Carybé & Verger Gente da Bahia © Fundação Pierre Verger
presidente Gilberto Pedreira de Freitas Sá
Todos os direitos reservados
diretora secretária
© Instituto Carybé (en constitución/2008)
Angela Lühning
Todos os direitos reservados de uso de desenhos e pinturas de Carybé
© Fundação Pierre Verger Todos os direitos reservados de uso de fotografias de Pierre Verger
diretora tesoureira Denise Duque
superintendente Dione Baradel
projeto editorial Fundación Pierre Verger Solisluna Design e Editora
criação, edição e design
apoio financeiro
Enéas Guerra Valéria Pergentino
edição de imagens Alex Baradel Valéria Pergentino Elaine Quirelli Vicente Sampaio
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, registrada, transmitida, transcrita ou armazenada em sistemas de recuperação, ou traduzida para alguma língua ou linguagem de computador, de nenhuma forma ou por meios eletrônicos, mecânicos, magnéticos, manual ou qualquer outro, sem a autorização por escrito da editora e dos detentores do copyright.
edição do texto e redação
www.pierreverger.org www.solisluna.com.br
tratamento de imagens
José de Jesus Barreto
revisão do texto Maria José Bacelar Guimarães
Terceira edição - 2017
tradução para o inglês Sabrina Gledhill
fotografias Arquivo Fundação Pierre Verger – (páginas 2, 3 e 10 – Direitos Retidos)
Arquivo Família Carybé Almir Bindilatti – (pinturas e páginas 42, 43, 152 e 153) Arlete Soares (página 16) Flávio Damm (páginas 15, 52, 88, 89 e 113) Maria Sampaio (páginas 26 e 27) Mário Cravo Neto (páginas 22 e 23) Marcel Gautherot – IMS (páginas 13 e 112) Zélia Gattai (páginas 44 e 45)
C277
Carybé & Verger : Gente da Bahia / [org. e redação do texto José Barreto de Jesus]. – Salvador : Fundação Pierre Verger : Solisluna Design Editora, 2008. 168 p. : il. – (Entreamigos) Inclui bibliografia. Texto em português e inglês. ISBN 978-85-88971-04-2
1. Carybé, 1911 - 1997 - Amigos e companheiros. 2.Verger, Pierre, 1902 - 1996 - Amigos e companheiros. 3. Pintura - Salvador (BA). 4. Fotografia - Salvador (BA). I. Barreto, José de Jesus. II. Série. CDD - 700 Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa – UFBA
Folks from Bahia
Olhares na mesma direção Ainda que de origens e temperamentos distintos e com itinerários até então diferentes, Carybé e Verger se encontraram na Bahia, nos idos de 40. Errantes viajantes, fincaram âncora na Bahia de Todos os Santos, abrigo para onde convergiram muitos povos e culturas, na construção de um novo mundo, marcadamente singular e plural. Carybé, impulsivo e participativo, vivenciando emoções e intensa afetividade.Verger, tímido e introspectivo, contemplador e pesquisador. Personalidades tão diversas, mas com almas gêmeas que olhavam, com grande intensidade, na mesma direção. A Bahia, umbigo do mundo, como definiu Carybé, abrigou-os para suas melhores criações, sob a égide da cultura afro-baiana, de marcante influência ioruba: na cor da pele, no comportamento, no jeito de ser... O baiano verdadeiro não é o que nasce, mas o que renasce na Bahia. Eles são baianos fundamentais, segundo Jorge Amado, nosso melhor intérprete no campo das letras. Meio século de amizade e construção dos dois melhores acervos culturais da nossa Terra. Na fotografia e análise histórica,Verger, em preto e branco, onde se vê e lê todo o colorido da nossa gente. Na pintura e escultura, Carybé, a cores, em exuberante movimento, dominando diversas técnicas com particular maestria. Os dois convergiam seus olhares na mesma direção, para os mesmos ângulos, com os mesmos enquadramentos, captando os mesmos movimentos e registrando uma época que não volta mais. Magia! Só Xangô e Oxóssi podem explicar essa fantástica coincidência, no batuque dos terreiros de Candomblé, nas ladeiras e becos soteropolitanos, nas festas e folguedos populares, nas manifestações mais puras e criativas da nossa gente, do nosso povo, da nossa alma.
Que privilégio e alegria tê-los conhecido e que sofrimento e saudade tê-los perdido... Insubstituíveis! Em suas origens, um abastado europeu de Paris, França, e um latino-americano de Lanus, Argentina, se reconhecem na Bahia, para produzirem imagens e desenhos, registros de uma época, de um povo que resolveram adotar e de uma vivência que adoraram compartilhar. Em 1988,Verger criou a Fundação, doando-lhe todo o seu acervo fotográfico e literário e o mais autêntico espaço cultural da Bahia, a casa vermelha de Xangô, no Alto do Corrupio, 2ª travessa da ladeira da Vila América, nº 6, no Engenho Velho de Brotas, sua morada desde 1960. Carybé, já seu velho amigo, estava lá, convidado, junto com Jorge Amado, a compor o primeiro Conselho Curador. Neste ano de 2008, comemorando seus 20 anos, a Fundação Pierre Verger decidiu celebrar esta grande amizade com a publicação do primeiro livro da série ENTRE AMIGOS, concentrando a primeira seleção das obras dos mestres em GENTE DA BAHIA, cobrindo o cotidiano do povo de Salvador, maior responsável pelo seu íntimo convívio. O excelente trabalho desenvolvido pela SOLISLUNA, a colaboração entusiasmada de Nancy e Solange, esposa e filha de Carybé, no levantamento e seleção de sua obra, e a participação da ODEBRECHT, na viabilização do programa, tornaram possível a criação desta obra que, estamos certos, trará imenso prazer aos seus leitores.
