LUDMILA BERTIÉ
ADONIAS FILHO
A FORÇA DA TERRA BI O G R AFI A
ADONIAS FILHO
A FORÇA DA TERRA BIO G R AFIA
LUDMILA BERTIÉ
ADONIAS FILHO
A FORÇA DA TERRA BI OGRA F I A
Adonias Filho
copyright © 2015 Ludmila Bertié EDIÇÃO
Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E DESIGN
Valéria Pergentino Elaine Quirelli REVISÃO DE TEXTO
Maria José Navarro de Oliveira Maria José Bacelar Guimarães
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bertié, Ludmila Adonias Filho, a força da terra : biografia / Ludmila Bertié. -- Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2015. ISBN 978-85-89059-74-9 1. Aguiar Filho, Adonias, 1915-1990 2. Escritores Biografia I. Título.
15-10595 CDD-928 Índices para catálogo sistemático: 1. Escritores : Biografia e obra 928
Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 | 3369.2028 editora@solislunadesign.com.br www.solislunadesign.com.br www.solislunaeditora.com.br
Para a minha famĂlia de origem, Alexander, Dalva e Alessandra. Para a famĂlia que eu criei, Alexandre, Iuri e Lara.
Sumário 9 13
Conhecer Adonias Filho Introdução
17 21 29 37 47 53
PARTE I 1898-1936
61 65 73 81 87 93 99 109 117 125 133
PARTE II 1936-1965
139 143 153 159 167 173 177 178
PARTE III 1965-1990
O Coronel Adonias, filho da nação grapiúna O padre belga Um certo olhar oblíquo Nem advogado, nem médico Aventuras literárias De dentro, o centro Os bárbaros Rosita Estreias A história de Alexandre A praga universal A natureza da fera O golpe de 1964 No clã dos imortais Terras estrangeiras Gavetas de Adonias A capital do mundo Trovoada de Deus 2 de Agosto Obras de Adonias Filho Referências
Conhecer Adonias Filho
H
omem cordial, de voz mansa, Adonias Filho (1915-1990) tinha um amor de perdição pela civilização cacaueira baiana, de onde vinham suas origens. Prestou serviços relevantes nos cargos que ocupou na administração pública. Crítico arguto, ficcionista regional de alcance universal. Seus contos, novelas e romances contribuem para o fortalecimento de nossa identidade literária e da consciência da nossa cultura. A obra desse ficcionista consagrado anda sendo esquecida ultimamente nos círculos literários. Seus livros não são reeditados no circuito nacional. Não se vê, em livros, análises e estudos críticos de seu legado. Não se tinha escrito ainda uma obra digna para o conhecimento de sua vida. Em boa ocasião, aparece agora, para suprir a lacuna, o livro Adonias Filho: a força da terra. E a autora é a jornalista baiana Ludmila Bertié, sobrinha-neta do biografado. Chega esse livro no ano em que se comemora o centenário de nascimento do grande escritor. Estudiosos, leitores e admiradores precisavam saber do percurso empreendido por um homem que cedo assumiu o destino de ser escritor, contrariando o pai, um próspero fazendeiro do cacau, um coronel, senhor do mando e comando da família, que queria que o filho fosse médico ou advogado. A negativa do filho causou transtorno, feriu o orgulho do pai, que, nesse tipo de escolha, via, pela primeira vez, sua vontade não prevalecer. Ser médico ou advogado era o que valia para o jovem que quisesse ter prestígio e desfrutar do bem-estar na vida. Ser escritor era 9
uma atividade de risco, que não contava, e a ninguém dava as condições ideais de sobrevivência e respeito. O ter bania o sonho do ser pelas letras. Era o que sempre determinava a sociedade moldada no contexto econômico e social da época. O jovem assumiu o que estava nas veias, pulsava o coração, aquecia o pensamento. Leitor voraz, autodidata dos mais pacientes, exerceu o jornalismo, a crítica literária, tornou-se tradutor de grandes autores para sobreviver. Com sua imaginação rara, fez-se um dos grandes das nossas letras, externou seu sentimento de mundo através de um estilo plasmado com pura poesia, magia que encanta nas frases curtas da escrita. De sua voz elevada, com registros de entonação bíblica, foi fazendo chegar a outros lugares os dramas da civilização cacaueira baiana, as aventuras trágicas das gentes de Salvador da Bahia, Rio de Janeiro e África. Harmonizou sua alma feita de solidão, persistência e sensibilidade, em obediência às forças do destino, com a saga erguida em meio da natureza bárbara, da selva impenetrável, hostil, povoada de perigos. E, também, no litoral, soprando tragédias, naqueles agitados mares urbanos e nos da rota dos descobrimentos. Razões e emoções, poesia e drama, perplexidades e medos, danações com o seu envolvimento trágico emergiram assim da trama do existir, sem pressa, culminando em um ficcionista do mundo, um renovador nas formas de narrar da novelística brasileira. Aclamado sob vários aspectos pela melhor crítica. Acolhido por mérito como membro da Academia Brasileira de Letras. Nessa biografia do renomado romancista, temos conhecimento, nos detalhes, do relacionamento ancestral de Adonias Filho com a civilização cacaueira baiana. De sua infância na fazenda do pai, como estudante do Colégio Ateneu, em Ilhéus, quando cursou o primário, de sua adolescência em Salvador, quando fez o secundário no Colégio Ipiranga. De suas ligações primeiras com o mundo espiritual da religião católica, de sua 10
