UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Reitor: Prof. Dr. Zaki Akel Sobrinho Vice-Reitor: Prof. Dr. Rogério Andrade Mulinari SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS Diretora: Prof. Dr. Eduardo Salles de Oliveira Barra Vice-diretora: Profa. Dra. Ligia Negri PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Coordenador: Profa. Dra. Ana Luisa Fayet Sallas Vice-coordenadora: Profa. Dra. Maria Aparecida da Cruz Bridi SOCIOLOGIAS PLURAIS – Revista Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR. Campus Reitoria, Curitiba, v.3., n. 1, fev. 2015. Semestral ISSN: 2316-9249 COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA Carolina Ribeiro Pátaro, Diego Coletti Oliva, Elisa Tkatschuk, Roberto da Silva Jardim, Tatiana Araújo Berghauser. CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alexandro Trindade (UFPR), Prof. Dr. André Augusto Michelato Ghizelini (UFES), Profa. Dra. Andrea Osório (UFF), Prof. Dr. Angelo José da Silva (UFPR), Prof. Antonio Carlos Richter (FAE e ESIC), Profa. Dra. Benilde Motim (UFPR), Profa. Dra. Cláudia Elisabeth Pozzi (FJAU e FADISC), Prof. Ms. Dinaldo Almendra (UNICENTRO), Prof. Ms. Fagner Carniel (UEM), Prof. Dr. Flávio Sarandy (UFF), Prof. Ms. George Gomes Coutinho (UFF), Prof. Dra. Gisele Rocha Cortes (UFPB), Profa. Ms. Janaina Matida (Universidad de Girona), Prof. Dr. Jorge Leite Junior (UFSCar), Prof. Dr. José Luiz Cerveira (UFPR), Prof. Dr. José Miguel Rasia (UFPR), Profa. Dra. Jussara R. Araújo (UFPR), Profa. Dra. Larissa Pelúcio (UNESP), Profa. Dra. Leila de Menezes Stein (UNESP), Profa. Dra. Liliane Maria Busato Batista (PUC-PR), Profa. Dra. Luciana Veiga (UFPR), Prof. Dr. Marcelo Santos (UNESP), Prof. Dr. Marcio Oliveira (UFPR), Prof. Dr. Marcos Ferraz (UFGD), Profa. Dra. Maria Aparecida Bridi (UFPR), Profa. Dra. Maria Tarcisa Silva Bega (UFPR), Profa. Dra. Marlene Tamanini (UFPR), Prof. Dr. Milton Lahuerta (UNESP), Profa. Dra. Miriam Adelman (UFPR), Prof. Dr. Mohsine El Ahmadi (Faculté de Droit Cadi Ayyad), Profa. Dra. Nadya Araujo Guimarães (USP), Prof. Dr. Nelson Rosário de Souza (UFPR), Profa. Ms. Paula Grechinski (UNICENTRO), Prof. Dr. Paulo Roberto Neves Costa (UFPR), Dra. Patrícia Branco (Universidade de Coimbra), Prof. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (UFPR), Profa. Dra. Poliana Fabíula Cardozo (UNICENTRO), Prof. Dr. Renato Monseff Perissinotto (UFPR), Prof. Dr. Richard Miskolci (UFSCar), Profa. Dra. Rosane Rosa (UFSM), Prof. Dr. Sidartha Sória e Silva (UFU), Profa. Dra. Simone Meucci (UFPR), Prof. Dr. Valdo José Cavallet (UFPR), Dr. Valério Nitrato Izzo (Università di Nápoli “Federico II”), Profa. Dra. Vania Penha Lopes (Bloomfield College), Prof. Dr. Wanderley Marchi Jr. (UFPR). APOIO Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR DESIGN GRÁFICO E WEBMASTER Carolina Ribeiro Pátaro e Diego Coletti Oliva FOTO DA CAPA Miriam Adelman ENDEREÇO SOCIOLOGIAS PLURAIS Coordenação Programa de Pós-graduação em Sociologia Rua General Carneiro, 460, 9º andar, Ed. D. Pedro I, Curitiba - PR http://www.sociologiasplurais.ufpr.br/ Contato: sociologiasplurais@gmail.com
SUMÁRIO EDITORIAL...................................................................................1 APRESENTAÇÃO .............................................................................3 ARTIGOS .....................................................................................5 GUERRA E PAZ EM NORBERT ELIAS ....................................................................... 6
Ana Luisa Fayet Sallas A NOVA "ROUPAGEM" DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL NO BRASIL EM FACE DO AVANÇO LEGISLACIONAL .................................................................................. 22
Elãine Novak Lacomski Cunha CONTINUIDADES E INOVAÇÕES NO PENTECOSTALISMO BRASILEIRO DO SÉCULO XXI 45
Emerson Antônio Lazaro Prata A POLÊMICA RELAÇÃO INDIVÍDUO E SOCIEDADE: AS ABORDAGENS TEÓRICAS DO INTERACIONISMO SIMBÓLICO E DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .............. 60 Tabata Larissa Soldan José Miguel Rasia IDENTIDADES EM JOGO: PROCESSOS E DISPUTAS NA CURITIBA DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX E O EMPREENDIMENTO JOAQUIM .................................. 76
Walmir de Faria Júnior COLABORAÇÃO INTERNACIONAL ....................................................... 93 LES INDIGÈNES URBAINS: LA CIRCULATION ENTRE DEUX MONDES EN CRUZEIRO DU SUL, ACRE, BRASIL. ................................................................................... 94 Sofia Dagna
ESPAÇO GRADUAÇÃO...................................................................105 TRANSFORMANDO-SE EM ZUMBI: A REPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA DO USUÁRIO DE CRACK ......................................................................................106 Rodrigo Teixeira Pinto RESENHAS .................................................................................117 NOVOS SUJEITOS, NOVAS POLÍTICAS E ANTIGAS QUESTÕES: AS ALIANÇAS FEMINISTAS TRANSNACIONAIS .....................................................................118 Thays Almeida Monticelli
EDITORIAL Uma revista, quando chega ao leitor, chega pronta, como se, por vezes, fosse um resultado apartado de um processo de colaboração, coletivo. O leitor fica distante do nosso processo de elaboração, desde quando se abre a chamada para publicações até a edição final. Às vezes, até mesmo a comissão editorial – composta por aqueles membros da revista - fica distante deste processo, tendo dele uma pequena ideia, abstrata. Era o que acontecia comigo neste período de dois anos de mestrado, em que tive oportunidade de fazer parte da equipe da revista Sociologias Plurais, e só agora me dou conta disso. Explico: desde o número anterior, por iniciativa de um dos idealizadores da revista que acabava ficando com a tarefa de organizar calendários e movimentar a edição, tentamos algo novo, ao menos novo para a nossa publicação - fazer o rodízio dos editores. A proposta é que cada integrante da revista participará, a cada novo número, como editor/a da revista. Eu fiquei encarregada deste número e não posso dizer que foi tão simples como eu achava que era, quando via de fora. É claro que soma-se a todos os complicadores o fato de ser editora no momento ter coincidido com a finalização da dissertação do mestrado. E é justamente dessa coincidência que tiro a minha maior lição. Antes que este texto se transforme em uma espécie de confissão de fim de mestrado, com todas as frustrações e realizações inerentes a esse período, prefiro ir direto ao ponto: depois da minha experiência como editora, o que mais aprendi é que sem dúvida é sempre mais fácil apontar o dedo para os erros e falhas do trabalho dos outros, do que compartilhar ideias para soluções. Parece que é o que mais acontece quando ficamos distantes do processo, confortáveis na posição de avaliadores e enganosamente certos de que estamos dominando a forma e os procedimentos. É outra experiência quando é sua responsabilidade organizar datas, prazos, prioridades, soluções, de maneira colaborativa, inclusiva, aberta à visão do outro. É outra experiência quando é sua responsabilidade fazer acontecer e fazer sair o resultado na hora certa. Não é um processo fácil, nem simples e exige autocrítica: talvez a parte mais difícil seja reconhecer que você é falível, similar ao outro cujas falhas foi sempre mais descomplicado apontar.
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Chego ao final deste processo ciente que o exercício de alteridade e humildade é necessário no todo da vida acadêmica, para que se amadureça. Me parece a melhor forma de vencer tantos obstáculos intelectuais nos quais a Sociologia está inserida. Uma ciência, pergunto, não é, dentre tantas outras coisas, também compartilhar ideias para soluções? Creio também que é por conta de autocrítica que podemos alcançar tamanha receptividade e obter algumas qualificações para a publicação, o que certamente nos faz sempre repensar a forma pela qual selecionamos os artigos. Tenho somente a agradecer, neste momento, a todos os colegas da revista, com quem consegui aprender muito e crescer. Enquanto Comissão Editorial Executiva, agradecemos ao Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPR por seu apoio, às professoras e professores do nosso Corpo Editorial que acreditam no potencial da revista. Agradecemos a todos/as que nos enviaram seus trabalhos, a revista se faz com o conhecimento compartilhado nos artigos de vocês. Às/aos pareceristas que dedicam algumas horas preciosas do tempo para nos ajudar a trazer um saber de alta qualidade para os/as leitores/as. Agradecemos, em especial, à autora da foto de capa, professora Miriam Adelman. Alegramo-nos e agradecemos as 2073 curtidas na página do Facebook.
Elisa Tkatschuk “E esse papel (do intelectual) encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja raison d´être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete.” - Edward Said.
Comissão Editorial Executiva SOCIOLOGIAS PLURAIS
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APRESENTAÇÃO Para esta edição foram selecionados cinco artigos, publicamos uma resenha, um trabalho no espaço graduação e outro no espaço de cooperação internacional. Abaixo segue uma breve introdução do que segue nas próximas páginas da revista. No artigo “Guerra e Paz em Norbert Elias”, a autora Ana Luisa Fayet Sallas faz uma interessante reflexão sobre as temáticas da Guerra e da Paz e sua relação com os processos civilizadores estudados por Elias. Para tanto, articula questões micro e macrossociológicas, resgatando autores de Kant a Bobbio e trazendo o debate até a análise da violência no Brasil contemporâneo. A pesquisadora Elaine Novak Lacomski Cunha traz, em seu artigo “A nova "roupagem" do acolhimento institucional no Brasil em face do avanço legislacional”, uma importante análise da evolução do acolhimento institucional de crianças e adolescentes no Brasil nas últimas décadas. Descreve as mudanças na legislação sobre o funcionamento do sistema de garantia de direitos para esses jovens, que coloca os mesmos como detentores do direito de “prioridade absoluta”. Emerson Antônio Lazaro Prata, no artigo “Continuidades e inovações no pentecostalismo brasileiro do século XXI” preocupa-se em analisar, através de uma bibliografia, o desenvolvimento do pentecostalismo e sua relação com o pluralismo religioso nacional. As características dos diferentes momentos dessas “ondas” pentecostais são enumeradas até que o autor chegue a uma possível descrição do estado atual do pentecostalismo no Brasil. O artigo de Tabata Larissa Soldan e José Miguel Rasia, “A polêmica relação indivíduo e sociedade: as abordagens teóricas do interacionismo simbólico e das representações sociais” acrescenta a este número da Sociologias Plurais um importante debate teórico sobre Mead, Strauss e Moscovici com um tema tão caro à Sociologia: a ideia de indivíduo e sociedade. Através de uma escrita erudita e conhecimento aprofundado, o artigo é importante e valioso, sobretudo para quem está interessado em discutir a teoria sociológica. Walmir de Faria Júnior, em “Identidades em jogo: Processos e disputas na Curitiba das primeiras décadas do século XX e o empreendimento Joaquim”, trata da trajetória dos artistas Poty Lazzaroto e Dalton Trevisan, levantando elementos capazes de ressaltar as posições sociais ocupadas por eles na época, 3
bem como sua atuação na Revista Joaquim, conectando tais relações às particularidades da sociedade curitibana do início do século XX. O artigo do Espaço graduação desse número, de autoria de Rodrigo Teixeira Pinto, intitulado "Transformando-se em zumbi", é instigante e traz uma excelente análise sobre o vídeo Zombie - A Origem que buscava conscientizar usuários de crack, mas que acabou impondo uma visão de cultura do medo e pouco informativo sobre o tema. Assim Rodrigo tece uma narrativa rica sobre o vídeo, uso de crack, cultura do medo e sociedade contemporânea. Finalmente, o trabalho de Sofia Dagna, “Les indigènes urbains”, traz um relato sobre seu estudo de campo no Acre e a resenha de Thays Almeida Monticelli fala sobre feminismo, transnacionalidades e movimentos sociais, a partir do capítulo de Paola Bacchetta denominado “Réflexions sur les Alliances Féministes Transnationales”. O livro no qual este capítulo se localiza foi lançado em 2010 é organizado pelas autoras Jules Falquet, Helena Hirata, Danièle Kergoat, Brahim Labari, Nicky le Freuve e Fatou Sow. Este volume fala sobre raça, classe, gênero e trabalho, acrescentando uma perspectiva importante para interessados em temas interseccionais.
Comissão Editorial Executiva SOCIOLOGIAS PLURAIS
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GUERRA E PAZ EM NORBERT ELIAS Ana Luisa Fayet Sallas1
RESUMO Neste ensaio desenvolvo uma reflexão sobre a temática da guerra e da paz e os processos civilizadores em Norbert Elias em três aspectos: a) algumas considerações acerca do conceito de guerra e de paz – de Kant a Bobbio; b) relaciono estes conceitos aos termos presentes na obra de Norbert Elias; e finalmente pretendo apontar para o alcance da proposta teórica de Elias na análise da questão da violência no Brasil. Trata-se, em suma, de articular uma discussão teórica das relações entre processos micros e macrossociológicos, fundados em grande medida pela constância de processos “civilizadores” e “des-civilizadores” presentes ao longo do tempo em nossas sociedades, esboçando um quadro explicativo para esse processo. PALAVRAS-CHAVE: civilizadores.
Guerra.
Paz.
Processos
civilizadores.
Processos
des-
ABSTRACT In this essay I develop a reflection on the theme of war and peace and the civilizing processes in Norbert Elias in three aspects : a) some considerations about the concept of war and peace - from Kant to Bobbio ; b) I relate these concepts to the terms present in the work of Norbert Elias; and c) I intend to finally point to the scope of the theoretical proposal of Elias in analyzing the issue of violence in Brazil. It is, in short, to articulate a theoretical discussion of the relation between micro and macrosociological processes, founded largely by the constancy of the “civilizing” and "de-civilizing" processes, present over time in our societies, outlining an explanatory framework for this process. KEYWORDS: War. Peace. Civilizing processes. De-civilizing processes. Gostaria na minha apresentação abordar a temática da guerra e da paz em Norbert Elias basicamente em três aspectos: no primeiro, tecer algumas considerações acerca do conceito de guerra e de paz, no segundo, relacionar esse conceitos aos termos
presentes na obra de Norbert Elias. Finalmente pretendo
apontar para o alcance da proposta teórica de Elias, análise da questão do estado de guerra não declarado em que vivemos hoje em nosso país, esboçando um quadro explicativo para esse processo. Quando falamos em paz, a tendência é a de considerá-la frequentemente 1 Professora Doutora do departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR. analuisa@ufpr.br
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como um estado de espírito, como uma emoção ou sentimento interior, que o indivíduo alcança. Por outro lado, pensamos a paz como algo que pudesse se traduzir apenas em seu aspecto exterior e, portanto, relacional. Assim, temos, de um lado, o indivíduo em paz consigo mesmo e, de outro, a exterioridade a ela associada. Exterioridade como relação quando temos a sua definição geral expressa pela assertiva de que a paz é, segundo Bernard Manin: a relação isenta de conflitos que seres humanos ou coletividades mantêm entre si. Surge como a conciliação de dois elementos: a diversidade das entidades a que se refere e a ausência de violência. O primeiro meio de conjugar estes dois aspectos é a ordem, mediante a qual cada elemento vem ocupar o lugar que lhe compete. Se cada um tiver o seu lugar próprio, distinto do lugar dos outros, ninguém procurará violentar quem quer que seja, com a condição que se aceite esse lugar e nele permaneça (MANIN, 1985, p. 274).
Essa expressão é uma ideia de Santo Agostinho a respeito da paz. Daí para frente, podemos sintetizar aqui todo o movimento de reflexões dos filósofos, desde Platão, passando por Kant e mesmo Marx que ao destaca: sendo os homens e as coisas diferentes por Natureza, isto é, desiguais, diferentes serão também os respectivos papéis e estatutos sociais, e a ordem será hierárquica. Assim, Marx afirmou que o direito burguês é abstrato porque considera indivíduos como iguais, o que na realidade não ocorre “porque não seriam diferente se não fossem desiguais”. Só uma hierarquia pode conseguir a síntese entre a desigualdade dos homens e a unidade da cidade, isto é, a paz; mas com a condição indispensável de que essa desigualdade seja adequada à sua natureza” (in Manin, 1985, p. 274) Numa outra direção, podemos pensar também na instituição da pax romana – única paz duradoura conhecida no mundo antigo, era a paz imposta por uma potência imperial dentro dos limites nos quais se estendera seu próprio domínio, que permaneceu como uma paz interna confrontada ao mundo exterior considerado bárbaro. O papado na Alta Idade Média soube impor seu poder pela apropriação, mediante a corrente de pensamento chamada agostinismo político, do projeto de paz universal. Esse projeto serviu de fundamento e justificação teórica do poder do papa. A noção de paz universal pôde surgir porque a manutenção e a estabilidade de uma ordem deixaram de parecer ligadas à exterioridade dos povos nas suas relações recíprocas. Com isso, foi possível constituir um ponto de vista universal sobre os homens, acessível a um único homem – o papa. Mas, a ideia da paz como ordem universal vai ser progressivamente
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destruída devido a dois fatores: a transferência progressiva da função pacificadora para as várias potências soberanas e as guerras religiosas que acentuaram a aspiração dos povos à paz e que foram concluídas pelo poder civil – apesar de a Igreja Católica Romana não abdicar de suas pretensões universalistas. Esses tipos de acordos marcaram o malogro de uma ideia de paz conseguida por meio de uma ordem única, dando origem a um novo conceito, em que pese a sua fragilidade, de que a paz pode também significar a coexistência de ordens diferentes, além de afirmarem conjuntamente dois princípios essenciais: o primado da política e a possibilidade de uma existência cotidiana fundada no respeito mútuo. Esses princípios contribuem para fazer nascer a ideia de que, ao lado da paz de uma ordem universal, sem dúvida impossível, permanece uma paz baseada na tolerância e na diversidade. Desse modo, podemos afirmar que o malogro da paz fundada na instituição de uma hierarquia universal deixa o campo livre a novos princípios sobre os quais se vai construir uma outra ideia de paz: a coexistência e a tolerância entre entidades diferentes, mas com direitos iguais, o concurso das vontades nos conselhos e nos congresso, enfim, o princípio do equilíbrio de forças. Na ordem política, o significado dessa ideia de paz esteve associado a todas as reflexões que apontavam para o instauração da paz pelo concurso de vontades soberanas. Aliás, é esse mesmo princípio presente nas organizações internacionais como as Organizações das Nações Unidas. Essas ideias estavam expressas em Hobbes ao abrir a perspectiva que supera a ideia da guerra como uma ordem natural, para pensar que a paz só pode ser assegurada por uma instância simultaneamente interior e exterior à comunidade. Para se sair do estado primordial da humanidade de guerra de todos contra todos, segundo a hipótese hobbesiana, a solução racional não poderia ser outra senão a da paz de todos com todos. A instituição da paz civil é para ele uma forma de contrato: os súditos cedem os seus direitos a um outro, o qual não toma parte ativa no contrato. O pacto entre indivíduos institui, pois, um elemento exterior em relação aos cidadãos. O soberano está, desse modo, na Cidade, pois, graças a ele, os súditos se unificaram numa só entidade moral. Assim, estão estabelecidos os laços que vinculam a paz e a exterioridade. A busca da paz levaria também os homens a darem vida `aquelas comunidades parciais que são os Estados nos quais o titular do direito usa a espada, isto é, a força coativa de poder impedir no interior de sua própria esfera o 8
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surgimento de guerras privadas. Mas os soberanos podem continuar a viver nas suas relações recíprocas no estado de natureza e, portanto, num estado perene de guerras2.
O que para Elias será resultante do que denominou de o Processo
Civilizador – pacificação interna e sanções às formas de violências não legítimas e, ao mesmo tempo, o enaltecimento externo das virtudes guerreiras dos povos levados às guerras. Mas retomaremos adiante essa questão. Com Kant, que em 1795 publica sob a forma de um tratado universal o livro Pela Paz Perpétua, temos em aberto a possibilidade não efetiva da paz, mas a ideia do alcance moral do dever de manter a paz – e de torná-la perpétua. A instância simultaneamente interior e exterior à comunidade é aquela formada pelos Estados. A exterioridade é necessária à soberania. O soberano congrega a sociedade numa unidade encarnada na sua pessoa. Não lhes dita apenas as leis, mas também a institui como sociedade. Segundo Kant, o povo não existe enquanto tal senão pela sua submissão a um soberano. Para que o soberano possa aparecer ao mesmo tempo como exterior à comunidade e como fazendo parte dela, nada melhor do que uma situação privilegiada: a guerra. Mas para Kant, era essencial uma forma de governo na qual o povo pudesse controlar as decisões do soberano de modo a tornar impossíveis as guerras como ato arbitrário do príncipe ou, nas suas palavras: Se é requerida a anuência dos cidadãos para decidir se a guerra deve ou não ser realizada, nada mais natural do que pensar que, tendo de fazer recair sobre si todas as calamidades da guerra, eles refletirão durante muito tempo antes de iniciar um jogo tão ruim”(in BOBBIO, 2000, p. 527).
Por outro lado, para que as nações alcançassem o progresso era necessária a existência da paz, especialmente naquela instância que proporcionaria justamente esta finalidade: o mercado é assim estabelecido como uma nova ficção, para além dos Deuses e dos próprios homens. O recurso a essa ficção justifica-se ao lembrarmos que, num mundo sem transcendência em que as pessoas são iguais e as vontades diferentes, só uma instância exterior pode oferecer a garantia de paz. O mercado seria, então, outra faceta da exterioridade na qual se alicerça o fundamento da paz. Centro imaginário que produz efeitos reais e eficazes, porque transfere para as coisas, para fora da influência dos homens, o fundamento último da sociedade. É um dado indiscutível que os homens desejam a paz, e que não fazem a 2 Segundo Bobbio, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Editora Campus : Rio de Janeiro, 2000, pg. 526.
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guerra simplesmente pela guerra. Como Aristóteles já havia observado: parece, pois, que a felicidade consiste nos ócios e no descanso, e não fazemos a guerra senão para vivermos em paz. Embora pareça banal, esta proposição aristotélica tem um decisivo alcance: a paz definida como a tranquilidade obtida pela autossuficiência aparenta-se à felicidade da qual ela constitui um elemento. É natural os homens desejarem ser felizes. Todos também desejam a paz. Nenhuma política de poder, por mais desenfreada que seja, pode anular esse fato, mesmo que para tão almejado fim sejam arrastados em constantes guerras. A paz é um objetivo sempre pretendido e sempre desejado por si mesmo. Se os homens conscientemente a procuram, só podem concebê-la como paz perpétua, ainda que esta se revele efêmera. A paz perpétua, portanto, não designa uma ideia ou uma condição entre muitas outras, mas se define como objetivo da vontade humana. Num outro extremo, para caracterizar a guerra como forma de solucionar conflitos, Norberto Bobbio observa que não basta fazer referência ao uso da força entendida como violência lícita e autorizada (lícita porque autorizada). A guerra é sempre, em primeiro lugar, uma força exercida coletivamente: é um exercício de força disciplinado por regras e tem o objetivo de resolver uma controvérsia com a razão das armas. Em segundo lugar, a guerra é caracterizada por uma violência contínua. Trata-se de uma forma de violência coletiva, não acidental, que pressupõe uma forma de organização, um aparato predisposto e adestrado ao objetivo da guerra (2000, p. 516). É refletindo sobre a temática da guerra que em seu livro “A Condição Humana”, Elias retoma um dos temas centrais de sua obra – a questão da violência e os meios de a controlar. Estas reflexões de Elias foram traçadas na ocasião da celebração do 40º aniversário do fim da Segunda Grande Guerra Mundial. As suas considerações sobre a guerra como expressão mais brutal das relações de violência inserem-se na perspectiva incorporada até os nossos dias da "condição humana", a guerra constitui o último reduto de relações entre povos marcados pela imposição bruta da força. Segundo Elias, a evolução da humanidade vai ser marcada pelo controle das pulsões instaurando se mecanismos sociais de regulação pacífica dos conflitos – o que denominou justamente de o processo civilizador. Constata, no entanto, que ao lado desse processo que visa à pacificação crescente das sociedades humanas, ocorrem processos “descivilizadores” ainda de forma 10
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recorrente. Elias constata que, de um lado, mediante o desenvolvimento científico e tecnológico, os homens conseguiram instaurar uma vivência relativamente pacificada em face de ataques externos. Por outro lado, a atitude dos homens em relação a sua vida em comum, em sociedade de diversos níveis, é ainda muito determinada por imagens de desejos e medos, por ideias e contra ideias, por representações mítico-mágicas. Ainda hoje, vemos uma guerra em nome de mitos coletivos ou, em nome de ideologias sociais – a da Democracia Americana X Fundamentalismo do Islã –, como forma de se justificar o valor incomparável da própria nação. Elias assinala que as nações são movidas muitas vezes por uma embriaguez hegemônica, que em uma situação determinada se pode propagar a vastas camadas de um povo, alimentados por fantasias coletivas, segundo as quais o povo a que se pertence e, assim, o próprio indivíduo estão destinados à grandeza, o que significa, habitualmente, a dominação de todos os outros povos a sua volta, seja por ordem divina, seja pela história ou pela matança. O que acontece também é que todos os homens transportam consigo, no seus habitus pessoais,
as particularidades dos habitus do seu grupo, e que o
destino de cada homem singular é determinado igualmente pelo destino e pela reputação dos grupos a que ele ou ela pertence. Esse aspecto foi muito bem demonstrando em várias obras de Elias, como na “Sociedade de Corte” e em “Os Estabelecidos e Outsiders”. Se os Estados hegemônicos da atualidade, e os Estados com maior poder militar, seguirem a tradição milenar da humanidade, segundo a qual é evidente que grupos humanos rivais podem lutar pela sua segurança e, se possível, pela própria posição de supremacia entre os demais grupos humanos recorrendo para tanto a violência física, há uma luta de vida e de morte, estarão a abandonar, com toda probabilidade, não só grande parte da sua própria população, mas também uma parte considerável da humanidade a uma morte mais o menos cruel. A poderosa coação exercida por essa tradição milenar da humanidade no sentido da solução dos conflitos e entre os grupos pela força das armas, a fraca medida em que os dirigentes dos Estados mais importantes são capazes de se libertar da pressão dessa tradição, da pressão das instituições e dos hábitos de atuação que ela criou, está hoje perante uma clareza assustadora. A guerra parece 11
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ser o destino eterno da humanidade. Nenhuma compreensão da singularidade da situação contemporânea parece estar em condições de quebrar a força dessa tradição de atuação que impele para a guerra. O desejo de aprofundar ainda mais a compreensão desse fato, levou Elias a escrever um outro livro denominado “Os Alemães”. Nele traz uma contribuição para duas discussões afins: a questão das causas de genocídio e a questão da validade de sua teoria do processo civilizador. Elias sustentou que a ideia que os povos europeus têm de si mesmos como civilizados e superiores sempre supôs existência de outros povos não civilizados, que eram estigmatizados como inferiores. Entretanto, a constatação de que povos europeus podiam agir de maneira tão descivilizada contra seus próprios concidadãos, como os alemães tinham agido no holocausto, manteve-se assim, como a imagem central da maldade para a maioria das pessoas no ocidente. Elias destacou as peculiaridades do processo de formação do Estado alemão e do habitus alemão:
1. A localização e as mudanças estruturais no povo que falou línguas germânicas e mais tarde alemão, em relação às sociedades vizinhas que falam outras línguas. 2. Papel desempenhado pelas lutas de eliminação entre grupos tribais. 3. A terceira peculiaridade estrutural do processo de formação do Estado alemão, que foi crucial no desenvolvimento do habitus alemão foi caracterizado por um processo de rupturas e de descontinuidades em que os modelos militares de comando e obediência prevaleceram em vários níveis sobre os modelos urbanos de negociação e persuasão.
