Jango 40 anos depois

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Jango:​ ​40​ ​anos​ ​depois Após 40 anos da morte do presidente deposto pelo golpe militar de 1964, as visões e perspectivas​ ​sobre​ ​a​ ​personalidade​ ​e​ ​o​ ​governo​ ​de​ ​João​ ​Goulart​ ​são​ ​divergentes

Texto:​ ​Sofia​ ​Lungui​ ​(2º​ ​sem.)

Em 6 de dezembro de 1976, pela primeira vez, morre no exterior um presidente brasileiro. João Goulart faleceu durante exílio em Mercedes, na Argentina, 12 anos após o golpe que destituiu seus poderes, dando origem a ditadura militar. Passados 40 anos de sua morte, ocorre novamente no Brasil a deposição de um mandatário por parte dos setores mais conservadores, o impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016. Mesmo assim, a imagem de Jango, como é chamado popularmente, segue marginalizada nos contextos histórico e político do país, sendo, por vezes esquecida, e em outras associada a um perfil negativo. O líder trabalhista teve uma longa trajetória na política brasileira. Nascido em São Borja, partiu para a Capital para estudar Direito, tendo se formado em 1939. Contudo, nunca atuou na área. Amigo próximo de Getúlio Vargas (presidente da República, à época) e cunhado de Leonel Brizola, Jango rapidamente se envolveu com a política. Entrou para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, em 1947, tornou-se deputado estadual, mais tarde deputado federal pela mesma sigla. No governo de Ernesto Dorneles, no Rio Grande do Sul, Jango se licenciou da Câmara dos Deputados e assumiu o cargo de secretário de Estado de Interior e Justiça. Em 1953, ele exerceu o cargo de ministro do Trabalho, Indústria e Comércio do governo Vargas, em que atuou em prol do movimento sindical. Iniciou a conquista de uma série de avanços almejados pelos trabalhadores, como o aumento do salário mínimo em 100%. Tanto no governo de Juscelino Kubitschek como no curto mandato de Jânio Quadros, Jango foi eleito vice-presidente, pois à época as votações para presidente e para vice eram distintas. De 1955 a 1961, portanto, foi vice-presidente do Brasil, até a renúncia de Jânio, que o levaria


à presidência. No entanto, o vice-presidente estava na República Popular da China na data, acarretando na tentativa de tomada de poder pelos militares, pelo fato de Jango ser considerado uma ameaça. O presidente da Câmara assumiu o cargo de presidente, o que provocou a deflagração da campanha da legalidade, movimento iniciado por Brizola (então governador do Estado) para reivindicar a posse de Jango, prevista na Constituição. Em meio a este impasse, a Câmara decidiu a adoção de regime parlamentarista no Brasil, em setembro de 1961, permitindo a posse de Goulart mas com redução de seus poderes, pelo fato de haver um​ ​primeiro-ministro​ ​–​ ​Tancredo​ ​Neves​ ​foi​ ​o​ ​escolhido. Portanto, Jango passou boa parte de seu governo articulando para garantir seus poderes, que os opositores queriam restringir a todo instante. João Goulart governou o país plenamente de janeiro de 1963 a março de 1964, quando foi determinada a vacância da presidência, mesmo com a presença do líder no país, sendo dado o golpe militar. Assim, Jango decidiu se exilar no​ ​Uruguai​ ​e,​ ​mais​ ​tarde,​ ​na​ ​Argentina. OS​ ​DOIS​ ​GOLPES “Pouco se fala de Jango, especialmente quando se compara o golpe de 2016 com o de 1964. Fala-se dos golpes e de Dilma Rousseff, mas não se fala sobre Goulart. Ele continua suspenso na História. Os setores conservadores mantêm o silêncio, o esquecimento sobre Jango. As esquerdas, quando se referem a ele, fazem-no de maneira dúbia. Ora é um presidente constitucional derrubado, ora aquele que desistiu e preferiu se retirar do país”, analisa Jorge Ferreira, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor titular da​ ​Universidade​ ​Federal​ ​Fluminense​ ​(UFF)​ ​e​ ​autor​ ​da​ ​biografia​ ​de​ ​Goulart,​ ​lançada​ ​em​ ​2011. O historiador traça um paralelo entre o momento atual e a conjuntura pré-golpe de 1964. “São dois momentos em que os governos tentam equilibrar as contas públicas. A questão é equilibrar as contas com o sacrifício dos trabalhadores ou preservando as contas deles? Goulart queria preservar as contas dos trabalhadores. O governo Temer, por exemplo, quer controlar as contas públicas retirando os direitos dos trabalhadores”, opina. Para Ferreira, Jango buscava a democratização da alta sociedade e a justiça social através do diálogo com o movimento sindical. “Uma frase dele diz que não adianta morar em um prédio luxuoso, mas abrir​ ​a​ ​janela​ ​ver​ ​as​ ​pessoas​ ​morando​ ​no​ ​morro​ ​em​ ​condições​ ​precárias”,​ ​conta.


