A planilha aberta das redações Jornalistas usam formulário anônimo que circulava pela web para falar sobre a vivência em algumas das redações brasileiras Por Sofia Lungui (2º sem.) Durante todo o mês de agosto de 2016, um formulário de autoria anônima circulou pela web com o objetivo de servir como divã para jornalistas. Nele, os profissionais de imprensa poderiam responder a uma pergunta direta, “como é trabalhar na redação de…?”, com a identidade protegida. Ao todo, antes de sair do ar, a planilha eletrônica que era atualizada com as respostas recolheu 279 relatos de participantes de 89 diferentes veículos de comunicação no Brasil. O Editorial J mapeou as considerações e buscou entender quais foram as principais reclamações, para compreender o clima dentro das redações, que pode ser ilustrado por uma das respostas ao questionário: “Há uma cultura de assédio moral constante, com chefes ‘autorizados’ a gritar com chefiados. Falta uma estrutura de crescimento profissional e de feedback. Alguns editores são notoriamente despreparados para o cargo, com opiniões e constantes declarações preconceituosas sobre questões centrais de suas editorias”. O assédio moral liderou a percepção negativa dos jornalistas sobre o ambiente de trabalho. R7, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Editora Abril, UOL e Editora Globo foram os mais mencionados, no caso do formulário montado para capturar o pensamento dos jornalistas. Além do documentos para coletar o relato anônimo da vivência nas redações, outro arquivo circulou também durante o mês de agosto para monitorar a percepção dos profissionais das agências de publicidade. Mais adiante, o escritor Caio Andrade revelou que criou o questionário sobre as agências para ajudar um amigo, porém, o dos jornalistas segue sem autor identificado.
Esta reportagem do Editorial J foi produzida com base na análise, realizada ao longo do 2º semestre, de planilha do Google Drive com as respostas sobre as redações brasileiras. Cada um dos relatos foi analisado e classificado em categorias pré-definidas que englobavam trato com os empregados, remuneração, relações entre os empregados, teto de horas, linha editorial, conformidade com as leis trabalhistas. As 279 respostas foram desmembradas em 642 críticas (negativas e positivas), pelo fato de, na maior parte dos casos, haver mais de uma
crítica ou queixa na mesma resposta. As categorias que mais apareceram foram: assédio moral (80), desconformidade com os direitos trabalhistas (70), gestão ultrapassada (61), falta de conhecimento (57), clima burocrático (54), salários baixos (44). No total, 84,89% dos relatos foram negativos, alguns até mesmo absurdos, envolvendo situações como o assédio sexual.
Em síntese, as queixas corroboram a ideia da precariedade da profissão jornalística. Apesar disso, não se pode dizer que os dados são representativos da categoria no Brasil, pelo fato de serem casos isolados e aleatórios, e também por não representarem uma pesquisa específica sobre o tema. É importante ressaltar que as informações são majoritariamente referentes às
plataformas digital e impressa dos veículos privados, deixando de lado as emissoras de rádio e TV e veículos públicos.
É possível dizer que os dados coincidem, em parte, com os resultados da pesquisa Perfil do jornalista brasileiro, realizada em 2012 por Alexandre Bergamo, Jacques Mick e Samuel Lima. Segundo o coordenador do estudo, Jacques Mick, que é jornalista e professor do
Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a maior conclusão do levantamento foi observar os obstáculos da carreira do jornalista no Brasil. “Os indicadores de precariedade combinam-se uns com os outros. Para o sujeito se tornar dominante dentro do campo, ele precisa acatar condições de trabalho. Ou seja, ao longo de sua vida profissional, ele precisa trabalhar mais de oito horas por dia, em três ou quatro empregos, muitas vezes”, explicou. Segundo Mick, essa é, geralmente, a única maneira do jornalista alcançar remuneração e reputação elevadas, conquistando posição dominante na área. Para o pesquisador, práticas como o assédio moral podem acarretar até mesmo em problemas de saúde física ou mental, muitas vezes. “O assédio moral pode estar relacionado à precarização, uma vez que o problema está ligado ao cumprimento de metas. A lógica de metas é típica do capitalismo contemporâneo. O assédio está relacionado a um aspecto de longa duração da nossa experiência escravocrata, que está presente em diversas funções intermediárias do trabalho no Brasil”, afirmou o professor. A nuvem de palavras abaixo apresenta, dentro das categorias negativas, as que mais apareceram nos relatos sobre a Editora Globo, especialmente o assédio moral.