Ao refletir sobre a relação entre Civilização e violência, sobre o monopólio estatal da violência física e sua transgressão, observa que a civilização a que se refere está completamente ameaçada. Corre perigo porque a salvaguarda dos padrões mais civilizados de comportamento e sentimento nas sociedades depende de condições específicas. Uma dessas é o exercício da autodisciplina, relativamente estável em cada pessoa. Isso estaria vinculado a estruturas sociais específicas. Manutenção do habitual padrão de vida e pacificação social. É com esse aspecto de um processo 12
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civilizador, com a tensão entre pacificação e violência, que se preocupa. Assinala que quando se empenham em examinar o problema da violência física na vida social de seres humanos, as pessoas fazem frequentemente um tipo de pergunta errada: como é possível que tantas pessoas consigam viver normalmente juntas em paz, sem medo de ser atacadas ou mortas por pessoas mais fortes do que elas? Seu enfoque diferente é uma questão de despertar um novo sentimento nas pessoas para o fato que é surpreendente, ímpar: o grau relativamente elevado de não violência que caracteriza as organizações sociais atuais. Só desse ponto de vista pode-se realmente explicar por que certas pessoas não se submetem a um código de civilização do nosso tempo. Conforme Weber sublinhou, os Estados são caracterizados pelas pessoas que são seus governantes e que, em qualquer época, reivindicam para si mesmas o monopólio da força física. Mas a propriedade do monopólio estatal da força física é que ele pode servir às pessoas como uma arma perigosa. O ponto crucial é o equilíbrio entre as duas funções do monopólio da violência: entre função para seus controladores, e em função para toda a população do Estado, no que se refere à pacificação interna. A pacificação do Estado, a coação imposta por outros, foi transformada em autocoação. Somente quando as pessoas se tornam conscientes desse importante autoativado controle dos violentos impulsos espontâneos, em sociedades e Estados relativamente civilizados, é que o problema dos atos deliberados e premeditados de violência é trazido à luz adequada. Nos negócios intraestatais, a violência entre pessoas e controlada e é punida. Nas relações interestatais vale o outro código: em todo Estado de grandes dimensões que está em constante preparação para a violência com outros Estados, quando tal violência é deflagrada, aqueles que a cometem são extremamente apreciados e em muitos casos louvados e recompensados. Nas situações de crise da sociedade, os especialistas em violência autorizados pelo Estado – os representantes do monopólio estatal da força – podem acabar envolvidos numa luta violenta com grupos não autorizados pelo Estado. O desenvolvimento da Alemanha mostra aqui, em forma de paradigma, a reação de um establishment dominante e seus adeptos, diante de uma mudança na estrutura social que contribuiu para alterar uma proporção de poder que passava a lhes ser desfavorável. A guerra perdida teve como efeito a redistribuição de forças 13
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que vinha ocorrendo silenciosamente sob a superfície do Estado imperial, estimulada pela rápida industrialização da Alemanha. Soldados e trabalhadores retiraram em massa sua obediência à liderança de uma classe derrotada. Os membros dos círculos que seguiam a tradição do velho establishment guilhermino sentiam-se “nacionais”, uma vez que se consideravam fundamentalmente os verdadeiros representantes da nação, e todos os marginais, sobretudo os trabalhadores com suas organizações e os grupos minoritários, como os judeus alemães, eram vistos como não pertencentes nem a sua própria sociedade nem a nação alemã. Se investigarmos as condições numa sociedade em que formas civilizadas de comportamento e de consciência começam a dissolver-se, veremos, uma vez mais, algumas das etapas desse movimento. É um processo de brutalização e desumanização que em sociedades relativamente civilizadas requer um tempo considerável. Em tais sociedades, terror e o horror dificilmente se manifestam sem um processo social bastante longo, durante o qual a consciência se decompõe. Os homens que, em fúria e desespero, participaram numa orgia de aniquilamento e destruição, tinham iniciado a arrancada com grandes esperanças. Entregaram-se à tarefa de destruir um mundo que lhes negava qualquer significado e que, portanto, lhes parecia ser ele próprio destituído de significação. O que era valorizado como significativo perde completamente o sentido criando uma mesma motivação: o sentimento de estar encarcerado no sistema social que tornava muito difícil para gerações mais jovens encontrarem oportunidades para um futuro pleno de significado. Essa era na opinião de Elias a motivação central que originou os conflitos que levaram à Segunda Grande Guerra e que ainda permanecem ativos em diversos Estados nacionais quando da incapacidade de produção de sentido e valor para as gerações mais jovens. Elias
observa
que
há
um
pressuposto
na
sociedades
industriais
multipartidárias de hoje que impede a percepção desse problema. De acordo com esse pressuposto, a sociedades em questão encontram-se construídas de tal modo que toda e qualquer pessoa pode encontrar tarefas significativas e gratificantes na vida, desde que ele ou ela se esforcem ao máximo para consegui-la. Isso é falacioso, porque apenas reforça a ideia de que cabe ao indivíduo toda a possibilidade de sucesso ou fracasso na vida social. Para Elias, esse processo é igualmente válido no que se refere a 14
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oportunidades não profissionais de uma vida significativa, incluindo sobretudo as oportunidades na esfera da luta política. Os conflitos políticos de hoje assumiram, sob muitos aspectos, as funções de criação de significado que, numa época anterior, eram desempenhadas pelas lutas religiosas. Mas, diz Elias, é exatamente nessa direção que os jovens de hoje acham que o trabalho político dos partidos, tal como eles o vivenciam, fecha-lhes frequentemente a porta para qualquer atividade significativa. Muitos deles são suficientemente perspicazes e inteligentes para reconhecer com clareza os pontos vulneráveis e as deficiências das sociedades existentes. As pessoas de gerações mais antigas, com experiência nas lutas pelo poder, reconhecem com frequência a necessidade de compromissos. Os mais jovens são, na maioria das vezes, mais inflexíveis a respeito de meias-medidas. Coloca-se, então, um conflito de gerações: muitos dos mais argutos, os membros das jovens gerações não se satisfazem com soluções de compromisso, assim, quando desejam expressar e pôr em prática seus desejos políticos através dos canais institucionais da organização partidária, encontram o caminho obstruído, suas necessidades de significação bloqueadas. Trata-se de um conflito social de gerações em que os grupos estabelecidos aumentam sua pressão sobre os grupo mais jovens. Nos anos 60 as pessoas mais jovens viram no movimento estudantil algo que já não encontravam no âmbito das instituições políticas estabelecidas, especialmente no espaço dos partidos solidamente organizados. As atividades coletivas, a vida comunitária e as demonstrações de massa, todas elas proporcionam aos participantes não só um sentimento de solidariedade, mas também o sentimento de se possuir um propósito significativo, um sentimento de poder de uma mobilização feliz e prazerosa. Aí estavam os propósitos, aí estava o significado para os jovens.(ELIAS, 1997, p. 183)
Se a atuação extraparlamentar passou a ganhar mais sentido para as novas gerações, elas também não deixaram de criar espaços de atuação política alternativos, com sentidos diversos daqueles que mobilizaram as gerações mais velhas. Nesse processo também emergiu a própria figura da juventude, como um agente político e social que passa a mobilizar as reflexões de teóricos diante desta nova categoria social. Assim, desde meados do século XX a juventude (ou as juventudes), como categoria social vai se construir dentro do processo civilizador mais amplo nas
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sociedades ocidentais, também pela expressão de um longo processo civilizador individual, através do qual as pessoas mais jovens nas sociedades industriais passam por um período de aprendizagem extenso e a duração invulgar do que passa a ser considerado período da juventude. É o que Elias identifica como uma juventude ampliada: a peculiaridade dessa extensa juventude e o problema de suas bases sociais talvez fiquem plenamente evidenciados quando se atenta para o fato de como essa reestruturação da vida humana é diferente das etapas anteriores do desenvolvimento social. Aqui mais uma vez retorna-se ao problema: a violência que hoje atinge a juventude de modo particular está associada a dois aspectos enunciados por Elias: os processos de duplo vínculo em que o sentimento geral é de que se o Estado usa violência, nós também devemos usá-las. A violência engendra a contraviolência, a contraviolência aumenta a violência, e assim por diante. Por outro lado, o aspecto referente ao significado da vida para os mais jovens ganha outros contornos. Elias enunciou esse aspecto em diferentes momentos de sua obra ao observar que foram explicitados de forma direta em “A Sociedade de Corte” e das implicações de se perceber também os elementos interdependentes de valores e significados nossos e deles: Os objectivos que julgamos dignos do nosso esforço perseverante nunca são determinados apenas pela satisfação pessoal nem pelo valor crescente que julgamos passar a ter por avançarmos até ao fim do propósito que nos indicávamos. São sempre determinados também pela nossa esperança de ver que os outros tem consciência do nosso mérito, ou pelo aumento do nosso prestígio pessoal. nenhum ser humano normalmente constituído aceita a opinião que tem de si próprio e dos valores que preza se não a vê confirmada na forma como é tratado pelos outros (Elias, 1987, p. 50).
Todas as posições privilegiadas dos indivíduos eram aos seus olhos e aos olhos daqueles com os quais conviviam VALOR, SIGNIFICADO E SENTIDO. Esses são termos fortes na obra de Elias, e nos ajudam a entender os conflitos presentes no mundo contemporâneo, afetando especialmente aos jovens e às crianças, que são, juntos com as mulheres e os idosos, os grupos mais vulneráveis em face do crescimento da violência – de forma especial aquela que vem sendo exercida pelos próprios agentes do Estado – pelas polícias e exércitos notadamente. Como pudemos observar, os processos civilizadores estão eles próprios vinculados – também numa relação de interdependência com processos descivilizadores –, considerando as guerras e conflitos da atualidade, bem como as
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guerras não declaradas internas em que a população de jovens, crianças e mulheres de vários países da América Latina, África e Oriente Médio encontram-se na condição de maior vulnerabilidade. No caso do Brasil, essa guerra interna tem uma fase que vem sendo ainda muito invisibilizada – suas maiores vítimas: jovens, homens, negros –, parece não tocar ao restante da sociedade. Os números de mortes violentas têm crescido ano a ano, valor que não tem se reduzido nem diante dos esforços de diminuição das desigualdades existentes no país. No último informe do Mapa da Violência – Os Jovens do Brasil, temos, numa série histórica, o seguinte resultado referente aos anos 1980 a 2012, segundo o Sistema de Informações de Mortalidade:
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1.202.245 pessoas vítimas de homicídio
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1.041.335 vítimas de acidentes de transporte
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216.211 suicidaram-se
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Total 2.459.791 vítimas.(Waiselfisz, 2014, p.26 )3
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Considerando o longo período – 1980/2012 –, entre os jovens, 62,9% das mortes devem-se a causas externas. Na população não jovem, esse percentual representa só 8,1% das mortes acontecidas.
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Se na população não jovem só 2,0% dos óbitos foram causados por homicídio, entre os jovens os homicídios foram responsáveis por 28,8% das mortes acontecidas no período 1980 a 2012. (apud, p. 30)4
Para Waiselfisz, entre os fatores explicativos para a crescente violência – com mortes afetando a jovens e em sua grande maioria negros e pobres – também estão relacionados os novos polos de crescimento econômico, em que cidades médias e pequenas passam a converter-se em centros migratórios, que, além de gerarem renda e emprego, atraem violência e criminalidade, para áreas que têm mecanismos precários de segurança pública. Trata-se também de formas de inserção precárias de uma nova população com poucos vínculos familiares e de solidariedade em um novo ambiente. 3 http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf - acesso em 03/02/2015. 4 http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf - acesso em 03/02/2015.
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Finalmente, o autor destaca um elemento que nos interessa aqui quando procura explicar as causas da violência em relação aos jovens, pobres e negros: um forte esquema de “naturalização” e aceitação social da violência que opera em vários níveis e mediante de diversos mecanismos, mas fundamentalmente pela visão que uma determinada dose de violência, que varia de acordo com a época, o grupo social e o local, deve ser aceito e torna- se até necessário, inclusive por aquelas pessoas e instituições que teriam a obrigação e responsabilidade de proteger a sociedade da violência. (WAISELFISZ, 2014, p.185)
O Brasil é ainda é um país muito dividido, lamentavelmente abrigando à condição de cidadão apenas aqueles que têm condições de se colocar no mercado como consumidores. Para aqueles que não têm esse estatuto, restam a violência e a morte. O lado frágil dos “descivilizados” tem mantido segura a consciência da sociedade dominante – na concepção de que são “eles” os “outros” os violentos – “os pobres” – e nós – “os brancos, os educados, os civilizados” não temos nada a ver com isso. Diante desse quadro, Elias pode ainda nos auxiliar a entender como uma sociedade relativamente civilizada passa por um processo de brutalização e desumanização que requer um longo tempo para se estabelecer. Podemos pensar com Elias na possibilidade de realizar uma biografia de uma nação, como ele realizou no caso da Alemanha? Que elementos teríamos como explicativos para entender as constituição do país como nação? Podemos ainda pensar, como observa Elias, que a relação entre Civilização e Violência pode adquirir alguns contornos específicos de longa duração como ele mesmo assinala? Ou seja: que elementos poderíamos destacar na formação de nossa sociedade que ainda permaneceriam vigentes? Para tentar esboçar uma resposta a essa questão5, podemos buscar referência na obra de dois autores: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Do primeiro temos o livro “Raízes do Brasil” publicado em 1936. Nessa obra o autor busca analisar a formação da nação-Estado no Brasil, utilizando-se de alguns conceitos de Weber como o de “patrimonialismo” e “burocracia”. No livro argumenta que a formação do Estado deu-se a partir do mundo rural, dominado pela figura do senhor. Essa formação criou um tipo humano específico que, longe do ethos guerreiro dos alemães, vai resistir ao trato impessoal da burocracia e do Estado. Nela “o homem cordial” se expressa pelos comportamentos afetivos, que se opõem 5 Para a finalidade desse ensaio as ideais que esboçamos são pontos iniciais que não poderão ser desenvolvidos em profundidade nesse trabalho.
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aos ritualismos e à polidez. “O homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem do posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.(CANDIDO, A. in HOLANDA, 1995, p.17)
Dessa forma, é na figura deste tipo humano que temos a construção de um imaginário de cordialidade, de supressão de conflitos ou mesmo da intolerância a eles, criando a imagem de um país que se construiu sem grandes derramamentos de sangue, como em outros países. Essa imagem diz respeito a um aspecto cultural de nossa formação social. Outro, que também está relacionado com nossas origens, podemos vislumbrar no obra de Gilberto Freyre – Casa Grande & Senzala (1933). Nela o autor trata de aspectos da formação social brasileira, também de um ponto de vista cultural, já que destaca elementos do cotidiano, da religiosidade, hábitos alimentares, enfermidades, práticas sexuais da vida na Casa Grande e nas Senzalas, fruto da relação entre senhores e escravos durante os anos de formação da sociedade brasileira, marcando a presença e influência africana. Cria a imagem de uma relação “adocicada” pela economia da cana-de-açúcar, a relação racial entre brancos e negros escravos. Essa imagem, já muito criticada, não deixa, no entanto, de expressar as dificuldade e limitações de trato nos conflitos. Esse aspecto foi notado por Elias quando observa justamente que a possibilidade de regimes políticos parlamentares multipartidários legitima dos conflitos. Os conflitos não são relegados para a categoria do extraordinário, anormal ou irracional mas, pelo contrário, são tratados como aspectos normais e indispensáveis à vida social. A esse respeito, poder-se-ia dizer que a democracia contradiz as leis da racionalidade clássica, a qual iguala ordem com harmonia, ou seja, ausência de conflito.[..] A disputa é limitada às formas não-violentas de luta travada, em primeiro lugar, na forma de discussão ou duelo verbal, cuja resolução depende de todos os participantes aderirem a certas regras. (ELIAS, 1997, p. 262).
Com isso, Elias destaca que os conflitos podem e dever ser assumidos pela sociedade e devem existir canais reconhecidos e legitimados para operar com eles e tentar superar as diferenças entre os grupos. Essa situação nos remete a outra obra de Elias, muito esclarecedora desse processo – da própria relação de interdependência entre – Estabelecidos e Outsiders. Quando nos defrontamos com a violência presente em nossa sociedade, somos obrigados a olhar para todos os elementos que a constituem e certamente um desses elementos tem sido a forma duradoura como a desigualdade social tem operado no Brasil, criando a ideia
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mesmo da existência de seres humanos superiores e seres humanos inferiores (que são os pobres e negros em sua grande maioria). Nesse quadro, tanto o componente social e econômico quanto o racial concorrem para criar um certo ambiente de indiferença. Elias nos provoca, num certo sentido, ao inverter a questão da guerra e da violência, justamente ao colocá-la em outros termos: como é possível tantos bilhões de seres humanos viverem ainda juntos sem tantos conflitos? Com Elias ainda concluímos: Nenhuma pacificação é possível enquanto a distribuição de riqueza for muito desigual e as proporções de poder demasiado divergentes. E, viceversa, nenhuma prosperidade a longo prazo é possível sem um pacificação estável”. (ELIAS, 1997, p. 401).
Se as instâncias de autocontrole interno e de controle externo seguem com relativa eficácia, não podemos ignorar as instâncias estabelecidas de poder, que têm atuado na própria definição dos valores, do sentido e do significado dominante. O que nos faz olhar para a busca da paz – de uma paz duradoura que possa de fato um dia se tornar realidade.
REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Editora Campus : Rio de Janeiro, 2000. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: Lisboa, Editorial Estampa Ltda,1987. ______. A Condição Humana. Lisboa : Difusão Editorial Lda. – Rio de Janeiro, Editora Bertand Brasil, S.A., 1985. ______. O Processo Civilizador: uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1990, vol.1. ______. O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1993, vol. 2. ______. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1994. ______. Os Alemães - A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1997. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1999. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro : Record, 1999.
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HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, 1995. MANIN, Bernard. Paz. Enciclopédia EINAUDI, v. 5. 273-295, Imprensa Nacional – Casa da Moeda : Lisboa, 1985. WAISELFISZ, Julio. Mapa da Violência – Os Jovens do Brasil. Rio de Janeiro : FLACSO Brasil, 2014.
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A NOVA "ROUPAGEM" DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL NO BRASIL EM FACE DO AVANÇO LEGISLACIONAL Elãine Novak Lacomski Cunha1
RESUMO O presente artigo tem por objetivo explanar a evolução vivenciada no Brasil acerca do Acolhimento Institucional para crianças e adolescentes, em especial enfocaremos o avanço na legislação vigente, desde a Constituição Federal de 1988 até os dias atuais - com ênfase no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, o qual representou um divisor de águas, no tocante a garantia de proteção aos infantes. Elucidando as articulações necessárias para o funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos, entendendo as crianças e adolescentes como detentores do direito de “prioridade absoluta”. PALAVRAS-CHAVE: Violação de Direitos. Crianças e Adolescentes. Acolhimento Institucional. Sistema de Garantia de Direitos. ABSTRACT This article aims to explain the evolution experienced in Brazil on the Institutional Care for children and adolescents, in particular we will focus on advances in current legislation, since the Constitution of 1988 to the present day - with emphasis on the Child and Adolescent 1990, which represented a turning point with regard to warranty protection to infants. Elucidating the joints necessary for the operation of the Rights Assurance System, understanding children and adolescents as having the right to "absolute priority". KEYWORDS: Violation of Rights. Children and Adolescents. Institutional host. Rights Guarantee System.
INTRODUÇÃO O referido trabalho tem por objetivo explanar a construção/evolução histórica da legislação brasileira, observando os avanços alcançados neste campo no que refere-se aos serviços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes no país. Assim sendo, enfocar-se-á a problemática da institucionalização dos infantes no Brasil, a partir de uma revisão bibliográfica, com ênfase na legislação, sobre este processo e do papel dos abrigos, enquanto espaço de proteção no transcorrer da história brasileira. 1 Assistente Social, graduada pela Universidade Estadual de Ponta Grossa em 2012 e Pós Graduanda em Gestão Social, Políticas Públicas, Redes e Defesa de Direitos, pela Universidade do Norte do Paraná.
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Sendo assim, dar-se-á início retratando a história da institucionalização no Brasil, descrevendo desde meados dos anos de 1800, período que antecede a “roda dos expostos”, até as instituições de acolhimento atualmente instituídas, conforme previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e demais legislações em vigência, por exemplo, abordaremos a discussão sob o tema prescrito na Política Nacional de Assistência Social, a qual estabelece os parâmetros para o acolhimento de crianças e adolescentes. Uma vez que, a referida política estabelece as diretrizes de atuação para as instituições de acolhimento, destinadas a atender crianças e adolescentes, entendendo estes enquanto sujeitos de direitos.
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES A LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO: DA COERÇÃO A COESÃO No Brasil a preocupação com a “figura” da criança e do adolescente surgiu já na época do Império, mais especificamente redigida nas Ordenações Filipinas2, pois a sociedade da época possuía uma preocupação com a criança delinquente. Atrelado a este período promulgou-se em 1830 o Código Criminal do Brasil, este por sua vez, mesmo que de maneira discreta, apresentou-se inovador ao delinear em seu texto punições mais brandas aos adolescentes, não julgando como criminosos os menores3 de quatorze anos4. Posteriormente, em 1871 aconteceu um avanço importante no que refere-se 2 Na página da Biblioteca Digital do Senado Federal consta como descrição das Ordenações Filipinas, que este arcabouço de leis “[...] resultaram da reforma feita por Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal), ao Código Manuelino, durante o período da União Ibérica. Continuou vigindo em Portugal ao final da União, por confirmação de D. João IV. Até a promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916, estiveram também vigentes no Brasil”. Para maiores informações acesse o compêndio completo das leis. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733>. Acesso em: 25 Jan. 2015. 3 De acordo com Digiácomo e Digiácomo (2013, p. 04) é pertinente “[...] observar que o legislador [...] deixou de utilizar, propositalmente, o termo “menor”, que possui uma conotação pejorativa e discriminatória, incompatível, portanto, com a nova orientação jurídico-constitucional, que além de alçar crianças e adolescentes à condição de titulares de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana [...], também impôs a todos (família, comunidade, sociedade em geral e Poder Público, o dever de respeitá-los com a mais absoluta prioridade, colocando-os a salvo de qualquer forma de discriminação ou opressão (cf. arts. 4º, caput e 5º, do ECA e art. 227, caput, da CF), o que compreende, obviamente, a própria terminologia utilizada para sua designação. Embora impróprio, o termo “menor” continua, no entanto, a ser utilizado em outros Diplomas Legais, como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e o Código Civil (CC).” 4 Nasciam juntamente com o Código Criminal de 1830 as primeiras casas de correções aos menores, percebe-se que com isto nascia também às primeiras formas de assistencialismo no trato para com os menores, conforme expresso no artigo 13 do referido documento “Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos”.
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a criança e ao adolescente, a promulgação da Lei do Ventre Livre trazendo em seus texto que: Art. 1.º - Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre. § 1.º - Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de seiscentos mil réis, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei [...].
Assim sendo, a Lei do Ventre Livre (1871) tornando-se a primeira legislação a dar “liberdade” as crianças e adolescentes no país, além de indicar o primeiro passo rumo à libertação dos escravos no Brasil. O que deu início, portanto a um novo processo histórico no país. Contudo, nesta época percebeu-se que muitas crianças eram abandonadas pelas ruas: Durante o período colonial, muitas mulheres viram-se diante da necessidade de abandonar os próprios filhos. Não é exagero afirmar que a história do abandono de crianças é a história secreta da dor feminina, principalmente da dor compartilhada por mulheres que enfrentavam obstáculos intransponíveis ao tentar assumir e sustentar os filhos legítimos ou nascidos fora das fronteiras matrimoniais. (VENANCIO, 1997, APUD, TORRES, 2006).
Deste modo, no Brasil o atendimento a crianças e adolescentes, no tocante aos serviços de acolhimento nasceu ainda no período colonial. Em busca de um atendimento de cunho assistencialista para este público foi criada a “roda dos expostos”, segundo Pereira (2004, apud, SANTOS (2013)) o nome roda era atribuído a um artefato de madeira fixado ao muro ou janela do hospital, nesta roda era depositada a criança e ao girar o artefato o bebê era transportado para dentro das dependências do mesmo, sem que a identidade de quem ali colocasse o recémnascido fosse revelada. Assim sendo, por mais de um século, a roda dos expostos foi praticamente a única instituição de assistência à criança abandonada em todo o Brasil. Em resposta a isto, o ano de 1979 foi indicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional da Criança, com o objetivo de chamar a atenção para os problemas que afetavam as crianças em todo o mundo. Portanto, anterior à publicação do ECA (1990) existia uma lei no Brasil que se chamava Código de Menores, popularmente conhecido como Código de Mello Mattos (CMM), publicado em duas versões - 1927 e 1979 respectivamente. 24
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Destarte, Azevedo (2007) descreve que a doutrina subjacente ao CMM objetiva preservar a ordem social. Uma vez que, as crianças e suas famílias não eram objeto do direito, contudo, crianças pobres, abandonadas ou tidas como delinquentes, que na visão do legislador e da sociedade da época como um todo, se encontravam em situação irregular, passariam a receber atendimento do Estado. Partindo disto, o CMM manteve uma visão conservadora, entendendo que os menores delinquentes eram ameaçadores para a ordem da sociedade e para as pessoas ‘de bem’, porém, acabou por introduzir uma novidade fundamental para sua época, visto que de certa forma, descrevia que não era propício que as ‘crianças problemas’ ficassem sem receber assistência estatal e proteção jurídica. Em virtude do CMM, a infância e a juventude brasileira passariam a serem considerados bens jurídicos tutelados pela legislação, mesmo que ainda tímido e um tanto quanto conservador, indiretamente, representou o primeiro passo para serem promovidos os direitos humanos, os quais apenas seriam (re)afirmados em 1948 na ONU pelo Brasil, ressalta Azevedo (2007). No entanto, mesmo que desenvolvendo bem suas finalidades de ‘recuperação pelo trabalho’ no início de sua promulgação, em seguida, descreve Azevedo (2007) o referido código entraria em declínio e transformar-se-ia em uma escola para o aprendizado de crimes. Em razão de tal decadência do sistema, promulgou-se a Lei 4.513/64, a qual procurou realizar um tratamento mais padronizado, sistemático e planejado e com menos repressões e correções aos menores internos, criou-se então a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), com autoridade sobre suas subdivisões estaduais – Fundações Estaduais de Bem Estar do Menor (FEBEM’s). Entretanto, devido as grandes mudanças pelas quais o Brasil estava passando, por exemplo, industrialização, urbanização, má distribuição de renda, o acesso cada vez mais fácil às armas, enfim, tais fatores contribuíram para piorar a situação social e aumentar o número de menores internados nestas instituições. Em razão disto, na tentativa de regularizar a situação dos menores criou-se a Lei 6.679/79 – Código de Menores de 1979. Esta ‘nova’ lei preservou a concepção básica do CMM, ou seja, a de ser a lei de menores, entendida como um instrumento de controle social da infância e adolescência em que os infantes eram considerados e percebidos como ‘irregulares’, ameaçadores a família, a sociedade e ao Estado. A modalidade de internação obrigatória, profissionalizante e de disciplina 25
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militar viria a ser aprofundada e ampliada pela referida legislação. Contudo, igualmente iria tornar-se de pouca efetividade na prevenção de novos ‘atos infracionais’ cometidos pelos mesmos menores de situação irregular. Porém, veio a entrar em desuso somente após a publicação do ECA (Lei 8.069/1990). Azevedo (2007) enfatiza que apenas com a promulgação do ECA (1990) existiria o rompimento dos amplos poderes normativos atribuídos ao juiz (e às autoridades administrativas) pela legislação através do CMM. O Estatuto passou a garantir à criança e ao adolescente o direito à ampla defesa, frente à aplicação das medidas de internação, passou-se então a limitar a internação
dos
menores
‘irregulares’
a
casos
extremos.
Exigindo-se
a
fundamentação dos atos judiciais como requisitos de validade para toda e qualquer medida judicial aplicada a menores de idade. Deste modo, o ECA (1990), conforme Viegas (2004, apud, SANTOS (2013)) preconiza a desinstitucionalização no tocante ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de abandono, valorizando assim o papel da família neste processo. Portanto, o Estatuto ao contrário do Código de Menores, preocupa-se com a proteção integral das crianças e dos adolescentes, percebendo estes, enquanto sujeitos de direitos, os quais requerem proteção por parte do Estado, da família e da sociedade. Tal afirmativa se encontra respaldada na Constituição Federal em seu artigo 227, em que se prevê como sendo dever: [...] da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).
Reforçando essa questão Costa (2011, p.01) pontua que “o princípio constitucional da prioridade absoluta ou do “melhor interesse da criança” [...] exige que as medidas de proteção no âmbito da infância e da juventude sejam encaradas como medidas de urgência”, portanto, estas por possuírem respaldo nos dispositivos legais, obrigatoriamente não exigem a aplicação de procedimento em contrário. A partir deste contexto a criança e o adolescente realmente passaram a ser observados e tratados pelo legislador como pessoas detentoras do direito a proteção integral, ou seja, cidadãos em situação especial de desenvolvimento e que merecem
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total atenção e proteção, pois representam o futuro do país. Assim, efetivar os direitos deste público é um enorme desafio que se coloca a sociedade, por exemplo, mencionamos a construção de uma nova “roupagem” as instituições de acolhimento.
O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
A construção das políticas públicas está intimamente relacionada com as demandas da população e com a posição que o Estado assume na tentativa de sanar ou amenizar tais demandas. Que representam a busca dos cidadãos pela efetivação de seus direitos, em tal contexto construiu-se e publicou-se a Política Pública de Assistência Social. Deste modo, um grande desafio que se coloca ao Brasil, após a publicação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) é garantir plenamente o direito a assistência social como: [...], direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto articulado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para assegurar o atendimento às necessidades básicas. (Art. 1, LOAS, 1993).
E assegurar o reordenamento dos serviços de acolhimento institucional, uma vez que a PNAS (2004, p. 37) descreve que: A ênfase da proteção social especial deve priorizar a reestruturação dos serviços de abrigamento - dos indivíduos que, por uma série de fatores, não contam mais com a proteção e o cuidado de suas famílias - para as novas modalidades de atendimento.
Em virtude disto, o acolhimento institucional encontra-se na Proteção Social Especial5 de Alta Complexidade6, pois este serviço atende indivíduos que se encontram em situação de exclusão social como aponta a PNAS (2004). Salienta-se que esse termo vai além da pobreza, miséria, indigência, entre outros. A realidade das famílias brasileiras demonstra que situações socioeconômicas podem suscitar a violação de direitos dos seus membros, em especial na população com maior taxa de desemprego e renda baixa, exemplifica Santos (2013). 5 A proteção social especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, [...]. (PNAS, 2004, p. 38). 6 Os serviços de proteção social especial de alta complexidade são aqueles que garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização, e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou, comunitário, [...]. (PNAS, 2004, p. 39).
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Tais situações contribuem ainda mais para a violação dos direitos das nossas crianças e adolescentes, refletindo consequentemente na elevação do número de infantes acolhidos em instituições no país. Conforme o Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz em 2010, transcrito pelo Instituto Fazendo História (2014) existia naquele momento 36.929 crianças e adolescente sob a medida de acolhimento, distribuídas em 2.624 serviços em todo o Brasil. Deste montante a maior parte dos acolhimentos (21.730) está concentrado na região Sudeste do país. A partir deste levantamento, fez-se possível conhecer as três principais causas de acolhimento institucional de nossas crianças e adolescentes, as quais são: Negligência na família (37,6%); Pais ou responsáveis dependentes químicos/alcoolistas (20,1%) e Abandono pelos pais ou responsáveis (19,0%). Observa-se que o acolhimento institucional no Brasil possui um número elevado de crianças e adolescentes institucionalizadas, conforme dados registrados acima. Para tanto, deve-se sempre entender e compreender que o serviço de acolhimento institucional precisa ser percebido como sendo uma alternativa de maneira excepcional e provisória. Em virtude disto, todos os esforços precisam ser utilizados no intuito de preservar o convívio familiar, devendo conforme as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (2009) ser aplicado apenas em situações que represente grave risco a integridade física e/ou psíquica das crianças e adolescentes. Destaca-se neste contexto o artigo 23 do ECA (1990) o qual descreve que a falta e/ou escassez de recursos materiais, por si só, não se configura razão suficiente para se realizar o afastamento de crianças e adolescentes do convívio familiar e, posteriormente serem encaminhadas para serviços de acolhimento institucional. Uma vez que, diante de tal situação a família deve ser incluída em programas e serviços oficiais e/ou comunitários, assegurando desta forma a autonomia desta família, bem como, salvaguardando seus direitos. Neste sentido, aplica-se as medidas protetivas, descritas no artigo 101 do ECA (1990) o qual estabelece que a autoridade competente poderá determinar que sejam realizados 28
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encaminhamentos para as demais políticas públicas, que se repasse orientações a família - mediante termo de responsabilidade. Diante disto, inúmeros serviços públicos podem ser requisitados visando assegurar os direitos da família, por fim, se esgotadas todas estas possibilidades e as crianças e adolescentes continuarem com seus direitos violados, nestas situações aplica-se a medida de acolhimento institucional - visando a reintegração familiar e futuramente caso seja pertinente, tem-se a colocação em família substituta. Ressalta-se que o referido artigo 101 do ECA é utilizado apenas quando considerado o que esta posto no artigo 98 o qual descreve as medidas protetivas aplicáveis as crianças e ao adolescentes sempre que seus direitos encontrem-se ameaçados ou violados, seja “[...] I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta”. (BRASIL, 1990). Entendendo, conforme Santos (2013) que a institucionalização pode ocasionar sérios problemas para o desenvolvimento físico e psicológico da criança ou adolescente. Assim, toda medida protetiva de acolhimento institucional, necessita respeitar a provisoriedade do afastamento do convívio familiar e uma vez aplicada, todos os esforços devem ser empreendidos para se garantir o retorno dos acolhidos ao convívio familiar. O qual prioritariamente deve ser a família de origem e em casos excepcionais a família substituta. As Orientações Técnicas (2009) estabelecem que as crianças e adolescentes retornem ao convívio familiar em um período inferior a dois anos, caso a medida prorrogue-se deve ser comprovado à necessidade de tal aplicação. Destarte, deve-se considerar que mesmo o acolhimento institucional sendo prolongado, os esforços para reavaliar tal situação precisam ser constantes. Em nenhum momento devem ser esquecidos os acolhidos no interior das instituições. O trabalho realizado junto as crianças e adolescentes necessita buscar e apresentar alternativas que venham a garantir-lhes seu direito ao convívio familiar. Desenvolvendo um processo de fortalecimento e preservação dos vínculos familiares e comunitários das crianças e dos adolescentes atendidos nos serviços de acolhimento, conforme nos estabelece as Orientações Técnicas (2009). Deste modo, segundo Rizzini (2007, apud, SANTOS (2013)) no Brasil 29
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historicamente a política de atendimento à criança e ao adolescente em situação de abandono vem sofrendo várias alterações. Pois, a promoção de ações efetivas de inserção social compõe um objetivo constante, para que o acolhimento institucional possa ser realmente uma medida protetiva de caráter excepcional e transitório.
