rentabilidade – pela proteção daqueles que puderem arcar com seus custos, assim, o mercado da segurança cresceu no país tornando-se um nicho cada vez mais lucrativo. Os argumentos – usados tanto pelos empreendedores quanto pela mídia – basearam-se majoritariamente nos aumentos dos indicadores de violência e criminalidade no país, e na crescente sensação de medo e insegurança. Entretanto, sozinhos esses argumentos não são suficientes para explicar o crescimento da segurança privada no Brasil. Um importante fator que deve ser levado em conta é o crescimento da indústria da segurança nas sociedades ocidentais em geral, combinada com os avanços tecnológicos dos equipamentos cada vez mais sofisticados para segurança (KANASHIRO, 2008). Além desses fatores, Kanashiro aponta que é possível perceber nesse período uma relação bastante próxima entre os gestores de políticas públicas e o setor de negócios, caracterizada por uma pressão dos empreendedores da segurança privada no sentido de estimular mudanças em leis e políticas acerca da 132
obrigatoriedade do uso de equipamentos de segurança e da criação de novas leis e políticas estimulando o crescimento do setor de segurança e contribuindo para o fortalecimento desses grupos (KANASHIRO, 2008). Nesse contexto as câmeras de videomonitoramento, ao lado dos sistemas de alarmes, cercas elétricas, concertinas e outras arquiteturas anti-indesejáveis6 aparecem como uma das principais ferramentas da iniciativa privada para dar conta das demandas por segurança e proteção da sociedade, aparecendo inicialmente em sistemas privados de segurança de bancos e instituições financeiras e se expandindo em seguida para condomínios fechados e estabelecimentos comerciais de diversos tipos e, finalmente, chegando aos espaços de circulação pública. Assim, na segunda metade da década de 1990 podemos identificar um “boom” no uso dos sistemas eletrônicos de segurança no Brasil, bem como o crescimento do número de câmeras de vigilância instaladas em vizinhanças, condomínios e edifícios comerciais, voltadas não apenas para o interior de seus espaços, mas também para as ruas, ainda baseadas sempre no argumento do medo e da insegurança por parte da população, e do crescimento da violência e do crime.
A SECURIZAÇÃO URBANA E O MEDO DO OUTRO
“Sempre houve épocas de medo. Mas esta é uma época de medo permanente e
generalizado”
(SANTOS,
1992)
e
esse
medo
constante
traz
para
a
contemporaneidade uma série de mudanças visíveis até mesmo na arquitetura recente, transformando a paisagem urbana em uma tentativa de enfrentar a violência, o medo e a insegurança. Podemos observar hoje a materialização no espaço urbano dessa espécie de paranoia coletiva do medo e da busca por segurança através de um processo chamado por Lucas Melgaço de securização urbana (MELGAÇO, 2010). Este conceito traz uma inestimável colaboração para a discussão realizada, e assim torna-se necessária uma definição mais completa do termo7.
6 As arquiteturas anti-indesejáveis são objetos técnicos dos processos de securização urbana que visam expulsar determinados indivíduos de espaços onde sua presença não é bem vinda. São exemplos as lanças que impedem que moradores de rua se sentem em vitrines de estabelecimentos comercias, e as próprias câmeras de videomonitoramento. 7 Para uma análise mais profunda dos processos de securização urbana, especialmente na cidade de Campinas-SP ver MELGAÇO, 2010.
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Para o autor, este processo de securização consiste na implantação de objetos e formas urbanas voltadas à busca por segurança, ou, pelo menos, à diminuição do sentimento de insegurança. Cabem nesse processo, portanto, todas as arquiteturas de combate ao medo e a violência, desde a criação de espaços exclusivos, a instalação de objetos e dispositivos de proteção perimetral e a informatização do cotidiano para fins de segurança. Contudo, devemos ressaltar que a securização de um local não significa necessariamente que tal espaço se tornará de fato mais seguro, visto que, sendo uma prática que se constitui apenas enquanto uma resposta quase automática ao discurso do medo, esta acaba atuando mais no plano psicológico do que no da efetiva redução de riscos. A securização urbana refere-se, portanto, apenas à implantação de técnicas e dispositivos visando à busca por segurança, e não a garantia de que tais técnicas serão eficientes. A segurança é dessa forma instrumentalizada e reificada, transformada numa mercadoria que pode ser conquistada através da compra. Um aspecto que nos interessa mais especificamente sobre esse processo de securização urbana e que é apontado também por Melgaço em sua tese diz respeito aos reais objetivos desse processo e aos resultados que ele articula: É importante também destacar que a securização tem uma preocupação maior com a segurança do patrimônio e apenas secundária com a segurança pessoal, além do mais, a segurança é o objetivo principal, mas não o único do processo de securização, já que ele é também utilizado para promover segregação através da criação de espaços homogêneos e livres de pessoas indesejadas. Pode-se até falar em segurança aqui, mas não aquela relacionada ao risco de se sofrer uma violência, mas, sim, à segurança de se estar entre iguais. (MELGAÇO, 2010, p. 67, grifo nosso)
Assim, podemos observar as paisagens urbanas sendo alteradas por esse processo de securização por meio de dispositivos e arquiteturas que são legitimadas e justificadas pela busca por segurança e combate à violência, mas que, se analisadas de forma mais profunda, revelam outras características e objetivos, em razão dos quais podem ser chamadas de arquiteturas anti-indesejáveis, entre as quais se inclui, mas não apenas, os sistemas de vigilância e de videomonitoramento urbano como o da cidade Curitiba. Esses objetos trazem em si o objetivo de impor o movimento e o consumo. Eles são instalados para impedir a permanência dos indivíduos e para expulsar a presença de certos grupos considerados inconvenientes, como mendigos, usuários de drogas, vendedores ambulantes, prostitutas, travestis e grupos de jovens, mas em
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especial, pobres, enfim, consumidores falhos, incapazes de dar lucro. Nesse sentido essas práticas se tornam evidências de que vivemos hoje um período de assustadora intolerância em relação ao outro, onde se cria uma confusão entre o medo da violência e o medo da diferença: “A violência está sempre no ‘outro’ e nunca no ‘eu’” (MELGAÇO, 2010). Como o historiador Jacques Le Goff ressalta: o uso do espaço como instrumento de segregação está longe de ser exclusividade de nosso tempo, desde a idade-média o medo da população se materializava em políticas segregadoras contra seus respectivos indesejáveis (LE GOFF, 1998). O higienismo, por exemplo, que inicialmente foi pensado como um conjunto de normas sanitárias para a melhoria da saúde pública logo foi transformado em higienismo social, voltado para expulsar dos centros urbanos não apenas as doenças, mas também seus agentes transmissores: os pobres. O próprio planejamento urbano moderno trará consigo essa valorização da rua enquanto espaço de circulação, de fluxo e de ordenação da vida pública, e para que essa fluidez possa ser alcançada empreende técnicas e estratégias variadas para suprimir o encontro entre as diferenças e promover a segregação socioespacial destes indesejáveis. O outro, especialmente o pobre, encarna então o papel do inimigo a ser combatido, do mal a ser expulso da convivência dos demais cidadãos, ele torna-se o protagonista dessa cultura do medo e o alvo dos processos de segregação empreendidos pela securização urbana. Retomando as ideias de Bauman é possível afirmar que o medo encontra sua materialização na figura do estranho, do indesejável, do desviante, criminalizando esses grupos pelo desconforto que eles causam para alguns, e utilizando o discurso do medo para justificar práticas securitárias que estão mais interessadas em promover o controle, a segregação e o lucro, do que de fato a segurança. Nesse ambiente, criminalizam-se grupos específicos da sociedade, e o medo do crime, da “desordem”, do “distúrbio” e da violência é utilizado como pretexto para um eficaz controle social, além de alimentar poderosas engrenagens do capitalismo contemporâneo: o “mercado da segurança” e o “mercado da informação”. (SOUZA, 2008, p.152)
A violência e a segurança então, muitas vezes, são apenas pretextos para justificar um processo de securização motivado por outros interesses, seja para delimitar determinados espaços para o uso exclusivo de uns, ou para promover a 135
segregação socioespacial de outros. Mesmo o discurso do medo que aparece aqui é muito mais o medo do outro que o medo da violência propriamente dita.
A INFORMATIZAÇÃO DA SEGURANÇA
Esse processo de securização urbana não está limitado a transformações físicas da paisagem, além da instalação de cercas, concertinas, muros e lanças para expulsar os indesejáveis de certas áreas da cidade, o espaço urbano passa a ser alvo também de uma intensa transformação informacional, onde a criação de bancos de dados e o controle sobre a informação passa a ser uma variável chave na busca por segurança. As constantes inovações e avanços tecnológicos no caso das câmeras de vigilância são um exemplo claro de como a captação e o processamento cada vez mais rápido e onipresente de informações é um dos principais propulsores do mercado da segurança e dos investimentos constantes na instalação de novos e mais modernos dispositivos e técnicas securitárias, seja graças à melhoria na resolução das câmeras, ao zoom com maior alcance e definição, ou a dispositivos como sensores de visão noturna, identificação automática de placas de veículos e até mesmo reconhecimento facial. O ‘sistema de obsolescência’ que rege o mercado também tem seu papel. Os produtos mais recentes oferecidos nas feiras de segurança sempre mostram um ‘atraso’, o que se comprou no ano passado já se tornou velho, Os produtos mais novos e mais tecnologicamente desenvolvidos são sempre apresentados pelo mercado que por sua vez opera caminhando em direção a um limite supostamente infinito, sempre sinalizando um fosso a ser transposto para ‘tornar-se moderno’. (KANASHIRO, 2008, p.283).