Ao contrário de Ferreira, o professor Charles Sidarta, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia rio-grandense (IFSul), doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acredita que a figura de Jango vem ganhando relevo nos últimos anos. “Em função do golpe, Jango entra para a História como derrotado, e muitas vezes não há lugar para os derrotados na História. A partir de 2004, porém, em função dos 40 anos do golpe, o personagem volta a aparecer, tornando-se objeto de pesquisa de muitos”, explica. O diálogo com os movimentos dos trabalhadores, a criação do 13º salário, as reformas de base, o Estatuto do Trabalhador Rural. À época, as medidas tomadas por Jango durante o seu governo fizeram com que setores da sociedade o considerassem uma ameaça aos interesses capitalistas, tachado por alguns até mesmo de comunista. Com o mundo polarizado por conta da Guerra Fria (disputa entre russos e norte-americanos), o medo de uma revolução comunista​ ​era​ ​iminente,​ ​mas​ ​sem​ ​fundamento​ ​algum,​ ​segundo​ ​historiadores. “De comunista, nem barba tinha. Hoje percebemos as políticas de Jango dentro de um setor nacional-reformista. Ele almejava que o país tivesse melhores condições econômicas, mas dentro da lógica capitalista; não ousava romper com o capitalismo”, diz Sidarta. “Em 23 de novembro de 1961 ele reabilita as relações diplomáticas com a União Soviética. Em um momento candente da Guerra Fria, resolve manter relações não por uma questão ideológica, mas​ ​por​ ​questão​ ​financeira,​ ​pensando​ ​em​ ​um​ ​projeto​ ​de​ ​nação”,​ ​relata. “Eu diria que o Brasil é tão conservador que utiliza uma metralhadora para matar a mosca do comunismo. A menor ameaça é tratada como se fosse uma catástrofe. O golpe de 1964 foi dado com a desculpa de se combater o comunismo, mas foi dado contra o trabalhismo. O trabalhismo é um projeto político econômico que defendia uma antecipação da distribuição de renda, através da ampliação dos direitos trabalhistas”, argumenta Luis Carlos dos Passos Martins, doutor em História pela PUCRS e coordenador do Departamento de História da Escola​ ​de​ ​Humanidades​ ​(PUCRS). Goulart sofreu muitas críticas por diferentes fatores. Em primeiro lugar, pelos altos índices de inflação gerados durante seu governo, que foi um momento de instabilidade da economia brasileira. Além disso, há contradição sobre os motivos pelos quais o líder se exilou após o