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL: SEUS SIGNIFICADOS E ENIGMAS Em resposta a todo este processo a Tipificação Nacional (2009) descreve o serviço de acolhimento institucional, como sendo destinado a crianças e adolescentes de ambos os sexos, inclusive estende-se para os deficientes, em situação de risco pessoal e social, em que a família ou responsáveis estejam temporariamente incapacitados de desempenhar sua função de cuidado e proteção. O referido documento ainda ressalta que o local de acolhimento institucional, precisa ser o mais próximo possível do ponto de vista geográfico, do ambiente em que os acolhidos até então se encontravam residindo. Além disso, grupos de crianças e de adolescentes - irmãos - com vínculos de parentesco devem ser atendidos na mesma instituição. Evitando-se desta forma mais um rompimento de laços afetivos e tal medida perdurará até que seja possível a reinserção a família de origem e/ou a colocação em família substituta. Salienta-se que de acordo com a Tipificação Nacional (2009) as crianças e adolescentes serão acolhidos por determinação do Poder Judiciário e através de requerimento do Conselho Tutelar. O serviço de acolhimento institucional a luz da Tipificação Nacional (2009) deve ser uma unidade residencial, na qual uma pessoa e/ou um casal trabalhem como educador/cuidador residente, responsável pelo cuidado de até 10 crianças e/ou adolescentes. Bem como, podem ser atendidos em unidade institucional, com aparência semelhante à de uma residência, podendo atender grupos de até 20 crianças e/ou adolescentes. Para tanto, sugere-se que os educadores/cuidadores trabalhem sob o sistema de turnos fixos diariamente, garantindo desta forma, estabilidade nas atividades e tarefas diárias, as quais representam referência e previsibilidade no contato para com os acolhidos. Sempre que possível, possuir um espaço disponível para acolhimentos imediatos e emergenciais com profissionais preparados para receber as crianças e
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adolescentes em qualquer período e horário, enquanto, realiza-se o estudo social minucioso da situação, para dar sequência aos encaminhamentos necessários. Segundo a Tipificação Nacional (2009) todo este cuidado com a instalação dos equipamentos institucionais é imprescindível, uma vez que, o serviço precisa ofertar aos acolhidos a garantia de proteção integral; prevenir novas violações de direitos; reestabelecer os laços familiares; assegurar a convivência comunitária; fomentar o surgimento e o desenvolvimento de capacidades e aptidões inerentes ao usuário. Considerando todos estes aspectos, no atendimento as crianças e adolescentes recomenda-se preservar e fortalecer os vínculos com a família de origem, salvo determinação judicial em contrário e especialmente com os adolescentes desenvolver e promover em parceria com eles possibilidades e condições que lhes propicie independência e autocuidado. Conforme supracitado em outros momentos, com o advento da proteção integral instituída pelo ECA (1990) e com todo o arcabouço legislativo vigente, observou-se a necessidade de reordenar os serviços de acolhimento no Brasil, a luz da efetivação da Politica Pública de Assistência Social. De acordo com a Tipificação Nacional (2009) o serviço de acolhimento institucional se caracteriza pelos mais variados tipos de equipamentos, sendo destinado para famílias e/ou indivíduos, os quais se encontram com seus vínculos familiares fragilizados e/ou rompidos, visando-lhes garantir proteção integral. Deste modo, todo atendimento prestado pelos equipamentos deve considerar a diversidade, sem qualquer espécie de discriminação para com o acolhido, realizar-se em parceria com o sujeito evitando assim ao máximo o rompimento total de seus laços comunitários, sociais e até mesmo familiares7. Atendendo a todas as condições mínimas de habitabilidade, higiene, espaço físico adequado para a idade, com acessibilidade, segurança e garantir a privacidade de cada acolhido. Além disso, os profissionais do serviço de acolhimento institucional precisam 7 Para tanto o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC, 2006, p.18), prescreve que é imprescindível [...] a intervenção institucional nas situações de rompimento ou ameaça de rompimento dos vínculos familiares e no investimento no reordenamento dos programas de Acolhimento Institucional e na implementação dos Programas de Famílias Acolhedoras, com ênfase na excepcionalidade e na provisoriedade destas medidas e, ainda, na preservação, fortalecimento e restauração dos vínculos familiares; e, finalmente, em terceiro lugar, a necessidade de uma nova família para a criança e para o adolescente que perdeu a sua própria.
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compreender que acolher significa: [...], então, estar aberto para proteger e educar, auxiliando na passagem rumo à família – original ou substituta. É bem diferente de recolher e guardar. Acolher faz parte das premissas da proteção integral, que é a estadia provisória, porém qualificada, para desenvolver o trabalho educacional que busca a reinserção familiar. (grifos do autor). (BERNARDI, 2010, p. 20).
Por isto, a decisão pelo afastamento da criança e do adolescente do convívio familiar é extremamente séria e implicará em profundas transformações, tanto para a criança quanto para a família. Portanto, o acolhimento deve acontecer apenas quando representar o melhor interesse da criança ou do adolescente atrelado ao menor prejuízo ao seu processo de desenvolvimento, conforme destaca o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC, 2006). Reforçando tal afirmativa o ECA (1990) destaca em seu artigo 4º como sendo dever da família, da sociedade e do Estado garantir o princípio de absoluta prioridade as crianças e adolescentes na efetivação de seus direitos, devendo assegura-lhes primazia em receber proteção e socorre sempre que necessitarem. Considerando que de acordo com o artigo 19 do Estatuto toda a criança e adolescente possui o direito de ser criado por sua família e excepcionalmente por uma família substituta, em que lhes é assegurada a convivência familiar e comunitária, em um local livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. De acordo com PACHÁ; JUNIOR e NETO (2009) o artigo mencionado acima, representa uma das grandes conquistas para assegurar a proteção integral das crianças e adolescentes, entendendo-os enquanto sujeitos de direitos e para reafirmar o caráter de brevidade da medida de acolhimento, a qual só deve ser aplicada quando representar a última alternativa para a proteção da criança ou adolescente em situação de violação de seus direitos. Neste sentido, essa nova perspectiva de atendimento as crianças e adolescentes em serviços de acolhimento demandaram a criação e adaptação (nos casos das instituições já existentes) das modalidades dos serviços de acolhimento institucional, conforme a arcabouço jurídico vigente.
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MODALIDADES DO SERVIÇO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E O ORGÃO GESTOR Para adequar-se então com a legislação vigente, com o princípio da prioridade absoluta, entendendo as crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos, definiu-se que o acolhimento institucional para crianças e adolescentes precisa acontecer em Instituição de Acolhimento (Abrigo Institucional), Casa - Lar e em determinadas situações através de um Programa de Família Acolhedora. Portanto, o Órgão Gestor da Política de Assistência Social necessita realizar parcerias com a rede local e com o Sistema de Garantia de Direitos8, para que seja possível desenvolver estratégias que aprimorem o serviço de acolhimento institucional, conforme as demandas apresentadas, pois segundo as Orientações Técnicas (2009, p.68) “[...] os serviços de acolhimento deve basear-se na manutenção de sua capacidade de atendimento e não no número de vagas ocupadas”. Atrelado a isto, o ECA (1990) em seu artigo 92 estabelece que toda a entidade que presta um serviço de acolhimento institucional deve ter entre seus princípios a preservação dos vínculos familiares visando à reintegração do acolhido a família, excepcionalmente a colocação em família substituta, atender de maneira particularizada e em pequenos grupos, evitar o desmembramento de grupo de irmãos, a transferência de uma entidade para outra, assegurar-lhes a convivência comunitária e trabalhar gradativamente o desacolhimento. Deste modo, todo e qualquer serviço de acolhimento deve ser criado e mantido conforme as orientações a seguir:
SERVIÇO DE ACOLHIMENTO EM ABRIGO INSTITUCIONAL Segundo as Orientações Técnicas (2009) o referido serviço deve oferecer acolhimento provisório para crianças e adolescentes, que por meio de medida protetiva (art. 101 do ECA, 1990) foram afastados do convívio familiar. Portanto, 8 O Sistema de Garantia de Direitos representa uma articulação entre as políticas públicas, contando com a parceria entre as instituições governamentais e da sociedade civil. Visando, desta forma, um trabalho intersetorial entre as partes, com o intuito de validar os instrumentos normativos e efetivar o funcionamento dos mecanismos de proteção, promoção e defesa dos direitos humanos em relação à criança e ao adolescente. Para maiores informações, sugerimos a leitura das publicações do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, sobre o assunto.
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permaneceram nesta instituição até que seja possível o retorno ao convívio com a família de origem ou na sua impossibilidade, o encaminhamento para família substituta. Assim sendo, o serviço precisa ter aspecto semelhante ao de uma residência9 e estar localizado na comunidade, em áreas residenciais, contando com um ambiente acolhedor e ter condições institucionais para o atendimento com padrões de dignidade. Oferecendo, conforme exposto acima atendimento personalizado, propiciar o convívio familiar e comunitário, bem como viabilizar a uso dos equipamentos e serviços disponíveis na própria comunidade. O público alvo desta modalidade de instituição são crianças e adolescentes de 0 a 18 anos, com um número máximo de 20 acolhidos, segundo as Orientações Técnicas (2009).
SERVIÇO DE ACOLHIMENTO EM CASA – LAR As Orientações Técnicas (2009) estabelecem que o serviço de acolhimento provisório oferecido em uma Casa - Lar10 deve contar com unidades residenciais, nas quais ao menos uma pessoa ou casal que trabalha na instituição como educador/cuidador deve ser residente. Deste modo, o cuidador reside em uma casa, a qual não é de sua propriedade, oferecendo cuidados a um grupo de crianças e adolescentes que se encontram afastados do convívio familiar, por meio de medida protetiva de abrigo (art. 101, ECA, 1990). Atendendo, portanto, crianças e adolescentes de 0 a 18 anos. Dessa forma, as Orientações Técnicas (2009, p. 75) descrevem que esta modalidade de acolhimento institucional: [...] visa estimular o desenvolvimento de relações mais próximas do ambiente familiar, promover hábitos e atitudes de autonomia e de interação social com as pessoas da comunidade. Com estrutura de uma residência privada, deve receber supervisão técnica, localizar-se em áreas residenciais da cidade e seguir o padrão-sócio econômico da comunidade onde estiverem inseridas.
9 Não devem ser instaladas placas indicativas da natureza institucional do equipamento, também devendo ser evitadas nomenclaturas que remetam à aspectos negativos, estigmatizando e despotencializando os usuários. (ORIENTAÇÕES TÉCNICAS: SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTE, 2009, p.69). 10 Este equipamento é particularmente adequado ao atendimento a grupos de irmãos e a crianças e adolescentes com perspectiva de acolhimento de média ou longa duração. (ORIENTAÇÕES TÉCNICAS: SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTE, 2009, p.75)
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Em virtude disto, o serviço deve organizar-se de uma maneira que o ambiente possa ser o mais próximo possível de uma rotina familiar, proporcionar vínculo estável entre o educador/cuidador residente e as crianças e adolescentes acolhidos, além de lhes possibilitar o convívio familiar e comunitário. O referido equipamento precisa estar em conformidade com as premissas estabelecidas no ECA (1990) sobretudo no tocante ao fortalecimento dos vínculos familiares e sociais e na reintegração familiar ou colocação em família substituta.
SERVIÇO DE ACOLHIMENTO EM FAMÍLIA ACOLHEDORA Segundo a Tipificação Nacional (2009) o serviço de acolhimento Família Acolhedora realiza o acolhimento de crianças e adolescentes com medida de proteção, nas residências pertencentes às próprias famílias acolhedoras. Ressalta-se que as famílias precisam estar devidamente cadastradas em um programa desenvolvido através de uma parceria entre o Poder Público e o Poder Judiciário. Uma vez que, esta modalidade de acolhimento ocorrerá apenas por determinação judicial. Para tanto, torna-se essencial ao serviço de acolhimento realizar a seleção, preparação e cadastramento das Famílias Acolhedoras, com orientações e encaminhamentos para a rede de serviços locais, construção do Plano Individual de Atendimento11, apoio a família em sua função protetiva, entre outras atribuições, objetivando salvaguardar os direitos dos acolhidos. PACHÁ; JUNIOR e NETO (2009) descrevem que tal medida de proteção, se refere à promoção do acolhimento familiar e sua aplicação é resultado do sucesso obtido por “programas de famílias acolhedoras”, os quais atualmente vêm se reproduzindo em todo o país. Além disso, o PNCFC (2006) caracteriza as Famílias Acolhedoras como um serviço que organiza o acolhimento, na residência das próprias famílias. É necessário lembrar que se trata de uma medida de proteção e não uma nova forma de colocação em família substituta.
EQUIPE DE REFERÊNCIA NO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL Atrelado a todo este processo de reordenamento dos serviços de 11 Trataremos deste assunto mais adiante.
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acolhimento, fez-se necessário à regulamentação de uma equipe de referência, para atender aos acolhidos institucionalmente. Desta forma, Ferreira (2011) pontua que a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/SUAS) regulamenta a equipe de referência12 para atuar nos Abrigos Institucionais, Casa – Lar e Família Acolhedora, ressaltando que estes profissionais devem atender pequenos grupos de crianças e adolescentes, para assegurar desta maneira um trabalho mais qualificado e eficaz. Neste sentido, tem-se a equipe de referência para atendimento direto, sendo um(a) coordenador(a) - nível superior -, um(a) cuidador(a) - nível médio, qualificação específica -, um(a) auxiliar de cuidador - nível fundamental, qualificação específica -, para atender até vinte usuários referenciados em no máximo duas instituições. Salienta-se que se houverem acolhidos com deficiência o número de cuidadores e auxiliares precisa aumentar de acordo com a demanda apresentada, pontua Ferreira (2011) ao interpretar a NOB-RH/SUAS. Bem como, a NOB-RH/SUAS decodificada por Ferreira (2011) estabelece que a equipe de referência para prestar atendimento psicossocial, vinculada ao Órgão Gestor, precisa contar com um(a) assistente social, um(a) psicólogo(a), para atender no máximo vinte usuários, em até duas instituições da alta complexidade, para pequenos grupos. No que se refere ao serviço de Família Acolhedora a Ferreira (2011) a luz da NOB-RH/SUAS elucida que a equipe profissional deve ser referenciada ao Órgão Gestor e responsável pelo atendimento psicossocial. Composta, portanto, por um(a) coordenador - atendendo até quarenta e cinco usuários acolhidos, um(a) assistente social e um(a) psicólogo(a) para atender até quinze famílias acolhedoras e quinze famílias de origem dos usuários acolhidos sob esta medida protetiva. Assim sendo, o Órgão Gestor segundo a NOB-RH/SUAS comentada por Ferreira (2011) é responsável pela manutenção do quadro da equipe técnica de cada serviço de acolhimento institucional. Desta forma, para a consolidação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a Constituição Federal (1988) assegura a nomeação de um funcionário de carreira do ente público para exercer a função de
12 Segundo a NOB-RH/SUAS interpretada por Ferreira (2011, p. 21) “A composição das equipes de referência é composta por categorias profissionais de nível superior orientadas por códigos de ética e, portanto, agregam essa dimensão aos serviços e benefícios, à gestão do SUAS”.
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gestor13, tendo em vista, a relevância te tal trabalho para a consolidação do referido sistema no país, como um todo. Desta forma, o trabalho social desenvolvido no âmbito do serviço de acolhimento pela equipe de referência, conforme preconiza a Tipificação Nacional (2009) deve propiciar ao acolhido momentos de: acolhida; escuta; desenvolvimento do convívio grupal, familiar e social; realizar criteriosamente o estudo social de cada caso; apoiar a família em sua função protetiva, com noções de cuidados, orientações e encaminhamentos aos serviços locais, que assegurem resolutividade as questões abordadas; construção do Plano Individual de Atendimento; protocolos de acompanhamento acerca dos encaminhamentos realizados – referência e contrareferência; elaboração de relatórios e prontuários; realizar sempre que possível o trabalho
interdisciplinar;
elaboração
de
diagnóstico
sócio-econômico;
encaminhamento para elaboração de documentação pessoal; mobilização para identificação da família extensa ou ampliada; mobilização para assegurar direitos e para o exercício da cidadania; entre outros procedimentos que visem salvaguardar os direitos inerentes à criança e/ou adolescente acolhido e suas respectivas famílias, portanto, o trabalho em rede com as demais políticas públicas é imprescindível. Em virtude de todo este processo e das crianças e adolescentes contarem com medida de proteção – na modalidade acolhimento institucional - a Tipificação Nacional (2009) prevê que sejam garantidos aos usuários deste serviço, seguranças de acolhida, ou seja, que o processo de acolhimento aconteça de maneira digna, com a identidade, integridade e história de vida preservada. Complementando tais procedimentos a Tipificação Nacional (2009) ressalta que é indispensável que o ambiente esteja em conformidade com as normas e padrões de qualidade, quanto a higienização; acessibilidade; habitabilidade; salubridade; segurança e conforto, ter acesso a alimentação adequada com padrões nutricionais, com espaço acolhedor e reservados, mantendo-se desta forma, a privacidade do acolhido, bem como de seus pertences pessoais. Sendo, portanto, com um ambiente favorável ao processo de desenvolvimento peculiar deste público. Fatores estes que contribuem para a realização e execução com sucesso das metas 13 Para o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a gestão representa um controle das políticas públicas, em especial a política de assistência social. “[...], pensar as dimensões – diagnóstico/planejamento/execução/monitoramento/avaliação, como movimentos absolutamente interligados e interdependentes, que se imbricam e inter-relacionam, numa dinâmica estratégica e não-linear. Tais dimensões não podem mais serem vistas como etapas ou fases que se sucedem, mas sim como uma totalidade dinâmica.” (BRASIL/MDS, 2008, vol. 02, p. 48).
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e objetivos estabelecidos no Plano Individual de Atendimento de cada acolhido. O PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO: NO CONTEXTO DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL A partir do momento que a criança e o adolescente são acolhidos, a equipe técnica responsável pela instituição deverá elaborar o Plano Individual de Atendimento (PIA), este documento por sua vez deve conter objetivos, estratégias, ações e metas a serem desenvolvidas durante o período de acolhimento, tendo por objetivo, conforme as Orientações Técnicas (2009) superar os motivos que contribuíram e/ou foram cruciais para que o acolhimento institucional ocorresse. Portanto, o PIA deve estar em consonância com as demandas da criança e do adolescente, estendido aos seus familiares e ser desenvolvido em parceria com o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e Juventude. Estando em conformidade com o ECA (1990) que estabelece em seu artigo 93 que toda ação desenvolvida no tocante ao acolhimento institucional, necessita ser realizada de maneira interprofissional, em especial com a Vara da Infância e Juventude. Em consonância com este artigo, as Orientações Técnicas (2009) destacam que é preciso realizar o mais breve possível o estudo social/diagnóstico de cada acolhido, sendo em até vinte dias após ter ocorrido o acolhimento, para que se possa avaliar a real necessidade da medida ou a possibilidade de retorno imediato da criança ou adolescente para a família. Entendendo que a família tem um lugar privilegiado de proteção e pertencimento para cada um de seus membros, em especial para as crianças e adolescentes. Contudo, ainda que continue uma tendência à idealização da família, ela surge também como um espaço passível de conflitos e contradições os quais precisam ser trabalhados, segundo Rizzini (2007, apud, SANTOS, (2013)). Assim sendo, o PIA visa orientar e nortear o trabalho de intervenção durante o período de acolhimento, garantindo que cada caso seja revisto com maior frequência e que as dificuldades possam vir a serem superadas. Salienta-se que neste processo de escuta qualificada para a construção do PIA os familiares também devem contar com um momento de escuta. Para que cada membro familiar relate seus anseios, medos, potencialidades, perspectivas de mudança, visto que toda esta metodologia de trabalho tende a contribuir para a 38
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redução do tempo de acolhimento institucional. Assegurando o retorno à família de origem e/ou em casos excepcionais a colocação em família substituta o mais breve possível. Desta forma, o trabalho deve priorizar o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente durante o período de acolhimento. Em todo o transcorrer do trabalho a realização de atividades são de grande valia e importância, em especial as realizadas junto à família de origem, pois longos períodos de afastamento entre os acolhidos e seus familiares tendem a enfraquecer e fragmentar ainda mais os vínculos afetivos, esta aproximação, faz com que se avalie a real necessidade do acolhimento, entendendo as questões objetivas e subjetivas que permeiam a situação. Inúmeras técnicas podem ser utilizadas no acompanhamento às famílias, realização de estudo de caso - através de uma reflexão coletiva - atrelada a entrevista individual e familiar, tais ações permitem aos profissionais avaliar a expectativa da família quanto à reintegração familiar, contribuindo para a elaboração e execução conjunta do PIA. Destaca-se também a realização de grupo com famílias, favorecendo a troca de experiências entre elas, a aprendizagem e o apoio mútuos. Possibilitando, desta forma, a construção de um olhar reflexivo acerca das relações familiares existentes e das
responsabilidades
pertinentes
a
cada
membro
do
grupo
familiar.
Potencializando-se os recursos da família para que ocorra o engajamento nas ações imprescindíveis para a retomada do convívio familiar com a criança ou adolescente. Neste contexto é imprescindível trabalhar com grupo multifamiliar, favorecendo inclusive a participação de crianças e adolescentes acolhidos. As Orientações Técnicas (2009) destacam ainda a importância da realização da visita domiciliar, tal instrumento nos possibilita conhecer o contexto e a dinâmica familiar in loco, identificando demandas, necessidades, vulnerabilidades e riscos vivenciados pelo núcleo familiar. Pois, é através deste diálogo que a família irá empoderar-se dos seus direitos, bem como dos seus deveres, dos procedimentos e caminhos a serem percorridos, para que o desacolhimento possa vir a ocorrer. Reforçando tal afirmativa PNCFC (2006) descreve que a família precisa ser incluída em Programas de Apoio Social a Famílias (na rede de serviços que compõem o Sistema de Garantia de Direitos), os quais devem estar articulados com os serviços especializados na prestação de cuidados alternativos. Garantindo-se, desta maneira, a continuidade do acompanhamento da criança ou do adolescente e 39
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de sua família, durante o período de acolhimento e posterior a reintegração familiar. Assim sendo, todo o trabalho segundo as Orientações Técnicas (2009) deve favorecer a acolhida da família, a compreensão de sua dinâmica de funcionamento, seus valores e cultura, atrelado a conscientização da família de sua importância na vida da criança e do adolescente. A família precisa perceber a importância da sua contribuição na tomada de decisões, pois tais decisões podem vir a serem adotadas pela Vara da Infância e Juventude no momento da sentença judicial. Uma vez que, o Poder Judiciário se baseia no fato da criança e do adolescente serem sujeitos de direito, priorizando o retorno à família de origem, quando esta desempenha seu papel de proteção, segurança e acolhida. Neste sentido, o trabalho junto com as famílias precisa fomentar a criação de estratégias para a resolução de conflitos, fortalecendo a autoestima e destacando as competências da família, estimulando a autonomia familiar, a resiliência – para que a experiência vivenciada resulte em aprendizado e consequentemente criem-se possibilidades de superação dos desafios propostos -, propiciando então a retomada do convívio familiar com a criança e o adolescente, o mais breve possível. É importante destacar que, posterior, a reintegração familiar é imprescindível que ocorra um período de adaptação familiar mútua. Assim sendo, é preciso que após o processo de reintegração a família seja acompanhada por pelo menos seis meses, pela equipe técnica e/ou por outros serviços da rede socioassistencial Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) ou até mesmo pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), segundo as Orientações Técnicas (2009). Deve-se estar atento para os casos em que a reintegração familiar não seja possível, desde que esgotadas todas as possibilidades. Quando identificar-se tal acontecimento a equipe técnica do serviço deverá elaborar e enviar para à autoridade judiciária um relatório circunstanciado e detalhado. Descrevendo a situação familiar, expondo quais foram as intervenções realizadas visando à reintegração familiar e deste processo quais resultados obteve-se, momento este em que pode-se sugerir a Destituição do Poder Familiar e a inserção da criança ou adolescente no cadastro para adoção, de acordo com as Orientações Técnicas (2009). Em razão disto, o PNCFC (2006) faz uma alerta da relevância que a análise 40
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minuciosa da situação possui, pois tende contribuir para se evitar danos ao desenvolvimento dos infantes, ocasionados por separações bruscas, longas e desnecessárias. Deve-se considerar a qualidade das relações familiares e o papel de cada membro na construção e/ou reconstrução destas relações. Portanto, a decisão pela destituição do poder familiar, precisa acontecer posterior a um investimento eficiente na busca de recursos na família de origem, nuclear ou extensa dos acolhidos. Todo este processo se dá através de acompanhamento profissional sistemático e aprofundado de cada caso, o qual necessita considerar o tempo de afastamento, a faixa etária da criança e do adolescente e a qualidade das relações estabelecidas entre eles e suas respectivas famílias. Uma vez que, destituído o poder familiar a criança e o adolescente serão inscritos no Cadastro Nacional de Adoção. Portanto, precisa existir planejamento por parte do Poder Judiciário e da equipe técnica – principalmente em relação aos acolhidos com perfil de difícil colocação para a adoção-, para que seja possível realizar a preparação prévia de todos os envolvidos e propiciar a aproximação gradativa entre os adotantes e a criança/adolescente. As Orientações Técnicas (2009) ressaltam ainda que é necessário realizar também a preparação do educador/cuidador ou da Família Acolhedora, das demais crianças e adolescentes acolhidos na instituição, visto que o momento do desacolhimento é muito significativo na vida de quem permanece na instituição e de quem vai para o convívio familiar.
CONCLUSÃO O referido trabalho teve o intuito de apresentar de forma sistematizada a maneira como o acolhimento institucional tem se estabelecido no Brasil. Verifica-se no transcorrer do trabalho que às instituições de acolhimento, com base nas normativas e legislações sancionadas, obtiveram inúmeras ampliações e avanços. A legislação observou a perspectiva do desenvolvimento da criança e do adolescente, apesar de ainda contarmos com uma sociedade um tanto quanto conservadora, contudo não se pode negar o grande salto que o país deu acerca da proteção das crianças e adolescentes, entendendo-os enquanto sujeitos de direitos e, portanto detentores de prioridade absoluta, cabendo ao Estado, a sociedade e a
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família salvaguardá-los de qualquer situação que possa os colocar em risco. Em virtude disto, ainda temos muito a avançar, pois a sociedade como um todo ainda encontra-se carregada de estigmas e preconceitos no que se refere aos sujeitos considerados “abrigados” e com isto não corrobora para que a nova “roupagem do acolhimento institucional” seja entendida e praticada, enquanto uma ação inovadora e humanizada. Contudo, a partir das novas legislações a medida de proteção anteriormente conhecida como “abrigo” a qual possuía um caráter punitivo e corretivo, em que crianças e adolescentes eram institucionalizados sem acompanhamento e não contavam com um trabalho visando o retorno ao convívio familiar e comunitário, sofreu inúmeras alterações, desta forma, os novos parâmetros trouxeram um novo olhar sobre crianças e adolescentes, sua família e a comunidade na qual estão inseridos. Salienta-se que a proteção a criança e ao adolescente é de responsabilidade de todos, é imprescindível a conscientização deste processo por todos os indivíduos, faz-se necessário o investimento em políticas públicas, por exemplo, de saúde, educação, esporte, lazer, cultura, alimentação, habitação, assistência social, para que a rede de proteção e o Sistema de Garantia de Direitos destes sujeitos em desenvolvimento realmente se efetive no Brasil. Salvaguardando as crianças e adolescentes com direitos violados, bem como protegendo para que não tenhamos a revitimização destes e/ou que novas vítimas passem a existir, visando uma sociedade mais justa e igualitária, garantidora de direitos.
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CONTINUIDADES E INOVAÇÕES NO PENTECOSTALISMO BRASILEIRO DO SÉCULO XXI Emerson Antônio Lazaro Prata1
RESUMO Com presença marcante no campo religioso brasileiro contemporâneo o pentecostalismo têm sido um dos principais responsáveis pelo pluralismo religioso nacional, sobretudo no último quarto de século, quando o número de evangélicos no país cresceu em proporção muito maior do que a população em geral, liderados por esta vertente. Com aproximadamente 100 anos de existência, esse fenômeno sofreu transformações substanciais em sua estrutura, denotando uma heterogeneidade nada desprezível em sua composição. Fazendo uso da tipologia elaborada acerca das “ondas” pentecostais – por meio de uma revisão bibliográfica –, o presente paper tem por objetivo trazer uma breve discussão sobre as principais características de cada uma das fases, bem como destacar algumas configurações atuais e inéditas que ocorrem no interior deste fenômeno. Palavras-chave: Pentecostalismo. “Ondas” Pentecostais. Mudanças religiosas. Brasil. ABSTRACT With strong presence in contemporary Brazilian religious field Pentecostalism has been a major contributor to the national religious pluralism, especially in the last quarter century, when the number of evangelicals in the country grew much larger than the general population proportion, led by this strand. With nearly 100 years of existence, this phenomenon has undergone substantial changes in its structure denoting a not negligible heterogeneity in their composition. Making use of the typology elaborated about the pentecostals "waves" – through a literature review –, this paper aims to bring a brief discussion of the main features of each stage, as well as highlight some current and novel configurations that occur within this phenomenon. Keywords: Pentecostalism. Pentecostals “Waves”. Religious changes. Brazil. INTRODUÇÃO
O catolicismo, herança colonial europeia, sempre dominou o cenário religioso brasileiro. Até bem recentemente, mais precisamente até a década de 1980, o contingente de católicos no país representava 89% da população, segundo 1 Formado em Ciências Sociais pela UNESP e Mestrando em Sociologia pela UFSCar. Membro do NEREP/UFSCAR. Atua no campo da Sociologia da Religião com ênfase nos estudos sobre pentecostalismo no Brasil sob a orientação do Prof. Dr. Paul Freston.