Essa importância crescente da informação na contemporaneidade, bem como o aumento da velocidade e consequente redução do tempo de sua transmissão, altera a forma como se dá a busca por segurança e influencia diretamente nos processos de securização. As polícias, e também as empresas de segurança privada, são cada vez mais dependentes de um eficiente sistema de comunicação e de bancos de dados e sistemas georreferenciados para exercer seu papel com eficiência e organizar suas ações de forma coordenada. Entretanto, essa informatização do cotidiano traz também em seu bojo uma inevitável alienação tecnológica. Vejamos por um momento o exemplo da internet:
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suas contribuições para o cotidiano, a agilização da comunicação e incontáveis possibilidades são inquestionáveis, ainda assim, há um aspecto que por vezes passa despercebido. Cada pesquisa realizada nos servidores de busca, cada e-mail enviado, cada informação gerada é passível de ser rastreada e armazenada, criando-se assim um banco de dados virtualmente infinito que pode ser usado das mais diversas maneiras, desde a criação de publicidade e marketing direcionado diretamente ao perfil de cada consumidor individualmente, até a resolução de crimes8. Essa capacidade quase infinita de acumulação de bancos de dados e de cruzamento das informações entre eles tem ao mesmo tempo um lado encantador e assustador, como aponta Melgaço: Encantadora pelo fato dessa integração de dados permitir, por exemplo, que através de uma simples impressão digital um hospital tenha acesso a uma multiplicidade de informações sobre um paciente encontrado inconsciente em via pública. O banco pode conter dados como nome, endereço, telefones para contato, histórico de internações hospitalares, principais alergias, tipo sanguíneo, dentre várias outras informações que poderão ser cruciais para um atendimento bem sucedido. Por outro lado, a disseminação dos bancos de dados é assustadora por gerar um cotidiano controlado e promotor de possíveis injustiças: a saber, um empregador em posse de informações sobre o histórico de doenças de um pretendente a cargo pode, de maneira ilegítima, recusar sua candidatura. (MELGAÇO, 2010, p.183)
Tendo em vista esse potencial de controle carregado por um sistema informacional integrado, podemos afirmar que a instalação de uma câmera de vigilância, ou qualquer outro dispositivo capaz de gerar informações digitais, traz consequências muito mais complexas do que a simples instalação de uma cerca elétrica ou outras arquiteturas anti-indesejáveis, visto que seus efeitos possuem uma ação deslocada do tempo e do espaço onde foram executadas, e as informações geradas pela câmera podem ser recuperadas muito tempo depois da captura das mesmas, e, assim como as informações na internet, podem ser usadas com diferentes fins, podendo tanto gerar saberes e informações úteis, para a segurança e para outras áreas do planejamento urbano, quanto ser também uma ferramenta para a promoção de novas violências e formas de segregação e controle. A presença das câmeras de vigilância se tornou um elemento corriqueiro em nosso cotidiano, e é encarada tanto pelos gestores urbanos e de segurança pública,
8 Um exemplo do uso de informações digitais utilizadas dessa forma foi a resolução do caso April Barber em 2002, onde o histórico de buscas pelas palavras “tiro”, “homicídio” e “seguro de vida” realizadas pelo marido da vítima no site google.com foi utilizado como evidência e levou a polícia a concluir que ele havia sido o autor do crime (BIG, 2006)
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como também pelos cidadãos em geral como uma das principais ferramentas de combate à violência e à criminalidade e como uma espécie de panaceia capaz de curar praticamente todos os males e vícios da vida urbana. Contudo, assim como quaisquer outros sistemas tecnológicos, a presença das câmeras não é suficiente para resolver o problema da segurança. As câmeras nada mais fazem que capturar, transmitir e armazenar imagens sem significados implícitos que apenas serão atribuídos pelo elemento humano representado pelos operadores dos sistemas de videomonitoramento. São esses que irão observar, interpretar e reagir à essas imagens (SMITH, 2004). Sem o elemento humano por trás dos monitores da sala de controle, qualquer sistema de vigilância seria completamente inútil, o determinismo tecnológico que atribui às câmeras o poder de enfrentar a violência urbana e garantir a segurança, parece esquecer-se que quem exerce esse poder são os operadores das mesmas, e que sem a atuação desses pouco importa o alcance e a resolução do equipamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos entender o recurso às câmeras como uma resposta imediata ao discurso do medo e da busca por segurança que marca a contemporaneidade. Contudo, pouco tem sido discutido sobre a real eficiência desse tipo de vigilância no combate ao crime e, menos ainda, sobre outros desdobramentos de sua utilização. São raros os casos em que, junto com a instalação das câmeras, foram designadas áreas de controle, ou seja, locais não vigiados que serviriam para medir se a alteração dos índices de criminalidade foi um resultado direto do monitoramento ou se teria ligação com algum outro fator externo, o que impede qualquer forma realista de avaliação desses sistemas. A segurança é sempre o discurso que legitima e justifica a instalação das câmeras, mas muitas vezes estas têm outras funções para além daquelas relacionadas exclusivamente à redução da insegurança da população. Nesse sentido, é importante deixar claro que, assim como qualquer outro objeto técnico, as câmeras devem ser compreendidas de forma dialética. É preciso ter claro que uma vez que passem a fazer parte da paisagem urbana elas trazem mudanças no comportamento e na sociabilidade e ao mesmo tempo reforçam padrões estereotipados de
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discriminação e segregação social que não são postos em prática unicamente pelos processos de securização urbana à que estão conectadas, mas também às subjetividades daqueles que as operam. O questionamento do determinismo tecnológico atribuído aos sistemas de vigilância eletrônica e securização urbana, bem como de sua real capacidade de oferecer respostas à violência e criminalidade urbana por si só já levanta um campo extremamente fértil e pouco explorado de pesquisas. No mesmo sentido é importante compreender as formas como a vigilância é exercida, influenciada por preconceitos e padrões de dominação, e gerando, ou pelo menos contribuindo para, a manutenção de determinada ordem social, demarcando fronteiras e segregando populações. Por esses e outros motivos, é necessário abandonar essa abordagem determinista, teórica e estatística que tem marcado os estudos sobre vigilância na contemporaneidade, reconhecer os limites dos modelos conceituais que colonizaram esse campo e empreender novas iniciativas e pesquisas que tenham um alcance mais profundo nas questões de subjetividade e nas microdinâmicas envolvidas no exercício da vigilância informacional que marca nosso tempo. E no espírito de reconhecer limites, aproveito para reconhecer também os limites deste artigo e da própria pesquisa por mim realizada. Existem diferentes configurações, procedimentos, tecnologias e políticas que definem o funcionamento de diferentes sistemas em diferentes contextos, e por isso se faz necessário que cada sistema seja analisado profundamente em suas próprias particularidades. O que a pesquisa de mestrado permite por em questão e que busquei trazer nesse artigo, portanto, é o próprio determinismo tecnológico sobre o qual boa parte das pesquisas acadêmicas sobre o videomonitoramento e securização se apoiam, e mais importante, que o público em geral não deveria investir essa fé cega que se tem hoje sobre a eficiência do videomonitoramento, visto como a panaceia da violência urbana e a solução definitiva para todos os problemas da segurança pública. Como apontei neste texto, os discursos do medo e da busca por uma sensação de segurança são o verdadeiro elemento justificador da implantação dessas técnicas e sistemas, enquanto os resultados efetivos da mesma são, no mínimo, questionáveis. Apesar de todos os dados e elementos coletados e analisadas, a maior consideração que devo ressaltar sobre a realização e as conclusões a que levaram esta pesquisa é a de que muitas perguntas ainda precisam ser feitas, muitos pontos devem ser questionados e muitos fatores ainda precisam ser pesquisados para que 139
esse fértil campo dos estudos de vigilância seja cada vez mais enriquecido e aprofundado e permita que os novos paradigmas trazidos pelas mais recentes tecnologias de segurança sejam melhor compreendidos em seus principais efeitos e consequências, sempre levando em conta sua interferência na subjetividade e também ao contrário a interferência da subjetividade sobre seu funcionamento.
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O PROCESSO DE REEMÊRGENCIA DA LUTA POR TERRA NO MUNICÍPIO DE VERDELÂNDIA NO NORTE DE MINAS GERAIS (ANTIGA CACHOEIRINHA) Greiciele Soares da Silva1 RESUMO: O presente trabalho busca analisar a atual configuração e divisão territorial do município de Verdelândia – MG a partir das mudanças históricas e sociais Ocorridas no local ao longo do tempo, e que antecederam o “massacre” da comunidade de Cachoeirinha na década de 1960. A análise da formação estrutural do local possibilita maior entendimento do processo de formação da comunidade, do seu espaço social. Pode se assim dizer, que a compreensão da questão proposta se solidifica a partir da objetivação dos processos históricos e da estruturação da realidade social. PALAVRAS-CHAVE: Conflito. Luta por Terra. Reforma Agrária. ABSTRACT: This paper analyzes the current configuration and territorial division of the city of Verdelândia - MG from the historical and social changes Occurring place over time , and prior to the "massacre" of Cachoeirinha community in the 1960s Analysis structural site training enables greater understanding of community formation process, their social space. Can thus say that the understanding of the issue proposal solidifies from the objectification of historical processes and the structuring of social reality. KEYWORDS: Conflict . Fight for Earth. Agrarian Reform . INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca analisar a reemergência da luta por terra e reforma agrária no município de Verdelândia no Norte de Minas Gerais, sendo o conflito da década de 1960 um referencial para compreensão da atual configuração fundiária no município. O interesse pela importância que a produção deste conhecimento apresenta na área das ciências sociais, uma vez que a disputa de terras se caracteriza como um conflito social recorrente que permeia a realidade especifica de cada região fazendo parte do cenário brasileiro; e também pela necessidade de romper com uma das práticas 1 Acadêmica do 8º período do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros UNIMONTES; Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, no Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental – NIISA / UNIMONTES; greicytstsoares123@yahoo.com.br
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recorrentes no Brasil, que é a de compreender a história do país como a histórica unicamente das classes dominantes, não reconhecendo as demais categorias que embora invisibilizadas, desempenham um importante papel nas transformações sociais e políticas do país. De acordo com Martins (1981, p. 26) “a história do Brasil é a história das suas classes dominantes, é uma história de senhores e generais, não é uma história de trabalhadores e rebeldes”. Para alcançar o objetivo proposto, o estudo pautou-se como pesquisa de abordagem qualitativa, de forma a aprofundar na análise do fenômeno discutido. As técnicas de pesquisas se constituem em revisão bibliográfica, uma vez que serão utilizados vários materiais elaborados para contribuição na discussão da temática; pesquisa de campo com observações e entrevistas livres. Uma das técnicas que se constitui como fundamental na abordagem qualitativa do presente trabalho é a entrevista livre, uma vez que esta possibilita por meio do diálogo a compreensão do sujeito/objeto de estudo, nesse caso os camponeses e trabalhadores rurais do município de Verdelândia. Martins (1981, p. 17) afirma a importância de se “ouvir o campesinato”. Daí a importância de ouvir o campesinato. É evidente que ouvir o campesinato não quer dizer, simplesmente, partir do próprio discurso dos “agentes sociais”. Quer dizer isso e muito mais. Quer dizer que é preciso mobilizar recursos teóricos que permitam decifrar a fala do camponês, especialmente a fala coletiva do gesto, da ação, da luta camponesa. É preciso captar o sentido dessa fala, ao invés de imputar-lhe sentido, ao invés de desdenhá-la. (MARTINS, 1981, p. 17)
A revisão bibliográfica é também uma técnica fundamental para a pesquisa desenvolvida, uma vez que as leituras realizadas e apresentadas ao longo do texto permitem uma maior compreensão da temática e da própria análise do campo. O exame histórico constitui-se como um instrumento analítico, onde pode ser realizada uma leitura do passado e a partir desta, compreender os elementos essenciais para formação da realidade fundiária no município em questão. O que se apresentará como mais importante neste estudo é o a reemergência da luta por terra no processo de formação dos assentamentos rurais e a relação existente entre os atores do antigo conflito e os atores dos novos conflitos agrários no município de Verdelândia – MG. A análise histórica da formação estrutural do local possibilita maior entendimento
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do processo de construção da comunidade, do espaço social (BOURDIEU, 2014). Pode se assim dizer, que a compreensão da questão proposta se solidifica a partir da objetivação dos processos históricos e da estruturação da realidade social. As lutas por terra e reforma agrária podem ser, também, analisadas na perspectiva conceitual de conflito ambiental, uma vez que se tem uma situação de disputa pela apropriação material e simbólica do ambiente natural, isto é, envolve agentes sociais com significações diferenciadas sobre o uso da natureza. As lutas por terra implicam em todo um conjunto de características que ultrapassa a noção física, sendo esta diretamente ligada a todo um processo produtivo econômico, cultural e de pertencimento e reconhecimento ao/do local disputado, sendo não só um conflito por terra, mas um conflito por território. Esse grande cenário de disputa fundiária resulta-se do processo de desenvolvimento econômico e social no qual o Brasil foi construído, tendo como base, uma sociedade extremamente assimétrica e hierarquizada e de alocações sociais bem definidas, onde as desigualdades advêm tanto pela herança quanto pela posse. A luta por terra e por reforma agrária é uma estratégia para modificação das estruturas e das relações sociais construídas desde o período de colonização do país, com efeito sobre a superação das desigualdades sociais, econômicas e políticas, geradas pela concentração de propriedade fundiária do Brasil. O município de Verdelândia está localizado no Norte de Minas Gerais, e de acordo com IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)2, a população estimada no ano de 2010 era de 8.346 e a unidade territorial (Km²) 1. 570,577. Limita-se com os municípios de Janaúba, de Jaíba, de Varzelândia e de São João da Ponte.
