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Abre alas para os chorões
Com nascimento da primeira orquestra de choro no Rio Grande do Sul, cena musical floresce no Estado e passa por nova etapa Texto e fotos SOFIA LUNGUI
N Júlia Alves é instrumentista desde os 10 anos de idade. A música popular sempre foi sua maior paixão, além da flauta transversal.
a noite de 1º de maio, uma quarta-feira de celebração musical, o Theatro São Pedro está lotado. Plateia, galerias, camarotes - todos os 650 lugares que o salão comporta estão ocupados. Em meio ao público, de repente, no encerramento do espetáculo, começam a aparecer instrumentos musicais. Surge o som de violões, pandeiros e flautas, fazendo soar de forma harmônica a melodia de Carinhoso, canção de João de Barro e Pixinguinha. Eram os alunos da Oficina de Choro de Porto Alegre, que iluminaram a plateia enquanto tocavam, acompanhando o grupo de jovens que estava no palco, integrantes do conjunto “Bob Lopes”, em um belo cortejo em homenagem ao samba e ao choro. É assim que nasce a Orquestra de Choro de Porto Alegre, primeira iniciativa desse tipo na história do Rio Grande do Sul. No São Pedro, no espetáculo O choro é livre!, reunião de artistas gaúchos que se dedicam a esse gênero musical. Desde então, o evento ocorre todo mês, com entrada franca, no mesmo local. Além disso, aquela noite foi a estreia
do conjunto “Bob Lopes” no teatro, grupo musical composto por quatro jovens cujas idades variam de 14 a 20 anos. Eles são alunos da ONG Sol Maior, da Capital. Surgido no Rio de Janeiro, ainda no século 19, o choro é um ritmo genuinamente brasileiro. Chiquinha Gonzaga, Pixinginha e Garoto são grandes nomes da música brasileira que praticaram o gênero. O estilo musical reflete a miscigenação do povo: nasceu da fusão entre música europeia e africana. Alguns instrumentos que antes não eram praticados no Brasil apareceram devido ao choro, como o bandolim, difundido em grande parte pelo chorão Jacob do Bandolim. Doce de côco, canção de sua autoria, foi popularizada na voz de Elizeth Cardoso. Não há consenso entre os pesquisadores sobre a origem do nome dessa música. A hipótese mais recorrente é que o termo “choro” tenha derivado de “xolo”, palavra que designava baile que reunia escravos nas fazendas produtoras de café. Por outro lado, há quem diga que o termo se referia à maneira chorosa com que eram tocadas as músicas estrangeiras à época. O que se sabe é que seu primeiro intérprete foi Joaquim Antônio da Silva Calado, flautista e compositor que popularizou o choro JULHO 2019 | REVISTA EXP | 13
A Oficina de Choro, projeto de educação musical que existe em Porto Alegre desde 2004, já formou milhares de alunos e promoveu centenas de apresentações.
em meados da década de 1870. Contudo, o ritmo sempre foi de caráter grupal e urbano, criado a partir de tangos, maxixes, xotes e quadrilhas. Apesar de ser muito tradicional, o choro continua sendo um gênero pouco conhecido no país. Atualmente, o sertanejo é o ritmo preferido dos brasileiros, segundo a pesquisa “Cultura nas Capitais”, que obteve respostas de 10,6 mil pessoas nas 12 capitais mais populosas do Brasil em 2017. Essa música foi a mais citada pelos entrevistados em seis das 12 cidades. O chorinho, por sua vez, foi mencionado por somente 0,13% dos respondentes. Quando se trata de Porto Alegre, isoladamente, o percentual sobe para 0,18%. Embora o número seja baixo, este cenário parece estar sendo revertido no Rio Grande do Sul. Para Mathias Pinto, 2019 é o ano do choro no Estado. Há cinco anos, o artista é diretor da Oficina de Choro, projeto de educação musical de Porto Alegre voltado para samba e chorinho. O professor sustenta que o momento é de retrocessos no âmbito cultural, mas acredita que, mesmo assim, os chorões estão cada vez mais ativos. “O evento no São Pedro foi a apresentação de choro que mais movimentou o público e a mídia em anos. Nos últimos meses, conseguimos consolidar muitos projetos e isso fará com que nossa produção fonográfica cresça e vários artistas gaúchos despontem”, aposta. Além de atuar como professor, o Mathias 7 Cordas integra o “Sexteto Gaúcho”, conjunto de chorões formado em 2012. Idealizador da Orquestra de Choro de Porto