formação literária, crença ideológica, militância política de homem de direita, do intelectual como aquele animal político de concepção aristotélica, enfim, ficamos sabendo de particularidades, afetividades e atitudes solidárias do cidadão sério. Somos informados de uma vida que se torna preciosa com a passagem do tempo, que tudo sabe, dá, tira, cristaliza, e que ficaria em segredo não fosse a incursão que faz com segurança Ludmila Bertié pelos caminhos do biografado. Trata-se de biografia bem escrita cujo assunto contém informações e revelações importantes, de tal sorte merece circular nas livrarias, bibliotecas e redes de ensino. A jornalista baiana escreve com amor, conhecimento e justeza de tudo que soube, investigou, separou, relevou nesse homem de letra miúda, que escrevia primeiro a lápis, depois passava para a máquina de datilografia. Desse artesão da linguagem, um perfeccionista, que quanto mais escrevia mais queria escrever e reescrever o texto. Estava sempre insatisfeito na forma de narrar a história, desenvolver a fabulação com gravidade na trama, preocupado em desmembrar o tempo vivido pelos personagens que também dizem da intriga, no intuito de não cair no lugar comum do discurso tradicional. Pretendia com isso armar melhor a ideia, contar com intensidade o que costumava auscultar na alma dos humanos através de uma expressão moderna. Ludmila Bertié tira do esquecimento a vida e a obra de Adonias Filho. Mostra como o escritor aproveitou pessoas que conheceu e as recriou, com mão de mestre, em seus livros. É o caso de Augusto Padeiro, que vivia de vender pão, indo de fazenda em fazenda com o balaio na cabeça e um bocado de lorotas, as quais ele oferecia, também, como alimento a quem ouvisse. A figura intrigante do padeiro inspirou o personagem do mesmo nome em Os Servos da Morte. Outro exemplo que dá Ludmila Bertié é o de José Dias, homem simples, trabalhador em um pedaço de terra. Achava que o comunismo salvaria a humanidade, porque era contrário ao egoísmo e à avareza do indivíduo. 11
Adonias não concordava, pois achava que o comunismo não era bom na prática; falhava pior quando deixava Deus de fora. Tornaram-se amigos, apesar das posições opostas. A morte do amigo mineiro, assassinado com dois tiros quando vinha da feira, abalou Adonias, que para sublimar seu sentimento de perda transmudou um homem pobre, de bons sentimentos, no personagem Natanael, que em Memórias de Lázaro comove com o seu lirismo. O contato com o chão bruto do cacau, as histórias que ouviu da gente que labutava a terra, do próprio pai costurando os sacos de cacau à luz de candeeiro, a épica conquista da mata, a vivência na cidade grande, a viagem à África como convidado do governo português, integrando a delegação brasileira de escritores, a crença ideológica como intelectual de direita, possuidor de um espírito cheio de humanidades, sem sectarismo extremo, tudo isso forjou, ao longo dos anos, um homem coerente em sua leitura do mundo. Uma criatura de olhar introspectivo com sua escrita singular, de cuja imaginação profunda resultou uma das obras mais ricas da literatura brasileira. Com estilo solto, observações lúcidas, suficiente pesquisa, Ludmila Bertié logra êxito quando tira do esquecimento a vida de Adonias Filho. Informa lances que contribuíram na construção de seus belos livros. É o que se absorve depois da leitura dessa biografia do autor renomado, erguida na escrita fluente, da qual se tornam visíveis as origens, a formação da sensibilidade e a consolidação dos valores do escritor magnífico. Cyro de Mattos
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Introdução
E