CONTEXTUALIZAÇÃO
O município de Verdelândia – MG, de acordo com Monção (2009) é um dos locais com maior número de assentamentos e acampamentos de Reforma Agrária do Norte de Minas Gerais. A formação do município é estabelecida pela criação do povoado de
2 Disponível em: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=317103
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Cachoeirinha que de acordo com Santos (1985), inicia se desde o período da escravatura, pois, muitos dos negros fugitivos, em busca de abrigos, refugiavam se na “mata da Jaíba”, local também habitado por tribos indígenas. A comunidade de Cachoeirinha tem sua origem nesse “contexto de resistência a escravidão” sendo povoado pelos “primeiros desbravadores do Vale da Jaíba”. Ainda em seu texto, Santos (1985 p. 16) diz que a primeira geração de posseiros teve sua instalação no ano de 1946, devido o processo de construção da ferrovia na cidade de Janaúba (cidade próxima ao povoado), essa primeira geração é formada por “assalariados dos empreiteiros fornecedores de dormentes para a construção da linha férrea”. A segunda geração dos posseiros foi instituída no final da década de 1950, em função da ligação ferroviária. Essa geração é constituída pelos migrantes vindo do nordeste em direção ao sul. De acordo com Santos (1985), estes se instalaram nas terras do povoado de Cachoeirinha, amparados por documentos de ocupação expedidos por funcionários do Estado. Nessa perspectiva, houve uma integração dos latifundiários no mercado nacional por meio da pecuária, a princípio, essa atividade não afetou o modo original de vida dos
camponeses.
Essa configuração econômica-social permite que os lavradores
desenvolvam sua produção e seu modo de vida autonomamente até os anos 50/60. Transformações econômicas e políticas profundas começaram a se operar nas relações entre os agricultores e o meio social que os cerca a partir de 50 quando o norte de minas passa a ser alvo do Estado através de programas de colonização. (SANTOS, 1985). Em 1961, de acordo com Santos (1985), Magalhães Pinto (então Governador do Estado de Minas Gerais), anuncia uma “reforma agrária” para todo o Estado, o plano consista exatamente no mesmo plano de colonização elaborado pelos técnicos da Fundação Rockefeller e da Secretaria da Agricultura e que tinha como meta promover a “modernização” capitalista do norte de minas. Se tratando de uma questão pública, o assunto chamou a atenção de muitos proprietários de terra, de especuladores e de investidores, onde de acordo com Santos (1985), Inicia-se, assim, um processo de apropriação de terras devolutas. Discretamente, passam a comprar terras de antigos proprietários ou posseiros; fazendeiros locais aumentam fraudulentamente as extensões de suas propriedades; títulos falsificados são
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vendidos por aproveitadores a lavradores ingênuos. Intensifica a ocupação da região pelo capital. (SANTOS, 1985). Em 1964, o Brasil vivencia o Golpe Militar, momento de destaque do conflito de Cachoeirinha quando os Senhores Sebastião Alves da Silva e Manoelito Maciel de Salles, por meio de seu então advogado o Coronel Georgino Jorge de Souza Comandante do 10º Batalhão da Polícia Militar de Montes Claros, requerem diante do Juiz de Direito de São João da Ponte a posse sobre cerca de 6.400 hectares na região de Cachoeirinha. Com base no requerimento pela posse, o Juiz de Paz, José Fernandes de Aguiar, emite decisão de desapropriação dos lavradores. A retirada dos moradores da comunidade foi realizada no dia 14 de setembro do mesmo ano, por meio de militares e pistoleiros. Após a ação 32 famílias foram expulsas de suas terras, algumas abandonaram Cachoeirinha e outras permaneceram para lutar pela terra. Os camponeses da época fazem relatos de abuso de poder por parte dos militares Um segundo despejo ocorre no ano de 1967, onde não mais as 32 famílias, mas sim, todos os lavradores do local, 212 famílias foram despejadas de suas terras, e o Coronel Georgino, o Manuelito e Sebastião, possuidores de documentos referentes a 6.400 hectares, ocupam o equivalente ao dobro da quantidade de terras apresentada nos documentos de posse. Em 06 de outubro de 1983 é emitido decreto de nº 23080, que “declara de utilidade publica, para desapropriação de pleno domínio, áreas de terras e benfeitorias situadas do distrito de Cachoeirinha, município de Varzelândia”3. Depois da decisão de divisão de terras para os lavradores de Cachoeirinha, estes recebem uma área de terra com total de 484 hectares, que de acordo com os próprios lavradores estava em péssimas condições e era insuficiente para as 140 famílias cadastradas para serem beneficiadas. A divisão foi feita, no entanto, somente 55 famílias seriam selecionadas para permaneceram na terra.
3 Assembléia de Minas. Disponível em: http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=Dec&num=23080&comp=&a no=1983
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Em 22/12/1995, através da Lei Estadual nº 12030, ocorre o desmembramento do distrito de Cachoeirinha pertencente a Varzelândia e do distrito de Barreiro do Rio Verde pertencente a Janaúba, formando então o município de Verdelândia, onde a atual luta dos moradores dos assentamentos/acampamentos refere-se principalmente ao processo de regularização das terras. O processo de ocupação e apropriação das terras se justifica, inicialmente pelo fato de que se ocupa aquilo que está “desocupado”, ou seja, passível de ocupação. “Desocupado” no sentido econômico e produtivo, uma vez que de acordo com a Lei Nº 4.504, de 30 de Novembro de 1964 da Constituição Federal, que regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola, é de competência da União desapropriar por interesse social, ou seja, para fins de Reforma Agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. De acordo com o Art. 16 da Lei Nº 4.504, de 30 de Novembro de 1964, A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio. De acordo com Bernardo Mançano Fernandes4 a Luta por Reforma Agrária e a Luta pela Terra são interativas, no entanto é fundamental que se faça a distinção entre as mesmas. A Luta pela terra é específica, desenvolvida pelos sujeitos interessados na questão e não depende da Luta pela Reforma Agrária, esta por sua vez é uma luta ampla e que envolve toda a sociedade, de acordo com o autor, “a luta pela reforma agrária contém a luta pela terra. A luta pela terra promove a luta pela reforma agrária”. Pode-se dizer da existência de uma ligação entre esses fatores, uma vez que os camponeses do município de Verdelândia residem em um território que com o tempo tornou-se seu espaço, o espaço físico ganha significado e valores que não são atribuídos com base na questão monetária, mas sim, em questões emocionais. O conflito se associa a essa discussão na medida em que esses camponeses são expropriados e retirados de seu território, de seu espaço, nessa medida é que se inicia a Luta por 4 FERNANDES, Bernardo Mançano. 1999.
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terra que por sua vez possibilita a Luta por Reforma Agrária, meio pelo qual busca-se alcançar e possuir o acesso à terra. Inicia-se um processo de resistência que se torna visível no processo de luta. Todas essas mudanças sociais ocorridas no país tiveram suas conseqüências, o período de industrialização, por exemplo, buscou levar a
política
do
“desenvolvimento” que proporcionaria um processo de “modernização” das regiões. É nesse período de transformação que a região do Norte de Minas encontra se como alvo dos projetos “desenvolvimentistas” tendo como objetivo a entrada
da
“modernidade” no sertão. Juntamente com essas modificações ocorre a intensificação do processo de migração, que envolve não apenas a mudança de pessoas de um lugar a outro, mas também ocasiona no encontro de lógicas e modos de vida distintos. O povoado de Cachoeirinha como era conhecido no período do conflito, tornou se o município de Verdelândia. Este município guarda um histórico de luta, e mesmo nos dias atuais, após o conflito ocorrido na década de 1960, o local ainda é palco de várias outras disputas territoriais. ATUAL CONFIGURAÇÃO DO MUNICÍPIO DE VERDELÂNDIA – MG
Hoje, quase 50 anos depois do maior conflito da região, o município, de acordo com Monção (2009), concentra o maior número de assentamentos e de acampamentos do estado de Minas Gerais. Atualmente, há nesse município, 4 acampamentos de reforma agrária: Santa Clara, Vitória, Verde Água e Vista Alegre, e 14 assentamentos: Caitité, União, Boa Esperança, Arapuá, Arapuim, Verde Minas, Betânia5, Serrana, Bom Jardim, Lagoinha, Volta da Serra, Bom Sucesso, Modelo e Nova Esperança; sendo a área total desses assentamentos corresponde, aproximadamente, a 20% da área total do município de Verdelândia. De acordo com Monção (2009), a nova configuração
5 De acordo com Monção (2009) a área geográfica do assentamento Betânia se localiza na divisa entre os municípios de Verdelândia e o município de Varzelândia. Para o INCRA o assentamento é pertencente ao município de Varzelândia, no entanto a Prefeitura Municipal e a EMATER de Verdelândia, prestam assistência a uma parte do assentamento reconhecendo os como cidadão verdelandense.