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os censos demográficos. Porém, esse quadro tem se alterado paulatinamente desde então, aonde a hegemonia desta igreja pouco a pouco vem cedendo espaço a novas configurações religiosas, marcadas, sobretudo, pela emergência de novas formas de religiosidades, pelo crescimento dos “sem-religião” e, o que constitui o objeto do presente paper, pelo avanço (neo) pentecostal2. O Brasil sempre contou ao longo de sua história com outras religiões em seu território além da oficial (até a Proclamação da República em 1889) Igreja Católica, como por exemplo: o Espiritismo, as religiões Afro-brasileiras (Umbanda e Candomblé) e mesmo protestantes históricos. Embora estivessem presentes, tais religiões eram muitas vezes proibidas ou sofriam intensas perseguições e não representavam uma frente organizada perante a dominação e opressão impostas pelo catolicismo. Este quadro começa a se alterar com a inserção pentecostal no país. Fenômeno originado inicialmente na região Norte do Brasil em princípios do século XX, desenvolve-se timidamente até meados da década de 1950 quando, acompanhando o processo de modernização e urbanização do país, atinge novas feições com aberturas quanto aos usos e costumes3 concomitante a ampliação do número de denominações, sobretudo na região Sudeste, mais especificamente em São Paulo. A partir da década de 1980 passa a constituir um dos pilares das mudanças religiosas brasileiras nesse contexto (PIERUCCI, 1996; SANCHIS, 1997; FRESTON, 2013a), concentrando-se no Rio de Janeiro com o surgimento das chamadas igrejas neopentecostais. Desde suas origens, o pentecostalismo está pulverizado em diversas denominações oriundas de contextos distintos e traz consigo a marca de um efetivo pluralismo religioso, ou mais precisamente, pluralismo cristão para o Brasil (PIERUCCI, 2006; SOUZA, 2012). Este fenômeno que constitui um dos mais importantes do período é muito heterogêneo e transita por fases distintas. É importante evidenciar nesse momento que se trata de um fenômeno mais adaptado às transformações da modernidade. Não possuir o peso da tradição, como os católicos, por exemplo, propicia a este uma maior flexibilização em seus dogmas,
2 Sobre as análises do crescente pluralismo religioso no Brasil ver: Antônio F. Pierucci (2004); Lísias Negrão (2008); Paul Freston (2010); Pierre Sanchis (1997); Ricardo Mariano (2013). 3 Termos utilizados pelos próprios pentecostais “para se referir ao rigorismo legalista, às restrições ao vestuário, uso de bijuterias, produtos de beleza, corte de cabelo e a diversos tabus comportamentais existentes em seu meio religioso” (MARIANO, 2012).
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fator que se acentua nas dissidências. As diversas apropriações teológicas dessas igrejas permitem ajustes em suas doutrinas, contribuindo para uma inserção maior no campo religioso brasileiro e assim conquistar uma parcela considerável dos cidadãos, como veremos no decorrer deste trabalho. Com
o
objetivo
de
estabelecer
uma
breve
discussão
sobre
o
pentecostalismo que se desenha neste início de século, propõe-se aqui apontar algumas características emergentes no pentecostalismo brasileiro deste início de século, apontando como fator principal deste período a desinstitucionalização evangélica acompanhada por um intenso trânsito religioso intra-denominacional e inter-denominacional (ALMEIDA, 2001), pelo contínuo crescimento do número de denominações, fato presente entre estes desde a década de 1950. E, para finalizar, alguns apontamentos a respeito dos limites atuais de seu crescimento. Para tal empreendimento, foi realizada uma breve exposição acerca das ondas pentecostais destacando suas principais características e em seguida buscou-se debater o pentecostalismo hoje e suas principais atualizações perante sua diminuta tradição.
TIPOLOGIA DAS “ONDAS” PENTECOSTAIS
Termo cunhado inicialmente, no caso brasileiro, pelo sociólogo da religião Paul Freston em sua tese de doutorado intitulada Protestantes e politica no Brasil: da constituinte ao impeachment (1993), a tipologia das ondas pentecostais descreve o processo de desenvolvimento do pentecostalismo no país, concatenando o surgimento e desempenho das denominações desta vertente cristã com o contexto socioeconômico brasileiro. É importante ressaltar antes de iniciar a discussão em nível de Brasil que tal tipologia fora empregada originalmente na sociologia norte-americana. David Martin (1990) utiliza-o para descrever a história do Protestantismo mundial em três grandes ondas: puritana, metodista e pentecostal. Aliás, tal termo é recorrente nos EUA onde cada onda possui suas correntes e o pentecostalismo é organizado da seguinte maneira: a primeira corrente é caracterizada pelas igrejas clássicas surgidas no início do século XX; a segunda pela renovação carismática nas décadas de 1950-60; a terceira, por sua vez, é o main stream church renewal iniciada nos anos 1980 (MARIANO, 2012, p.28). Retomando o contexto nacional, temos que no Brasil o pentecostalismo está 47
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dividido em três ondas, situadas em contextos históricos distintos que se traduzem em uma pluralidade de igrejas, bem como de tradições e valores. De acordo com Freston (1993): A primeira onda é a década de 1910, com a chegada da Congregação Cristã (1910) e da Assembléia de Deus (1911) [...] firmando presença nos pontos de saída do futuro fluxo migratório. A segunda onda pentecostal é dos anos 50 e início de 60, na qual o campo pentecostal se fragmenta, a relação com a sociedade se dinamiza e três grandes grupos (em meio a dezenas de menores) surgem: a Quadrangular (1951), Brasil para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962). O contexto dessa pulverização é paulista. A terceira onda começa no final dos anos 70 e ganha força nos anos 80. Suas principais representantes são a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980). Novamente, essas igrejas trazem uma atualização inovadora da inserção social e do leque de possibilidades teológicas, litúrgicas, éticas e estéticas do pentecostalismo. O contexto é fundamentalmente carioca (FRESTON, 1993, p.66).
A primeira onda pentecostal no país que dura aproximadamente 40 anos tem como principais expoentes a Congregação Cristã (CC) e a Assembleia de Deus (AD). Fundada em São Paulo por Luigi Francescon, a CC é a mais antiga e uma das mais tradicionalistas. Não faz uso de métodos modernos de divulgação como rádio, TV, pregações em espaços públicos, entre outros (FRESTON, 1993; MARIANO, 2012). Também é das mais conservadoras quanto aos já citados usos e costumes apesar de permitir o uso moderado de álcool. A AD por sua vez, ao contrário do caráter patriarcal da CC que limita o crescimento, possui um forte apelo ao proselitismo estimulando a inserção de novos fiéis. Seu ethos tradicional é de martírio, sofrimento, marginalização e de negação de bens materiais. Segundo Mariano ambas continuam mantendo viva a postura sectária e o ideário ascético caracterizado por um “ferrenho anticatolicismo, por enfatizar o dom de línguas, a crença na volta iminente de Cristo e na salvação paradisíaca e pelo comportamento de radical sectarismo e ascetismo de rejeição do mundo exterior” (2012, p. 29). A hegemonia exercida por estas duas denominações começam a enfrentar alguma concorrência efetiva somente nos anos 50 com a inserção de três novas igrejas, que caracterizam a segunda onda pentecostal: a Igreja Evangelho Quadrangular (IEQ) em 1951, a Brasil para Cristo (BPC) em 1955 e a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA) em 1962 (FRESTON, 1993; MARIANO, 2012). Nascidas num contexto de formação de uma sociedade de massas decorrente do processo de urbanização principalmente na região Sudeste (onde se concentraram inicialmente), estas igrejas apresentam qualidades diferentes das encontradas em
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suas antecessoras, pois fazem uso de meios de comunicação, sobretudo do rádio, para promoção e divulgação, são mais flexíveis quanto ao indumentário de seus fiéis, dão grande ênfase à cura divina e realizam cultos e eventos em locais públicos e de grande acesso (MARIANO, 2012). A primeira e principal representante deste momento é a IEQ. Fundada por Aimee Semple McPherson nos EUA dos anos 1920 e trazida para o Brasil por Harold Willians e Raymond Boatright nos anos 1950, é uma igreja inovadora, a começar por seus fundadores. É fundada por uma mulher no primeiro caso (fato inédito entre os pentecostais) e por dois ex-atores de filmes faroeste norteamericanos no segundo. Surge no interior de São Paulo, concentra suas atividades na região Sudeste, e é a primeira a se utilizar amplamente meios de comunicação, mais especificamente o rádio, até então condenado pelas outras igrejas pentecostais. Tem como principal apelo à cura divina (física e psicológica) em detrimento da centralidade do pecado e do inferno, atributos próprios de suas antecedentes. Segundo Freston este último aspecto denota um “sinal de adaptação desta igreja às sensibilidades da sociedade de consumo e às exigências do mercado religioso” (1993, p. 84). A BPC e a IPDA são duas das dissidências mais significativas da IEQ. Ambas também estão centradas na cura divina. Porém, vale ressaltar aspectos particulares de cada uma. Promovendo a primeira grande cisão entre os pentecostais brasileiros (ALMEIDA, 2009) a primeira tem como outro pioneirismo o fato de ter sido fundada por um brasileiro, ex-pastor da IEQ, Manuel de Mello. Com forte teor nacionalista e populista essa igreja buscava exercer uma liderança nacional com o sonho de ganhar a nação, o que deu a esta um caráter mítico (FRESTON, 1993). Por não possuir uma tradição apolítica acabou entrando muito cedo neste campo, contrariando a postura geral pentecostal que insere-se com relevância somente no decorrer dos anos 80. A IPDA, fundada por David Miranda, tem como traços próprios a rigidez nos usos e costumes, além da proibição da televisão (apesar de investir pesado no rádio) e da separação por sexo nos templos (Ibidem). Estas duas denominações apesar de manter certa rigidez em alguns usos e costumes, estão situadas na segunda onda, pois se utilizam de meios de comunicação em massa e de locais públicos como inovações para a pregação, possuem a ênfase na cura divina, além do fato de terem surgido 40 anos após a primeira onda, numa região em que o espírito desenvolvimentista imperava e o qual 49
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refletiu
diretamente
em
suas
características
(FRESTON,
1993).
Outras
denominações surgem neste contexto, no entanto, além de ter apresentado as mais expressivas, fica evidente um dos principais aspectos desse movimento a partir desse momento: a dissidência (ALMEIDA, 2009) 4. O surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em 1977 com o bispo Edir Macedo e da Igreja Internacional da Graça (IIGD) em 1980 com Romildo Ribeiro Soares, ambos ex-membros da igreja Nova Vida, assinala o início da terceira onda pentecostal. Outras igrejas também compõem o quadro: Cristo Vive (1986), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976), Comunidade da Graça (1979), Renascer em Cristo (1986) Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (1994) (MARIANO, 2012). O contexto do país difere daquele vivido pelos pentecostais das ondas anteriores. Fato que favorece, assim como nos outros casos, a adaptação das igrejas que surgem inseridas neste. Temos, assim, um cenário de mudanças com: o aprofundamento da industrialização; o inchamento urbano causado pela expulsão de mão-de-obra do campo; a estrutura moderna de comunicações de massa que no final dos anos 70 já alcança quase toda a população; a crise católica e o crescimento da umbanda; e a estagnação econômica dos anos 80 (...) Iniciando-se no contexto de um Rio de Janeiro marcado pela decadência econômica, pelo populismo político e pela máfia do jogo, o novo pentecostalismo se adapta facilmente à cultura urbana influenciada pela televisão e pela ética yuppie (FRESTON, 1993, p. 95).
Nesta nova fase o pentecostalismo passa por importantes transformações teológicas, litúrgicas, éticas e estéticas. A glossolalia, ênfase da primeira onda e a cura divina, alvo da segunda, cedem espaço à busca pela exorcização das forças malignas que operam na vida das pessoas e impedem o crescimento e a felicidade destas (Ibidem, p. 100). Nota-se aqui que tanto a postura de martírio e negação dos bens materiais, quanto às restrições impostas quanto aos usos e costumes, presentes na primeira e na segunda onda são abandonados, sendo adotada uma postura que além de não negar a sociedade, nem apenas conviver com esta, busca integrar-se a ela, a vivê-la plenamente. A base teológica dos neopentecostais5 é a chamada Teologia da Prosperidade, corrente surgida nos EUA dos anos 1940 sob os seguintes rótulos: Health and Wealth Gospel, Faith Movement, Faith Properity Doctrines, Positive 4 Outras denominações surgidas neste contexto de acordo com o autor são: Casa da Benção (1964) com Doriel de Oliveira, a Igreja Socorrista (1973) e o Templo da Benção (1991) (2009, p.33). 5 Conceito adotado por Ricardo Mariano (2012) que equivale à terceira onda pentecostal.
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Confession, entre outros, tendo como características: a cura, a prosperidade e o poder da fé (MARIANO, 2012; SOUZA, 2011). De acordo com essa corrente, “Jesus Cristo já redimiu a humanidade, de modo que todo seguidor tem o legítimo direito a riqueza, saúde e sucesso nesta vida, portanto, aqui e agora” (SOUZA, 2011). Aqui, a mensagem é de que Deus não quer ver seu filho sofrer, Ele não é sádico. O fiel não deve ter uma vida privada de riqueza material, de ascetismo ou martírio, Ele quer que seus servos prosperem e tenham uma vida repleta de saúde, riqueza e felicidade (MARIANO, 2012). Como sintetiza Ricardo Mariano (2012), o neopentecostalismo tem como convergências em relação a seus predecessores: o antiecumenismo, líderes fortes, uso de meios de comunicação em massa, estímulo a expressividade emocional, participação na política partidária e pregação da cura divina. Porém, traz como características distintivas a exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo, a pregação da Teologia da Prosperidade e a liberalização dos estereotipados usos e costumes de santidade. Dentre as citações trazidas pelo autor sobre o neopentecostalismo, a do antropólogo Ari Pedro Oro parecer ser a mais adequada e que melhor sintetiza-o: Oro (1992)6 afirma que as igrejas neopentecostais são autóctones [assim como algumas pentecostais da primeira e da segunda onda], têm líderes fortes e pouca inclinação à tolerância e ao ecumenismo, opõem-se aos cultos afro-brasileiros, estimulam a expressividade emocional, utilizam muito os meios de comunicação de massa, enfatizam rituais de cura e exorcismo, estruturam-se empresarialmente, adotam técnicas de marketing e retiram dinheiro dos fiéis ao colocar “no mercado religioso serviços e bens simbólicos que são adquiridos mediante pagamento" (MARIANO, 2012, p. 35).
PENTECOSTALISMO DO SÉCULO XXI: RECONFIGURAÇÕES PENTECOSTAIS
A breve e sintética exposição acerca das ondas pentecostais no Brasil teve o intuito de apresentar algumas das principais características apresentadas pelas igrejas fundadas sob esse signo e, ao mesmo tempo, enfatizar a pluralidade existente dentro deste fenômeno. Nesta seção busca-se uma leitura do pentecostalismo atual, com o objetivo de trazer algumas contribuições teóricas, bem como dados empíricos que corroborem nossa linha de argumentação.
6 Oro. Ari Pedro. ‘Podem passar a sacolinha’: um estudo sobre as representações do dinheiro no neopentecostalismo brasileiro. Cadernos de Antropologia, 9, p.7-44 Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS.
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Desde suas origens a ausência de uma efetiva tradição, como no caso católico, permitiu a este movimento religioso uma maior flexibilização e adaptação à sociedade vigente, como vimos há pouco. E atualmente não é diferente. Vivenciamos hoje a continuidade do progresso numérico dos pentecostais e suas influências políticas, econômicas, sociais e culturais. A começar pelos números apresentados nos últimos censos demográficos do IBGE em relação ao campo religioso nacional: somente os pentecostais representaram em 2010 13,3% (25,4 milhões) da população nacional, sendo que em 2000 era de 10,4% (17,7 milhões) e em 1991 apenas 5,9% (8,8 milhões) (MARIANO, 2004; 2013; PIERUCCI, 2004). Ainda que seu crescimento tenha diminuído no último decênio, os “apenas” 44% de crescimento o colocam entre os maiores na categoria. Podemos afirmar desse modo que o pentecostalismo é um fenômeno consolidado e representativo da sociedade brasileira. Como sugere o título deste paper, o objetivo é apontar algumas características atuais do pentecostalismo brasileiro analisando em que medida elas estão vinculadas à tradição no país, com pouco mais de 100 anos de existência, e que caracteres emergentes na atualidade inovam o cenário pentecostal no país. Demograficamente a concentração continua fixada nas periferias das grandes regiões metropolitanas, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro (JACOB et. Al., 2003; ALMEIDA, 2001; 2009; NERI, 2011). O apelo às populações mais pobres e destituídas dos bens simbólicos e materiais da sociedade de consumo também permanecem na agenda pentecostal, embora o crescimento das igrejas resulte na configuração de um público mais heterogêneo abarcando “classes médias, incluindo empresários, profissionais liberais, atletas e artistas” (MARIANO, 2004). Quanto ao perfil socioeconômico observa-se no Censo 2010 a manutenção dos números apresentados nas edições anteriores, ou seja, estão na base da pirâmide social: 63,7% dos pentecostais acima de 10 anos ganham até um salário mínimo, 28% recebem entre um e três salários e 42,3% dos acima de 15 anos têm apenas o ensino fundamental incompleto. O pentecostalismo, portanto, continua se expandindo nos estratos econômica e socialmente mais vulneráveis da população, concentrando-se nas periferias urbanas das capitais e das áreas metropolitanas e nas fronteiras agrícolas das regiões Norte e Centro-Oeste (Jacob et al., 2003). Expande-se, sobretudo, em territórios pobres e desassistidos, onde, a partir de 1980, tornou-se epidêmica a violência entre jovens do sexo masculino e disseminaram-se gangues e facções armadas. Locais geralmente em que tanto a presença católica quanto a dos poderes públicos é rarefeita (Idem, 2013, p. 125).
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Duas práticas adotadas que permanecem presentes e se fortalecem no mundo pentecostal é a utilização de meios de comunicação em massa e a atuação na política partidária. Ambas exerceram um papel fundamental no desenvolvimento do movimento, em particular, a partir do final dos anos 1980. A utilização dos meios de comunicação em massa, presente entre as igrejas da segunda e da terceira onda, intensifica-se como um mecanismo de autopromoção (MARIANO, 2012). No decorrer dos anos 80 e principalmente nos anos 90 a “corrida televisiva” constituiu um entrave no ecumenismo pentecostal. A IURD, maior e mais bem-sucedida nesse ramo, foi precursora alugando espaços em emissoras como a Rede Bandeirantes e posteriormente comprando da Rede Record de Rádio e Televisão em 1989 (SOUZA, 2011). “Em 2007, com três décadas de existência, a IURD detinha quarenta emissoras de rádio e vinte e três de televisão, sendo a maior controladora de emissoras radiofônicas e televisivas do país” (SOUZA, 2011, p. 9). A IIGD tem o primeiro líder evangélico a apresentar um programa televisivo e desde então figura entre as igrejas que mais se dedicam à televisão7. Atualmente, a busca por mais e melhores horários na televisão brasileira ainda é alvo de intensas disputas entre os evangélicos. Uma recente matéria publicada pelo portal da Folha de São Paulo na internet8 mostra que a IURD possui uma grande parcela dos horários da grade televisiva brasileira com 364 horas/semana. Na sequência e distante da primeira colocada, vem a IIGD com 49 horas/semana. Por fim, seguem a Igreja Mundial do Poder de Deus com 2:30 horas/semana e a Assembleia de Deus com 2 horas/semana. A referida matéria destaca a disputa entre as igrejas e as medidas adotadas por cada uma delas neste embate. Isso mostra o peso que há esse meio de comunicação entre os pentecostais ainda hoje. A
atuação
na
política
nacional
é
outra
prática
consolidada
no
pentecostalismo brasileiro. O lema “crente não se mete em política” presente entre os evangélicos de um modo geral até meados dos anos 1980 transforma-se no lema “irmão vota em irmão” a partir do processo de abertura democrática no final desta
7 Sobre o desenvolvimento evangélico-televisivo ver: FRESTON (1993); SOUZA (2011); MARIANO (2004; 2012). 8 http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1487099-avanco-da-universal-tira-forca-de-rivais-natelevisao.shtml. Acessado em 27/07/14.
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década. Sob a bandeira da liberdade religiosa os evangélicos, sobremaneira os pentecostais, entraram efetiva e permanentemente na vida política do país (FRESTON, 1993; MACHADO, 2012; SOUZA, 2014). Personagens como Íris Rezende, Marcelo Crivella, Marina Silva e Anthony Garotinho figuram entre os mais famosos e destacados políticos evangélicos9. No presente, permanece a atuação política. Tanto nas eleições de 2010 quanto as que se aproximam neste 2014, os evangélicos foram alvos de disputa eleitoral. Por constituírem um contingente eleitoral expressivo e uma força política estes, além da atenção dos principais candidatos aos cargos políticos, também lançam suas próprias candidaturas oficiais com candidatos definidos pela igreja. A ocupação de cargos estratégicos como, por exemplo, a Comissão de Direitos Humanos pelo assembleiano Marco Feliciano (PSC-SP) durante o ano de 2013, demonstra o poder político a que estão avançando os pentecostais10. Outro exemplo eloquente da força política pentecostal reside no episódio de inauguração do Templo de Salomão, um dos maiores espaços religiosos do país, ocorrido em 31 de Julho de 2014 no Brás em São Paulo. Este expressivo evento na recente história evangélica brasileira contou com figuras políticas importantes como a Presidente Dilma Rousseff, o Governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin e o Prefeito da cidade de São Paulo Fernando Haddad. Juntamente com a manutenção de líderes fortes, da expressividade emocional e do apelo à cura divina, as características apresentadas acima esboçam as continuidades presentes no pentecostalismo em sua tradição. No entanto, outras florescem neste início de século XXI e que demarcam o movimento, sendo que três delas serão abordadas aqui por serem centrais de tal realidade: o trânsito religioso intra-denominacional (além do já presente, desde a década de 1980, trânsito interreligioso) a consequente desinstitucionalização e os limites do crescimento pentecostal no Brasil. O grande boom evangélico, sobretudo pentecostal, acontece a partir da década de 1980, conforme mostram os números do IBGE expostos há pouco. Ocorre no seio de transformações culturais substanciais no país e também no mundo, num contexto de destradicionalização, individualização e de pluralidades
9 Partido político atual (respectivamente): PMDB, PRB, PSB e PR. 10 Sobre a relação entre evangélicos e política ver: FRESTON (1993); PIERUCCI (2011) MACHADO (2012); SOUZA (2014).
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religiosas (PIERUCCI, 2004; MARIANO, 2013), engendrando um mercado religioso (BERGER, 2009), onde religiões e religiosidades não tradicionais ganham força, ao passo que aquelas que possuem uma tradição a zelar perdem espaço. Conforme Mariano avançam a crise de transmissão das tradições religiosas, a tendência de individualização e subjetivação das crenças, a fragilização das pertenças e identidades religiosas, a mobilidade religiosa e a bricolagem idiossincrática e privatizante de crenças práticas e experiências religiosas (2013, p.128).
O campo pentecostal que no transcorrer dos anos 80 e 90 fora o destino de grande parte de ex-integrantes católicos – os “doares universais” (ALMEIDA, 2001), caracterizando talvez o trânsito religioso inter-denominacional mais importante do país, começa agora a sofrer um trânsito intra-denominacional. Por suas próprias características, as igrejas pentecostais tendem a ter fiéis menos vinculados institucionalmente. Personificados na figura dos pentecostais a definição acima realizada por Mariano define bem este público, a “clientela flutuante”. Ainda que algumas (in)definições no Censo 2010 relativas a categoria religiosa dificulte algumas análises mais precisas com relação aos fiéis pentecostais, pode-se notar através dos dados que há um contingente considerável de indivíduos pertencentes as categorias genéricas como a Evangélica não determina com 9.218.128 (4,8% da pop. absoluta) e a Outras igrejas Evangélicas de Origem Pentecostal com 5.267.029 (2,76% da pop. absoluta). Percebe-se também uma diminuição da concentração entre as cinco maiores denominações (AD, IEQ, CC, IURD e IPDA, sendo que estas três últimas perderam fiéis no último decênio) de 85% em 2000 para 75,4% em 2010 (MARIANO, 2013). Com um contingente estimado em 25,4 milhões (13,3% da pop. absoluta) o pentecostalismo tem aproximadamente 1/5 dele inserido na indefinida categoria supracitada. Noutras palavras, cerca de 20 dos 25 por cento de fiéis que não pertencem a nenhuma das cinco maiores denominações estão localizados neste grupo. Podemos afirmar com alguma clareza que a configuração do quadro pentecostal tem se alterado, onde paulatinamente há uma pulverização dos “clientes flutuantes” pelas denominações e concomitantemente há um crescimento no número destas. Ronaldo de Almeida (2009, p.34) aponta para a existência (em pesquisa realizada entre 2002 e 2003) de 3.351 templos de 26 denominações entre protestantes e (neo)pentecostais somente na cidade de São Paulo. Vale ressaltar
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que o Censo 2010 lista 17 denominações específicas na categoria Evangélicos (de Missão e Pentecostais). Outro aspecto a ser considerado dentro desse quadro de trânsito religioso é a migração (ou retorno em alguns casos) das igrejas pentecostais para as igrejas históricas. O limite de crescimento pentecostal está, dentre outros, vinculado à expansão das igrejas históricas. O Brasil teve entre 2003 e 2009 um aumento de apenas 0,27% no número de evangélicos pentecostais, enquanto que o número de evangélicos (excetuando-se os pentecostais) foi de 2,08%. No mesmo período a região Sudeste apresentou uma diminuição no número de pentecostais de -1,28% ao passo que os evangélicos tiveram um crescimento de 2,05% (NERI, 2011; FRESTON, 2013a). Dados que exemplificam uma mudança significativa do ritmo de crescimento evangélico e sua configuração comparada à década de 1990 onde o crescimento pentecostal teve sua maior expressão. Pari passu ao trânsito religioso observa-se também a desinstitucionalização pentecostal, visto que tanto a categoria Evangélicos não determinados, quanto Outras igrejas Evangélicas de Origem Pentecostal são muito significativos numericamente. Mariano atribui este fato “à expansão da desvinculação desses religiosos de suas igrejas, situação em que o crente (nascido ou não em família evangélica) mantem a identidade e parte das crenças e práticas religiosas, mas opta por fazê-lo fora de qualquer instituição” (2013, p. 128). Explicita ainda algumas razões que contribuem para esse fenômeno como o alargamento do individualismo, responsável pelo desmanche dos coletivos sociais; a busca pela autonomia individual face o poder hierocrático e às imposições de valores e costumes tradicionalistas colocadas pelas instituições; o contraponto entre os custos de tais laços e compromissos religiosos; e, por fim, os vínculos sociais e religiosos estabelecidos por igrejas que recrutam pelo tele-evangelismo e pela oferta de serviços mágicos [e pontuais] para atrair as massas (Ibidem). O último dos três aspectos abordados a respeito do pentecostalismo na atualidade remete aos limites de seu crescimento no Brasil. Os recentes números apresentados no Censo 2010 mostram um crescimento pentecostal (44%) bem mais tímido do que os anteriores 111,7% em 1991 e os 115,4% em 2000, entretanto constitui um aumento quase quatro vezes maior que o registrado para a população brasileira que é de 12,3% (MARIANO, 2013). Embora continue avançando no país, o pentecostalismo demonstra alguns sinais de desgaste em seu crescimento e autores como Paul Freston (2007; 2013a; 2013b) defendem que o teto pentecostal atinja 56
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entre 35 e 40 por cento. Entre os fatores que influenciam diretamente para essa limitação estão: a composição de um núcleo sólido católico que é improvável de ser diluído; o ganho de apenas um entre dois membros que abandonaram o catolicismo; a pulverização do restante do campo religioso; e outros como escândalos, lideranças autoritárias, promessas não cumpridas, imagem política fragilizada (FRESTON, 2007, p. 16-17). Em linhas gerais, podemos afirmar que o pentecostalismo desta primeira década do novo século preserva diversos elementos oriundos da tradição que se construiu ao longo do centenário anterior e que ao mesmo tempo está permeado por outros novos, adquirindo novos contornos. Sua força, presença e notoriedade na sociedade brasileira o mantém ativo na agenda sociológica contemporânea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao lado do islã, o pentecostalismo constitui um dos mais importantes fenômenos religiosos da atualidade (BERGER, 2000). A importância de seu estudo no campo da Sociologia já fora mais que comprovada. Apesar de sua “infância” histórica perante outras vertentes religiosas, os pentecostais engendraram, e ainda engendram contundentes impactos na sociedade brasileira. A tentativa de trazer um debate sobre o pentecostalismo vislumbrou pontuar algumas questões que se mostram como fundamentais para a compreensão deste fenômeno na atualidade e que, simultaneamente, constituem algo sui generis em sua história. Buscou-se da mesma forma apresentar algumas continuidades herdadas de sua tradição centenária. Estas que foram sinteticamente esmiuçadas na seção sobre a tipologia das ondas pentecostais, foram abordadas a fim de trazer os principais elementos que caracterizam o processo de desenvolvimento deste fenômeno e assim prover subsídios para a discussão posterior. O uso deste instrumento conceitual permitiu uma melhor localização deste no tempo/espaço e assim uma melhor delimitação das questões levantadas. A seção que versou sobre o panorama pentecostal atual procurou trazer elementos chaves concernentes ao fenômeno no primeiro decênio deste século. Dessa forma, pudemos observar algumas inovações que radicam numa nova configuração, assinalando uma nova fase, com continuidades e também 57
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inovações permeando o campo pentecostal. Os ventos secularizantes, expressão adotada por Regina Novaes, que assolam o campo religioso [não somente entre os jovens, objetos de seu estudo]com novas mudanças colocando como questões pertinentes a convivência de “velhos e novos fundamentalismos (...) com a emergência de um mundo religioso plural em que cresce a presença de grupos e indivíduos cuja adesão religiosa permite rearranjos provisórios entre crenças e ritos sem fidelidades institucionais” (2004, p. 326) constitui em ambiente propício ao avanço, pois é um cenário em que o pentecostalismo tem conseguido desempenhar uma boa adaptação e, ao que tudo indica, tende a manter um contingente no mesmo patamar, quiçá pode e deve obter alguns avanços em determinados contextos. Em síntese, podemos advogar que o pentecostalismo tem ingredientes suficientes para continuar sendo um dos principais fenômenos religiosos do Brasil no decorrer deste século, com permanentes reconfigurações em seu campo, como nos demonstraram a história deste.
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A POLÊMICA RELAÇÃO INDIVÍDUO E SOCIEDADE: AS ABORDAGENS TEÓRICAS DO INTERACIONISMO SIMBÓLICO E DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS Tabata Larissa Soldan1 José Miguel Rasia2 RESUMO Procuramos expor, a partir de revisão bibliográfica, algumas das principais contribuições teóricas de George Mead, Anselm Strauss e Serge Moscovici acerca da relação indivíduo-sociedade, objetivando compreender esta relação a partir das articulações possíveis entre as duas abordagens citadas. Partimos da hipótese que indivíduo e sociedade são compreendidos por essas concepções teóricas a partir das experiências compartilhadas nos processos de interação. Nos três os processos de produção do significado e das representações são processos sociais que envolvem sempre o eu e o outro. PALAVRAS-CHAVE: Interacionismo simbólico. Representações Sociais. Relação indivíduo e Sociedade. ABSTRACT We seek to demonstrate, from literature review, some of the main theoretical contributions of George Mead, Anselm Strauss and Serge Moscovici about the relation between individual and society in order to understand it from the possible links between the two mentioned approaches. We start from the hypothesis that individual and society are understood by these theoretical conceptions from shared experiences in interaction processes. In all three of them, the process of meaning production and representations are social processes that always involve the self and the other. KEYWORDS: Symbolic Interactionism. Social Representations. Relation between individual and society. INTRODUÇÃO
O interacionismo simbólico hoje é considerado uma abordagem teórica da sociologia, que como tal possui princípios teóricos e metodológicos específicos. Essa “nova postura explicativa da vida social” (MARTINS, 2013, p.2), que se consolida no final dos anos de 1930, é explorada por Carlos Benedito Martins 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação de Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Bacharela e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná. 2 Professor Titular em Sociologia na Universidade Federal do Paraná e do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPR.