m 1922, o menino Adonias subia o morro de Ilhéus, cidade onde então morava no sul da Bahia, para conhecer o seu futuro. Não que ele não soubesse, mas é que a vida às vezes se encarrega de dar um “empurrãozinho”, colocando mensageiros ao longo do nosso caminho. Mesmo sem ter a consciência, a criança de sete anos já intuía a vocação e foi o padre belga, aquele homem grande de barbas vermelhas, que, do alto da sua igreja inacabada, profetizou: “Você escreverá livros.” O menino nascido “com o pé na lama” numa roça de cacau, como costumava dizer, era leitor espontâneo e bom contador de histórias. Tinha a letra pequena, o que, segundo a grafologia, indica introversão e boa capacidade de observação. Tinha também outros atributos: era perfeccionista e exigente consigo e, por isso, chegou a rasgar os originais do livro que escrevera ainda na adolescência. Não satisfeito, lançou-se a fazer traduções da literatura estrangeira como fonte de renda e de conhecimento. Mas havia um detalhe: ele não tinha feito nenhum curso de línguas estrangeiras. Aqui aparece outra característica adoniana: a sua determinação – o que daria mais subsídios ao seu ser autodidata. Quando se pôs a compor sua obra literária, Adonias escolheu a ficção de estilo trágico, inexorável. Sabe-se, e ele mesmo gostava de falar, que a sua literatura teve muita influência do meio em que vivera: a saga do cacau, com histórias terríveis que eram contadas pelos trabalhadores das fazendas de seu pai. 13
Mas o escritor não se limitava a “recontar histórias”. Impregnado por toda aquela ambiência, ele criava as suas próprias narrativas – densas, incômodas – dentro de um realismo mágico muitas vezes sufocante. Do homem calmo, sereno e de fala mansa explodia então um mundo violento, repleto de angústias e inquietações existenciais. Esse ar indecifrável de Adonias Filho fascinava muita gente que o conhecia. Na tentativa de querer explicar o paradoxo entre o escritor e o ser humano, alguns arriscavam a influência literária dos clássicos gregos e de escritores como William Faulkner, James Joyce e do russo Fiódor Dostoiévski. Outros falavam da feição religiosa de Adonias, iniciada pela mãe e aprofundada na leitura dos escritores católicos Julien Green e George Bernanos, entre outros. Havia os que insistiam na força do ambiente de origem – o cacau e todo aquele tom de tragédia que então contextualizava o Sul da Bahia. Impossível apontar apenas um desses fatores como responsável pelo comportamento dual entre o escritor e o ser. Certo é que, juntos, eles ajudam a explicar essa dualidade, embora não a desnudem por completo. E é essa carga de mistério que acompanha Adonias entre os que o conheceram em pessoa ou por seus livros. Rachel de Queiroz, amiga querida, vez em quando o chamava de “bugre velho”, “bicho do mato”. – “Você é mesmo da Serra da Temerosa!” – dizia ela, quando dava de cara com algum dos comportamentos rígidos de Adonias. Ele não gostava de entrevistas nem de ir a recepções. Ficava agoniado quando precisava comparecer a algum evento. Impaciente, contava os minutos para se mandar. Sabia reconhecer os puxa-sacos de longe. Seu pavor a essa “raça” piorou quando assumiu cargos públicos, como o de diretor da Biblioteca Nacional, e o telefone de sua casa nunca mais parou de tocar com pedidos e agradecimentos. Procurava atender a todos, arrumando um cargo aqui e outro ali. Menos para a família, 14
o que deixava os parentes irritados. À nora Thais, recusava a carona no carro oficial do Governo quando era diretor do Conselho de Cultura. – Ele dizia assim: no carro oficial você não entra! Meu nome nunca vai sair em jornal porque minha família estava usando carro oficial. E eu tinha que ir de táxi – relembra Thais.1 Homem sério, fiel aos amigos, quando prometia, cumpria, mas não gostava de cobranças. – Eu não já disse? Então não precisa me falar duas vezes. Comigo só precisa dizer uma vez,2 costumava responder com irritação. Autografava seus livros em inglês, espanhol ou eslovaco com a mesma simplicidade com que lavava as fraldas dos netos. Almoçava com altos figurões da cultura e da política brasileiras assim como dividia a mesa com os trabalhadores da sua fazenda em Itajuípe. Extremamente inteligente, estudioso e bem informado, tinha interesse particular pela política. Mais de uma vez, tentaram transformá-lo em homem político, porém, em todas elas, Adonias teve problemas. Até tinha qualidades de sobra para o cargo, mas lhe faltava “jogo de cintura”, se assim se pode chamar esse movimento de alianças e rupturas que muda tão repentinamente na vida política. Nunca foi chegado ao comunismo porque, segundo ele, havia uma grande diferença entre a teoria e a prática. Apoiou os militares durante o golpe de 1964 e pagou um preço alto por isso. Taxado de “conservador”, “reacionário”, foi “condenado”, ainda que de modo relativamente velado, pela imprensa e pela opinião pública. Ainda hoje, seu nome e sua obra sofrem consequências desse ato, embora ele, na época da ditadura militar, tenha se colocado contra as inúmeras prisões. Como homem do métier, ajudou a libertar muitos intelectuais. Gente como os 1
RUDIN, Thais. Thais Rudin: depoimento [31 mar. 2015]. Entrevistadora: Ludmila Bertié. Salvador, 2015.