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fundiária do município de Verdelândia começou a partir da criação dos assentamentos União e Caitité. Enquanto os anos da década de 1960 foram marcados pela expropriação de terras no município, os anos da década de 1990 em diante, por sua vez, marcaram um novo panorama para essa região: a reapropriação de terras. Assim os 12 novos assentamentos e os 4 acampamentos criados configuram-se em uma nova forma de conquista da terra. (MONÇÃO, 2009. pág. 73). Ainda de acordo com Monção (2009), existe uma relação de parentesco entre os antigos posseiros e a grande maioria dos novos posseiros. A autora afirma ainda que o histórico de luta da comunidade influenciou a formação da organização social do município de Verdelândia. Uma vez que aqueles pertencentes as comunidades atuais, são remanescentes do antigo conflito. Diante do cenário brasileiro, o município de Verdelândia, apesar de
vários
acampamentos e assentamentos rurais, ainda de configura como local com grande concentração de terras, sendo que dessa forma, o local se torna propicio para novos conflitos agrários, uma vez que de acordo com Monção (2009) os trabalhadores, descendentes de antigos posseiros, se organizam cada vez mais tendo como objetivo a transformação das terras improdutivas e que se encontravam sob a apropriação de grandes fazendeiros, em fonte de renda para as suas famílias, o que é uma ação legítima, pois de acordo com a Lei Nº 4.504, de 30 de Novembro
de
1964
as
propriedades que não cumprem com a função social devem ser desapropriadas e destinadas para a Reforma Agrária. Na década de 1960 as políticas de “desenvolvimento e modernização” da agricultura resultaram na intensificação dos conflitos pela posse de terra. Vários conflitos se espalharam pelo país, entre eles encontra-se o conflito de Cachoeirinha no Norte de Minas Gerais, que o presente trabalho buscou analisar de modo a estabelecer uma corelação entre esse antigo conflito e os novos conflitos e processo de reemergência da luta por terra no local. O povoado de Cachoeirinha como era conhecido no período do conflito, tornou se o município de Verdelândia. Este município guarda um forte histórico de luta por terra, e mesmo nos dias atuais, após o conflito ocorrido na década de 1960, o local ainda é palco
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de várias outras disputas territoriais. Sendo assim, é de extrema importância compreender a realidade atual do local tendo como base o seu processo de formação e de luta. Com o passar dos anos, várias transformações históricas, sociais e políticas ocorreram, e juntamente com estas, a própria luta camponesa foi modificada, não perdendo as características de quando surgiu, mas se readaptando, de tempos em tempos, ao contexto social. A transformação da luta também inclui a categoria de luta, os agentes/sujeitos, envolvidos neste processo de transformação social, que buscam cada vez mais a fragmentação da condição de invisibilização a qual foram condicionados ao longo do tempo. No entanto, várias são as dificuldades existentes para a resolução da situação. De acordo com Martins (1981 p. 16), a própria noção de direito de propriedade se apresenta de forma contraditória, uma vez que o mesmo direito judicialmente invocado pelo camponês como forma de resistência às expropriações sofridas, também é o direito invocado pelo latifúndio e/ou capitalista para exercer e legitimar a expropriação do camponês. A contradição deste direito está no fato de que este serve a duas formas diferentes de propriedades, a familiar enquanto terra de trabalho e a capitalista, terra de negócio. O município de Verdelândia é mais um local de conflito no cenário fundiário do país, onde o processo de regularização e de legalização dos direitos das categorias pobres é cada vez mais complicado, se arrastando por longos anos, até que se tenha uma solução, isso nos casos que encontram solução. Até mesmo as instituições responsáveis pela questão agrária, sendo exemplo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, se mostram ineficientes, tendo posicionamentos contraditórios e em muitos casos, dificultando o processo de regularização das terras dos assentamentos/acampamentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O acampamento Vitória e os nativos do assentamento Arapuim, assim como demais comunidades existentes no Brasil que vivenciam um cenário de disputa e de
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violação de direitos, aguardam o posicionamento das autoridades competentes, para que as práticas de violência sejam punidas e que os seus direitos sejam reconhecidos e legitimados. A luta desses povos se constitui bem mais que uma luta de reforma nas estruturas, mas uma luta de reforma das estruturas. As relações sociais presentes nos acampamentos e assentamentos do município de Verdelândia no Norte de Minas Gerais, se apresentam como resultado de um cenário com características visíveis em vários outros locais de disputas de terras, no entanto, também se apresentam como resultado de especificidades do próprio local, com suas peculiaridades e com suas particularidades. Assim como outros locais no Brasil, o município de Verdelândia sofreu um grande conflito agrário, que por sua vez deixou grandes resquícios, no entanto, apenas este município vivenciou o “massacre de Cachoeirinha” na década de 1960, acontecimento que organiza toda a luta por terra dos assentamentos e acampamentos do município. A luta dos moradores dos assentamentos/acampamentos continua, uma vez que enquanto que os primeiros buscam meios e formas de continuar obtendo do trabalho rural o sustento familiar, os segundos, além deste obstáculo, enfrentam diante do INCRA o processo de regularização das terras, o que de todo modo, nos mostra um longo caminho a se percorrer, uma vez que o histórico brasileiro de reforma agrária apresenta, desde o período da colonização, até os períodos atuais, grandes dificuldades para o acesso a terra, sendo então, o exame e análise sociológica do presente trabalho, um estudo parcial, que pode ser desenvolvido com maior profundidade em futuras produções acadêmicas.
REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e Poder Simbólico. In: Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. DECRETO 23080, DE 06 DE OUTUBRO DE 1983. Disponível em: <http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=Dec&num=2 3080&comp=&ano=1983> Acessado em 05 de Dezembro de 2013. FERNANDES, Bernado Mançano. Brasil: 500 anos de luta pela terra. Disponível em : <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/terra/mst3.htm> Acessado em 05 de Dezembro de 2013.
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IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?uf=31&dados=8> Acessado em 11 de Novembro de 2013. Lei Nº 4.504, de 30 de Novembro de 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm> Acessado em 05 de Dezembro de 2013. MONÇÃO, Kátia Maria Gomes. As sementes da luta: o conflito agrário de Cachoeirinha - Um estudo dos assentamentos e dos acampamentos do município de Verdelândia, Norte de Minas Gerais. Dissertação de Mestrado PPGDS Unimontes, 2009. SANTOS, Sônia Nicolau. À procura da terra perdida: para uma reconstituição do Conflito de Cachoeirinha. 1985. 137 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Políticas) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1985. SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. São Paulo/SP: Brasiliense, 1980.
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GENOCIDE: PERSPECTIVES FROM THE SOCIAL SCIENCES Charles H. Anderton1 ABSTRACT: This article surveys risk factors for genocide and genocide prevention from the perspectives of four social science disciplines: sociology, social psychology, political science, and economics. Each discipline brings a valuable set of concepts and tools to bear in genocide research. Moreover, fruitful multi- and inter-disciplinary collaboration across the four disciplines (and other fields) is shedding new insights into why genocide has have been such a recurring tragedy in human affairs and how such atrocities can be prevented. Keywords: Genocide. Mass Killing. Genocide Prevention. Behavioral Experiments. Loss Aversion. Psychic Numbing.
INTRODUCTION
When people hear the word genocide, they often think of the Holocaust (1933-1945) in which leaders in Nazi Germany and Nazi-occupied Europe fostered the extermination of roughly six million Jews and millions more across other groups (e.g., Roma, Soviet prisoners of war, Poles, religious objectors, homosexuals, handicapped). In the 1950s, research attempting to explain why the Holocaust occurred began to emerge. Much of the early research suggested the Holocaust happened because Nazi leaders and other perpetrators suffered from psychopathology (i.e., they were “mad”), had corrupted personalities (i.e., they were “bad”), and/or were products of a deeply embedded anti-Semitic culture (i.e., extreme ideology) (Gilbert 1950, Dicks 1950, Waller 2007, chapters 1-4). Waller (2007) characterizes this early view of the Holocaust as the “extraordinary origins of extraordinary evil,” which I label simply as the “Bad Nazi Thesis.” A major problem with the “Bad Nazi Thesis” is that genocides are not rare. Since the end of World War II, more than 40 genocides and at least 100 non-genocidal
1 Charles H. Anderton is professor of economics and the W. Arthur Garrity Sr. Professor in Human Nature, Ethics and Society at the College of the Holy Cross, Worcester, MA USA. His email is: canderto@holycross.edu and his webpage is: http://college.holycross.edu/faculty/canderto/. He is grateful to Tatiana Berghauser for encouragement in writing this article. Any errors and omissions are the responsibility of the author.
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forms of large-scale intentional killings of civilians, known as mass killings, have been documented (Anderton 2016). If genocide and other forms of mass atrocity require uncommon personalities and/or unusually extreme ideologies, why are they such an ordinary feature of human behavior? A second major problem with the “Bad Nazi Thesis” is that new research in the 1970s and 1980s painted a distinctly different picture of the origins of the Holocaust and other genocides. Led by sociologists (e.g., Helen Fein, Leo Kuper), social psychologists (Israel Charny, Ervin Staub), political scientists (e.g., Barbara Harff, Robert Melson), and historians (e.g., Rouben Paul Adalian, Christopher Browning), the new research emphasized the “ordinary origins of extraordinary evil” (Waller 2007, chapters 5-8). In this new paradigm, the architects and perpetrators of the Holocaust and other genocides seemed to be ordinary people; they scored within normal ranges on standard personality tests and their behaviors, outside of atrocity perpetration, in such contexts as family life and community relations were normal and even commendable (see personal case histories of perpetrators in Waller 2007). The new research also highlighted the goal orientations of genocide architects and perpetrators, which varied considerably, but nonetheless implied that the conception and execution of various phases of mass atrocity could serve strategic purposes and in this sense be seen as “rational.” The objective of this article is to highlight perspectives from the social sciences into the “ordinary” and even “rational” origins of genocides and how they might be prevented.2 Many social science disciplines, as well as disciplines in the humanities (e.g., history, languages, philosophy, religion, visual arts) and sciences (e.g., biology, neurobiology, psychopathology), provide valuable insights into genocidal behavior, but it is beyond the scope of this article to survey such a breadth of literature. Instead, I focus upon critical insights into genocide risk and prevention from four social science disciplines: sociology, social psychology, political science, and economics. Even within
2 The notion of “ordinary” and “rational” origins of genocide in no way implies that genocide is reasonable. Obviously, such atrocities are horrific and should be condemned. When social scientists and other scholars seek to understand the motives of genocide perpetrators, the motives discovered do not justify the actions of the perpetrators. In a similar manner, police detectives seek to identify the motives of suspects in murder investigations, not to justify the motives of the murderer but to find the perpetrator and bring her or him to justice. Moreover, by better understanding the motives of genocide perpetrators, scholars, policymakers, and activists can hopefully reduce the number and seriousness of such atrocities in the future.