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(2013), que nos mostra em seu texto: “O legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920-1930) na constituição do interacionismo simbólico”, que essa nova perspectiva teve suas bases desenvolvidas dentro do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago nos anos de 1920, a partir de trabalhos de autores como: William Thomas, docente vinculado diretamente ao Departamento de Sociologia; George Herbert Mead e John Dewey (estes dois ligados ao Departamento de Filosofia da Universidade de Chicago, mas cujas contribuições foram incorporadas ao programa de sociologia); e Charles Cooley, docente da Universidade de Michigan, que segundo Charles Morris (1953), era amigo muito próximo de Mead, pois lecionaram juntos na Universidade de Michigan. Sem a pretensão de criar uma nova escola de pensamento, estes e outros autores não citados aqui em suas produções analisavam a problemática indivíduo e sociedade a partir de um novo viés. Martins
(2013)
esclarece
que
a
perspectiva
dominante
entre
os
pesquisadores estadunidenses dos anos 20 era a individualista, ou seja, consideravam o comportamento humano como um reflexo bio-psíquico quase automático ao ambiente exterior, sendo a sociedade o resultado da reunião desses indivíduos. Ao deter-se na análise dos trabalhos realizados pela primeira geração da Escola de Chicago, Martins (2013) nos mostra o quanto esses autores inverteram essa perspectiva, consideravam o indivíduo como um ser criativo, reflexivo, interpretativo e em interação com o ambiente social em que este se encontra inserido. Mead e Dewey eram filósofos da Universidade de Chicago e faziam parte de uma mesma escola de pensamento: o pragmatismo, que segundo Martins (2013), influenciou e foi incorporado às contribuições teóricas realizadas dentro do Departamento de Sociologia de Chicago. De acordo com Morris (1953), a tarefa do pragmatismo da época de Mead era o de “reinterpretar os conceitos de espíritu e inteligência nos termos biológicos, psicológicos e sociológicos, que destacaram as correntes de pensamento pós-darwinistas” (MORRIS, 1953, p.24, tradução nossa). Diante dessa influência, produto da interação que existia entre o departamento e os filósofos, os pesquisadores da sociologia de Chicago buscavam articular em seus estudos teoria e prática. Desse modo, percebe-se o quanto esses dois intelectuais foram importantes para consolidação da sociologia de Chicago e portanto, como interpreta Martins (2013), para a construção das bases do interacionismo simbólico. 61
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Sendo assim, a primeira seção deste artigo se dedicará a explorar algumas das principais contribuições teóricas de Mead presentes no livro “Mind, Self and Society”. Na segunda, nos deteremos a alguns dos principais pontos do trabalho da obra “Espelhos e Máscaras” de Anselm Strauss, autor considerado um dos principais interacionistas simbólicos da Escola de Chicago. Ao focar a atenção nas análises dos interacionistas simbólicos percebemos três pontos que perpassam o desenvolvimento teórico dos autores: 1) a interação; 2) o problema de como os homens se agrupam e como estes agem simbolicamente nesses agrupamentos; e 3) a comunicação entre indivíduo e sociedade. De modo semelhante, ao analisar a contribuição teórica de Serge Moscovici, pai da teoria das representações sociais, percebemos que este fala: 1) em interação; 2) linguagem e comunicação; e 3) do simbólico. Ao que parece tanto os primeiros quanto o segundo estão falando em indivíduos em interação que atribuem sentido à realidade. Percebemos que eles estão repensando assim as relações existentes entre indivíduo e sociedade. O desafio deste artigo será o de desenvolver uma articulação teórica buscando principalmente as semelhanças existentes entre os desenvolvimentos teóricos dos interacionistas e do psicólogo social teórico das representações sociais. Por isso, na terceira seção deste artigo focaremos alguns dos principais pontos da teoria das representações sociais de Moscovici. Ao final, buscamos atingir o objetivo de articular as ideias dos três intelectuais, e de comprovar a hipótese de que é possível admitir que de certo modo haja certa proximidade entre as contribuições teóricas do interacionismo simbólico e da teoria das representações sociais.
MEAD E O INTERACIONISMO SIMBÓLICO
Em 1934 é publicado postumamente o célebre livro “Mind, self e society” de George Mead, resultado das anotações dos estudantes do curso de Psicologia Social lecionado na Universidade de Chicago pelo intelectual durante anos. Mead é considerado por muitos a figura central do interacionismo simbólico, e este o livro de principal referência. Abordaremos a partir deste momento algumas das contribuições teóricas do autor contidas nesta obra:
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Parece-nos que em linhas bastante gerais o principal objetivo de Mead (1953) era o de romper com a dicotomia indivíduo e sociedade e o de demonstrar que espíritu e persona não consistiam em ser simples reação automática ao meio, mas produtos sociais. Assumindo uma perspectiva psicossocial, ou, se atentando como diria Mead (1953): “ao efeito que o grupo social produz na determinação da experiência e da conduta do membro individual” (MEAD, 1953, p.49, tradução nossa), e focando sua atenção na interação social existente entre os indivíduos autoconscientes, que são capazes de internalizar, criar e recriar sentidos e símbolos, é que o autor formula sua teoria da ação social. Desse modo, a primeira pergunta que se faz pertinente é: como se dá essa autoconsciência na perspectiva psicossocial de Mead? A autoconsciência para ele somente é possível a partir de uma dada sociedade, ou seja, o indivíduo biológico para desenvolvê-la tem que estar imerso em uma dada lógica social e é por isso que ele considera que é na interação com o outro, nos processos de internalização dos diferentes papéis, e nos de significação e de ressignificação, que a autoconsciência é desenvolvida. Dessa forma parece óbvio que o processo de comunicação seja considerado um dos processos fundamentais para o interacionismo simbólico, pois este (que abrange um vasto código de gestos e palavras mobilizadas por uma dada sociedade) é que nos permite interagir nas mais diversas situações. De acordo com Morris (1953), o gesto seria “umas das primeiras etapas do ato de um organismo” (MORRIS, 1953, p.27) e um guia para a contemplação desse ato. O conceito de gesto de Mead (1953), segundo Morris (1953), recebeu contribuições de Wilhelm Wundt, psicólogo social que dividia os fenômenos em dois níveis: o fisiológico e o cultural. Partindo do nível mais cultural, e assim propondo uma Volkerpsychologie, tinha como seu objeto de estudo os fenômenos coletivos (frutos da associação entre os indivíduos) que consistiam: na “linguagem, na religião, nos costumes, no mito, na mágica e nos fenômenos correlatos” (FARR, 2012, p.31). Acreditamos que seja por isso que Morris (1953) afirma que para Mead (1953) os gestos deviam ser analisados a partir do contexto social onde estes estão sendo operados, internalizados, significados e ressignificados. Assim, quando se fala em espíritu e persona em termos de George Mead, não se trata de um campo de estímulo e resposta impulsiva, como diriam os behavioristas da época, mas de comunicação entre indivíduo e sociedade. Em 63
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outras palavras, compreendemos que Mead (1953) pressupõe que é na interação, que se dá por meio da linguagem (estabelecida socialmente, sendo o gesto vocal sua principal forma), que há um processo de internalização dos gestos e concomitantemente e posteriormente um processo reflexivo sobre o outro e sobre si mesmo. Ou seja, é nesse processo que se dá a autoconsciência que nada mais é que um efeito significante do processo de comunicação. Para Mead (1953) é a partir da comunicação que surge o significado, que será internalizado pelo indivíduo e posteriormente ressignificado pelo mesmo, uma ressignificação de si mesmo, do outro e do mundo. Dessa forma, a transformação do indivíduo biológico para o social se dá em um processo de comunicação onde emergem o espíritu que é a autoconsciência desenvolvida não automática e que significa, e a persona consciente de si e do outro. Ao se tornar consciente de si e do outro a persona acaba por adotar as atitudes do outro generalizado, ou seja, adota a posição dos diferentes grupos em que está inserida, e é essa adoção do papel do outro generalizado que Mead (1953) chama de mí. Porém, como Mead (1953) não acredita que o individuo é um mero reprodutor das ações, desenvolve o conceito de yo para abordar o outro aspecto pertencente à persona que é o impulso. Ou seja, Mead (1953) não ignora a característica impulsiva do ser, porém não prioriza essa como priorizavam os behavioristas, mas lhe atribui um papel importante, que é o da mudança da estrutura social. Portanto, em síntese para Mead (1953) o ato social dinâmico é pré-condição da consciência (espíritu), que se engendra na experiência social das interações e somente é possível através da linguagem, ou gesto vocal, socialmente convencionalizada. Sendo assim, tendo como seu ponto de partida o social (sociedad), Mead (1953) explica que “a conduta de um indivíduo somente pode ser compreendida em termos da conduta de todo grupo social do qual é membro” (MEAD, 1953, p. 54, tradução nossa), aparecendo aqui a internalização do outro generalizado (persona). Percebemos que Mead (1953) propõe para a psicologia social um conductismo social, ou behaviorismo social, em oposição às análises behavioristas comportamentais da época.
STRAUSS E O INTERACIONISMO SIMBÓLICO
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Anselm Strauss é considerado um dos grandes nomes do interacionismo simbólico e assim como George Mead também fez parte da Universidade de Chicago, mas como integrante do Departamento de Sociologia. De acordo com Gilberto Velho (1999): “foi um dos principais autores que se identificaram com essa corrente teórica e de investigação” (VELHO, 1999, p.15). Em termos temporais localiza-se entre o que é convencionalmente conhecido como a primeira e a segunda onda da Escola de Chicago. Em suas contribuições teóricas foi bastante influenciado (quase que diretamente) pelas ideias de Mead, além do fato de Strauss ter sido aluno de Herbert Blumer3 que foi discípulo de Mead, o autor confessa na introdução que faz à edição inglesa de seu livro “Espelhos e Máscaras” que na época de seu doutorado se dedicou muito ao estudo das obras do filósofo. De acordo com o próprio Strauss essa importante obra escrita em 1959, oito anos depois de suceder Blumer dentro da Universidade de Chicago, foi considerada “um produto ‘clássico’ do interacionismo norte-americano” (STRAUSS, 1999, p.21). Assim como percebemos no livro “Mind, Self and Society”, compreendemos que o rompimento da dicotomia indivíduo e sociedade também foi um dos objetivos principais de Strauss (1999) ao escrever “Espelhos e Máscaras”. Velho (1999) afirma que: “um dos seus principais méritos foi o de ter conseguido estabelecer conexões relevantes entre a problemática individual e os processos sociais” (VELHO, 1999, p.11). Compreendemos através da análise de sua trajetória que Strauss conseguiu construir uma linha de produção interdisciplinar: um sociólogo que se aproximou da psicologia social, da filosofia pragmatista, da história e da antropologia. O próprio autor enquadra seu desenvolvimento teórico dentro de uma teoria da ação nos moldes daquela elaborada por John Dewey e George Mead, focando na interação que gera ações e produz a sociedade. E assim como Mead, concede à linguagem convencional um papel central nesse processo social de interação, que é orientado por normas e regras da sociedade em questão. A linguagem para Strauss (1999) deve ser encarada enquanto possibilidade de nomeação, ato fundamental na elaboração teórica do autor. A nomeação para Strauss (1999) é “o ato central a toda cognição que o ser humano tem do seu mundo” (STRAUSS, 1999, p.38), ela qualifica, classifica, categoriza, identifica, etc, 3 Blumer é considerado o fundador do Interacionismo Simbólico, embora manifeste que nunca teve esta intenção. Ver a este respeito: Blumer, H. 1969
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aspectos essenciais para a construção da identidade individual e coletiva que o autor tem como foco no seu desenvolvimento teórico. Para Strauss (1999), a nomeação é um processo que se desenvolve dentro de um determinado grupo, cada qual possui seus valores, pontos de vista, perspectivas, classificações e categorias, ou seja, segundo o autor, cada grupo desenvolve sua própria terminologia que é partilhada entre seus membros. Nomear, como foi dito, é classificar e é no processo de interação que classificamos os atos dos outros e os nossos próprios, esta classificação envolve avaliações conscientes e involuntárias. Ao admitir que os seres humanos em processo interacional classificam a si mesmos e aos outros percebemos a semelhança com Mead quando este afirma que é na interação que o indivíduo toma consciência de si e do outro desenvolvendo a persona (self). Para Strauss (1999), o Self não é apenas a “propensão dos seres humanos a julgar seus próprios atos” (STRAUSS, p.50), fazendo a crítica aos intelectuais de sua época, ele é também o julgamento de si mesmo, falando assim na possibilidade do indivíduo ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de análise. Strauss (1999) compreende o eu e o me como sendo respectivamente o avaliador e o avaliado, esse processo de avaliação e reavaliação, pois toda avaliação está sujeita a reavaliação seja esta feita por aquele que classificou ou não, se dão no interior dos diferentes grupos onde o indivíduo se insere. Para Strauss (1999) os julgamentos são desenvolvidos e compartilhados no interior do grupo através da comunicação entre os membros deste. Portanto,
é
na
interação
(que
possui
certa
estrutura,
é
datada
temporalmente, e que permite os indivíduos a troca), é que se desenvolvem as identidades pessoais e coletivas que estão entrelaçadas e se constituem reciprocamente. De acordo com Strauss (1999), “as interações acontecem entre indivíduos, mas os indivíduos também representam (em termos sociológicos) coletividades diferentes e muitas vezes múltiplas que se estão expressando por meio das interações” (STRAUSS, 1999, p.26). Desse modo, como afirma Strauss (1999) o termo identidade abre e aprofunda a relação indivíduo e sociedade, admitindo um caráter fluído dessa relação. Para Strauss (1999) apesar de existirem “convenções para forçar as pessoas a ocupar ou aceitar inúmeras posições, embora temporariamente” 66
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(STRAUSS, 1999, p.90), os indivíduos são capazes de moldar as estruturas. De acordo com Strauss (1999) “é útil pensar que a interação é não só estruturada, no sentido de que os participantes representam posições sociais; mas também, ao mesmo tempo, que não é tão estruturada” (STAUSS, 19990, p.84). Em síntese, compreendemos que para Strauss (1999) os indivíduos (que transitam por diversos grupos, pois o autor considera a afiliação de modo menos estrutural), estão em interação, significando (a partir dos símbolos compartilhados pelos grupos) e nomeando. Desse modo os indivíduos orientam a ação do grupo, as suas ações, a si mesmos, as ações dos outros e aos outros. Por fazerem parte de diferentes grupos ao mesmo tempo e estarem em constante interação (que por vezes é conflituosa) os indivíduos assumem diferentes papéis, máscaras e representam. Conscientes constroem e reconstroem suas identidades, pautando-se nos símbolos construídos e mobilizados dentro dos diversos grupos dos quais fazem parte, demonstrando assim o caráter coletivo da identidade e permanente da socialização.
MOSCOVICI E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Serge Moscovici é considerado o pai da teoria das representações sociais, partindo das contribuições teóricas de Durkheim sobre as representações coletivas propõe estudar essas representações a partir de uma perspectiva psicossocial. Assim como os autores vistos acima Moscovici vai se contrapor a corrente individualista vigente da época e propor como afirma Farr (2012): “uma forma sociológica de psicologia social” (FARR, 2012, p.27). A teoria das representações sociais foi pela primeira vez fundamentada por Moscovici no livro: “A Psicanálise, sua imagem, seu público”, que teve sua primeira edição publicada na França no ano de 1961. Resultado de sua pesquisa sobre as representações sociais da psicanálise tinha por objetivo “redefinir os problemas e os conceitos da psicologia social a partir desse fenômeno, insistindo sobre sua função simbólica e seu poder de construção social” (MOSCOVICI, 2012, p.16). Em suas primeiras concepções teóricas sobre o tema Moscovici (2012) afirma que a representação social é um tipo de conhecimento, não o científico, mas um conhecimento que é produzido por meio da interação entre os indivíduos em um contexto social específico. Apesar desse outro tipo de conhecimento ser muitas 67
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vezes produzido a partir dos saberes científicos não o considera mera distorção desses saberes, mas um conhecimento criador que reelabora estes a partir das necessidades do grupo em questão. De acordo com Moscovici (2012), os homens tornam a realidade inteligível a partir das representações sociais, e é também a partir dessas que eles se agrupam, levando em conta que “cada grupo possui um universo de opinião particular” (MOSCOVICI, 2012, p. 32). Ao organizar, traduzir, simbolizar, moldar, reproduzir e socializar esses conhecimentos, a função da representação social, segundo Moscovici, é a de elaborar os comportamentos e a comunicação entre os indivíduos, ou seja, nas palavras do próprio teórico “possuem uma função constitutiva da realidade” (MOSCOVICI, 2012, p.27). Ao mesmo tempo em que as representações sociais elaboram a comunicação são o produto desta e da interação. Segundo Moscovici (2009): “pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e da cooperação” (MOSCOVICI, 2009, P.41), e as representações sociais consistem em ser “valores, ideias e práticas” (MOSCOVICI, 1976, apud Duveen, p.21, 2009) que estabelecem um ordenamento do mundo. Ou seja, permitem um maior controle sobre esse e possibilitam a comunicação, no sentido de nomeação e de classificação das coisas, das práticas, etc. Moscovici (2009; 2012) afirma que as representações sociais (que não existem e não circulam sem a linguagem, a fala e o gesto) são o principal meio através do qual estabelecemos relações com os outros indivíduos, e fazem parte do nosso cotidiano. Elas transformam o não-familiar em familiar, e ao fazerem isso, além da capacidade de circulação desse novo conhecimento, se estabilizam, possuindo assim uma organização e uma estrutura. Em outras palavras, uma vez criadas estas se constituem em uma ambiente real e concreto, adquirem vida própria, ou seja, autonomia, exercendo pressões e aparecendo para nós como realidades inquestionáveis. De acordo com o autor, construímos um hábito, tipificamos o que nos é familiar, e quando isso se torna um “padrão de referência” esse é utilizado como “critério para avaliar o que é incomum, anormal e assim por diante. Ou, em outras palavras, o que é não-familiar” (MOSCOVICI, 2009, p.55). Moscovici (2009) compreende que as representações nos orientam, classificando, distinguindo e definindo, e salienta que elas não são a realidade, mas a percepção dela. Segundo o autor as representações possuem duas funções: a de 68
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convencionalizar e a de preescrever. A realidade é predeterminada por convenções. Todas as informações que recebemos de uma maneira ou de outra foram distorcidas por representações impostas, o tempo todo estamos expostos às “palavras, ideias e imagens que penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossas mentes quer queiramos quer não” (MOSCOVICI, 2009, p.33). Além disso, Moscovici (2012) afirma que “a representação social é a ‘preparação para a ação’, não só porque guia os comportamentos, mas, sobretudo porque remodela e reconstitui os elementos do ambiente no qual o comportamento deve acontecer” (MOSCOVICI, 2012, p. 46). Porém, apesar de os indivíduos em suas relações coletivas estarem expostos a essas representações sociais, que se apresentam como realidades quase tangíveis, para o autor eles também são produtores de representações. Os indivíduos possuem uma capacidade criativa e participam do processo de construção das representações sociais que vão fazer parte de sua realidade. Como afirma
Moscovici:
“as
representações
sociais
são
conjuntos
dinâmicos”
(MOSCOVICI, 2012, p.47). Em síntese, as representações sociais tornam possível ao indivíduo a determinação de sua conduta e a qualificação dos indivíduos com os quais está se relacionando (Moscovici,2012, 73). O foco de Moscovici (2012) encontra-se nos conhecimentos sobre a sociedade, o outro, o mundo, etc, que são compartilhados e organizados pelos grupos e pelos indivíduos. Moscovici (2009) sustenta que as investigações sobre representações sociais fazem parte da agenda da psicologia social, esta para ele estuda o sistema cognitivo partindo de dois pressupostos: 1) que “os indivíduos (...) reagem a fenômenos, pessoas e acontecimentos” e 2) que “compreender consiste em processar informações” (MOSCOVICI, 2009, p.30). Por fim, o autor afirma que “as representações sociais nos incitam a nos preocupar ainda mais com as condutas imaginárias e simbólicas na existência comum das coletividades” (MOSCOVICI, 2012, p.75).
A INTERAÇÃO, A COMUNICAÇÃO E O SÍMBOLO.
O ponto principal de aproximação que elencamos entre os autores é o fato de que em suas contribuições teóricas todos se preocuparam em romper com as concepções das correntes explicativas mais individualistas. Ao fazerem a crítica e proporem uma nova forma de considerar a relação indivíduo e sociedade, os autores 69
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a nosso ver se aproximam em termos teóricos e arriscamos até mesmo em dizer que acabam por fazer parte de um mesmo “círculo hermenêutico4”. Esta discussão que se dá por parte dos autores com as contribuições individualistas pode explicar as semelhanças que percebemos entre as concepções teóricas dos três intelectuais considerados neste texto (Mead, Strauss e Moscovici). Tanto a autoconsciência, quanto a identidade, como as representações sociais da maneira que percebemos e compreendemos são produtos das interações sociais. Como afirma Martins (2013), para Mead (1953) a mente humana deve ser interpretada como sendo “o produto de um ativo processo de interação” (MARTINS,2013, p.11). Para Strauss (1999), é no processo de interação dos indivíduos em seus grupos que a identidade está sendo sempre construída e reconstruída. Para Moscovici (2009) “o conhecimento é produzido através da interação e comunicação (...) é sempre produto de um grupo específico de pessoas engajadas em circunstâncias específicas” (DUVEEN, 2009, p 8). Compreendemos que para os três intelectuais, os indivíduos participantes de diferentes grupos sociais compartilham determinados símbolos, valores, crenças e pautam seus pensamentos e suas ações. Não são meros reprodutores e simplesmente não reagem ao que vem de fora, mas estão em constante interação, indivíduo e sociedade. Para Strauss (1999) a interação envolve “debates cheios de gente carregados de imagens complexas” (STRAUSS, 1999, p. 84), “é tanto um processo estruturado quanto um processo interpessoal” (STRAUSS, 1999, p.87) e, além disso, possui regras convencionais, “tem convenções para forçar as pessoas a ocupar ou aceitar inúmeras posições, embora temporariamente” (STRAUSS, 1999, p.90). Assim também nos parece que Moscovici (2009) compreende a questão das regras convencionais que vão permitir a interação dos indivíduos, principalmente quando afirma que Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionantes anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através da linguagem; nós organizamos nossos pensamentos de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas
4 Compreendido em termos do que John Pocock entende por círculo hermenêutico. Para o autor o círculo hermenêutico deve deter-se a uma polifonia de autores, os autores estão em constante diálogo, que não se dá necessariamente no mesmo espaço e tempo. Portanto para ele o que deve ser levado em conta não é um autor em si, mas o discurso que existe entre os autores. O contexto linguístico de Pocock é o contexto discursivo. POCOCK, John. “Introdução: o Estado da Arte”; “O conceito de Linguagem e o Metierd’Historien” e “Virtudes, Direitos e Maneiras”. In. POCOCK, Joh. Linguagens do ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003.
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representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanecemos inconscientes dessas convenções (MOSCOVICI, 2009, p. 35).
Compreendemos que para Mead (1959) a interação também se dá por meio da linguagem estabelecida socialmente. Para o autor é a partir da comunicação que surge o significado que será internalizado pelo o indivíduo e posteriormente ressignificado pelo mesmo, uma ressignificação de si mesmo, do outro e do mundo. As representações sociais de Moscovici também são o produto da comunicação e da interação, que acabam se estabilizando e estabelecendo um ordenamento do mundo, ou seja, permite um maior controle sobre ele e possibilitam a comunicação no sentido de nomeação e de classificação das coisas, das práticas, etc. Não podemos falar em nomeação de coisas e pessoas e não nos lembrar da contribuição teórica de Strauss (1999), para ele quando nomeamos organizamos as nossas ações, a do outro e a dos grupos por onde transitamos. De acordo com Moscovici (2012), as representações sociais tornam possível ao indivíduo a determinação de sua conduta e a qualificação dos indivíduos com os quais está em relação (MOSCOVICI, 2012, p. 73). Percebemos o mesmo quando Mead
(1953)
e
respectivamente.
Strauss No
(1999)
processo
falam de
em
autoconsciência
comunicação
estamos
e
identidade
significando
e
ressignificando a nós mesmos e aos outros, avaliando e reavaliando as ações dos outros e as nossas. Os três autores admitem que há uma estrutura que perpassa as relações, porém esta estrutura para Mead (1953) é passível de mudança com a emergência do eu. Para Strauss (1999) “é moldada pelos atores por meio da interação” (STRAUSS, 1999, p. 27), porém “os humanos moldam seus mundos até certo ponto, mas enfrentando inescapáveis coerções estruturais” (STRAUSS, 1999, p. 27). Para Moscovici (2009) a realidade é predeterminada por convenções, todas as informações que recebemos de uma maneira ou de outra foram distorcidas por representações impostas, no entanto apesar dessa imposição somos capazes através de muito esforço, demostrando assim a inegável coerção estrutural, de nos tornarmos conscientes de algumas dessas convenções. Mead (1953) e Strauss (1999) estavam preocupados com “o efeito que o grupo social produz na determinação da experiência e da conduta do membro individual” (MEAD, 1953, p.49), e assim cada qual desenvolve uma teoria da ação,
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um focando na autoconsciência e outro na identidade, que se engendram nas interações. Moscovici (2009) desenvolveu uma teoria psicossocial do conhecimento, e para ele estudar representações é estudar como as pessoas pensam e refletem e não como se comportam. Mead (1953) ao contrário de Moscovici (que estava mais preocupado com o “mundo das ideias”) se preocupava com o comportamento conscientemente assumido pelos indivíduos, aliás, foi a partir dessa concepção que o intelectual propôs, em oposição ao behaviorismo de sua época, um behaviorismo social. No entanto, mesmo sendo sua maior preocupação o pensar dos indivíduos, compreendemos que Moscovici não ignora a ação que as representações geram, pois o autor afirma que as representações são tipos de conhecimento que geram e orientam as práticas daqueles que o compartilham. Em todos o grupo social tem um papel importante na construção do indivíduo. Mead (1953) explica que “a conduta de um indivíduo somente pode ser compreendida em termos da conduta de todo grupo social do qual é membro”. Segundo Strauss (1999), cada grupo desenvolve sua própria terminologia que é partilhada entre seus membros, e que guiará sua ação. Assim como para Moscovici, que afirma que “cada grupo possui um universo de opinião particular” (MOSCOVICI, 2012, p. 32). Moscovici ressalta que as representações sociais não são a realidade, mas a percepção dela. Não seriam a autoconsciência de Mead (1953) e a identidade de Strauss (1999) também uma forma de percepção da realidade? Em interação, desenvolvemos nossa autoconsciência e nossa identidade, estamos em constante trabalho de percepção para podermos agir em sociedade, mais do que apenas percepção essas geram ações. Para Moscovici (2012) “a representação social é a ‘preparação para a ação’, não só porque guia os comportamentos, mas, sobretudo porque remodela e reconstitui os elementos do ambiente no qual o comportamento deve acontecer”. Enfim, para Mead (1953) os “atores possuem consciência e capacidade interpretativa” (MARTINS, 2013, p.11). Nos parece que tanto a autoconsciência, quanto a identidade, como as representações consistem em ser sempre algo que é criado, significado, ressignificado, transmitido dentro de um determinado grupo, e que tem uma estrutura. De acordo com Moscovici, os homens tornam a realidade inteligível, ou seja, esses são capazes de significar suas realidades e não 72
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simplesmente reagem à ela, nos parece que da mesma forma compreendem Mead(1953) e Strauss (1999). Em síntese, compreendemos que de maneira geral a questão da realidade construída pelo indivíduo está igualmente presente nas contribuições dos três autores. Em resumo, entendemos que tanto para Mead (1953), quanto para Strauss (1999), como para Moscovici (2012) os indivíduos em interação atribuem sentido à realidade, desse modo os três autores repensam as relações existentes entre indivíduo e sociedade. Nas palavras de Moscovici (2000; 2012), os indivíduos possuem uma capacidade criativa, participando do processo de construção das representações sociais, que vão fazer parte de suas realidades. O homem é reflexivo
tanto
para
Mead
(1953)
como
para
Strauss
(1999)
e
agem
conscientemente, não sendo meros reprodutores ou reagentes ao externo. A relação indivíduo e sociedade se dá de uma maneira mais fluída e complexa para os três, é na interação (que possui uma estrutura) que os indivíduos reproduzem, mas também criam, recriam, significam, ressignificam, avaliam, reavaliam seus pensamentos e ações, dessa forma são capazes de mudarem a estrutura e construírem a realidade com a qual estão em constante relação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tínhamos com este artigo o objetivo de articular as ideias de dois autores considerados interacionistas simbólicos e um autor da área da psicologia social considerado o teórico das representações sociais. A escolha por esses autores deveu-se ao fato de que percebemos certos pontos de convergência em suas ideias quando tratavam da relação entre indivíduo e sociedade, mesmo que não estivessem falando do mesmo fenômeno social propriamente dito. Tendo em vista nosso campo de interesses, buscamos articular neste artigo a teoria das representações sociais com o conhecimento sociológico, mais especificamente aquele produzido pelo interacionismo simbólico. Aproximar a teoria das representações sociais ao interacionismo simbólico, mesmo de forma simples e sem reduzir uma ao outro, é um exercício de pensamento sociológico que poderá se desdobrar em futuras análises mais complexas e que tomem como ponto de inflexão do pensamento objetos empíricos e sua significação.
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A trajetória dos intelectuais pode justificar as semelhanças que percebemos. Os três tiveram contato direto com a psicologia social, Mead inclusive foi um psicólogo social cujas contribuições foram incorporadas pela sociologia da Universidade de Chicago e Moscovici (2009) por vezes cita o autor em suas obras. Celso Pereira de Sá (1998), psicólogo social contemporâneo que trabalha com representações sociais, buscando auxiliar os novos pesquisadores que buscam se utilizar de algum modo das contribuições das representações sociais, compreendeu que as representações sociais foram apropriadas de maneiras bastante diferentes por diversas áreas do conhecimento, entre as contribuições cita as da Escola de Chicago, da qual Strauss fez parte. Além disso, os três estão desenvolvendo seus argumentos em oposição aos argumentos dos individualistas, dessa forma, apoiados pela filosofia pragmatista propõem uma nova forma de se analisar a relação indivíduo e sociedade. É desse embate dos autores escolhidos à corrente da época que adjetivamos de polêmica a relação entre indivíduo e sociedade no título desse artigo. Por fim, não estamos afirmando com este trabalho que existem apenas semelhanças entre os autores, mas escolhemos focar essas por uma questão prática e intencional: poder situar as contribuições de Serge Moscovici e teoria das representações sociais desenvolvida no interior da psicologia social, em um âmbito mais sociológico e assim poder afirmar que as representações sociais podem ser consideradas também categoria de análise sociológica e por vezes configurar como objeto da sociologia.