O grupo de choro “Bob Lopes”, formado por alunos da ONG Sol Maior, teve sua estreia no palco do São Pedro, naquele 1º de maio
Alegre, ele acredita que a criação do projeto foi um marco no Estado. O grupo é formado por 16 instrumentistas, entre eles, alunos e antigos professores da oficina, estudantes de música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), músicos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e da Banda Municipal. “Essa iniciativa tem importância tanto pelo fator musical, por existir uma orquestra trabalhando repertório exclusivo de música popular, tanto pela questão ideológica, de mostrar às pessoas que é possível fazer música de alto nível utilizando a linguagem do choro. Isso tudo é inédito e me orgulho de participar desse movimento”, conta Mathias. Além disso, ele tem expectativas de montar uma orquestra-escola no futuro, com núcleo de alunos voltado à formação instrumental. A Oficina de Choro é o único projeto gratuito de ensino de música popular no Rio Grande do Sul. Desde 2004, quando foi criada por Carlos Branco, da Branco Produções, os encontros funcionavam no
antigo Santander Cultural. No fim de 2018, o atual Farol Santander, como passou a ser chamado, encerrou a parceria com a oficina. Assim, o projeto entrou em nova etapa: no começo de 2019, o Instituto Ling se tornou o novo patrocinador da iniciativa, que continua sendo financiada pela Lei Rouanet. Segundo Mathias, mais de 400 pessoas se inscreveram para as aulas do primeiro semestre de 2019 no centro cultural, batendo número recorde. Ao longo dos anos, milhares de alunos passaram pela oficina. Embora o projeto tenho contribuído imensamente para melhorar o cenário do choro no RS, o espaço para a música brasileira na educação musical ainda é limitado, conforme o diretor. Ele conta que um dos grandes objetivos da oficina é promover o contato dos jovens com o choro, tendo em vista que esse processo não ocorre naturalmente. Para Juarez Fonseca, pesquisador da música popular, jornalista e crítico musical, a oficina é protagonista no processo de disseminação do choro no RS. “O projeto formou muita gente experiente e incentivou pessoas novas com vontade de aprender a tocar choro. Isso provocou esse renascimento do gênero, principalmente em Porto Alegre”, ressalta. Ele acredita que, atualmente, o Brasil está vivendo um momento de transição, tanto no âmbito político como cultural. Em função disso, afirma que é difícil prever o que mudará quanto aos investimentos na música. “Não há dúvidas, contudo, de que daqui a 100 anos continuaremos falando sobre Pixinguinha, Orlando Silva, e todos esses artistas que fizeram história no país”, aponta. A instrumentista Júlia Alves (21 anos), de Pelotas, está há 12 anos praticando música popular por meio de aulas gratuitas. Paulista, Júlia iniciou seus estudos de flauta em São Vicente (SP), aos 10 anos de idade. Ela cresceu escutando samba e choro, influência de JULHO 2019 | REVISTA EXP | 15
seus pais. Com isso, o forte vínculo com a música popular foi algo inevitável. Aos 12 anos ela começou a frequentar o Clube do Choro de Santos, onde conheceu outros chorões e passou a tocar em rodas e eventos. Posteriormente, ela passou a estudar no projeto Banda Escola de Cubatão, antes de ingressar no conservatório da mesma cidade e fazer aulas de piano. Por último, em 2013, Júlia foi para a Escola de Música do Estado de São Paulo - Tom Jobim. À época, a escola promovia somente aulas gratuitas, embora recentemente tenha sido privatizada. Desde 2016, a artista faz bacharelado em flauta na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). A partir de contatos na cidade, ela passou a integrar diversos conjuntos, como o Clube do Choro de Pelotas, o “Regional Avendano” e o “Rosa Flor”, grupo só de mulheres voltado para a música latino-americana. Além disso, Júlia e outros três colegas da faculdade formaram juntos o “Chorei sem Querer”. O grupo, criado em 2017, tocou na Capital pela 16 | REVISTA EXP | JULHO 2019