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this limited set of disciplines, given space constraints, my surveys must be selective and brief. The essay is organized as follows. The next two sections cover definitions and data patterns of genocides and mass killings. The subsequent section surveys key ideas on genocide risk from sociology, social psychology, political science, and economics. The four disciplines are not separate silos for studying genocide because many of the key aspects of genocidal behavior have multiple and reinforcing wellsprings emanating from conditions that are studied within these disciplines. Hence, the four disciplinary viewpoints also point to fruitful interdisciplinary perspectives for understanding genocide. The concluding section sums up with several thoughts on the disciplinary and interdisciplinary study of genocide and its prevention.
DEFINITIONS OF GENOCIDE AND OTHER MASS ATROCITIES
In his seminal 1944 book on the Holocaust, Axis Rule in Occupied Europe, Raphael Lemkin combined the Greek word genos (race, tribe) and the Latin cide (killing) to form a new word: genocide. In its briefest form, genocide means to kill or destroy a people group. Lemkin, however, spent chapter 9 of his ground-breaking book, and really the whole book, explaining how much he meant by the term genocide. For example, Lemkin emphasized that genocide has two phases: (1) “destruction of the national pattern of the oppressed group” and (2) “imposition of the national pattern of the oppressor” (Lemkin 1944, p. 79). Hence, genocide is not just the elimination of a people group, it also involves the flourishing of the oppressor group in place of (and at the expense of) the oppressed. Furthermore, genocide was a “synchronized attack” and a “coordinated plan of different actions” directed against an oppressed group’s existence (Lemkin 1944, pp. xi and 79). The synchronization and various actions of genocide struck across eight dimensions or “fields” in which group elimination was accomplished:
[I]n the political field (by destroying institutions of self-government and imposing a German pattern of administration, and through colonization by Germans); in the social field (by disrupting the social cohesion of the nation involved and killing or removing elements such as the intelligentsia …); in the cultural field (by
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prohibiting or destroying cultural institutions and cultural activities; by substituting vocational education for education in the liberal arts …); in the economic field (by shifting wealth to Germans and by prohibiting the exercise of trades and occupations by people who do not promote Germanism “without reservations”); in the biological field (by a policy of depopulation and by promoting procreation by Germans in occupied countries); in the field of physical existence (by introducing a starvation rationing system for non-Germans and by mass killings …); in the religious field (by interfering with the activities of the Church …); in the field of morality (by attempts to create an atmosphere of moral debasement …) (Lemkin (1944, pp. xi-xii).
Among the many critical aspects of Lemkin’s conceptualization of genocide are three that I emphasize: (1) genocide is multifaceted; it is an assault upon many, and in some cases all, of the eight essential foundations of a people group’s existence; (2) genocide does not necessarily imply outright physical killing, although it usually does; nevertheless, a targeted group can be eliminated by prohibiting its procreation and/or destroying its culture, institutions, and religion and forcing it to assimilate into the dominant group; and (3) the nature and actions of genocide plague so many aspects of human life that perspectives from multiple disciplines are not just desirable, but essential, for understanding genocide risk and prevention. It was Lemkin’s dream to see genocide become a punishable crime in international law and he worked tirelessly toward that end through the United Nations, political leaders, and other organizations (Waller 2016). In December 1948, the United Nations established genocide as a crime under international law. In Article II of the 1948 United Nations (UN) Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, genocide is defined as …any of the following acts committed with intent to destroy, in whole or in part, a national, ethnical, racial or religious group, as such: (a) Killing members of the group; (b) Causing serious bodily or mental harm to members of the group; (c) Deliberately inflicting on the group conditions of life calculated to bring about its physical destruction in whole or in part; (d) Imposing measures intended to prevent births within the group; (e) Forcibly transferring children of the group to another group (United Nations 1948).
Note that the dimensions of genocide under Lemkin’s conceptualization are much broader than the Convention’s. The Convention focuses on the physical destruction of an oppressed group such as killing, serious bodily harm, and
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physical destruction (see parts a-c). Certainly physical destruction of a people group is critical in Lemkin’s conception of genocide, but the “physical” is just one of Lemkin’s eight fields. A large literature analyzes the strengths and weaknesses of the conceptions of genocide offered by Lemkin and the Convention including criticisms regarding groups left out (e.g., political groups), difficulties with proving intent, and the inability of the Convention to prevent genocide. Many scholars have proposed their own definitions of genocide and other civilian atrocity concepts. For example, some scholars distinguish genocide and mass killing where genocide is the targeting of a group for destruction based on the group’s characteristics (e.g., ethnicity, race, religion) and mass killing is civilian destruction without a clear designation of group membership or where the intention to eliminate the group as such is absent (Staub 1989, p. 8; Waller 2007, p. 14). Other scholars, however, maintain that distinguishing genocide and mass killing runs into difficulties regarding perpetrator intentions or characteristics of targeted groups so that it is not fruitful for research to distinguish the two (see, e.g., Ulfelder and Valentino 2008). Still others argue that the term genocide does not need to be distinguished from other forms of intentional violence against civilians “because genocide gives us a framework for bringing together the varied phenomena of anti-civilian violence and understanding the relationships among them” (Shaw 2003, p. 153). To complicate matters further, there are other atrocity crimes distinct from but often associated with genocide including war crimes, crimes against humanity, and ethnic cleansing. Following Anderton and Brauer (2016b), I categorize genocide, mass killing, and other atrocity crimes under the broad category of mass atrocities.3 A continuing challenge for genocide research is how to conceptualize genocide and when to distinguish it from and integrate it with other forms of atrocities against civilians. 3 According to Anderton and Brauer (2016b), “Crimes against humanity are systematic attacks against civilians involving inhumane means such as extermination, forcible population transfer, torture, rape, and disappearances. War crimes are grave breaches of the Geneva Conventions including willful killing, willfully causing great suffering or serious injury, extensive destruction and appropriation of property, and torture. Ethnic cleansing is the removal of a particular group of people from a state or region using such means as forced migration and/or mass killing (Pégorier 2013). Ethnic cleansing is not, however, defined as an atrocity crime under the Rome Statute of the International Criminal Court.” For reviews of mass atrocity definitions and controversies see Curthoys and Docker (2008), Meierhenrich (2014, pp. 56-104), and Waller (2016).
159
PATTERNS OF GENOCIDES AND MASS KILLINGS
Figure 1 shows the number of states perpetrating genocides and mass atrocities (genocides and mass killings) per year over the period 1956-2014. A key message of Figure 1 is that for the almost 60 years covered by the genocide data there were one or more genocides in the world each year with the exception of 2012. Furthermore, for the mass atrocity data there were at least two, and often far more than two, mass atrocities in the world each year. Figure 2 shows estimated fatalities from selected state-perpetrated post-World War II genocides. The data are extremely disturbing when considering that the victims of such atrocities are noncombatant civilians, including children and the elderly along with male and female adults. Moreover, such fatalities sometimes occur after severe brutalities were inflicted on the victims including rape, torture, and coercing people to rape or kill family members (von Joeden-Forgey 2016). Furthermore, according to Anderton (2016), estimated fatalities totaled over only three of the genocides in Figure 2 (Cambodia 19751979, Pakistan 1971, and Sudan 1983-2002) surpasses the total estimated military fatalities for the 239 civil (intrastate) wars fought over the period 1900 to 2014. Anderton also documents that about as many people were killed in six weeks during the 1994 Rwandan genocide (estimated to be 315,000) as died in all worldwide international and domestic terrorist incidents from 1970 to 2014 (estimated to be 307,000). Figures 1 and 2 focus on mass atrocities perpetrated by states, but nonstate groups perpetrate atrocities too. Anderton (2016) documents about three dozen nonstate groups that carried out mass atrocities within the 1989 to 2014 period. Furthermore, the only dataset that specifically tracks genocides, the Political Instability Task Force (PITF), has designated the Islamic State as a perpetrator of genocide in its 2014 update (Marshall, Gurr, and Harff 2015). This is the first time that PITF has identified a nonstate group as the main perpetrator of genocide.
160
FIGURE 1 â&#x20AC;&#x201C; Number of state-perpetrated genocides and mass atrocities by year, 1956-2014
Number of Genocides and Mass Atrocities
Number of Genocides
Number of Mass Atrocities (Genocides and Mass Killings)
40 Mass Atrocities (Genocides and Mass Killings)
35
30
25
20
15
Genocides 10
5
0
SOURCES: Adapted from Anderton (2016) and sources therein and Marshall, Gurr, and Harff (2015)
161
FIGURE
2
â&#x20AC;&#x201C;
Estimated
fatalities
from
selected
Afghanistan, 1978-92
state-perpetrated
post-World
War
II
genocides
1.176.000
Angola, 1975-94, 1998-2002
666.000
Bosnia, 1992-95
228.000
Burundi, 1965-73, 1988, 1993
189.750
Cambodia, 1975-79
2.700.000
Central Afr. Rep., 2013-14
7.500
China, 1966-75
480.000
El Salvador, 1980-89
49.450
Guatemala, 1978-90
71.400
Iraq, 1988-91
336.000
Pakistan, 1971
2.000.000
Rwanda, 1994
750.000
Sudan, 1983-2002
1.924.000
Sudan-Darfur, 2003-11
400,500
Uganda, 1971-79, 1980-86
456.000 0
500.000
1.000.000
1.500.000
2.000.000
2.500.000
3.000.000
Estimated Fatalities SOURCE:
Midpoint fatality estimates based on the Political Instability Task Force geno-politicide dataset (Marshall, Gurr, and Harff 2015)
162
Taken together, Figures 1 and 2 imply that genocides and mass killings occur quite frequently in human affairs. The number of such atrocities is counted per year rather than per decade. Imagine if the number of major airline crashes in a year was eight or ten; the flying public would be in a state of fear and rightly so. And yet, the average number of mass atrocities (genocides and mass killings) present per year in the world since 1956 is 24, and such incidents correspond to fatalities, not in the hundreds, but often in the tens or hundreds of thousands. It is as if the international community and people generally are numb to the devastation wrought by mass atrocities. Another truly disturbing aspect implied by Figures 1 and 2 is that many “ordinary” people must participate for mass atrocities to occur. Outside of major city bombing campaigns or weapons of mass destruction (e.g., nuclear, biological weapons), it is not possible for a small group of leaders to kill thousands or even millions of civilians. Such atrocities require that thousands of perpetrators go along with the desires of genocide architects for such devastation to occur. Such people cannot, for the most part, be psychopathological because psychopathology is relatively rare. Hence, one of the great challenges of genocide research is to understand how ordinary people can be swept up into perpetrating, or not resisting, genocide and mass killing. The social sciences provide important insights into these and other disturbing aspects of mass atrocities, to which I now turn.