REFERÊNCIAS
BLUMER, Herbert. Symbolic Interactionism: Perspective and method. London: Prentice-Hall International, 1969. DUVEEN, Gerard. O poder das ideias. In: Representações Sociais: investigações em psicologia social. 6. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. FARR, Robert. Representações sociais: a teoria e sua história. In: Textos em Representações Sociais. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. MARTINS, Carlos B. O Legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920 – 1930) na Constituição do Interacionismo Simbólico. Brasília, 2013.
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MEAD, George. Espiritu, persona y sociedad desde elpunto de vista delconductismo social. Buenos Aires: Paidos, 1953. MORIS, Charles W. George H. Mead como psicólogo y filósofo social. In. Espiritu, persona y sociedad desde elpunto de vista del conductismo social. Buenos Aires: Paidos, 1953. MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 6. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. ______. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. SÁ, Celso Pereira de. A Construção do objeto de Pesquisa em Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998. STRAUSS, Anselm L. Espelhos e Máscaras. São Paulo: Edusp, 1999. VELHO, Gilberto. Anselm Strauss: Indivíduo e Vida Social. In. Espelhos e Máscaras. São Paulo: Edusp, 1999.
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IDENTIDADES EM JOGO: PROCESSOS E DISPUTAS NA CURITIBA DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX E O EMPREENDIMENTO JOAQUIM Walmir de Faria Júnior1
RESUMO Este artigo se baseia na pesquisa que desenvolvemos sobre as trajetórias dos artistas Poty Lazzarotto (1924-1998) e Dalton Trevisan (1925). Neste escrito, adotamos uma abordagem processual, recompondo parte da dinâmica inerente à cena histórica e social de Curitiba. Procedemos desse modo a fim de levantar elementos que possam auxiliar na compreensão das posições sociais desses agentes, assim como situar o empreendimento cultural do qual foram os principais colaboradores, a revista Joaquim, conectando os mesmos à dinâmica particular da sociedade curitibana dos primeiros decênios do século XX. PALAVRAS-CHAVE: Trajetórias. Identidades. Poty Lazzarotto. Dalton Trevisan. ABSTRACT This article is based on research which developed on the careers of artists Poty Lazzarotto (1924-1998) and Dalton Trevisan (1925). In this writing we adopt a procedural approach, recovering part of the dynamics inherent in the historical and social scene of Curitiba. This was done in order to identify elements that can assist in understanding the origins and social positions of these agents early in their lives connecting the same to the particular dynamics of Curitiba society the first decades of the twentieth century. KEY-WORDS: Trajectories. Identities. Dalton Trevisan. Poty Lazzarotto. INTRODUÇÃO Este artigo se baseia na pesquisa que iniciamos sobre as trajetórias dos artistas Poty Lazzarotto (1924-1998) e Dalton Trevisan (1925). Nela, almejamos compreender o processo de construção das identidades desses atores a partir da recuperação da experiência social dos mesmos2, privilegiando os primeiros sinais de
1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Email: walmir.braga.jr@ufpr.br. 2 Partimos do pressuposto de que essa experiência é tanto indicativa como reveladora de fatores culturais e sociais mais amplos, sendo melhor compreendida à luz - tal como podendo auxiliar na compreensão - do ciclo de correspondências históricas, sociais, políticas e estéticas que presidiu o período em análise.
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reconhecimento desses artistas no interior da cena hegemônica do universo artístico brasileiro. Desse modo, desenvolvemos um estudo de trajetórias de vida que visa abordar redes sociais, estabelecendo, também, uma relevante interface com a sociologia da arte3. Em um primeiro momento, iremos tecer uma breve apresentação dos atores aos quais dedicamos esse estudo. Na segunda e terceira partes, a fim de explorar melhor as origens e a posição social dos indivíduos analisados no início de suas vidas, adotamos a estratégia de abordar a sociedade curitibana do fim do século XIX e início do XX, centrando nossa atenção sobre sua dinâmica identitária particular, as relações de poder entre diferentes grupos sociais e o processo de modernização a marcar a cidade nesse período. Por fim, situaremos nesse panorama o empreendimento cultural em que Poty Lazzarotto e Dalton Trevisan foram os principais colaboradores: a revista Joaquim.4 Editado nos anos de 1946 a 1948, em Curitiba, este periódico levava o emblema de ser produzido “EM HOMENAGEM A TODOS OS JOAQUINS DO BRASIL”, sendo objeto de polêmicas e disputas na cena local, assim como difusor de manifestações literárias e das artes visuais produzidas por atores situados tanto no cenário artístico paranaense, como no âmbito nacional.
AMIGOS, ARTISTAS, PARCEIROS: POTY LAZZAROTTO E DALTON TREVISAN Nascidos no meado dos anos de 1920, Napoleon Potyguara Lazzarotto e Dalton Jérson Trevisan, ambos netos de imigrantes italianos, presenciaram no início de suas vidas os pais tornarem-se médios empreendedores locais através de atividades comerciais e artesanais que evocavam suas origens.5 Esses artistas cresceram e tiveram suas primeiras experiências de vida em uma Curitiba cujo desenvolvimento como centro urbano era bastante recente. Nessa cidade, a distância espacial entre as pessoas era pequena - mas a distância social poderia ser 3 Essa perspectiva encontra seu principal modelo em Elias (1994). 4 Na revista Joaquim, Dalton Trevisan foi o principal colaborador, contabilizando o maior número de produções escritas. Além disso, Trevisan foi o idealizador do projeto da revista, seu fundador, editor, proprietário – como expunha no próprio periódico – e quem mais se dedicou a feitura da revista, assumindo diferentes papéis e funções para sua produção. Poty Lazzarotto é o segundo quanto ao número de publicações, em sua maior parte ilustrações. Sendo o chefe de arte da revista, traçou a política de exposição visual da mesma, sendo este um dos aspectos mais notáveis na opinião favorável que os críticos da época dirigiram ao periódico. 5 O pai de Dalton Trevisan, João Evaristo Trevisan, fundou a Fábrica de Louça, refratário e vidro João Evaristo Trevisan, em 1927. Os pais de Poty Lazzarotto, Júlia Tortato Lazzarotto e Isaac Lazzarotto, fundaram um restaurante que se notabilizava pela culinária italiana, o Vagão do armistício, no meado dos anos de 1930.
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enorme. Ao longo de suas carreiras, aos olhos da crítica, dos pares e dos atores que compõem a história do universo artístico brasileiro, ambos foram reconhecidos não apenas pela originalidade e qualidade de suas obras, mas também por privilegiarem certos gêneros na totalidade de suas produções, os quais não têm ou tiveram a mesma importância na totalidade das obras de outros atores que ocuparam posições de reconhecimento semelhantes nas artes visuais e na literatura brasileira. Dalton, ao longo de sua trajetória, privilegiou em volume o conto; Poty, em parte diferenciouse devido a gravura ocupar o primeiro plano na constelação de suas produções. Esses gêneros passaram a ser privilegiados por eles no início de suas vidas, no decênio de 1940. Nessa época, os mesmos já apresentavam uma considerável afinidade temática. Além disso, outro ponto em comum entre esses atores nessa época, eram as elevadas expectativas que nutriam quanto ao reconhecimento, mesmo quando suas primeiras produções e incursões ainda tomavam forma e feição, ou seja, quando eram jovens aspirantes à carreira artística situados no pouco promissor e polarizado panorama artístico brasileiro. Apesar disso, ambos não pouparam esforços para realizar as aspirações correspondentes a tais expectativas trabalhando, aprendendo e produzindo com enorme intensidade. Poty Lazzarotto e Dalton Trevisan notabilizaram-se por serem os principais colaboradores da revista Joaquim (1946-1948), periódico que teve em seus dois anos de existência ao todo vinte e uma edições, tendo uma tiragem de mil exemplares por edição, cuja distribuição era dirigida. Por diferentes motivos, esse periódico é apontado como um marco para a cultura e as artes de Curitiba, do Paraná e do Brasil (SANCHES-NETO, 1998; NUNES, 2010; SAMWAYS, 1981; LACERDA, 1991). Dentre os argumentos que enaltecem a importância desse veículo, podemos sublinhar sua prestigiosa recepção junto à crítica artística, sendo considerado por diferentes categorias de atores situados nos centros hegemônicos de produção cultural6 como o principal segmento do ramo, apesar de ser uma revista localizada em uma cidade que tinha uma posição periférica em relação à esfera
6 Leia-se São Paulo, Minas Gerais e, em especial, o Rio de Janeiro. Este, no meado dos anos de 1930, passou a ocupar o centro do modernismo no país aos olhos dessas categorias de atores, o que, em certa medida, sinaliza para a dinâmica política desse período.
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geográfica, social e política dos referidos centros.7 Segundo Sanches-Neto (1998), a Joaquim integrou um momento inovador para o modernismo literário brasileiro, quando uma nova geração artística, localizada nas cidades fora do eixo dos grandes centros, protagonizou um movimento “centrífugo”, em que “pequenas cidades deixam de ser meros objetos, olhados de fora, geralmente do centro, para assumirem a sua condição de sujeitos do olhar, observadoras de si e do mundo” (SANCHES-NETO, 1998, p. 20). Conforme afirmam Ginzburg e Castelnuovo (1989), a relação entre centro e periferia não pode ser entendida como uma relação invariável entre atraso e inovação, sendo sempre uma “relação móvel, sujeita a acelerações e tensões bruscas, ligada a modificações políticas e sociais e não apenas artísticas” (GINZBURG; CASTELNUOVO, 1989, p. 37). Dito isso, a periferia pode “ser, além de lugar de atraso, sede de criações alternativas” (Ibid., p. 56). Com efeito, a revista Joaquim surgiu em um momento de profundas mudanças e turbulências processadas nas cidades, estados, no país e no mundo da década de 1940. Nascida em 1946, estava imediatamente situada no período posterior ao fim do Estado Novo (1937-1945) e da Segunda Guerra Mundial (19421945); além de vir à tona após toda uma série de mudanças processadas durante a primeira metade do século XX, no Paraná e em Curitiba, a capital do estado.8 Em nível regional, esse empreendimento cultural destacou-se por se contrapor ao movimento político e ideológico do paranismo, que tinha enorme influência sobre os preceitos considerados como legítimos nos domínios artístico e literário do estado. Tendo Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto como seus agentes principais, a revista Joaquim reuniu alguns expoentes da cena curitibana da época e outros que apareceriam mais nos anos seguintes. Dentre todos esses, destacam-se o político, polemista e ensaísta Erasmo Pilotto (1910-1992), os artistas plásticos Guido Viaro (1897-1971) e Euro Brandão (1924-1996), e os críticos e historiadores Wilson Martins (1921-2010) e Temístocles Linhares (1905-1993). Em nível nacional, o periódico recebeu a colaboração de expoentes como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Quirino Campofiorito, Otto Maria Carpeaux,
Sergio Milliet,
Di Cavalcanti,
Cândido Portinari,
dentre outros.
7 Neste artigo, ao utilizar os termos “centro” e “periferia”, partilhamos do modelo analítico desenvolvido por Castenuovo e Ginzburg (1989). 8 Na próxima parte deste escrito, iremos abordar algumas das mudanças que se processaram em Curitiba no início do século XX.
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Considerando o contexto histórico e social da época, a existência das relações entre os intelectuais envolvidos e a ampla expressão desse periódico no cenário artístico brasileiro, sinalizam o alcance das transformações ocorridas nos anos de 1940 no sistema cultural do país. Essas últimas foram iniciadas no decênio anterior, quando os centros hegemônicos de produção cultural passaram a travar novas relações com intelectuais situados fora de seus domínios (MICELI, 2001). Além do que já foi dito sobre Poty Lazzarotto e Dalton Trevisan, é preciso salientar que os mesmos foram os maiores beneficiados com a difusão da revista sendo, indiscutivelmente, os expoentes principais não apenas de sua produção, mas também de sua mediação junto à crítica e a intelectualidade brasileira, sobremaneira a do Rio de Janeiro. Com relação a isso, vale ressaltar a importância de Poty Lazzarotto enquanto fornecedor de vários contatos e mediador da revista. Mesmo sendo muito jovem, no meado do decênio de 1940, Poty Lazzarotto já nutria um certo prestígio como gravurista em meio aos círculos de artistas e críticos da época, aos quais também se ligava. Utilizando a rede de relações tecida desde de o começo de sua estadia no Rio de Janeiro, iniciada em 1942, Lazzarotto pode promover a revista, assim como angariar colaborações. Dentre estas, destacam-se as que foram facilitadas pelas amizades e relações tecidas com Carlos Drummond de Andrade, Quirino Campofiorito, Augusto Rodrigues, Renina Katz, Di Cavalcanti, dentre outros, que em maior ou menor escala colaboraram no periódico, assim como somaram para a positiva recepção do mesmo. Um outro aspecto a diferenciar a revista Joaquim, assim como a sublinhar a relação entre Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, é o diálogo entre literatura e artes visuais, havendo no periódico um enorme espaço concedido as ilustrações produzidas por Poty Lazzarotto a partir dos contos feitos por Dalton Trevisan. Conforme Nunes (2010), na revista Joaquim conviveram e dialogaram as dimensões literária e das artes visuais, ambas “mantendo a sua relativa autonomia, mas intrinsecamente imbricadas em um mesmo projeto artístico e dentro de uma mesma estratégia de ação cultural” (NUNES, 2010, p. 173). Após suas primeiras parcerias artísticas, Poty e Dalton mantiveram o elo entre conto e ilustração, que oscilou em quantidade ao longo do tempo, acompanhado por estáveis e estreitos laços de amizade.
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OS PRIMEIROS VESTÍGIOS DE MODERNIDADE NA PERIFERIA: A CURITIBA DO INÍCIO DO SÉCULO XX Para a melhor compreensão da dinâmica inerente à sociedade curitibana do final do século XIX e início do XX, precisamos compreender melhor algumas das mudanças sociais, demográficas, econômicas e de poder que se processaram nesse período. Para realizar essa tarefa, abdicamos de categorias que sugerem marcos cronológicos restritamente definidos, a fim de apreender melhor o caráter-processo dos eventos sócio-históricos. Quando partilhamos de uma perspectiva como essa, visamos apreender as mudanças, tensões e permanências na estrutura das relações de poder, trazendo à luz os processos presentes em determinadas configurações sociais. Buscamos fazer isso de maneira a começar a tecer um guia da circulação das tensões que permearam essa sociedade ao longo do tempo, onde as dimensões macro e micro social não se excluem, podendo corresponder a um mesmo processo relacional, social e de poder (ELIAS, 2000; 1999; 1995; 2001; 2005). No transcorrer do século XIX para o XX, o crescimento do fluxo de imigrantes alterou profundamente a base demográfica tanto de Curitiba como do Paraná. Embora a capital paranaense tenha como um de seus componentes culturais e históricos fundamentais a presença imigrante, esta marcou também um importante fenômeno nacional e global. No Paraná, os imigrantes que, em princípio, deveriam vir para ocupar a cena agrícola, passaram com os anos a ocupar posições-chave no comércio regional. Após a não adaptação ao meio rural, parte dos alemães seguiu para Curitiba e ganhou espaço no circuito da erva-mate e madeira, passando a dominar a indústria de impressão e colaborando na indústria de produtos culturais como revistas e jornais, que no século XIX se encontrava no primórdio. O espaço adquirido culminou em certa aversão por parte das elites locais à ascensão estrangeira (BEGA, 2002). Em virtude da concorrência e do estabelecimento não apenas dos alemães, mas também dos franceses – há a mudança no fluxo migratório. Esse fato é estabelecido devido à reivindicação das elites locais, de ascendência luso-brasileira, que passam então a exigir um modelo de política migratória voltado ao incentivo de povos considerados como vinculados a uma tradição agrícola e cuja matriz religiosa fosse o catolicismo (BEGA, 2002). Desse modo, um maior contingente de poloneses e depois de italianos se estabelece no Paraná e, em especial, em Curitiba ou suas
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proximidades, expandindo gradualmente o adensamento populacional da cidade. Independentemente das expectativas dos governos da época, os imigrantes que vinham de regiões com tradição agrícola transportavam para o novo país o sistema de trabalho adotado na Europa. Segundo Boschilia (2010), nesse sistema de trabalho, a casa familiar funcionava como uma unidade de produção, sendo os filhos um investimento-chave tanto para a imediata produção que assegurava a subsistência, quanto para a produção do excedente que circulava no mercado urbano de Curitiba. Na transição entre os séculos XIX e XX, as elites de Curitiba manifestavam um esforço em aproximar a capital das sociedades consideradas como desenvolvidas, adotando, inclusive, modelos de urbanização presentes em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Segundo Luz (1992), nesse período, o discurso sobre a modernização de Curitiba tinha como bases principais o célere crescimento populacional, o surgimento e implantação de novas indústrias, o desenvolvimento do comércio e também “as obras de reurbanização que se destinavam a remodelar e a embelezar a cidade” (LUZ, 1992, p. 79). Com efeito, na Curitiba dos primeiros decênios do século XX, o termo “indústria” se constituía em particular nos discursos da imprensa “ligada aos interesses empresariais... [como] parâmetro de progresso econômico-social e, por conseguinte, como evidência do processo de modernização que estaria em curso na sociedade curitibana”; entrementes, esse termo era usado para designar tanto estabelecimentos com maquinário, como oficinas artesanais (Ibid., p. 16-17). Nos noticiários locais, a constelação formada pelos empreendedores da cidade - na suprema maioria, imigrantes e descendentes - era vista como o componente fundamental para o desenvolvimento presente e o promissor futuro da capital. Vinculados à imagem de pioneiros, esses atores “eram identificados, frequentemente, com o modelo do self made-man, tão caro aos postulados liberais em voga” (LUZ, 1992, p. 24), que iniciaram suas atividades do zero e ao fim do século passado ou início do novo, ascenderam a posições de destaque. Essas posições eram valorizadas socialmente, impactando sobre a autoimagem desses atores, formando um retrato que unia a importância para a vida e a economia regional ao nível ascendente de mobilidade econômica - prestigiado sob as insígnias do mérito, do trabalho e da poupança. Somando ao crescimento populacional de Curitiba estava o fato que essa 82
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cidade não tinha uma infraestrutura urbana adequada ou planejada para esse aumento.9 Além disso, é preciso frisar que o quadro da economia e do comércio curitibano do início do século estava fortemente sintonizado à dinâmica da ervamate e madeira – estando entrelaçado a suas oscilações. No meado dos anos de 1920, devido a ações provenientes do governo argentino, então um dos principais destinos do mate paranaense, instalou-se uma acentuada crise no Paraná devido à queda nas exportações, que repercutiu diretamente no nível do emprego e dos salários, instaurando um momento de grande turbulência econômica e social. Além disso, nesse período houve o agravante de uma intensiva especulação imobiliária na cidade, encarecendo o preço das propriedades e dos aluguéis, ocasionando a falta de moradias para as camadas menos protegidas da população, sobremaneira o seu proletariado (LUZ, 1992). Em uma realidade como essa, o sentido de um ofício ligado ao empreendedorismo revestia-se de um status diferenciado, fosse pelo sentido que o empreendedorismo adquirira na capital, fosse em relação às enormes dificuldades que alijavam a maior parte da população.
IDENTIDADES EM JOGO: A RECONSTITUIÇÃO DE UM MOSAICO CULTURAL Para começar a delinear melhor as feições da dinâmica identitária a marcar Curitiba no período cronológico dos primeiros decênios do século XX, faz-se imprescindível compreender a ação do movimento paranista e sua relação com a questão dos imigrantes. Segundo Oliveira (2009), tal movimento se constituiu na década de 1920, influenciado tanto pelo positivismo como pelo paradigma desenvolvimentista desse período. Trata-se de um movimento, inicialmente difuso, criado por alguns intelectuais paranaenses radicados na cidade de Curitiba, em especial Romário Martins [...] suas origens remontam ao federalismo republicano da última década do século XIX e da primeira década do século XX e às transformações econômicas e tecnológicas – expansão da rede ferroviária, iluminação pública, bondes elétricos etc. – capitaneadas pelas novas elites residentes em Curitiba ligadas à exploração, industrialização e comercialização do mate a da madeira (OLIVEIRA, 2009, p. 19).
O movimento paranista teve como expoente maior o historiador e escritor Romário Martins (1874-1948), que atuou na construção de figuras míticas, 9 Esse quadro se tornará ainda mais evidente nos decênios seguintes. No ano de 1950, a mesma contabilizará mais de 180 mil pessoas.
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compondo uma constelação de insígnias vinculadas a um movimento tanto ideológico quanto político, que expôs uma interpretação própria, regionalista, do que era o estado e a identidade paranaense. Esse movimento, teceu uma construção diferente da que ocorrera ao final do século XIX, pois nesse período a geração simbolista – de matriz cultural luso-brasileira, assim como a paranista – elencou o caboclo para ser a insígnia de distinção da identidade paranaense (BEGA, 2002). Ao voltar-se a processos como este, onde estão em jogo as disputas pelo que são memória e identidade, Pollak (1992) salienta que as mesmas “são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais que opõem grupos políticos diversos” (POLLAK, 1992, p. 208); além disso, ao tratar do enquadramento de memória, esse autor acentua que o mesmo deve satisfazer a certas exigências de justificação (POLLAK, 1989), sendo um trabalho realizado por seus “atores profissionalizados, profissionais da história de que são membros” (POLLAK, 1989, p. 10). Com efeito, à luz do quadro apresentado precisamos sublinhar que em cada uma das construções da identidade paranaense apresentadas pelos simbolistas e paranistas há o estabelecimento também de um passado histórico e a tentativa de instituir uma memória comum, porém delineada a partir das tensões na estrutura das relações de poder do presente. No primeiro caso, como salientamos há algumas páginas, a elite luso-brasileira elencou o caboclo em detrimento do imigrante num momento onde os alemães ascendiam economicamente, passando a ocupar posições-chave na vida local, culminando na decisão daquela elite - que mantinha plena hegemonia quanto as principais posições de poder político em nível local – de mudar o plano de política migratória. Nos anos de 1920, haverá uma nova construção identitária. Como salientam Bega (2002) e Oliveira (2009), unido ao projeto paranista estava posta a questão da ascensão econômica do imigrante: e em meio a essa ocorrera a valorização do mesmo. Essa construção articulou-se à história de imagens e identidades do estado, que é marcada não pela justaposição ao todo nacional, mas pela tentativa de distinguir-se do mesmo (OLIVEIRA, 2009). Posto isso, é preciso mencionar e sublinhar que a referida construção identitária dos anos de 1920 beneficiou, sobretudo, o imigrante alemão. Se compararmos o discurso do paranismo à dinâmica presente na economia regional dos decênios de 1920 e 1930, podemos entender melhor esse processo. Em levantamento realizado na Junta Comercial do Paraná, Balhana e Westphalen (1986) expõem que na década de vinte, 52,7% do 84
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total de empresas então registradas pertenciam a imigrantes ou descendentes, dos quais mais da metade eram de alemães de primeira ou segunda geração. No decênio posterior, 71,7% das empresas curitibanas foram registradas por imigrantes ou descendentes, dentre elas, 45,3% tinham como proprietários alemães ou descendentes. Desse modo, houve um maior equilíbrio na balança de poder em nível local, através das posições de importância adquiridas no nível econômico por imigrantes alemães e descendentes, consolidando um processo que já ocorria desde o século anterior. Esse fato ganha uma nova dimensão de importância quando lembramos os estreitos laços de interdependência presentes na economia regional, pouco complexa se comparada a de outras capitais brasileiras, o que conferia à supremacia de um grupo em determinadas posições uma hegemonia incontestável – e que não poderia nem deveria ser ignorada. Em correspondência com a dinâmica apresentada, o “tipo alemão” passou a representar as feições da identidade paranaense – formulada a partir de certas características e pressupostos: ser homem, de fenótipo branco, trabalhador e com disposição empreendedora, europeu, proveniente do meio urbano e “civilizado”. Essa imagem baseada no “tipo alemão”, foi alçada ao ápice de um gradiente étnico formulado e estabelecido por atores cuja identidade vinculava-se à cultura lusobrasileira e estava fora/acima dele, o compondo e modelando. Além disso, é preciso pontuar que o negro não era mencionado nesse gradiente, reforçando o mito de que a presença negra estaria ausente no estado. Se, por um lado, entre os distintos grupos de imigrantes e descendentes, os alemães ocupavam as principais posições de relevo no domínio econômico – também é preciso perceber, de acordo com Souza (2012), que esse grupo apresentava uma surpreendente coesão interna, vinculando-se a uma identidade cultural reconhecida como singular e esforçando-se para representar a honra e o trabalho como um de seus atributos de distinção. Para os alemães, a imagem do “imigrante honrado” vinha sendo construída com o auxílio de mecanismos que visibilizavam sua participação dentro da sociedade, envolvendo atos de apreciação... A ênfase nos valores próprios e a “distinção”, apresentada no singular em nome de um coletivo, reforçando a coesão e relegando a afirmação ao senso comum, contribuem para afirmar as diferenças e fazer reconhecer uma representação positiva de si mesmos através da imagem de trabalhadores. (SOUZA, 2012, p. 65, grifos nossos).
Com efeito, é preciso compreender esse processo à luz da dinâmica do
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universo relacional que era Curitiba nesse momento. Quando nos voltamos aos conflitos dessa época, podemos ver, de um lado, o grupo de identidade formado por alemães, os quais detinham as principais posições no domínio econômico e apresentavam um forte grau de integração; do outro lado, havia o polonês, que não detinha em volume as mesmas posições e era duramente estigmatizado. Em síntese, de um lado, havia um grupo buscando formular uma autoimagem coletiva correspondente a seus membros mais bem sucedidos, a minoria dos seus “melhores”; do outro, uma outra identidade cultural portando atributos depreciativos, os quais, caso fossem de algum modo verdadeiros, certamente poderiam ser vinculados apenas à minoria dos seus membros. Como afirma Elias (2000), em dinâmicas sociais e relacionais como essa, um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder e apresenta um maior grau de coesão interna, o que favorece a sua atuação frente ao outro grupo, sendo que essas tensões e a aparente supremacia podem se manifestar de outras formas, como em comentários maledicentes, em piadas e mitos formulados pelos estabelecidos. Voltando à questão do gradiente étnico abordado, é preciso estabelecer que nele o italiano teve uma posição implícita intermediária, pendendo um pouco mais para o extremo composto pelo polonês, ao mesmo tempo em que era pouco mencionado. Se nos voltarmos novamente aos dados levantados por Balhana e Westphalen (1986), onde é saliente o predomínio de alemães e descendentes no domínio econômico local dos primeiros decênios do século XX, um outro dado chama atenção: do período que vai do ano de 1890 a 1929, 24,3% das empresas registradas na Junta Comercial do Paraná pertenciam a alemães, seguidos pelos italianos com 15,1%, ambos se destacando na miríade dos diferentes grupos de imigrantes que se estabeleceram em Curitiba. É preciso complementar esse quadro com a própria composição demográfica da capital, onde prevalecia o número de italianos com o dobro do número de alemães no decênio de 1920, totalizando cerca de um terço dos estrangeiros estabelecidos na cidade nesse período, formando dentre os imigrantes a identidade cultural mais substantiva em termos numéricos, ficando atrás apenas dos brasileiros. Como salienta Pollak (1992), nenhum grupo ou ator pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de negociação, em função dos outros, pois a construção da identidade é um fenômeno produzido em relação/referência aos 86
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outros, incluindo seus critérios de credibilidade, aceitabilidade, admissibilidade, por meio de uma negociação direta com os mesmos. Os dados apresentados acima são indicativos dos contornos particulares da sociedade curitibana de então e, em especial, do lugar ocupado pela identidade cultural italiana nesse cenário. Se, por um lado, alguns dos indivíduos vinculados a esta imagem/identidade vivenciaram em um tempo relativamente curto, de uma ou duas gerações, a ascensão a um papel que era bastante estimado e reconhecido no discurso hegemônico local, voltado à modernização de Curitiba, aproximando-se das posições ocupadas por alemães e descendentes; por outro, esses indivíduos viviam a experiência de estarem destituídos de uma identidade bem definida aos olhos das elites e demais grupos locais, sendo invisíveis no gradiente étnico então formulado, apesar de formarem dentre os imigrantes o grupo étnico-cultural mais numeroso de Curitiba. Em síntese, alguns italianos participaram ativamente do projeto de modernização de Curitiba, sem receber, em contrapartida, a “devida recompensa” por isso, sendo portadores de uma identidade de feições pouco delineadas e reconhecidas em nível local. Além disso, tal como em outras regiões do Brasil, não era incomum vincular ao italiano a imagem de um “tipo rural”, “caipira”, uma imagem que muitas vezes era contrariada por esses atores que alcançaram alguma mobilidade econômica no meio urbano de Curitiba nos decênios de 1920 e 1930. Dentre esses, podemos citar os pais de Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, os quais fundaram seus empreendimentos nessa época.