O assédio moral e o clima burocrático foram as queixas mais constatadas sobre a Editora .
O assédio sexual, por outro lado, é resultado da sociedade patriarcal em que vivemos, observou Mick. Entre as mulheres que responderam o formulário, 23 afirmaram ter sofrido assédio sexual dentro do ambiente de trabalho, por parte de colegas ou de superiores. “Passei pelo assédio sexual constante. Sentir-se despida ao passar por um corredor ou se sentir devorada ao conversar com gerentes, diretores, são situações normais. Acostume-se com o assédio da maneira mais doentia em que ele ocorre, devagar. Eles fazem grupos no Facebook e no Whatsapp, expõem nossos rostos e nomes, todo mundo se sente confortável para te olhar como se você fosse um pedaço de carne”, relatou uma das respondentes que trabalhava na Editora Abril. Além disso, tanto homens como mulheres relataram que, em muitos veículos, as mulheres recebem muito menos do que os homens, além de receberem cargos inferiores a eles, muitas vezes.
“O assédio está relacionado a um aspecto de longa duração da nossa experiência escravocrata, que está presente em diversas funções intermediárias do trabalho no Brasil”
No 1º semestre deste ano, foi realizada a pesquisa Desigualdade de Gênero no Jornalismo, pelo Coletivo de Mulheres Jornalistas do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF). Conforme o levantamento, 70,7% das entrevistadas responderam que acreditam que já foram designadas para uma pauta pelo simples fato de serem do sexo feminino; 77,9% delas já sofreram assédio moral por parte da chefia ou de colegas de trabalho. Práticas como estas originaram o movimento Jornalistas Contra o Assédio, fundado na metade deste ano por jornalistas brasileiras que sofreram assédio e reivindicam igualdade entre gêneros na profissão.
Falta de conhecimento e assédio moral ganharam destaque entre as reclamações dos jornalistas do R7.
Em alguns dos jornais que receberam críticas no formulário eletrônico, constatou-se a presença de um padrão, ou seja, apareceram as mesmas etiquetas em diferentes relatos sobre o mesmo veículo. No caso da Editora Globo, que obteve dez respostas, em quase todas foi mencionado que há conformidade com os direitos trabalhistas, pelo fato de pagar em dia, por exemplo, embora muitos dos participantes tenham afirmado que o assédio moral é recorrente. Quanto ao Estadão, nos 34 relatos, as reclamações sobre o desrespeito a direitos trabalhistas foram unânimes. Os problemas de gênero também foram criticados no jornal, especialmente o machismo e a falta de equiparação de salários de homens e mulheres.
A desconformidade com os direitos trabalhistas foi relatada por todos os jornalistas que criticaram o Estadão.
Jornalistas da Folha de S. Paulo também mencionaram diversas vezes a desconformidade com os direitos trabalhistas.
O problema que mais chama a atenção no Estadão e também da Editora Abril (18 relatos), porém, é a gestão ultrapassada, que se manifesta de algumas maneiras: falta de perspectiva de crescimento profissional, de planejamento e de profundidade no conteúdo digital, editorias digitais ignoradas, setor online engessado e distanciamento entre impresso e digital são algumas das queixas. Há diferentes explicações para o aparente fenômeno, que pode ou não ser confirmado.
A gestão ultrapassada e o clima burocrático apareceram em muitas das queixas de jornalistas da Editora Abril.