PERSPECTIVES ON GENOCIDE FROM SELECTED SOCIAL SCIENCE DISCIPLINES
SOCIOLOGY
Shaw (2010, p. 142) characterizes genocide as a “peculiarly sociological crime” because the very nature of genocide is one in which social classification is manipulated, distorted, and perverted against one or more groups by atrocity architects and other perpetrators. Until the late 1970s, the discipline of sociology did not recognize genocide as a phenomenon that should be analyzed in sociological terms. The neglect was due, in
163
part, to the discipline’s unwillingness to look at extreme human behavior including “evil” (Shaw 2010, p. 144). Pioneering research on the Holocaust and genocide by sociologists Helen Fein (1979, 1993), Leo Kuper (1977, 1981), and Zygmunt Bauman (1989) opened the door to the sociological study of genocide. Such research has contributed to greater understanding of what genocide is and is not and, most significantly, to the roles that social categorization, structure, and processes play in precipitating genocide. One of the distinctive contributions of the early sociological research on genocide was to show how a people group within a broader society could come to be designated as “alien” or “other” by political leaders in a society. In extreme cases of such “othering,” people from the outgroup would, to use Fein’s phrase, “fall outside the universe of moral obligation” of the dominant group. When people from the out-group are so designated, they are often treated discriminatorily and may come to be treated murderously by people from the dominant group. In-group/out-group discrimination exists just about everywhere, so the key issue is not the existence of “othering” per se, but the circumstances in which it can become so extreme that it crosses into genocide. The early sociologists maintained, as do virtually all genocide scholars today, that there is not one path or formula by which genocide breaks out and spreads. Rather, there are various enabling circumstances that can foster genocide. Moreover, genocide often emerges in phases in which the initial goals of the perpetrators do not include outright extermination of the victim group. Two key questions for the early sociologists (and they remain highly relevant today) were: (1) What social factors and conditions cause a people group to become an out-group? (2) What are the enabling circumstances that cause mistreatment of the out-group to cross into genocide? It is beyond the scope of this article to survey in detail the work of the early sociologist on these two questions. Instead, I provide a brief overview of the thinking of two early sociologists on the questions: Helen Fein and Leo Kuper. Fein (1979, pp. 8-10) maintains that the outing of a people group can benefit a state’s political leaders when it increases the state’s legitimacy and the dominant group’s control of the state. Such “benefits” are most likely to arise when the state is weak internally (e.g., low solidarity among various in- groups) and has suffered past defeats in
164
war and losses of territory. The out-group being identified as outside the universe of the in-group’s moral obligation, however, is a necessary but not sufficient condition for genocide. If this outing is combined with current defeats in war and internal strife in which a “political or cultural crisis of national identity” emerges, the risk of genocide increases (Fein 1979, p. 9). The genocide risk is further magnified if the political elite adopts a new formula or narrative to justify and solidify its political control and the potential cost of brutal treatment of the out-group is low (owing, for example, to a low probability that third parties would intervene on behalf of the out-group). Such conditions can vary from case to case and even within a given nation over time, giving rise the phenomenon of genocide emerging in “fits and starts” or not emerging when it seemed likely it would. Nevertheless, Fein’s conditions represent an “explanatory sketch” of genocide that can be applied across many historical and potential future cases of mass atrocity. Kuper’s (1977, 1981) early sociological research on genocide also contains perspectives that remain highly relevant in genocide studies today. Among his many insights into the causes of genocide and the failures of the international community to prevent mass atrocities are his analyses of social processes of exclusion of an out-group and how these can lead to the rationalization of mass murder in the minds of perpetrators. Kuper (1977) describes how a society can move to the point in which there is deep polarization between a dominant in-group and a socially constructed out-group in which the stage is set for genocide:
Polarisation may be a deliberate policy, or an unpremeditated consequence of strategies pursued. There are certain clichés of action, almost involuntary idiomatic actions, which feed into the process of polarization. Action and reaction, premeditated and involuntary, may so intermesh as to move violence to higher levels of destruction through escalating cycles of polarisation (Kuper 1977, p. 127).
The movement of violence to higher levels can cause key perpetrators from the in-group to cross a point of no return in which genocidal actions become socially “normal” and even rewarding (e.g., through perpetrators’ career advancement and looting of victims assets). At its worst, polarizing violence leads not only to extremes of brutality such as the torture and mass murder of children, women, men, and the elderly, but such
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actions are seen as necessary and even “good” for society. When the point of no return is crossed, the dominant group becomes “locked in” to a program of destruction of the out-group such that moderate voices for peace are excluded:
By the middle ground, I refer to those relationships between people of different racial, religious or ethnic background, and those ideologies, which might form the basis for movements of inter-group cooperation and of radical change, without resort to destructive violence. Where the carriers of these ideologies are significant in number or power, the process of polarisation requires that they be appreciably recruited or coerced into one or other of the warring camps, and that the irreducible minority is either silenced or eliminated, at the same time that its ideologies of conciliation are discredited (Kuper 1977, p. 209).
SOCIAL PSYCHOLOGY
As noted above in Figure 2, the number of people killed in genocides is often in the tens or hundreds of thousands and, in some cases, in the millions. It is not possible (outside of city bombing campaigns or weapons of mass destruction) for a small number of genocide architects to kill such a large number of victims. Rather, it takes many people to become perpetrators of genocide for thousands or millions of people from the out-group to be killed. For example, it is estimated that between 100,000 and 500,000 people actively participated in the murder of six million Jews during the Holocaust (Waller 2007, p. 16). For the 1994 Rwandan genocide, in which about 750,000 people were murdered, Straus (2004) estimates that between 175,000 and 210,000 people actively participated in the killing. Since psychopathology is relatively rare, most genocide scholars reach the disturbing conclusion that “ordinary people” (i.e., people like you and me) must get caught up in social processes and cognitive states in which they become willing to perpetrate, or refuse to resist, genocide. How can this be? Social psychologists have added a great deal to our understanding of genocide perpetration by ordinary people. Such explanations hinge on the distinction between what Roth (2010, p. 199) calls situationism and dispositionalism. Under situationism, situational variables (e.g., a person’s immediate social settings such as neighborhood and workplace) affect individual and group behavior. Dispositionalism focuses on the internal dispositions of individuals (e.g., whether a person is aggressive or welcoming toward
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people from other groups). Among social psychologists who do research on genocide, many lean strongly in the direction of situationism to explain how ordinary people become perpetrators. For example, Waller (2007, p. 269) states that evil behavior is “a product of situational influences that channel action in particular directions.” Similarly, Roth (2010, p. 199) indicates that “situational variables most often prove determinative of individual and group behavior.” According to Roth (2010, p. 199), the key factor that defines a person’s situation is “the group or social norms that implicitly or explicitly govern expected behavior in the situation.” Hence, many individuals who find themselves in a situation in which the social norms and expectations are to discriminate against a people group, and even to have such people “cleansed” from the social group, will come to participate in, or not resist, such norms. Tragically, such situational pressures to conform to the genocide architects’ wishes by explicitly participating in genocide or looking the other way occur in all genocides and for thousands of ordinary people. Application of the situationist perspective to understanding genocide perpetration is built upon several path-breaking experiments in social psychology, especially those of Asch (1951), Milgram (1963), and Zimbardo (1971). The Asch experiment reveals a surprising degree of conformity to an experimentally-contrived erroneous group norm. Figure 3 shows the information presented to subjects in the experiment. Each subject was given the two cards shown in the figure. The line on the first card is the exact length of line C on the second card, but the subjects were not told this. Each subject was asked to state out loud which line on the second card matched the length of the line on the first card. Various trials of eight male college students participated in each run of the experiment, but only one of the eight was a true subject of the experiment. Seven of the eight recruits were “actors” employed by Asch to construct an erroneous group norm in order to study the behavior of the one true subject per trial. In each trial, the seven actors would choose in turn the matching line on the right card and then the true subject would choose last. In some trials the seven actors would unanimously choose the correct line C, but in other trials they would unanimously choose the same incorrect line. For the trials in which the seven actors chose correctly, the rate of incorrect answers by subjects was less than one percent. For the incorrect trials, however, Asch found, that 36.8 percent of
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subject choices conformed to the actors’ erroneous selection. Moreover, subjects participated in multiple trials and Asch found that 75 percent of subjects gave at least one wrong answer in the incorrect trials in which they participated. The Asch experiment revealed a conformity effect associated with situational variables that was not good news when thinking about genocide. If, owing to situational variables, subjects could be prone to making erroneous choices when the costs of doing so were small, how much more might they go along with or look the other way when tyrannous leaders demanded conformity (through threats and rewards) to their genocidal aims. FIGURE 3 – Pairs of cards used in the Asch conformity experiment Card 1
Card 2
A
B
C
SOURCE: Based on Asch (1951)
Another foundational experiment in the situationist paradigm of social psychology is Milgram (1963). The experiment involved three individuals: an “actor” pretending to be a subject in the experiment, a person in a white coat who ran the experiment (the “authority” figure), and a true experimental subject. The actor was given the role of learner in the experiment and the subject was a teacher who was directed to follow the orders of the authority figure running the experiment. The subject believed that the assignment to the roles of learner and teacher was random, but actually the assignment was rigged so
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that the actor would be the learner and the subject the teacher. After the role assignments, the actor (learner) and subject (teacher) were placed in separate rooms where they could hear but not see each other. Prior to the actual running of the experiment, the subject was told that the learner had a heart condition and the subject was given a relatively mild sample electric shock to experience what a low-level shock would supposedly be like for the learner. In actuality, the learner did not receive any real shocks, only pretend ones to see how the unknowing subject would react. The authority figure instructed the subject to read a pair of words to the learner. The subject was told to then read the first word of each pair and four possible answers, one of which aligned with the second word in the pair. The learner would press a button to indicate which of the four possible answers aligned with the second word in the pair. A correct answer would cause the subject to move to the next word pair and repeat the exercise. An incorrect answer would be met with a slight shock of 15 volts at first, but increasing by 15 volts for each subsequent incorrect answer. The actor-learner was pre-instructed to answer incorrectly with enough frequency that the volts administered by the subject would escalate to higher levels, even those clearly labeled to the subject as severe. Table 1 summarizes the intensity of shocks (ranging from 15 to 450 volts) that subjects believed were in play during the experiment and the choices that the subjects made to administer shocks at the direction of the authority figure. Prior to running the experiment, Milgram polled 14 Yale University senior psychology majors to gauge their expectation of the percent of subjects in the experiment that would eventually choose the highest level of shock (450 volts, labeled in the XXX range in Table 1).