2
Ibidem. 15
escritores Dias Gomes, Jorge Amado e seu irmão James Amado. Tanto que foi “absolvido” pelos comunistas, ganhando um almoço em sua homenagem quando a ditadura teve fim. Considerado não um homem de direita, mas um “homem direito”, Adonias Filho não foi, de fato, um escritor popular, porém alcançou alto grau de prestígio dentro do meio cultural daquele período. Para ele, o que realmente importava era a realização pessoal, um desafio estimulante, mas difícil de ser alcançado. Disse ele, certa vez: – Embora a busca da perfeição seja permanente, hoje, tenho consciência de que não se faz o que se quer, mas sim o melhor que se pode fazer. A força da terra é um passeio pela vida e pela obra de Adonias Filho, no qual procura-se acompanhar o processo histórico-cultural em consonância com as mudanças no homem literato. Deixa-se de ver a obra isolada das circunstâncias em que foi elaborada para vê-la como uma produção cultural. Dividida em 3 partes, a biografia apresenta, no início de cada uma delas, um prólogo que, por sua inversão estrutural, funciona como uma espécie de síntese a anunciar e, por vezes, a concluir o texto que se segue. Tal prólogo foi propositadamente construído à semelhança da estrutura dos romances adonianos, numa alusão à obra do escritor. Adonias Filho deve ser revelado aqui de maneira mais expressiva para as novas gerações e para os que não conhecem a sua produção literária. Desse modo, pretende-se conferir ao escritor a dimensão que merece dentro da literatura brasileira.
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PARTE I
1898-1936
Q
uando decidiu ir morar no Rio de Janeiro, em 1936, Adonias Filho tinha apenas uma ideia em mente: dedicar-se à vida intelectual. Mal saído da adolescência, ele deixava a fazenda Baluarte no território de Ilhéus, região cacaueira no sul da Bahia, para ir em busca de maiores perspectivas profissionais e melhores condições culturais para desenvolver seu trabalho literário. Como diria a famosa canção de Caymmi, chegou ao Rio “tomando um Ita no Norte”, o navio da Companhia Nacional de Navegação que fazia o percurso entre o Norte e o Sul do país. No compartimento do Ita em que viajava, o cheiro de naftalina fundia-se ao forte sopro do mar. A mistura pareceu a Adonias de uma propriedade extraordinária: simbolizava o velho e o novo. Antes uma simbiose que um rompimento. Um entendimento íntimo do que foi e do que estaria por vir em sua vida. Entre as mãos, ele tinha um retrato da família Aguiar tirado em Ilhéus em 1930. Na foto, ao redor do casal Adonias e Rachel Aguiar, que aparecem sentados, posam de pé os sete filhos: João, José, Adonias, Maria, Rachel, Ester e Avelino. Todos elegantíssimos; os garotos de calças e ternos de casimira e as três meninas, de vestidos longos e laços de fita no cabelo. Com aquela cena, Adonias fechava um ciclo da sua vida e abria outro, que começava com a sua ida para o Rio. Mas a fase que então se iniciava iria, ironicamente, demonstrar a Adonias Filho que o passado não morre. 19
O menino deitado à terra, à sombra dos cacaueiros, a ouvir os casos da saga violenta. As lembranças, ora doces ora cruéis, da terra do cacau se fariam eternas em Adonias Filho, convidando-o continuamente a recuar às origens do tempo, do seu tempo, e retomar a epopeia do pai, o coronel Adonias Aguiar.
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