Para Jacques Mick, a crise que o jornalismo vive está longe de acabar. “As empresas não sabem como reagir à crise, sobretudo as que vieram da mídia impressa. Houve uma queda de receitas, mas houve também deterioração de credibilidade dramática no último ciclo, pois parte das mídias resolveu abraçar um posicionamento político, ou seja, afastar-se de uma cobertura equilibrada”, opinou. “As pessoas estão se informando com o smartphone. Há uma defasagem tecnológica brutal de um lado e de outro uma mudança no perfil de leitura do público. O jornalismo é um discurso que todo mundo considera fundamental mas que o leitor vai decidir não ler”, disse. Já o diretor executivo do Departamento de Comunicação do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), Pedro Sellos, vai por um caminho diferente, com perspectiva positiva sobre o futuro do jornalismo. De acordo com Sellos, o momento atual é muito
oportuno para a produção jornalística, que é cada vez mais fomentada. No entanto, a gestão dos veículos de comunicação vem se mostrando ultrapassada, não somente quanto aos recursos digitais, como também na gestão de pessoas. “Nunca se leu tanto, nunca se consumiu tanta informação. Mas o jornalista tem uma formação muito orientada para a produção de conteúdo informativo. Isso é bom por um lado; por outro é ruim, pois ele entra no mercado com visões corporativa e do mundo empresarial muito ingênuas e abstratas”, analisou.
O problema está especialmente no fato de que as empresas de mídia continuam funcionando por meio do modelo antigo, embora utilizem uma tecnologia nova, apontou Sellos. “As empresas de mídia possuem modelo tradicional, pouco apoiadas em tecnologia, empregando muitas pessoas. Durante muitos anos, estas empresas foram líderes das regiões em que trabalhavam. Isso gera uma curva de lucro muito acima do PIB [Produto Interno Bruto] local. Hoje, são as mais fragilizadas, no momento em que surge uma tecnologia disruptiva, oferecendo novas formas de serviço em cima desse mesmo setor”, informou. O professor usou como exemplo os táxis, que tiveram sua hegemonia balançada após o surgimento da empresa Uber, que possui preços mais acessíveis e uma nova tecnologia de transporte individual. O mesmo serve para as empresas de jornalismo. Segundo ele, os “Ubers” do jornalismo são as iniciativas independentes, que ao contrário das empresas tradicionais, funcionam com base em performance e produtividade, em vez de relacionamentos. “É possível ver, desde o início dos projetos, uma dose de empreendedorismo digital muito forte. Durante a execução deste projeto, há uma maneira diferente de trabalhar. As tecnologias disruptivas trazem uma nova cultura junto com esta tecnologia”, concluiu. Sem benefícios ou plano de carreira, pagamentos atrasados, exploração de estagiários, condições de trabalho precárias e a falta de benefícios foram algumas das denúncias feitas pelos jornalistas, sobretudo do Estadão e da UOL (14 relatos). Em outros veículos, entretanto, os problemas também apareceram, não se limitando às empresas maiores e mais tradicionais. “Há diversas pessoas fazendo o mesmo trabalho e ganhando quantias muito diferentes. Na época em que trabalhei lá eram todos PJ [pessoa jurídica], o que é péssimo para quem trabalha cinco vezes por semana em um horário determinado. Além disso, usam os
estagiários como mão de obra barata, fazendo-os algumas vezes trabalhar até mesmo em feriados. Um estagiário teve que trabalhar vários dias, durante oito horas, sem receber nenhuma bonificação”, relatou um funcionário do Catraca Livre, por exemplo.
Clima burocrático é citado mais vezes por respondentes do UOL.
José Carlos Torves, diretor-executivo suplente da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), acredita que estes problemas se devem ao comportamento da sociedade brasileira no trato com os subordinados. “A própria repercussão [destes problemas] na sociedade põe a responsabilidade sobre o jornalista, quando deveria ser do editor-chefe ou do dono dos veículos. Isso tudo é uma consequência dessa má qualidade que temos na redações. Isso se torna uma forma de assédio que é feita diariamente”, classificou.