TABLE 1 â&#x20AC;&#x201C; Shock levels chosen in Milgram obedience experiment
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Shock Level Knowingly Administered By Subject (In Volts) Slight Shock 15 30 45 60 Moderate Shock 75 90 105 120 Strong Shock 135 150 165 180 Very Strong Shock 195 210 225 240 Intense Shock 255 270 285 300 Extreme Intensity Shock 315 330 345 360 Danger: Severe Shock 375 390 405 420 XXX 435 450
Number Of Subjects (Out Of 40) For Whom This Was The Maximum Shock 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 5 4 2 1 1 1 0 0 0 0 26 N=40
SOURCE: Milgram (1963, p. 376)
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The mean response was that out of 100 subjects, 1.2 percent would eventually choose the highest level. The most “pessimistic” of the Yale seniors predicted that 3 percent would go that high. Milgram found, however, that of the 40 subjects who participated in the experiment, all selected at least an intense degree of shock (300 volts or more) and 26 of the 40 (65 percent) chose the highest level of shock (450 volts). The results were all the more surprising when considering that as the experiment moved into higher levels of voltage, the actor-learner (who was not receiving real shocks) shrieked and screamed in ways that could be heard by the subject. Even under these conditions of apparent suffering, subjects continued to administer higher levels of shock because an authority figure in a white coat told them that it was important that they continue. If, owing to obedience to authority, subjects could choose to impose suffering when the cost of refusing to harm was so low, how much more might people be prone to obey the authority of tyrannous leaders who can bring substantial penalties to bear on those who refuse to go along with their genocidal aims. A third foundational experiment in the situationist paradigm of social psychology is the Stanford Prison Experiment (SPE) on power relations between guards and prisoners (Zimbardo 1971). The experiment randomly assigned 24 subjects to the roles of prisoner and guard in a mock prison situation that was supposed to play out over a period of two weeks. Zimbardo and his research team found that those assigned to the role of guard came to act in strongly authoritarian ways including subjecting the prisoners to physical punishment and psychological torture. Meanwhile, some of the prisoners submitted to the abuse while others revolted. Owing to the escalating abuse against the prisoners, the experiment was stopped after just six days. The behavioral extremes revealed in the experiment, which surprised Zimbardo and the others on his research team, suggested that it was not the personalities of the guards (i.e., their dispositions), but the situations that the guards were in that facilitated their oppressive actions. Such positioning of in-group authorities in dominance over those designated as an out-group lies at the core of genocidal actions of extreme discrimination, including murder. The disturbing result of the experiment is that ordinary people can come to “legitimize” in their own minds such abusive behavior because they are (1) in a position of authority, (2) face no social or institutional context restraining them, and (3) can cognitively learn to ignore
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the dissonance that might otherwise arise in their minds indicating that what they are doing is wrong.
POLITICAL SCIENCE
As a discipline, political science did not really move into genocide research until the 1990s. According to Straus (2010, p. 167), the end of the Cold War in 1990 and a series of high profile civil wars and genocides in the 1990s and the early 2000s (e.g., Balkan wars and mass atrocities in the mid-to-late 1990s, Rwanda civil war and genocide in 1990-1994, atrocities in Sudan/Darfur beginning in the early 2000s) fostered growing interest by political scientists in genocide research. Further interest within the field was fueled by the UN Security Councilâ&#x20AC;&#x2122;s formation of a special advisor on genocide prevention in 2004, development of the Responsibility to Protect norm at the 2005 UN World Summit, and release of a genocide prevention report in 2008 by a team of scholars and policymakers led by former US Secretary of State, Madeleine Albright, and former US Secretary of Defense, William Cohen (Albright and Cohen 2008, Straus 2010, pp. 167168). Among the many important research avenues brought to the study of genocide by political scientists are four highlighted by Straus (2010, p. 168): (1) comparative study of genocide, (2) importance of regime type (e.g., autocracy, anocracy, democracy, transitioning regime type) in understanding genocide, (3) rationalist explanations of genocide, and (4) connections between war and genocide. Political scientists also promoted the application of quantitative methods in genocide research including formal game theory models and assessments of genocide risk using statistical methods. An important example of comparative genocide research in political science is Melson (1992), who compared and contrasted the Armenian genocide (1915-1918) and the Holocaust. Among Melsonâ&#x20AC;&#x2122;s key results was how, in each case, revolution prior to genocide divided people into in-groups and out-groups and the emergence of a new war increased the risk that out-groups would be seen as enemies of the state and targeted
172
for extermination (Straus 2010, p. 170). Many other political scientists followed in Melsonâ&#x20AC;&#x2122;s footsteps and studied multiple cases of genocide and mass killing comparatively (see, e.g., Valentino 2004 and Midlarsky 2005). Another type of comparative research is to apply statistical methods to a large sample of countries to ascertain risk factors for genocide. Krain (1997), for example, statistically analyzed genocide risk factors for the perio201 1948 to 1982 based on a sample of about 4000 country-year observations containing 35 genocides. Krain found that civil war is a strong predictor of genocide onset and interstate war and periods of decolonization also increase risk. The most prominent empirical study of genocide risk in the literature is Harff (2003), who identified 126 countries that experienced state failure (e.g., regime collapse, civil war) at some point in the 1955 to 1997 period. Of the 126 cases of state failure, 35 culminated in genocide. Conditioned on state failure, Harffâ&#x20AC;&#x2122;s statistical analysis identified six key risk factors for genocide: (1) magnitude of political upheaval, (2) history of prior genocide, (3) exclusionary ideology by the ruling elite, (4) autocratic regime, (5) ethnic minority elite, and (6) low trade openness. The empirical work of Krain and Harff were foundational to an emerging body of statistical research on genocide risk, conducted mostly by political scientists, which currently numbers about three dozen publications (for a review of this literature, see Hoeffler 2016). Many comparative case studies and, especially, empirical studies in political science find that non-democratic regimes (e.g., autocracy, anocracy) correlate to greater genocide risk. For example, according to Rummel (1998), autocracy is the major risk factor for genocide and other mass atrocities perpetrated by governments. Moreover, one of Harffâ&#x20AC;&#x2122;s six risk factors noted above is autocracy. But such results are subject to controversy among scholars. For example, many genocide and mass killing (GMK) samples used in empirical research focus on the post-World War II period. There is strong evidence that some democratic states committed or allowed GMKs in the past, for example, against native peoples. Such cases that occurred in earlier centuries or prior to World War II would not be part of the samples of modern empirical genocide research. Moreover, new empirical research is beginning to consider that it may not be regime type per se, but the transition of a political regime (e.g., transition from autocracy to anocracy and then to democracy), that may be most important for understanding genocide risk. For
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example, Anderton and Carter (2105) found strong empirical evidence of an inverted-U relationship between regime type and genocide risk based on a sample of close to 200 countries over the 1956-2006 period. Their result is summarized in Figure 4. The figure implies that, controlling for other factors, autocracies have a greater risk of genocide than democracies, but â&#x20AC;&#x153;in-betweenâ&#x20AC;? political regimes (i.e., anocracies) have the greatest risk. An oft-cited goal in international affairs is to help states transition from autocracy to democracy. Figure 4 implies, however, that, everything else the same, such transitions will first move through anocracy in which genocide risk rises before it finally decreases in the democratic zone. Hence, pushing states from autocracy to democracy could initially elevate the GMK risk. FIGURE 4 â&#x20AC;&#x201C; Regime type and genocide risk (inverted-u hypothesis) Genocide Risk High Risk
Moderate Risk
Low Risk Autocracy
Anocracy
Democracy
Regime Type The figure shows that, controlling for other factors, autocracy is correlated with greater genocide risk than democracy, but intermediate regime types (i.e., anocracies) have the highest risk. SOURCE: Based on empirical results in Anderton and Carter (2015, pp. 20-22)
Another important contribution by political scientists to the study of genocide is the consideration of the goals of genocide architects and the notion that their choice of
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genocide can be â&#x20AC;&#x153;rational.â&#x20AC;? The word rational does not mean reasonable. In the social sciences, a rational decision is one in which the decisionmaker weighs the expected costs and benefits of various possible actions and choses an action designed to achieve the greatest feasible net benefit. A rational decision implies that the person has a motive in making her or his choice and is trying to achieve some objective. The choice could be horrific (e.g., murder, genocide), but if the choice is deliberately taken to achieve an objective, it is in this sense rational. One of the main motives for genocide and mass killing emphasized by political scientists is the strategic use of civilian extermination campaigns to increase or retain political power and/or territorial control when facing threats from internal enemies. For example, the political elite in a weakened regime may perceive that killing civilians would weaken a rebel group that is dependent on civilian support, compel civilians to align with the state to protect their lives, and/or cause other groups within the state to more strongly support the political elite (e.g., by being rewarded with looted assets from those designated as out-groups) (see, e.g., Valentino 2004, Midlarsky 2005, Kalyvas 2006). Finally, we note the importance of political science research on connections between war and mass atrocity. Virtually all genocides and mass killings occur in the context of war, although the reverse does not hold (i.e., there are many wars in which mass atrocities do not occur). Furthermore, almost all empirical studies of genocide risk that include war as a risk assessment variable find a positive correlation between war and genocide risk (Hoeffler 2016). One of the main explanations for the elevated risk of genocide during war is that war typically challenges the ruling eliteâ&#x20AC;&#x2122;s hold on political power. In many wars, especially civil wars, if the political elite loses, they will no longer have political power and may be incarcerated or executed. Hence, for the political elite, war can represent an existential threat. In extreme cases of existential threat, some political leaders have been willing to do just about anything to retain their hold on power, including carrying out atrocities against civilians. For more detailed analyses of connections between war and genocide, see Shaw (2003, 2007).