O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL DO EMPREENDIMENTO JOAQUIM O entendimento da relação entre o movimento paranista e os grupos de imigrantes e sua respectiva ascensão é primordial para as trajetórias examinadas. Quando o jovem Dalton Trevisan apareceu pela primeira vez, em 1940, através do ginasiano jornal Tingui, ele se valeu da condição material alcançada por seu pai, João Evaristo Trevisan – um filho de imigrantes italianos que, em 1927, tornou-se um industrial. Isso, sobretudo, pelo privilegiado capital escolar a que Dalton teve acesso mediante sua condição familiar e pelo fato de ter a fábrica de seu pai colaborado no financiamento de seus primeiros empreendimentos culturais: o jornal Tingui (1940-1943) e a revista Joaquim (1946-1948). Além disso, uma das salas da fábrica funcionou como sede de ambos os periódicos, num local que era também a
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residência da família Trevisan. Fundado quando Dalton tinha cerca de 15 anos de idade, o Tingui foi o depositário de suas primeiras experiências literárias e se apresenta como uma fonte interessante para se mapear a sociabilidade do autor nesse período, assim como suas primeiras influências. Nessa produção, Dalton apresentava sintonia com o ideário do paranismo, posição que será oposta a de poucos anos depois, na revista Joaquim. Além disso, com o passar dos anos o autor buscará apagar o jornal Tingui de sua história. Enquanto um descendente de imigrantes italianos, Trevisan vivenciou um contexto em que a literatura local era marcada por agentes vinculados à identidade luso-brasileira, enquanto as artes plásticas eram marcadas pelas obras de imigrantes ou descendentes. Apesar da histórica efervescência cultural propiciada pelas relações, oposições e distinções entre imigrantes e locais em Curitiba, os grupos estabelecidos, cuja matriz cultural e de identidade era de procedência lusobrasileira, monopolizavam ainda as principais posições no domínio literário e cultural. A atestar isso está à ascendência genealógica, familiar e tradicional dos agentes integrantes do círculo paranista, tal como, em sintonia com tal fato, as presenças de agentes com o mesmo perfil na principal instituição literária do estado, o Centro de Letras do Paraná. Esta, antes da virada para o decênio de 1940, passou a se chamar Academia Paranaense Letras, sem mudanças significativas quanto aos agentes que lhe integravam (MENDES; STRAUBE; KARAM, 2013). Como acentua Oliveira (2004), tal fato também se materializava no âmbito político, onde a classe dominante paranaense do período de 1930-1945 se apresentava em cargos importantes com membros de famílias que detinham posições de poder político desde o século XVII, o que sinaliza para a conservação de interesses tradicionais. Durante o período de suas primeiras experiências de vida e artísticas, Dalton travou contato com o grupo de amigos e artistas nucleado pelo experiente artista plástico italiano Guido Viaro (1897-1971), passando a referir-se a esse grupo no “nós”, tal como passando a realizar uma espécie de culto à figura de Viaro, o considerando como um exemplo de artista cosmopolita que se contrapunha à tradição local, aos atores paranistas, os quais com o Tingui ele se aproximara, simultaneamente, resignificando esse círculo de agentes no “eles” (FARIA, 2013). Com o passar do tempo, à medida que se aproximou do pintor italiano, Dalton Trevisan passou a reproduzir a crítica que Viaro fazia à atmosfera cultural e 88
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artística local (FARIA, 2013). Desde que havia se estabelecido em Curitiba, em 1929, Viaro polemizava com expoentes da tradição paranista, defendendo uma arte com contornos mais próximos a outros temas e correntes estéticas que floresceram e floresciam em outras regiões do mundo. Além disso, Viaro produzia obras de arte nas quais a identidade mais estigmatizada do Paraná ocupava o primeiro plano. Guido Viaro esteve entre os primeiros artistas que produziram no Paraná a retratar o polonês, fazendo este ganhar repercussão na arte paranaense – e essas imagens, assim como algumas das histórias que as acompanham, são interessantes para reconstituir o peculiar mapa de sociabilidade desse artista precursor e a crítica que o mesmo teceu ao gradiente racial local por meio de sua arte. Essa crítica ganhará maior força vocal com a geração dos anos de 1940, que terá como principais expoentes Poty Lazzarotto e Dalton Trevisan. Como já mencionado, na revista Joaquim, Dalton ocupará um lugar de destaque, sendo sua importância como a de Poty Lazzarotto capitais para o reconhecimento desse periódico. Nele, Dalton irá atuar juntamente com outros membros do grupo nucleado por Viaro e também com este, que será o terceiro em número de colaborações no periódico, apesar de não participar de outras funções necessárias a sua produção ou mediação. Com esse veículo haverá a terceira invenção do “tipo paranaense”: que não será nem o caboclo como na invenção simbolista, nem o alemão como na paranista: mas será formado “por uma miríade de italianos e ‘polaquinhas’.” (BEGA, 2002, p. 277). Assim como o discurso apresentado nesse periódico será marcado não pelo alinhamento aos preceitos da Semana de Arte Moderna de 1922, mas por pretender instaurar a “modernidade” na vida cultural paranaense, contrastando e fazendo oposição ao discurso de modernização de Curitiba que marcava a cidade desde o início do século XX. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desse artigo, buscamos expor um pouco do trabalho iniciado sobre as trajetórias de Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, que privilegia os primeiros sinais de reconhecimento desses artistas, os quais ocorreram nos anos de 1940, em grande parte devido ao protagonismo de ambos na revista Joaquim. No momento atual dessa pesquisa, buscamos entender melhor o panorama histórico, social e cultural onde esses atores viveram suas primeiras experiências. Além disso,
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buscamos levantar elementos para melhor compreender a posição social desses atores nessa época, assim como entender melhor suas origens – um processo que apenas iniciamos, mas que já nos permite levantar algumas possibilidades. Trata-se de um contexto histórico e social perpassado pelo projeto de modernização de Curitiba, da ascensão econômica de parte dos imigrantes, de certas construções identitárias; embora também marcado pelo monopólio de certas posições de poder nos domínios cultural e político por parte de agentes com ascendência luso-brasileira. Nesse interim, chama a atenção a ambígua condição da identidade cultural italiana na cena da capital paranaense. Embora alguns agentes filiados a essa etnia cultural tenham participado ativamente no chamado processo de modernização de Curitiba, obtendo alguma ascensão econômica, na negociação identitária que ocorria não havia um papel bem definido para o italiano. Esse fato chama a atenção quando o comparamos ao discurso mobilizado pelos italianos e descendentes de italianos da revista Joaquim, sobretudo por parte de Dalton Trevisan: que refutou o processo de modernização anterior, atacando o paranismo e buscando se colocar como promotor da modernidade no Paraná. Esse conjunto de fatores nos estimula a investigar em maior profundidade os papeis assumidos por esses atores nessa época - e os nexos a serem reconstituídos entre esses papeis e a experiência social vivenciada pelos mesmos. Apontando para a necessidade de um exame mais detalhado da dinâmica identitária que se passava em Curitiba e a mais refinada compreensão dos desejos desses atores, de acordo com as relações e processos sociais que ocorriam naquele momento. REFERÊNCIAS BALHANA, Altiva Pilatti; WESTPHALEN, Cecília aria. Demografia e economia: o empresariado paranaense (1829-1929). In: Costa, Iraci Del Nero. Brasil: História Econômica e Demografia. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986. BEGA, Maria Tarcisa Silva. Sonho e invenção do Paraná. A geração simbolista e a construção de identidade regional. Tese (Doutorado em Sociologia) – FFL, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. BOSCHILIA, Roseli . Entre fitas, bolachas e caixas de fósforos: a mulher no espaço fabril curitibano (1940-1960). 1. ed. Curitiba: Artes&Textos, 2010. DE BONI, Maria Ignês Mancini. O espetáculo visto do alto: vigilância e punição em Curitiba (1890-1920). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.
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LES INDIGÈNES URBAINS: LA CIRCULATION ENTRE DEUX MONDES EN CRUZEIRO DU SUL, ACRE, BRASIL. Sofia Dagna1
INTRODUCTION
Le Brésil comme un pays de migrations, externes et internes. L'Amazonie brésilienne, notamment, a toujours été un espace caractérisé par une grande mobilité des populations. Son histoire est fait des rencontres diverses. Dès l’époque de la conquête espagnole et portugaise, le commerce d’esclaves, le passage des voyageurs européens, les économies d’extraction, les missions religieuses, l’expansion de la frontière de colonisation, le processus de démarcation des terres et enfin les déplacements forcés modifient à jamais la vie des populations indigènes. La motivation qui pousse à la décision de migrer, qu'implique de passer d'un environnement familier à une situation la plupart des fois inconnue, née en générale d'une insatisfaction de l'individu par rapport à sa situation présente dans sa région, la mobilité apparaissant comme la solution pour réaliser ses aspirations. Il est important d'étudier les migration afin de comprendre non seulement leurs déterminants politiques, sociaux et économiques, mais également leurs effets dans d'autres sphères. Le processus de migration affecte la vie et le comportement des migrants aussi bien que la famille et le réseau des relations à la fois familiale et communautaire. En ce qui concerne la structure de la société, la migration, avec son caractère bilatéral, provoque des modifications dans la dynamique et la distribution de la population, en interférant avec la vie économique, politique et sociale des communautés de départ et d'arrivée des migrants. Cependant ce caractère bilatéral parfois est rompu: c'est la raison pour laquelle on s'intéresse à travailler sur la bilocalité, c'est-à dire de résider à la fois en ville et dans une terre indigène, afin d’évaluer les effets de cette complexité territoriale en Amazonie en lançant aux populations indigènes le défi de réconstruire leur système de vie et de reproduction 1 Étudiante de Master 2 en Anthropologie à l'Institut des Hautes études de l'Amérique latine à la Sorbonne Nouvelle-Paris 3. sofiadagna89@gmail.com.
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culturelle afin de s'adapter à la rencontre avec l'autre. L'objectif de cet article est de décrire un expérience de terrain dans la ville de Cruzeiro do Sul, dans l'Acre, à l'ouest de l'Amazonie brésilienne, durant ma recherche de master dans cette région. Premièrement je voudrais expliquer mon intérêt pour l'étude des migrations indigènes entre ville et campagne, le sujet de mon mémoire de Master. Cet intérêt naît du fait que moi aussi je suis une migrante ao Brésil, bien qu’en France, car je suis italienne et je voulais découvrir ce qu'est la mobilité pour les autres personnes et autres groupes sociaux. Je voulais connaître une réalité à partir de mes yeux, comment dit justement
Luisa Fernanda Sanchez2, dont sa thèse a été une source
d'inspiration pour moi, « La «réalité» que je présente n’est celle que d’un seul «regard»: le mien. » (SANCHEZ, 2007, p.14). Carrément, nous n’étudions jamais une culture « en soi », mais des rencontres entre des manières différentes de faire monde. Aucun ethnographe ne peut prétendre saisir le point de vue des individus qu’il rencontre sur son terrain : il en perçoit des aspects par comparaison avec sa propre manière de faire monde. Je voulais être en contact avec un sujet de l'anthropologie « classique » mais vu d'un autre point de vue, cellui de la ville. Je me demandais quoi change dans sa propre identité d'indien et comment ils « négociaient » entre la vie de la ville et la celle de leur village. Un sujet si peu étudié, les indigènes en ville, que je me suis dit qu'une ultérieure recherche aurait apporté d'autres connaissances intéressants. Les questionnements centrales de mon travail sont les suivants: Comment les indigènes construisent-ils des phénomènes d'identification
lors de la mobilité bi-
résidentielle et du contact avec la ville? Comment la question de l’appartenance, essentielle dans le rapport au territoire, s’exprime-t-elle lorsque l’on vit dans des espaces multipolaires? Le thème central du terrain et du mémoire est la mobilité des populations indigènes en Amazonie brésilienne entre milieu rural et milieu urbain, vue dans sa dimension bi-résidentielle. Le travail sur le terrain a durée seulement un mois et une semaine, pas suffisant pour en faire une analyse en profondeur, mais assez intéressant pour faire quelques considérations constructives qui peuvent mener à d'autres recherches sur le sujet.
2 Le fil du tabac a Bogotà, 2007, Paris, Ed. Chrisalydes.
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La méthode suivie pendant le terrain repose sur des entretiens individuels, réalisés au domicile des répondants en ville et sur l'observation participante. La recherche sur le terrain est le résultat aussi d'une recherche bibliographique faite l'année dernière qui a demandé un travail empirique pour vérifier les hypothèses sur les dynamiques qui possent les indigènes à s'insérer dans la société urbaine et les transformations vécues qui ont un impact sur les relations sociales et spatiales.
DÉFIS DU TERRAIN
Cette période consacrée au terrain a été un mois de découvertes et explorations. Pendant le premier mois sur le terrain le chercheur commence à prendre confiance, à s'acclimater aux gens qu'ils rencontre bien qu’au endroit où il fera son étude. Pour moi c'était fatiguant le terrain au début parce que je devais faire face au climat amazonien, je devais bien entendre qui était qui et les relations de pouvoir
entre les gens, dans tout ça je devais aussi faire mes entretiens et
observations. Une autre difficulté liée au terrain c'était comment et quels questions poser: Parler avec qui? Pourquoi? Quel groupe indigène? Avec personnes de quelle âge?. Étant donné que j'avais peu de temps à disposition, j'ai décidé d'interviewer les indigènes que j'aurais rencontré sur mon chemin, à partir des contacts que j'aurais fait, “en me laissant transporter” par les circonstances et par les dynamiques relationnelles entre les indigènes (et avec les non-indigènes). Presque tous les indigènes avec qui j'ai parlé avaient un lien avec la Funai et les autres étaient des amis à eux. Le fait d'être aubergé chez un fonctionnaire de la Funai m'a permis de faire les premiers contacts, qui m'indiquaient à leur tour des autres indigènes. Je prenais le contact, et la plupart des fois était suffisant nommer un indigène connu avec qui j'avais déjà parlé et ils m'ouvraient les portes. Le
fait
que
j'étais
étrangère
n'était
pas
motif
d'inquiétude
et
d'incompréhension, dans la plupart des cas on avait une bonne comunication; seulement avec un indien j'ai dû me servir d'un inteprète. J'ai voulu faire plusieurs entretiens et j'ai parlé avec environ 20 indigènes entre 15 et 60 ans de divers groupes indigènes. Une fois rentré chez moi, je me suis rendu compte que j'avais nombreux 96
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d'entretiens et je devais transcrire beaucoup d'informations. Peut-être aurait été mieux me concentrer sur un nombre restraint d'informateurs et approfondir certains informations mais, compte tenu du temps limité, il n'a pas été possible. J'ai réussit à parler seulement une fois avec les indigènes concernés et ça a limité en partie l'analyse. Ce travail reflète avant tout ma propre expérience avec les Indiens de l’Amazonie, une expérience qui s’est construite à travers mon regard de femme, étrangère de blanche et d’anthropologue. Donc les réactions étaient liées à cettes caractéristiques. J'ai eu quelque tensions concernant ma position de chercheuse. Certains indigènes avec qui je parlais, me demandaient pourquoi je faisais ce travail, ce que j'aurais fait avec les entretiens et qui aurait lu, avec beaucoup de méfiance. J'ai esseyais de mieux expliquer que je le pouvais faire, mais ceux mêmes réfusaient l'enregistrement de l'entretien, lors que je leur démandais. La plupart des entretiens commençaient avec mes questions et continuaient avec les question de la part des indigènes avec qui je parlais. Ils voulaient savoir d'où je venais, ils me demandaient sur ma famille et si j'étais mariée e si j'avais des fils (surtout les femmes). Le fait que j'étais si jeune et sans mari et fils était motif des surprise et rires. Cette première interaction verbale c'était une façon de relaxer l'ambiance parce que après cet échange, on continuait à faire des blagues en établissant un bon contact basé sur la “solidarité féminine”, pour être femmes. Les hommes ne me demandaient presque rien sur ma vie personnelle et j'ai jamais eu une expérience désagréable avec eux, ce qui a facilité la relation. La plupart des hommes avec qui j'ai parlé était mariés ou ils étaient des adolescentes. Alors que nous commençons à parler avec un indigène, je demandais si a l'ennuiait que je l'enregistre, ce à quoi il me disaient que non. Par la suite me proposaient une chaise pour m'asseoir. Je pensais que c'était parce que j'étais vue comme une étrangère, donc ils me proposaient systématiquement une chaise ( ils étaient débout lors des premières dix minutes d'entretien). Ils voulaient que je me sentais à l'aise. Dans un premier moment je n'acceptais pas parce je ne voulais pas qu'ils se sentaient obligés à me traiter comme quelqu'un de si loin d'eux. De fait j'étais une étrangère pour eux. Mais après peu je me suis rendu compte que c'était exactement le contraire. La plupart des gens avec qui j'ai parlé, restaient assis tous le temps, (en fait ils s'asseoient aussi eux même quand ils me proposaient de m'asseoir) donc ils voulaient que j'ètais au meme niveau. Comme ça mon dégré 97
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d'acceptation, avec ce simple geste, c'était plus apprécié.
LE PREMIER ENDROIT DE RENCONTRE
Mon terrain a commencé avec le contact avec un fonctionnaire da Funai, comme j'ai déjà dit, dont sa maison c'était la base de ma recherche. Lui et sa femme m'ont aubergé e m'ont aidé à me familiariser avec la ville et les personnes. Ils m'ont présenté beaucoup d'indigènes e m'ont permis avec plus de facilité d'entrer dans ce monde complexe et intéressant. Ça m'a permis d'entrer en contact avec les indigènes qu'habitent en ville. Le premier endroit avec lequel je suis entré en contact a été l'OPIRJ (Organizaçao dos Povos Indigenas do Rio Jurua). Cette association est composée par 12 peuples indigènes de la région qui a comme objectif le renforcement de la culture indigène. C'est un endroit de rencontre des indigènes qui habitent stablement en ville ou qui sont de passage. C'est un organisation très dynamique qui depuis 2010, organise un événement (Projeto Corredor Pano),un programme de politique indigène ayant
comme objectif l'union entre les peuples indigènes de tronc
linguistique pano à partir de la défense d'une politique d'intégration, visant à l'établissement des liens (corredores) culturels et environnementaux. Dans l'association circulent aussi des non-indigènes. Il travaillent avec les indigènes et rendent disponibles leurs capacités (par exemple ils font des cours de vidéo) mais ils ne font pas partie officiellement de l'OPIRJ. Sont des personnes intéressés à la préservation des terres dans l'Acre et aux conditions de vie des peuples indigènes. L'organisation c'est un espace d'échange et de partage où circulent toujours plusieurs indigènes qui utilisent cet endroit comme référence. C'est un centre de rencontre pas seulement des personnes mais aussi d'idées et informations. Le besoin d'avoir un endroit borné en ville sur les questions indigènes, permet d'avoir un espace fixe où les indigènes peuvent se retrouver et renforcer les liens entre eux. Ils ont la possibilité de mobiliser un capital social (COLEMAN, 1988). Utilisé comme espace de réunions, c'est une étape obligatoire pour chaque indigène qui a une relations avec la ville. Les groupes indigènes avec qui j’ai eu pus de contact, étaient les indigènes Marubo et Kuntanawa. Les autres indigènes que j'ai interviewé étaient Ashaninka, 98
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Jaminawa, Huni Kuin, Poyanawa, Arara e Nukini. La première famille avec qui j'ai parlé étaient les Kuntanawa. Ce groupe indigène il est en train de passer par une dynamique de réhabilitation (resgate) de leur identité indigènne. Leur identité, “perdue” pendant les correrias3 du XIX siècle avec plusieurs situations de dispersion et enlévements de la part de seringueiros non-indigènes, depuis une dizaine d'années a recommencé a être rétablité4. Au sein de cette famille j'ai interviewé surtout deux jeunes, habitants de la ville. Ces deux jeunes ils sont en train d'étudier au lycée e chaque fois qu'ils ont des vacances rentrent chez eux, à l'aldeia
(dont la terre indigène est en train d'être
délimitée). La famille est productrice de rapé, qu'ils vendent, une substance communément utilisé (traditionnellement par les indigènes) par indigènes et aussi par non-indigènes, dû au fait que cette famille habite en ville. La consommation du rapé avec des autres substances, comme l'ayahuasca5, offert plusieurs fois lors du terrain, c'est une façon de s'approprier du quotidien indigène dans un contexte urbain et traditionnellement consideré nonindigène.
DES PONTS ENTRE DEUX MONDES
C'était intéressant de voir que presque tous les indigènes (hommes) avec qui j'ai parlé m'ont offert de prendre du rapé et de l'ayahuasca au début de la conversation avec eux. Cette offre pour un non-indigène, un accès aux substances du monde indigène représent une recadrage e l'usage de cette substances. La région de l'Acre est célèbre pour l'accès donné aux étrangers dans la consommation de l'ayahuasca et “tem uma grande circulação de gringos no estado com o objetivo de descubrir a cultura indigena”6 Cet accès au monde indigène à partir de la consommation d'éléments traditionnels au milieu urbain, est rendu explicite par l'artesanat, fait par les femmes. La production de colliers, miçangas et bourses c’est une façon de rester liés au monde indigène. C'est comme si c’était un pont, une connexion forte avec l'être indigène. Dans plusieurs entretiens il y avait une dimension très attentionné par 3 4 5 6
Expeditions armés pour expulser les indigènes de leurs terres Voir PANTOJA, M..Os Milton. Rio Branco: Edufac, 2008. Boisson hallucinogène composée de deux plantes, utilisée en ceremonies indigènes Citation d'une entretien avec une indigène Marubo (15/07)
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rapport à la production d'artesanat, un certain niveau d'affectivité. L'attention qu'elles avaient avec les objets qu'elle s’étaient habitué à produire dans un contexte indigène, était très présent. Les femmes avec qui j'ai parlé, déclaraient l'importance de transmettre ce savoir pour les jeunes filles. Cette art manuelle vient consideré une connaissance indispensable du être indigène, un savoir qui fait partie du monde indigène. Le rapé, l' ayahuasca, l'artesanat, éléments qui rendent les indigènes liés encore plus avec leur identité indigène et leur terre d'origine, au milieu urbain. La consommation et la production de ces facteurs sont aussi des façons d'intensifier les relations entre les indigènes (et aussi non-indigènes). Les indigènes organisent des rencontres pour prendre l'ayahuasca dans la maison de quelqu'un ou dans le jardin en face de la maison pour avoir un espace indigène dans un espace consideré comme non-indigène, ce de la ville.
Le
capitale ethnique7 qui circule et vient
mobilisé permet la transition entre deux mondes et deux espaces. Ces éléments ne sont pas les seuls qui représentent un pont entre le monde indigène et le monde non-indigène, mais aussi l'école, notamment le cours universitaire Curso de Formação Docente para Indigenas de l'UFAC (Universidade Federal do Acre). Ce cours a été crée en 2009 et c'est un cours de 4 ans. L'objectif est l'habilitation des professeurs indigènes pour enseigner dans les aldeias dans trois domaines: Sciences de la Nature (Mathématique ou Biologie), Sciences Sociales (Géographie e Histoire) e Language et Art (Langue Portuguais ou Art). Les disciplines sont offertes dans la mésure où serviront pour enrichir l'enseignement et la formation au sein de la communauté indigène au village. En fait le cours est organisé à partir d'une articulation entre activité au Campus Floresta en Cruzeiro do Sul et activités dans la terre indigène. Cette circulation continue des savoirs et activités engendre un lien multiple entre les territoires et mobilise le capitale sociale et le capitale ethnique8 (BORJAS, 1991) dans un cadre de mobilité bi-résidentielle. L'objectif final du cours est le retour des indigène à l'aldeia, une fois terminé la Licence. Ils apprennent à la fois des savoirs scientifiques et de la culture indigène dans un espace indigène en ville.
7 Les attitudes et les valeurs d'un environnement ethnique, avec lesquels il vaut entreprendre ou qu'ils ont du sens dans la vie d'un individucom (Borjas, 1991) 8 Cette notion sera développée dans le chapitre suivant
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La migration entre aldeia et ville n'est pas vue seulement d'un point de vue spatial mais aussi comme moteur de mobilisation de savoirs diférents qui font partie de la vie des indigènes aujourd'hui et qui leur permet de transiter d'un monde de savoirs à un autre. Pendant les entretiens il a apparu plusieurs fois le désir d'apprendre les “coisas boas”9 du monde blanc pour les appliquer dans le monde indiène et, peut-être, ce cours de Licence c'est un bon exemple de comment ils peuvent s'approprier des savoirs utiles par eux, pour “ajudar o povo”10. Le désir d'apprendre les deux cultures c'est un discours récurrent
et a
souvent une finalité d'aide, surtout parmi les jeunes11. Cette nécessité d'aider concerne les aînés qui sont resté au village et qui ne peuvent pas habiter en ville. Donc les jeunes vont en ville pour apprendre à circuler entre deux espaces et parmi autres indigènes et non-indigènes, pour profiter de deux mondes de sorte que leur peuple soit “mais feliz e com mais direitos”12, en ayant les deux perspectives. Dans le centre de Cruzeiro do Sul les indigènes Marubo il y a quelque années (1999), ont decidé de construire des maisons pour les jeunes indigènes qui vont en ville pour étudier. Avec l'argent de la retraite, les vieux du village ont construit 3 petits maisons avec des toilettes communes et une cuisine. Cettes maisons sont un espace pas seulement pour ceux qui veulent s'installer, mais aussi pour ceux qui sont de passage en ville. C'est vraiment un point de répère pour les nouveaux arrivés et un réfèrence pour ceux qui veulent s'installer par des périodes plus longues. La première famille Marubo qui est arrivée à Cruzeiro do Sul, s'est installée en 1991 pour travailler en ville et dans l'entretien qui suit ils décrivent pourquoi ils ont décidé de construir des maisons pour les autres indigènes. Cettes maisons représent un sort d'abri et un point de protection, exclusif pour les indigènes. Un des indigènes qui a aidé à construire les maisons pendant un entretien a declaré “a gente não quer que o nosso povo chegue sem um lugar onde ficar, não queremos que fiquem baixo de uma ponte e fiquem roubando”. Cet espace indigène é un petit territoire intégré dans un autre, ce de la ville, espace consideré non-indigène. La production d'objets d'rtesanat, la consommation de substances (et aliments) qui font partie du quotidien indigène, la présence d'un cours pour la formation des professeurs indigènes et la présence d'un endroit indigène (les 9 10 11 12
Entretien avec João Marubo, 23/07 Ibidem 18-30 ans Entretiens avec Francisco Marubo, 28/07
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maisons Marubo) dénotent une appropriation du monde des blancs et du modèle de vie urbain. Représentent facteurs de référence dans la vie quotidienne et mobilisent une circulation d'idées, personnes et espaces. O lugar dos brancos vira lugar de indígena.
VOU SER INDÍGENA ATÉ MORRER
Pendant des entretiens il a émergé un dicours sur la purété de l'indigène qui habite en ville, “olha que eu sou indio puro”13. Ces déclarations ont été fait avec beaucoup d'intensité comment s'ils voulaient me convaincre que moi je ne devais pas douter qu'eux, bien qu'ils vivaient dans la ville, étaient indigènes. Je tiens à préciser que les indigènes qu'ont mentionné ça, habitent stablement en ville et retournent au village qu'une fois chaque année ou change quatre/cinq ans. Ils supposaient que je pouvais mettre en doute leurs racines et que je voulais écrire dans mon mémoire14 qu'ils n'étaient pas “indígenas de verdade”. J'ai commencé à penser à ce mot, “pure”, petit mais si intense. Pure c'est quelque chose qu'il n’est pas mélangé, qui n'a aucune contamination. Problablement les indigènes qui habitent stablement au village, ni se demandaient s'ils étaient pures ou pas pures. Le fait de vivre en ville, communément associé ao monde blanc, peut généré une reflexivité chez les indigènes “urbains”15. La perception qu'ils ont de soi mêmes change une fois en ville. Le fait d'être loin du village, n'est pas une rupture mais une fortification, leur identité est réaffirmé, comment a dit Fernando lors d'un entretien “a gente nunca deixa de ser indio”16. Donc la nécessité de souligner leur “purété” en face de moi. L'affirmation de l'identité au milieu urbain dépend de l'existence et de la contiuité du lien avec la communauté d'origine. La consommation de substances do monde indigène, la production d'aliments du régime alimentaire indigènes, la fréquntation d'espaces qui appartiennent aux indigènes dans la ville et le déplacement au village, favorisent le maintien de cette connexion comment a étè décrit antérieurement dans l'article. 13 Entretien avec Indigène Arara do Igarapé preto ( 26/06) 14 J'explicais toutjours avant de chaque entretien qui j'étais, quelle recherche j'étais en train de mèner et quelles questions j'allais poser. 15 C'est important de rappeler que j'ai mis rubain entre guimées parce que la mobilité des indigènes cocnernés est de type bi-résidentielle. 16 Entretien avec Indigena Arara do Igarapé Preto (26/06)
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Une question délicat concernant cette déclaration de purété identitaire, est celle des droits. Les droits indigènes sont liés à la terre indigène d'appartenance. Donc comment reste ce qui arrive à ces droits une fois en ville? Leur reflexivité sur la perception de soi est strictement liée à cette question d'accès aux droits en ville. Les indigènes urbains ils se remettent en question quand ils arrivent en ville et ils ont une autre perception de soi mêmes. Serait opportun se démander comment ils font face intimement avec cette perception de transformation d'identité qu'ils pensent sentir. Dans ce terrain je n'ai pas eu l'opportunité d'accéder de manière approfondit à la biographie des indigènes entreviewés pour explorer plus cette question, donc pour l'instant cette question reste sans une réponse approfondite.
CONCLUSION
Il faut encore beaucoup de travail autour du thème des Indiens urbains au Brésil. C'était pas possible faire une recherche exhaustive dans ce travail sur le terrain, mais elle a permis de jeter les bases pour une future étude. Il était également difficile de parler avec les indigènes de passage étant donné le flux constant de personnes et la circulation avec des périodes variables de séjour pour visiter ou pour le traitement médical. Ce mouvement, comme nous l'avons vu, d'une certe manière dissout l'opposition connu forêt versus ville. L’étude des circulations révèle des territorialités complexes où plusieurs lieux sont mis en relation par des stratégies de réseaux, déployées par les individus, les groupes domestiques et les familles élargies. Cette approche met en évidence des accords de réciprocité entre acteurs et des logiques de complémentarité entre lieux, parfois éloignés les uns des autres. Ces systèmes de règles et de flux transforment les espaces multipolaires en territoires multisitués. Ils régissent la mobilité des membres des communautés en dehors des territoires bornés qui leur ont été confiés (Terres Indigènes). La prise en compte par les politiques publiques de territoires multisitués demeure difficile: elle demande une révision des catégories classiques d’analyse (urbain-rural, nature-espaces anthropisés, indigènes-population traditionnelle). Il faut réconsidérer d'autres catégories comme celle d'indigène, d'indigène urbain
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dans une société em mouvement et changement constant.
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TRANSFORMANDO-SE EM ZUMBI: A REPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA DO USUÁRIO DE CRACK Rodrigo Teixeira Pinto1
RESUMO Recentemente o crack passou a figurar com frequência em notícias de jornais impressos e televisivos, da mesma forma que nos últimos anos se multiplicaram campanhas para o combate ao uso da droga. O que se percebe é que, incitados pelo medo, diversas pessoas mobilizam sua atenção e recursos para o combate ao crack e seu uso, e que parte desse medo advém de notícias e campanhas alarmistas, como o caso analisado, o vídeo Zombie – A Origem, produzido pela Associação Parceria Contra as Drogas, o qual faz parte de uma campanha para o combate ao uso do crack. No vídeo, o usuário de crack é representado como zumbi, e a campanha que se propunha esclarecedora toma ares exagerados. Por essa razão, procura-se analisar como tal campanha acaba por mais criar medo do que esclarecer, da mesma forma que generaliza de diversas formas o usuário de crack como desviante. PALAVRAS-CHAVE: Desvio. Medo. Guerra às drogas. ABSTRACT Recently, the crack cocaine began to frequently appear in news, in the same way that multiplied in recent years campaigns to combat drug use. What is noticeable is that, spurred by fear, many people mobilize their attention and resources to the crack and its use, and part of that fear comes from alarmist news and campaigns, as the case analyzed, the video Zombie - The Origin, produced by Associação Parceria Contra as Drogas, which is part of a campaign to combat the use of crack. In this video the crack user is represented as a zombie, and the campaign which aimed to be illustrative takes exaggerated airs. For this reason, in this article, such video is analyzed to understand how the crack user is generalized, in many ways, as a deviant, and the way this campaing creates more fear than elighten. KEYWORDS: Deviance. Fear. War on drugs. INTRODUÇÃO Eu tenho medo de abrir a porta Que dá pro sertão da minha solidão Apertar o botão: cidade morta Placa torta indicando a contramão Faca de ponta e meu punhal que corta E o fantasma escondido no porão 1 Graduando em Ciências Sociais, Universidade Federal de Santa Maria, rodrigotp315@gmail.com
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Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre, um Recife Eu tenho medo Paraíba, medo Paranapá Eu tenho medo Estrela do Norte, paixão, morte é certeza Medo Fortaleza, medo Ceará Medo, medo. Medo, medo, medo, medo Eu tenho medo e já aconteceu Eu tenho medo e inda está por vir Morre o meu medo e isto não é segredo Pequeno Mapa do Tempo – Belchior
Para além do sentido poético da letra de Belchior, a impressão que temos é que o medo se tornou algo cotidiano. A solidão se configura na sensação compartilhada de estar por conta própria em um mundo repleto de perigos. Medo de um Rio de Janeiro, de uma Porto Alegre de uma Recife; o cenário das metrópoles brasileiras atravessadas pelo espectro do medo da violência e que reverbera na experiência dos sujeitos no ambiente urbano. Não dificilmente encontraremos pessoas que dirão que esse é o sentimento de viver em uma cidade grande no Brasil. O que pode chamar a atenção é que mesmo em cidades médias ou pequenas existe essa preocupação com a violência2. Neste artigo o interesse repousa sob a representação e produção de um medo específico, ligado à violência urbana, que parece ter abrangência desde as grandes cidades do Brasil até as pequenas. O que será tratado é a representação do crack e do usuário de crack, em especial sob a ótica do vídeo Zombie – A Origem3, produzido para uma campanha da Associação Parceria Contra as Drogas. Sobre essa campanha, a abordagem da temática não é diferente de outras. A sensação que esta desperta é a de estar entrando diretamente em alguma história de terror; pessoas com corpos flagelados, aparentemente sem qualquer moralidade, identidade ou capacidade de agir por vontade própria. São essas imagens que fazem com que nos questionemos se tal abordagem condiz com a realidade, ou se em alguns momentos, senão em geral, o que de fato ocorre é a representação de forma alarmista dos usuários e consumo de crack, exatamente como Barry Glassner (2003) observa no contexto norte-americano dos anos 90 em relação à violência. Em tais situações, onde se veicula material como esse, o resultado, de certa forma 2 Em notícia do site da revista exame o secretário nacional de políticas sobre drogas, Vitore Maximiliano fala que “temos notado que o crack também é droga presente em pequenos e médios municípios”. Como será abordado adiante, veremos que o uso do crack está intimamente ligado com outros comportamentos desviantes, que podem ser geradores de violência. Fonte <http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/estudo-mapeia-uso-de-crack-nos-645-municipios-de-sp> Acesso em 27/06/2014. 3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zaOB7hFcGkU>.