golpe. Alguns consideram-no um covarde por ter tomado essa atitude, outros acreditam que a decisão​ ​foi​ ​estratégica. “Jango ficou marcado por dois fatores opostos: pela questão do trabalhismo e pela irresponsabilidade e inabilidade políticas, na medida em que foi acusado de ter tomado medidas ou feito pronunciamentos que resultaram no golpe, sem que ele tivesse um plano do que fazer dali para frente. A reação pós-golpe dele foi abandonar a luta. Mesmo havendo aparato​ ​militar​ ​para​ ​resistência,​ ​ele​ ​resolve​ ​se​ ​exilar”,​ ​aponta​ ​Luis​ ​Carlos. AS​ ​DUAS​ ​CRISES O jornalista e professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUCRS, Juremir Machado da Silva, pensa que não havia condições de Jango permanecer no Brasil após o golpe. “Ele enfrentou resistência muito grande, não tinha condições objetivas de se manter no poder. A resistência militar, tanto em 1961 quanto em 1964, seria um banho de sangue. Resultaria em uma Guerra Civil e seria em vão”, avalia. Juremir publicou em 2013 “A vida e a​ ​morte​ ​no​ ​exílio”,​ ​sobre​ ​o​ ​período​ ​em​ ​que​ ​Jango​ ​ficou​ ​exilado​ ​na​ ​América​ ​Latina. “Se esperava que ele morresse no exílio. A ditadura não queria trazer seu corpo para São Borja, foi uma negociação difícil. Foi exigido que o corpo viesse em cortejo em alta velocidade, para que as pessoas não abanassem. Havia muita gente no cemitério, ex-companheiros do PTB e mais de 10 mil soldados estavam lá para garantir a segurança, dentro​ ​dos​ ​padrões​ ​de​ ​uma​ ​ditadura”,​ ​informa​ ​Sidarta. O governo Goulart teve sérios problemas econômicos, mas que foram herdados da gestão de Kubitschek, indicam os historiadores. A crise econômica pela qual o Brasil passa atualmente é uma crise do capitalismo internacional, embora tenha potencializado a insatisfação que levou à deposição de Dilma Rousseff. “São dois períodos de crise. O governo de Jango foi ainda mais problemático que o de JK. A crise dos 50 anos em 5 gerou inflação grande, indignação e a incapacidade de pagar as contas externas. A crise do governo Dilma é mais ligada ao desemprego, sustenta o coordenador do Departamento de História da Escola de Humanidades​ ​(PUCRS).


Para ele, é impossível derrubar um governo com o país crescendo. “Max Weber dizia que a renda é a maior eleitora de um político. Posso traçar um paralelo também com os Estados Unidos, onde não há um golpe, mas a queda de uma sequência de governos democratas. Isso ocorreu porque houve aumento da renda, porém beneficiando alguns grupos e excluindo outros”,​ ​defende. Para além dos diferentes cenários econômicos e históricos, as duas deposições – de Goulart e de Rousseff – têm pontos em comum. Luis Carlos dos Passos Martins, doutor em História, compara os movimentos anti-varguismo e anti-trabalhismo que existiam na época pré-golpe de 1964 com o crescente anti-petismo que se constata atualmente. “São movimentos fortes, das classes médias, e há em ambos uma forte resistência às políticas inclusivas. As propostas de inclusão e de aproximação das camadas de baixo da sociedade incomodam as classes mais altas”,​ ​observa. AS​ ​DERROTAS​ ​DA​ ​ESQUERDA “Foram golpes voltados contra as esquerdas e seus projetos polÍticos, de maior justiça social e de maior independência nas relações exteriores”, ressalta Jorge Ferreira, autor da biografia de Goulart. Juremir Machado destaca a participação da mídia nos dois processos: conforme o professor, a grande imprensa esteve aliada aos opositores de ambos os governos, visando a derrubá-los. O jornalista considera o golpe de 1964 não somente civil-militar, mas sim midiático-civil-militar. “O golpe de 31 de março de 1964 foi contra o trabalhismo; já o golpe de 31 de agosto de 2016 nunca foi contra a Dilma e o PT, mas sim contra a Constituição de 1988 e os mais pobres. A Reforma da Previdência e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55 são medidas [do governo de Michel Temer] que ignoram as camadas mais pobres. Mas, as duas deposições compõem, dentro de um universo ideológico, um fator de desestabilização​ ​dos​ ​governos,​ ​que​ ​são​ ​as​ ​acusações​ ​de​ ​comunismo”,​ ​afirma​ ​Charles​ ​Sidarta. Sobre a morte de Goulart, há controvérsias. A versão oficial é que o presidente morreu de um ataque cardíaco, pelo fato de que estaria vivendo em péssimas condições, se alimentando mal e deprimido. No entanto, alguns acreditam que foi assassinado por agentes da Operação Condor, aliança entre ditaduras latino-americanas que perseguia líderes de esquerda nos países​ ​do​ ​cone​ ​Sul.


Carlos Henrique Bastos, jornalista e militante de 81 anos, acompanhou toda a carreira política de Jango. Até hoje, a trajetória de Jango desperta emoções nele. “O Jango é uma pessoa mal vista pela opinião pública, mas foi um grande presidente e sofreu muito no exílio. Ele queria voltar ao Brasil mas nunca conseguiu, por conta da repressão dos militares. Ele não foi assassinado, como dizem. Morreu de saudades do Brasil. Durante o exílio, ficava imaginando as luzes de São Borja ao entardecer, era a solidão de um exilado com saudades de seu país de origem”,​ ​conta.


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