ECONOMICS
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Substantial research on genocide by economists has begun to emerge only within the last several years.70 Following Anderton and Brauer (2016b), Figure 5 highlights six critical ways in which genocides and mass killings (GMKs) are interconnected with economics as shown by the six boxes. Box 1 emphasizes the principle that GMKs are choices. As a social science devoted to the study of human choices, an extensive menu of theoretical models is available in economics (e.g., constrained optimization and game theory models) which can be applied to understand GMK choices and consequences. In economics, a distinction is often made between rational and nonrational motives underlying choices. Rational choice involves the purposeful weighing of expected costs and benefits by a decisionmaker over various feasible actions and the selection of the action that maximizes net benefits. Nonrational factors include social, psychological, and neurobiological phenomena that can cause choices to deviate from the strict predictions of rational choice theory. Box 2 implies that economic conditions (e.g., low per capita income, high unemployment) can affect the risk and seriousness of GMKs. The third box shows that GMKs can have significant economic effects via the “five Ds”: disruption of economic outcomes caused by GMK such as diminished growth; diversion of resources away from ordinary economic activities such as building roads and education into attacking civilians; displacement of people such as refugees or internally displaced people fleeing violence; destruction of people and property; and the difficulty of post-GMK development. Box 4 highlights the wealth appropriation aspect of GMKs, which includes looting victims’ assets (e.g., homes, jewelry) and bodies (e.g., enslavement, sexual exploitation) by genocide perpetrators. Box 5 shows that GMKs involve the application of business practices including efficient organization, supply chain and transportation management, resource acquisitions, and so on. Finally, the sixth box highlights that economies are critically dependent on underlying socioeconomic phenomena including security, health, and rule of law. When architects and perpetrators carry out GMK, they typically attack several, and often all, of these elements of a people group’s economic vitality. 70 For examples of early research on economic aspects of genocide see the citations in Anderton (2014, note 11). For more recent scholarship on genocide economics see the forthcoming 28-chapter edited volume on economic aspects of genocides and their prevention (Anderton and Brauer 2016a).
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FIGURE 5 – Key economic aspects of genocides and mass killings
Interconnections Between Economics and Genocides and Mass Killings (GMKs)
1. GMK is a Choice (Choices involve rational and nonrational aspects)
2. Economic Conditions Affect GMK Risk and Seriousness
3. GMK Affects the Economy Economic Impact Channels (5 Ds): 1. Disruption 2. Diversion 3. Displacement 4. Destruction 5. Development
4. GMK is a Mode of Wealth Appropriation
5. GMK Involves Business Organization
6. GMK Distorts Social Underpinnings of Economy
SOURCE: Adapted from Anderton and Brauer (2016b)
One of the most important developments in economics over the past half century has been the emergence of a new field within the discipline, namely behavioral economics, in which “insights from laboratory experiments, psychology, and other social sciences [are applied] in economics” in conjunction “with the standard economic [rational choice] model to get a better understanding” of human choices (Cartwright 2011, p. 4). Behavioral economics is a multi- and interdisciplinary field involving collaborative research among economists, social psychologists, psychologists, and others. There has been little application of the insights from behavioral economics to genocide, but there are two key discoveries within the field – loss aversion and psychic numbing – that are relevant for understanding why genocide architects choose mass atrocity and why potential third party interveners to stop genocide often do nothing. Numerous experiments in behavioral economics have found that, relative to a previously established status quo (or reference point) such as current political power or territorial control, a decisionmaker perceives her or himself to be worse off from a loss than an equivalent gain makes the person feel better off. This phenomenon is known as loss aversion. For example, if a political leader loses 100 acres of territory, the loss that
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the leader experiences will be much greater than the gain the leader would experience if 100 additional acres were acquired. What behavioral economists have discovered is that humans tend to “cognitively magnify” losses relative to equivalent gains beyond what standard rational choice theory predicts. Why is loss aversion potentially important for understanding genocide? Many case studies, theoretical models, and empirical studies of genocide posit that political leaders experience extreme pressure and even personal threat when they are losing an interstate war or losing control of their government to a rebel group. Such losses were characterized above as “existential threat.” Rational choice and game theory models predict that, under certain conditions, political leaders will make extreme choices, sometimes even mass killing and genocide, to secure their control. Loss aversion suggests that such extreme choices would be more likely and more pronounced than even rational choice theory predicts because leaders would cognitively magnify the implications of such losses.71 Another critical discovery from behavioral economics, with important implications for genocide prevention, is psychic numbing. Based on extensive research on human cognitive and affective abilities (and inabilities), behavioral economists have discovered that people will often not care much more about large losses of life relative to small losses of life, and they may even care less. Slovic, et al. (2016) provide many examples of such psychic numbing including research that shows that people are less willing to send clean water to save lives in a refugee camp that was large (250,000) rather than small (11,000), people are more willing to donate money to Save the Children to feed an identified individual (a seven-year-old African girl named Rokia) than to donate to the same organization to help millions of Africans, and people are less willing to donate money to help two starving children than to help one. Slovic, et al. (2016) offer detailed analyses of psychic numbing and the importance of the phenomenon for understanding why individual citizens and political leaders in third party states that might intervene to help threatened populations seem complacent and prone to do nothing. These authors also provide
71 Midlarsky (2005, chapters 5, 7, and 18) and Anderton and Brauer (2016c) explicitly introduce loss aversion into a theoretical analysis of genocide choice.
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numerous policy prescriptions for overcoming the problem of psychic numbing in genocide prevention policy. Both loss aversion and psychic numbing can be pictured using variants of the famous S-shaped function from behavioral economics (Kahneman 2011, p. 282). In panel (a) of Figure 6, the S-shaped function moves from the lower left negative quadrant to the upper right positive quadrant. This panel applies to the decionmaking of a political leader who psychologically values the gain or loss of, say, territory. The vertical axis measures the psychological values associated with territorial losses (in the negative quadrant) and territorial gains (in the positive quadrant). The horizontal axes measures possible losses in territory (in the negative quadrant) and possible gains in territory (in the positive quadrant). Loss aversion is depicted in panel (a) in the following way: the psychological value of a loss in 100 acres of territory (measured by distance 0b) is much greater than the psychological value of a gain in 100 acres of territory (measured by distance 0a). This also holds for the psychological values associated with losses and gains of 200 acres (i.e., distance cd > distance ef). Hence, in panel (a) of Figure 6 the psychological value of losses is magnified relative to the psychological value of equivalent gains. Psychic numbing is shown in panel (b) of Figure 6. The vertical axis measures the psychological value or importance of the loss of life to political leaders in a third party country, which might potentially intervene to protect victims of genocide. The horizontal axis measures the magnitude of losses of life. Psychic numbing is depicted in panel (b) in the following way: the psychological importance to third party political leaders of a loss of 10,000 lives in a nation experiencing genocide is measured by distance 0h, but the incremental psychological value of another 10,000 lives lost (out to 20,000 in total) is only the distance hi. Hence, political leaders in panel (b) care very little about additional losses of life. Moreover, given the near flatness of the curve at higher levels of fatalities (e.g., 50,000 and greater), the incremental value attached to further losses of life is virtually zero. Even more disturbingly, Slovic, et al. (2016) maintain that experimental evidence on psychic numbing cannot rule out the possibility that the curve in panel (b) turns down, which implies that third parties would come to care less (incrementally and in total) about a greater number of lives lost relative to a smaller amount lost.
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CONCLUSIONS
Research on mass atrocities from the four social sciences summarized in this article, as well as important contributions from many other disciplines not covered here, is culminating in a truly multi- and inter-disciplinary effort to understand the causes of genocides and mass killings and how they can be prevented. Even across just the four social sciences covered here, scholars are employing a variety of tools and theoretical concepts, bringing to bear their own disciplineâ&#x20AC;&#x2122;s comparative strengths in understanding genocide, and willingly drawing upon the ideas of other disciplines to enhance their own research effectiveness. Just one example of the fruitfulness of cross-pollinated research in genocide studies is how the choices of genocide architects and perpetrators can have rational motivations (as emphasized in economics), but also critically important nonrational elements as emphasized in sociology, social psychology, and political science such as the importance of social and cultural context, existential threat and loss aversion, cognitive and affective disabilities and psychic numbing, and the importance of status quo (or reference point) political power. I anticipate that over the coming decades there will be further integration and maybe even unification of the social and behavioral sciences regarding how people make choices, which in turn will help scholars and policymakers to better understand and prevent mass atrocities.
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FIGURE 6 â&#x20AC;&#x201C; S-shaped curve from behavioral economics illustrating loss aversion and psychic numbing Panel (a): Loss Aversion Psychological Value to Political Leaders from Gain (+)
S-shaped function f
Panel
(b):
Psychic
Numbing
Psychological Importance of Loss of Life to Third Party Political Leaders
i h
a Acres Lost -300 -200 -100 c
e 100 200 300 Acres Gained
0
0
10,000
20,000
30,000
40,000
50,000
Lives Lost In Country Experiencing Genocide
b d Psychological Value to Political Leaders from Loss (-)
SOURCES: Adapted from Kahneman (2011, p. 183) and Slovic, et al. (2016)
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Meanwhile, in the world right now, mass atrocities are taking place. Moreover, future genocides and mass killings are being plotted right now in the minds of potential architects and perpetrators. The social sciences (and other disciplines) are stating very loudly that such atrocities will continue to occur until policymakers and citizens more generally come to fully appreciate that the rational and nonrational motivations for genocide and mass killing can be very strong in the minds of potential perpetrators and that the incentives for potential third parties to help victims can be stunted owing to human cognitive and affective limitations. The current challenge facing scholars, policymakers, and activists devoted to genocide prevention is how to integrate what has been learned about the causes of genocide, and will continue to be learned, into new and innovative policies to prevent genocide. Although the motives for genocide and mass killing remain strong in the world, we know more about the insidious nature and effects of such motives. One hopeful aspect of this otherwise disturbing reality is that incentives can be changed. Perhaps one day, the choice of genocide or mass killing can become incentivized to be as rare as it should be, which is “Never Again.”
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