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evidente, é a produção de medo na sociedade, e de forma desproporcional. Partindo da percepção de que há alguma disparidade entre a realidade envolvendo o crack e a forma como ele é, muitas vezes, representado, levantamos algumas perguntas sobre o assunto. Quais elementos vão formar esse monstro urbano, o viciado em crack/zumbi? De que forma(s) ele é rotulado enquanto outsider? Existe uma produção do medo em relação a esses sujeitos? Se existe essa produção do medo, ela condiz com a realidade? Para problematizar essa realidade se faz uso de conceitos de Howard Becker, em especial o de outsider, e dos trabalhos de Doriam Borges e Barry Glassner, em relação ao medo.
DO MEDO AO OUTSIDER
Antes de nos perguntarmos do que as pessoas costumam ter medo é importante traçar uma definição do que é o medo e em que situações ele pode se fazer presente. Para isso, Doriam Borges se faz muito útil ao apresentar a distinção entre emoção e sentimento, onde o primeiro compreende o segundo ao mesmo tempo em que contempla outra esfera, a das crenças e julgamentos (BORGES, 2011, p.55). Sendo assim, agrega tanto razão quanto emoção enquanto esferas que trabalham em conjunto. Ainda que ambas atuem em conjunto, Borges pontua a importância de distinguir uma da outra. Enquanto a emoção se trata de uma reação física e psíquica produzida por algum estímulo, é na esfera cognitiva que se processam experiências que produzirão crenças, essas que muitas vezes serão o estímulo para determinada emoção (ibid, p.56). O que é importante ressaltar é que as crenças são “socialmente, culturalmente e historicamente construídas”, o que significa que elas não possuem necessariamente compromisso com a realidade (ibid, p.57). Ou seja, o que é assustador e desagradável em um contexto pode não ser em outro. Nesse sentido, segundo Borges “o medo nada mais é do que um sinal de alerta diante do perigo, que pode ser real, imaginário ou potencial” e que “pode atingir pessoas individualmente ou até mesmo uma população, conforme a dinâmica social daquele povo” (ibid., p.58). Essa definição conceitual é importante para compreendermos melhor do que Barry Glassner trata em Cultura do Medo. Glassner é bastante claro nos seus questionamentos: 108
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Porque há tantos medos no ar, e tantos deles sem fundamento? Por que será que, apesar dos índices de criminalidade terem despencado [...] dois terços dos americanos acham que subiram? [...] O número de usuários de drogas havia caído pela metade em relação à década anterior [...] então por que a maioria dos adultos considera o uso de drogas como o maior perigo para a juventude americana. Por que será que nove entre dez acreditam que o problema relativo às drogas está fora de controle, e apenas um em cada seis acredita que o país está fazendo progressos? (GLASSNER, 2003, p.19)
Observando esse trecho de Glassner sob a ótica de Doriam Borges, é fácil entender por que existem medos infundados. Por outro lado, não é suficiente para explicar de onde surgem esses medos, e o porquê desses medos específicos e não outros. O autor também é claro em definir quem é o principal multiplicador desse pânico em torno da violência urbana. Para ele: Toda análise da cultura do medo que ignora a ação da imprensa ficaria evidentemente incompleta. Entre as diversas instituições com mais culpa para criar e sustentar o pânico, a imprensa ocupa indiscutivelmente um dos primeiros lugares. (GLASSNER, 2003, p.33)
Os apontamentos do autor parecem se adequar ao contexto brasileiro, tanto para pensarmos o medo da violência de forma ampla, mas também em relação à droga crack em específico. Especialmente quando essa realidade é retratada pela mídia e em campanhas contra o uso do crack4. Para isso, neste artigo, analisa-se principalmente o material, disponível na internet, produzido para uma campanha específica contra o uso do crack, para verificar se existe esse mesmo descompasso entre realidade e o que é representado em relação ao crack. O terceiro autor que se apresenta como chave para a presente análise é Howard Becker. Na sua famosa obra Outsiders o sociólogo norte-americano elabora uma definição de desvio que se distingue das definições estatísticas e médicas (BECKER, 2008, p. 18). Na visão do autor o que produz o desvio é a imposição de regras por determinado grupo, que ao serem violadas podem vir a rotular determinado indivíduo enquanto outsider (ibid., pp.21-22). É percebendo o desvio como uma relação social que Becker faz sua crítica àqueles que tornam o desvio em uma coisa a ser estudada em si (ibid., p.17) sendo assim, nas palavras do autor: Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como 4 Em alguns momentos podem estar associadas a mídia, impressa e televisiva, com campanhas contra o uso do crack. Como é o caso do Grupo RBS e da campanha Crack Nem Pensar.
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“certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider. Mas a pessoa assim rotulada pode ter uma opinião diferente sobre a questão. Pode não aceitar a regra pela qual está sendo julgada e pode não encarar aqueles que a julgam competentes ou legitimamente autorizados a fazê-lo. (ibid., p.15)
Essa definição se torna bastante útil para problematizar casos de usuários de drogas, pois além de perceber que o outsider pode ser aquele que viola uma lei, esse rótulo também se encaixa para aqueles que quebram tradições, ou que possuem comportamento considerado inadequado a partir de um padrão social normalizador, como homossexuais (ibid., pp.16-17). De forma sucinta, ainda é possível pontuar outros elementos da obra do sociólogo. Primeiramente o conceito de carreira (ibid., p.35). É a partir das entrevistas feitas por Becker que o autor chega à conclusão que um usuário de droga não pode ser considerado como tal apenas por ter usado a substância uma vez, para isso o mesmo precisa passar por uma série de passos até chegar à situação de usuário, essa é a carreira desviante para Becker. Em segundo lugar se destaca os tipos de comportamento desviantes (ibid., p.31), principalmente nas situações em que o sujeito rotulado como outsider é falsamente acusado ou se trata de um desviante puro. Por último é importante observar a distinções que Becker faz uso entre traços de status principais e auxiliares (ibid., p.42) e status principal e subordinado (ibid., p.43).
O MONSTRO
Ler Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, descrever os relatos dos viajantes europeus do século XV sobre as mais diversas criaturas, tais como cinocéfalos, blêmias, ciápodes, pode nos fazer rir e pensar o quão fantástico era o pensamento e o mundo para aqueles homens. Mas talvez o que seja mais fantástico é que aqueles seres, inimagináveis para um morador de alguma metrópole brasileira do século XXI, saíram de cena para dar lugar para outros seres, nem tão fantásticos em sua fisiologia como aqueles, mas muito mais cotidianos e assustadores para esse mesmo brasileiro. Embora passados alguns séculos desde aquelas viagens, as sociedades ocidentais seguem tendo seus monstros, com feições e características diferentes, 110
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mas ainda presentes. O impressionante dessa vez é que nossos monstros fazem menos parte do desconhecido e mais parte da realidade da cidade moderna. O exemplo a seguir será bastante ilustrativo para observar esse fenômeno. Trata-se de um vídeo, em formato de teaser, reproduzido em algumas salas de cinema da rede Cinemark do Brasil5. A primeira cena, uma âncora de telejornal dizendo “O caos se espalhou. Eles já são mais de dois milhões no Brasil”, em sequência uma nova imagem dando o nome da produção cinematográfica “Zombie – The Origin”. Aparentemente “mais do mesmo”, outro filme sobre zumbis. A surpresa vai surgir no vídeo completo, disponível no site youtube, quando uma voz feminina pergunta “você quer saber por que eu estou assim?” a resposta para a dúvida de quem assiste se dá na sequência “o crack deixa você focado só nele [...] milhões de pessoas estão fora de controle, por causa do crack”. O que em princípio parecia ser mais um trailer de filme de terror era, na verdade, uma campanha contra o uso do crack. O vídeo é composto por diversos atores maquiados e vestidos a exemplo de filmes de zumbi, ou seja, pele pálida, roupas rasgadas, machucados de todos os tipos no corpo. São diversas cenas que se intercalam entre depoimentos interpretados pelos atores6 e os “zumbis” em sua realidade (rastejando-se, ocupando locais escuros e fazendo uso de crack) O que deveria ser uma analogia entre os possíveis danos, ao usuário e à sociedade, causados pelo uso do crack e os hábitos ficcionais dos zumbis, convertese em uma representação exagerada, dado que o vídeo, segundo a descrição apresentada no site youtube, trata-se de: Uma campanha educativa que traz inúmeras informações sobre o crack, desde as táticas utilizadas pelos traficantes para aliciar usuários de outras drogas ao crack, até os efeitos dessa droga e as consequências que causa na vida das pessoas e de seus familiares.
Essa breve descrição nos dá o panorama desse monstro moderno. Levando em consideração o início do primeiro depoimento “milhões de pessoas estão fora de controle, por causa do crack”, a droga parece criar vida e ter capacidade de agir por conta própria, podendo manipular pessoas. O que faz surgir o questionamento:
5 Segundo postagem feita no site Não Salvo, o qual consta como parceiro do projeto, o vídeo foi exibido inicialmente como sendo um trailer comum da primeira grande produção cinematográfica brasileira com a temática zumbi. Fonte <http://www.naosalvo.com.br/zombie-a-origem-a-prova-deque-a-epidemia-zumbi-ja-esta-acontecendo/#> Acesso em 27/06/2014 8:46h. 6 Ao final do vídeo é alertado que se trata de depoimentos verídicos, embora eu não tenha conseguido encontrar a origem desses depoimentos.
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quem é o verdadeiro monstro, o usuário ou a substância? Segundo Mary Del Priore (2000) a característica do monstro não é de nos mostrar o que não somos, mas sim o que poderíamos ser (DEL PRIORE, 2000, p.13), dessa forma o monstro é o usuário de crack, sem valores morais e alienado de suas vontades pelo uso do crack. Esse por sua vez guarda uma dimensão moral em relação ao seu uso, semelhante às narrativas ligadas aos monstros a partir do século XIV (ibid., p.36), quase como o fruto proibido do Éden, que ao ser consumido uma vez abre a caixa de Pandora. Evidentemente a abordagem da campanha não guarda muita semelhança com as conclusões de Howard Becker (2009), que faz uso do conceito de carreira desviante. Nessa perspectiva, o que Becker observa é que a sociedade impõe diversas sanções para o sujeito desviante. Para efetivamente se tornar o usuário é necessário superar diversas barreiras, tais como ter acesso à droga, comprar a própria droga, evitar ou ignorar possíveis complicações causadas pelo status de usuário de droga. Se o sujeito desviante não conseguir superar essas barreiras, inevitavelmente, será no máximo um usuário esporádico, muito diferente do apresentado pela campanha. “Tratar uma pessoa como se ela fosse em geral, e não em particular, desviante produz uma profecia auto-realizadora” (BECKER, 2009, p.44). É assim que aparecem todas as personagens de Zombie – A Origem, e que atuam o que Becker chama de traços de status principais e auxiliares. Nessa situação o traço de status principal, usuário de crack, traz consigo outras conotações negativas, traços de status auxiliares, as quais são apresentadas no vídeo como sendo, principalmente, imoralidade (gastar o dinheiro do lanche da filha e prostituição) e comportamento violento. Considerando que não é dito no vídeo que os depoimentos interpretados são casos individuais, é possível inferir que se trata de uma generalização do usuário de crack, enquanto viciado, ladrão, prostituto e assassino em potencial. Nessa situação é possível perceber que existe uma rotulação enquanto outsider em que o usuário pode ser falsamente acusado, neste caso como ladrão e prostituto (ibid., p.32), enquanto, de acordo com a terminologia de Becker, só podemos ter a certeza de que o usuário pode ser considerado desviante puro7 enquanto consumidor de crack. 7 Howard Becker distingue quatro tipos de comportamento desviante de acordo com (não) ser rotulado enquanto sujeito desviante e (não) ser infrator de alguma regra social. Dessa forma,
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Isso se dá em decorrência, como mencionado acima, de que a partir de traços de status principal – usuário de crack – é possível deduzir traços de status auxiliares.
PRODUZINDO MEDO
Para tornar mais claro como se dá a representação do usuário de crack no vídeo Zombie – A Origem, farei uso de imagens extraídas da página da produção, disponíveis na rede social virtual facebook. Foram selecionadas quatro imagens retiradas do vídeo as quais consistem em screenshots em conjunto com falas dos personagens e frases de efeito que sintetizam a ideia que a campanha pretende veicular. Abaixo as imagens serão analisadas sob a ótica teórica debatida neste artigo. FIGURAS 1 e 2
FONTE: Zombie – A Origem Na primeira imagem já podemos observar a tônica da campanha, fica claro qual é a representação atribuída ao usuário de crack. Vista através da pele pálida, das moléstias sofridas pelo corpo e das marcas de sangue nas mãos e boca, tudo isso é decorrente das “pedrinhas de crack”. É uma mistura entre o assustador e o alarmismo. Se na primeira imagem fica claro o objetivo da campanha de atribuir características de um zumbi ao usuário de crack, nessa segunda emergem dois “desviante puro” (BECKER, 2009, p.31) significa um sujeito que cometeu um desvio e é percebido dessa forma. Já indivíduos que são rotulados enquanto desviantes, ainda que não tenham cometido nenhum desvio são “falsamente acusados” (ibid., p.32) de acordo com a classificação de Becker.
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novos elementos. O primeiro, ainda relacionado com a monstruosidade, está na frase “qualquer um de nós pode se tornar um zumbi”, onde se passa a ideia de que podemos facilmente perder nossa humanidade utilizando a substância proibida, e dessa formar nos tornar um deles. O segundo elemento está enunciado na frase “eu já tentei largar, mas não consegui”. Elemento recorrente ao longo do vídeo, o usuário de crack transforma-se em monstro, a exemplo de Dr. Jekyll que, virando Mr. Hyde, perde a capacidade de agir baseado em valores ou na razão. Perde sua vontade, em detrimento da
substância crack,
que
como já mencionado
anteriormente, se transforma quase em uma entidade consciente.
FIGURA 3
FONTE: Zombie – A Origem A terceira imagem nos traz mais um componente da campanha que remete à temática dos monstros. Ao dizer que dentro dos usuários de crack há uma pessoa, fica bastante claro a visão dos idealizadores de que aquele que faz uso da substância perde sua humanidade. Mas o que mais se destaca é o tom amedrontador que vai se repetir na quarta imagem. Ao falar “existem dois milhões de usuários de crack no Brasil” se percebe a intenção de atrair a atenção do observador através do medo, fazendo com que o mesmo fique preocupado em relação à situação. Esse tom amedrontador se apresenta na quarta e última imagem quando a separação entre realidade e ficção parece desaparecer. O zumbi é real; o usuário de crack é o zumbi. A mensagem é clara e objetiva: assustar.
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FIGURA 4
FONTE: Zombie – A Origem CONCLUSÃO
Ao tentar fazer uso de uma metáfora, entre zumbis e usuários de crack, para conscientizar jovens, a proposta se distorce a partir do momento em que não se é capaz de distinguir o que se coloca como real ou metafórico. A metáfora se materializa e o monstro deixa de ser imaginado para ser real. Assim se constitui esse monstro urbano, real, imoral, violento. Para além da representação monstruosa do usuário de crack podemos dizer que o mesmo é rotulado enquanto outsider de diversas formas. Como descrito acima, o usuário de crack não só é visto como outsider, enquanto desviante puro pelo uso da droga, mas também outsider ao trazer junto consigo diversos traços de status auxiliares negativos, que faz com que os usuários de crack sejam vistos como, em geral, desviantes, ou seja, ladrão, assassino, prostituto. Essas representações, expressas no vídeo Zombie – A Origem, possibilitam uma percepção alarmista da realidade em relação ao medo, exatamente como Glassner problematiza. Para além dos reais danos potenciais causados pelo uso do crack, como vício e deterioração da saúde, não é difícil perceber que na produção se faz uso do medo com o objetivo de afastar pessoas da droga. Ao dar ênfase ao pânico em detrimento dos fatos conhecidos, o resultado é o descompasso entre a realidade e o mostrado através da campanha. Isso traz consequências diretas na ação das pessoas e das políticas públicas (GLASSNER, 2003) quando tais
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representações alarmistas têm grande abrangência, como essa campanha. Para finalizar este trabalho se pontua que o vídeo Zombie – A Origem acaba por retratar a realidade de forma exagerada. O mesmo produz a crença em uma cidade perigosa, em que as ruas estão tomadas por usuários de crack. Crença que não precisa estar de acordo com a realidade para produzir medo (BORGES, 2011), mas que acaba por interferir na vida urbana. O objetivo de informar os jovens, nesse caso, pode tomar rumos negativos, como demonstra Glassner, em situações como essa se estimular a produção de políticas públicas desnecessárias, ou erradas. O que devemos fazer é encarar o problema real, sem distorção ou mistificação; precisa-se devolver a humanidade aos usuários de crack.
REFERÊNCIAS BECKER, H. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BORGES, D. O medo do crime na cidade do Rio de Janeiro: uma análise sob a perspectiva das crenças de perigo. Curitiba: Appris, 2011. BRANDT, Ricardo. Estudo mapeia uso de crack nos 645 municípios de SP. Exame, São Paulo, 02 jun. 2014. Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/estudo-mapeia-uso-de-crack-nos-645municipios-de-sp Acesso em: 27 jun. 2014. DEL PRIORE, M. Esquecidos por Deus: monstros no mundo Europeu e IberoAmericano (Séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GLASSNER, B. Cultura do Medo: Por que tememos cada vez mais o que deveríamos temer cada vez menos. Brasília: Editora Francis, 2003. ZOMBIE – A ORIGEM. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/zombieaorigem?fref=ts Acesso em: 27 jun. 2014. ZOMBIE – A ORIGEM. Youtube, 29 nov. 2013. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=zaOB7hFcGkU#t=281 Acesso em: 27 jun. 2014. "ZOMBIE, A ORIGEM" a prova de que a epidemia zumbi já está acontecendo. Não Salvo, 29 de nov. 2013. Disponível em: http://www.naosalvo.com.br/zombie-aorigem-a-prova-de-que-a-epidemia-zumbi-ja-esta-acontecendo/# Acesso em: 27 jun. 2014.
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NOVOS SUJEITOS, NOVAS POLÍTICAS E ANTIGAS QUESTÕES: AS ALIANÇAS FEMINISTAS TRANSNACIONAIS Thays Almeida Monticelli1
O livro “Le Sexe de la Mondialisation: Genre, Classe, Race et Nouvelle Division du Travail”2, publicado em 2010 e organizado pelas autoras Jules Falquet, Helena Hirata, Danièle Kergoat, Brahim Labari, Nicky le Freuve e Fatou Sow é uma coletânea que reúne dezesseis artigos acerca da realidade que envolve economias mundializadas, mobilidades e fluxos migratórios internacionais, violências e resistências em relação às novas formas de trabalho e de divisão sexual do trabalho que vem se estabelecendo ao redor do mundo. Essa obra se torna muito importante ao apresentar novas e antigas formas de desigualdades que se colocam aos trabalhos que contém majoritariamente mão-de-obra feminina, e que se entrecruzam com categorias como raça, classe, nacionalidade e cidadania, o que nos permite olhar para uma crítica e uma desconstrução sobre o que significa trabalho e emprego, além de uma intensa reflexão sobre as novas formas de articulações políticas dos movimentos sociais. Sobre essa última, dedico esta resenha em expor o capítulo elaborado por Paola
Bacchetta,
denominado
“Réflexions
sur
les
Alliances
Féministes
Transnationales”3, em que a autora faz uma análise das conexões políticas dos movimentos sociais, como feministas, LGBTs e queer, localizados em determinados contextos desiguais e de opressão. A autora tem por objetivo compreender as complexidades, questões, obstáculos, mas também as possibilidades e aberturas que implicam a formação das alianças transnacionais “potenciais” (potentiatrices). Ela utiliza três bases analíticas para cumprir com seus objetivos: os diferentes resultados de observação participante e etnografia que realizou em diversos grupos feministas, lésbicos e queer na Índia, na França, nos Estados Unidos e na Itália; as publicações dos grupos em questão; e as historiografias militantes e acadêmicas 1 É doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFPR com bolsa financiada pela CAPES, Mestra em Sociologia pela UFPR e graduada em Ciências Sociais pela UFJF. É integrante do Núcleo de Estudos de Gênero (www.generos.ufpr.br) e do GETS (Grupo de Estudos Trabalho e Sociedade). E-mail: tamonticelli@gmail.com 2 O Sexo da Mundialização: Gênero, Classe, Raça e Nova Divisão do Trabalho. (tradução livre). 3 Reflexões Sobre as Alianças Feministas Transnacionais. (tradução livre)
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desses mesmos grupos. É importante ressaltar a diferenciação que a autora faz logo no início de seu capítulo sobre as alianças feministas transnacionais das alianças internacionais e globais, pois muitas vezes relações de poder desiguais se estabelecem nos diversos laços políticos firmados, como, por exemplo, o termo “internacional” que pode criar um exibicionismo nacional-normativo, em que alguns sujeitos dominantes acabam representado todas as feministas de seu país. Nesse mesmo contexto, o termo “global” implica em pressupostos políticos hierarquizados que atribuem o ônus da diferença para as mulheres de “Terceiro Mundo” e “esquecem” dos processos e relatos de explorações capitalistas e de racialização. Diferentemente, as alianças feministas transnacionais falam de conexões concretas no e através de balanças locais, regionais, nacionais ou entre nações em uma gama de arranjos políticos possíveis. Essas alianças resgatam a história e reportam-se aos poderem de uma forma contextualizada, evidenciado sujeitos em processos que não se afirmam como os únicos representantes do feminismo, mas como verdadeiros fragmentos e produtos das histórias, contextos e lugares mais variados. É justamente essa dinamicidade política dos sujeitos que possibilita a construção de alianças feministas transnacionais, pois a intersubjetividade política compartilhada faz o elo para a construção de um movimento fortalecido, que impulsiona o desejo de aproximação e define a capacidade de agir de tais alianças. Bacchetta procura conceitualizar esses poderes por meio da noção de intersseccionalidade, como configurações multidimensionais nos quais o gênero, a raça, a sexualidade, a classe social, o pós-colonial, operam inseparavelmente, tanto nos registros de discursos como na sua materialidade. Assim, a autora utiliza da teoria foucaultiana para compreender esse sujeito-efeito de múltiplas relações de poder inseparáveis, que não são imediatamente visíveis, e que estão em permanentes processos de subjetivações. Esses aspectos são percebidos em quatro tipos de alianças formadas que a autora expõe, analisando suas composições, ações e limites4. A primeira delas é chamada “Alianças Transnacionais Intra-Locais Subalternas”5, que reúne sujeitos
4 Bacchetta também apresenta as Alianças Dominantes, que se formam em uma dimensão totalizante, produzindo ou reforçando, geralmente involuntariamente, a exclusão da subalternidade e do sujeito subalterno. Como exemplo, a autora visibiliza: Alianças Intradominantes baseadas na Normatividade Nacional, Alianças de Resgate e Alianças Feministas Internacionais. 5 Alliaces Transnationales Intra-Locales Subalternes. (p.267)
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pertencentes a situações de subalternidade, que mesmo em posicionamentos políticos distintos se unem e se reforçam. Para Bacchetta o Groupe du 6 Novembre é um exemplo claro desse tipo de aliança - constituído em 1999 em Paris, reuniu as questões levantadas por lésbicas sobre o colonialismo, escravidão e imigração póscolonial. O Groupe du 6 Novembre era formado por lésbicas da África-subsariana, as Afro-caribenhas, as Magrebinas e as mulheres de origem racial mestiças. Nos discursos, nas práticas e na produção6 do grupo havia uma forte desidentificação com a normatividade-nacional e uma resistência aos exercícios políticos do colonialismo francês que eram mantidos pelos acordos bilaterais da França com as ex-colônias. A complexidade do grupo não estava apenas nos textos elaborados por elas contra a exclusão (nós estamos aqui) e contra uma idéia de identificação estereotipada (nós não somos o que vocês imaginam), mas também era o espaço para a descolonização cognitiva e afetiva, que desconstruía progressivamente os efeitos pessoais e coletivos da violência cognitiva e material por meio de discussões analíticas, tornando-se o lugar para a produção de subjetividades em processos e de novas ações políticas. Esse fenômeno é igualmente visto nas “Alianças Transposicionais IntraLocais”7, que caracteriza um tipo de formação política desenvolvida por sujeitos que pertencem ao mesmo lugar, mas com posicionamentos muito diferentes e que se unem para construir um coletivo que reforça particularmente os mais vulneráveis. Um exemplo desse mecanismo se localiza em Paris por meio do Grupe Lesbien Contre la Discrimination et Le Racisme (LDR). O principal objetivo do LDR era combater práticas racistas em casas lésbicas da França, cristalizando-se mesmo frente a um incidente racializado do Festival de Filmes Lésbicos de Paris, quando seus membros iniciaram discussões mais amplas sobre o racismo lésbico francofrancês. Essa aliança transposicional concretizada pelos aspectos da raça, classe, identidades e desindentidades de gênero, crenças, sexualidade e nação só se tornou possível através de uma abertura política subjetiva – as lésbicas francofrancesas começaram a se questionar profundamente sobre elas mesmas e sobre os setores sociais dos quais elas fazem parte. O LDR possibilitou o espaço de uma resubjetivação dos sujeitos, ao colocar em diálogo essas questões múltiplas, ao 6 O Grupo du 6 de Novembre publicou um livro e um número especial do jornal Bint El Nas, criaram um site, fizeram exposições de arte, falavam em rádios alternativas de imigrantes, participaram da Conferência da ONU sobre racismo. 7 Alliances Transpositionnelles Intra-Locales.
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desenvolver uma poética afetiva de reconhecimento mútuo e concretizar práticas e atividades que permitem a formação de uma intersubjetividade política. Já o terceiro exemplo exposto por Paola Bacchetta diz respeito as “Alianças Translocais Transnacionais”8, que se caracteriza pela junção de diferentes sujeitos ao redor do mundo, mas que se conectam ideologicamente e politicamente em relação a uma causa comum. A autora explora mais uma vez o Groupe du 6 Novembre, pois as produções artísticas criadas pelo grupo, assim como o discurso feito por elas na Conferência da ONU em 2001 sobre racismo conseguiu estimular potenciais subjetividades políticas em outros sujeitos. E por último, a autora nos mostra a complexidade das “Alianças Transnacionais Transposicionais”9 ao unir diferentes sujeitos de diferentes lugares e com posicionamentos distintos, é o caso de quando grupos que se estabelecem em espaços dominantes conseguem apoiar causas políticas de grupos formados e estabelecidos nas margens, sem intervir com um discurso colonizador ou práticas etnocêntricas. Para expor essa aliança, Bacchetta traz o caso da violência religiosa na Índia em 2002, quando programas anti-mulçumanos obtiveram um lugar político considerável nos Estados do Gujarat, que eram regidos por grupos nacionalistas Hindus. Na Capital Ahmedabad, a violência durou três dias, causando 762 mortos e mais de 98 mil refugiados mulçumanos, além de práticas de violências sexuais públicas. Frente a isso, os movimentos feministas indianos e as organizações de esquerda se mobilizaram para realizar um trabalho humanitário; as feministas indianas pediram a solidariedade de feministas de fora da Índia, incluindo as ocidentais, para serem observadoras e testemunhas das condições e violências que aconteciam nos campos de refugiados. E as feministas ocidentais cumpriram e forneceram a solidariedade pedida e definida pelas indianas, sem uma intervenção política colonizadora. O capítulo escrito por Bacchetta nos possibilita pensar e refletir sobre as diversas formas de concretizações políticas por meio das mais variadas conexões subjetivas dos sujeitos, além de nos apresentar uma análise que não pensa através do esquema binário “dominação versus subordinação”, não essencializando e homogeinizando cada um desses termos. A autora nos mostra as complexidades do poder e das alianças políticas, da formação dos sujeitos e de suas capacidades de 8 Alliances Translocaes Transnationales 9 Alliances Transnationales Transposicionales
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agir, no reconhecimento das identidades e desidentidades de gênero no quadro de uma mundialização desigual. Assim, podemos trazer suas reflexões analíticas para as alianças políticas concretizadas na América Latina, como por exemplo, a Conlactraho (Confederación Latioamericana y del Caribe de Trabajadoras del Hojar) criado em 1988 por representantes dos grupos políticos de trabalhadoras domésticas remuneradas de 13 países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala,
México,
Paraguai,
Peru,
República
Dominicana
e
Uruguai.
(GOLDSMITH,2010). A força política desse movimento representa e une as reivindicações dos movimentos feministas e do movimento negro, constituindo alianças políticas que fortalecem as pautas de mudanças em seus países. Paola Baccheta coloca como um grande ponto para a formação política transnacional a reflexão do próprio sujeito em relação a sua grande de inteligibilidade, para desconstruir o lugar onde estamos situados e reconhecer os particularismos. As pessoas que se encontram em posições dominantes seriam preparadas para abandonar essas noções de poder, e para as pessoas que se encontram em posições subalternas é preciso livrar-se da colonização cognitiva e de uma identificação com os discursos dominantes, sem nunca perdermos as similitudes e diferenças históricas, contextuais e as relações materiais de poder que são parte integrante da formação dos sujeitos. Assim, seria possível começar o reconhecimento de alguém como sujeito e tentar construir modalidades de intersubjetividades políticas, formando então alianças feministas transnacionais verdadeiramente satisfatórias. RESENHA DE: BACCHETTA, Paola. Réflexions sur les Alliances Féministes Transnationales. In. : FALQUES, Jules; HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle, et al. (Dir.).Le sexe de la mondialisation :genre, classe, race et nouvelle division du travail. Paris : Presses de Sciense Po, 2010. p. 259-273. REFERÊNCIAS: GOLDSMITH, Mary. La experience de Conlactraho como organización internacional de trabajadores y trabajadoras domésticas. In: GOLSMITH, Mary et al. Hacia um Fortalecimeinto de Derechos Laborales em el Trabajo del Hogar: alunas experiências de América Latina. Montevideo: Friederich Ebert Stiftung, 2010. p. 5-24.
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