primeira vez no encontro de chorões no São Pedro. “Foi a minha primeira apresentação em Porto Alegre e nós estávamos lá representando Pelotas. Nós sempre quisemos espalhar o choro, isso sempre nos moveu, então esse dia foi uma grande realização pessoal e profissional para mim”, relata. Apesar disso, ela percebe lacunas nesse meio musical, especialmente no que diz respeito à receptividade com as mulheres. Em alguns momentos, ainda é necessário que elas reafirmem suas habilidades técnicas, de forma a demonstrar para os homens que merecem estar naqueles espaços, segundo a artista. “Ser mulher em um espaço onde a maioria são homens já é um desafio, e sou bem recebida na maioria dos locais onde vou tocar choro. Mas nem sempre é assim. Às vezes, os homens mais velhos ficam surpresos com o fato de haver uma menina no palco, ainda mais jovem como eu, e isso os incomoda”, conta. Protagonista em dois dos grupos que integra,
O espetáculo O choro é livre! é um projeto da década de 1980 que está sendo retomado, iniciativa de Mathias Pinto e colegas
Júlia acredita que esses desafios valem a pena, pois tornam o ambiente da música popular cada vez mais acessível para as instrumentistas. Aline Mares, 25 anos, é aluna da Oficina de Choro de Porto Alegre desde o início de 2019 e também lida com esse cenário. Ela integra o “Samba Delas”, grupo de samba e pagode da Capital. O conjunto é formado por oito mulheres. Violoncelo, piano, cavaquinho, violão - Aline domina todos estes instrumentos, além do pandeiro, “quando é preciso improvisar”, brinca. Sua principal paixão, no entanto, é a flauta doce. Aline concluiu em julho de 2019 a licenciatura em música com habilitação no instrumento, pela UFRGS. Como o curso abordou estudos mais voltados para a música clássica e erudita, ingressar na oficina foi uma maneira da artista unir o útil ao agradável: obter mais conhecimento técnico da música popular e, ao mesmo tempo, tocar samba, seu estilo musical preferido. “A oficina me ajudou a entender como impro-
visar em cima da música popular, a harmonia, a estrutura, coisas que eu não conhecia. E isso está me ajudando muito no grupo com as gurias. Está sendo uma experiência ótima”, relata. O “Samba Delas” também está sendo muito positivo na trajetória de Aline. As integrantes do grupo dão um show de empoderamento nas apresentações e nas redes sociais do projeto, incentivando mais mulheres a tocarem música brasileira. “No início foi difícil me adaptar a tudo isso. As meninas são diferentes umas das outras, de diversas orientações sexuais, e eu não estava acostumada a conviver com essa diversidade. Isso contribui para quebrar muitos paradigmas, já que o pagode é tocado geralmente por bandas de homens hétero, além do público, em sua maioria, ser hétero. É gratificante estar participando dessa mudança”, opina. Assim como Júlia, Aline pretende seguir na carreira docente, na qual já ingressou. Ela dá aulas no projeto Villa-Lobos, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, onde aprendeu a tocar todos os instrumentos que pratica. Aluno da oficina desde o início de 2018, Rafael Rabello, de 23 anos, também é professor de música. “Xará” de Raphael Rabello, grande nome do choro no país, o violonista iniciou os estudos aos sete anos, por influência de seu avô. Na Oficina de Choro, gasta boa parte de seu tempo: participa das aulas de composição, de acompanhamento (violão), além da turma de choro novo. Renato Guterres (18 anos), integrante da oficina desde março de 2019, também dá aulas de violão. Ele é professor na ONG Sol Maior, onde iniciou os estudos de teclado, aos sete anos de idade. Lá ele também aprendeu o violão, além de pandeiro, escaleta e cavaquinho. Desde 2018, ele participa do grupo de choro “Bob Lopes”, formado em homenagem a um dos alunos da ONG que faleceu. A apresentação no São Pedro foi o encerramento de um ciclo, segundo Renato. “O mais legal foi ver o pessoal mais velho confiando em mim. Naquele dia a gente, que antes estava sempre na plateia, subiu no palco”, afirma. Esses avanços dos jovens na área são sinais de que, aos poucos, o choro vai ganhando seu espaço. JULHO 2019 | REVISTA EXP | 17