Gilberto Sá Presidente da Fundação Pierre Verger
Sumário 11
Baianos de fundamentos
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Conquista da liberdade
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Tangos, pandeiros e pincéis
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Entre amigos
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Da Rua Chile ao Taboão
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Caçador de cores e alegria
28
Laços de Terreiro
38
Escorpião e Aquário
40
Saudades e fofocas
46
Invenções do amigo Jorge
74
Velha Cidade da Bahia
82
Jeito de ser baiano
86
Renascença
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Sempre amigos
154
Fontes
156
English translation
“Ah, meu maior amigo, nunca mais Na paisagem sepulta desta vida Encontrarei uma alma tão querida Às coisas que em meu ser são as reais [...] Porque há em nós, por mais que consigamos Ser nós mesmos a sós sem nostalgia, Um desejo de termos companhia — O amigo como esse que a falar amamos.” Fernando Pessoa
Baianos de fundamentos Da boa terra do São Salvador, cidade da Bahia, desprendese um melaço de luz com gosto de mar e cheiro de encantos. Cozimento histórico de culturas que, na quentura do tempo, foram se misturando dentro do grande gamelão Kirimurê dos nativos Tupinambás batizado de Baía de Todos os Santos — e caboclos, encantados, orixás, voduns e inquices. Sacrossanta iguaria mexida com as mãos, temperada com o suor e a sabedoria dos filhos da Mãe África. Porque tudo o que existe nesta cidade e perto das águas doces e salgadas que fecundam o recôncavo baiano carrega entranhada a força do axé e do fazer dos negros. Nenhuma outra cidade fora do continente africano é tão negra como Salvador. Negritude que transcende a cor de pele, o tipo de cabelo ou traços de rosto, pois está presente no ar que se respira, na atitude religiosa única de seu povo, no movimento dos corpos nas ruas, no riso e no falar de sua gente. Arte de uma labuta visível nos desenhos do casario antigo, nas janelas dos sobrados, nas torres e altares majestosos das igrejas, nas paredes de pedra de suas fortalezas. Heranças, lembranças do outro lado do Atlântico que se multiplicam no toque dos berimbaus, no ecoar dos tambores e exalam do tacho de dendê, dos tabuleiros das baianas. Mistérios de uma fé ancestral cultivada nos terreiros de candomblé e ocultos no esverdeado do Dique do Tororó, nas águas escuras do Abaeté, nas locas do mar, no rés do chão e no que resta de mato, onde moram os segredos. Energia e força de uma boa terra que recendem nos rostos, na altivez de seus homens e mulheres, no jeito todo próprio de ser a na alegria de viver de seu povo.
Esse Axé espalha-se por tudo, feito ungüento, e vai impregnando lentamente o cotidiano das pessoas; feitiço celestial que faz da Bahia um lugar diferente e cativante. Foi nesse visgo de sedução baiana que se quedaram, para sempre, os bem-aventureiros viajantes, cidadãos do mundo, Hector Júlio Páride Bernabó, pintor de tantas artes nascido em Lanus, distrito de Buenos Aires, capital da Argentina, e Pierre Édouard Léopold Verger, fotógrafo por destino, pesquisador e escritor, quem sabe, por desígnio dos deuses, nascido em Paris, França. Escolheram a Bahia como ninho, definitivo abrigo. Nessa terra, e por ela, criaram laços de uma amizade fraterna perene, cultuaram a liberdade dos seres e fazeres, absolutos. Na Bahia, eles encontraram um novo sentido para a vida. Sob o Axé dos Orixás afro-baianos renasceram, foram rebatizados. E recriaram, com o gênio de suas artes, o dia-a-dia da terra e da gente que os fascinou, tema maior a que dedicaram seus trabalhos, anos a fio, com manifestações de um amor eterno e agradecido. A benção Pierre Fatumbi Verger! A benção Obá Onã Xocum, Carybé! A benção Bahia!
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Conquista da liberdade Quando Verger e Carybé aportaram em Salvador já eram homens maduros, artistas profissionais reconhecidos por seus trabalhos e viajados. Cidadãos livres, homens libertos, ambos nutriam e confessavam desprezo pela política, num período crítico da humanidade, a primeira metade do século XX, quando ocorreram as duas grandes guerras mundiais, surgiram o comunismo, o fascismo e o nazismo na Europa, e eclodiu a primeira crise financeira do novo capitalismo — eventos que abalaram a economia do planeta e influenciaram a vida em todos os continentes. Pierre Verger nasceu em 4 de novembro de 1902, de família burguesa. Seu pai, o belga Léopold Verger, foi dono de uma empresa gráfica, em Saint-Denis, na França, que fabricava papéis, produzia cartões, reproduzia fotografias e vendia artigos voltados à publicidade. Filho caçula, perdeu o pai e um irmão adolescente nos anos de 1914/15. Não gostava dos estudos formais e da rigidez escolar, chegando a ser expulso duas vezes dos colégios por indisciplina. Tampouco acatava as formalidades da burguesia familiar parisiense, cujos valores convencionais lhe pareciam preconceituosos e inaceitáveis. O primeiro grande vôo de libertação daquele modo de viver aconteceu antes de completar 30 anos, logo após a morte da mãe, Marie Adèle Samuel, em fevereiro de 1932. A única pessoa, confessaria depois, “que desejava não chocar ao adotar um tipo de vida muito diferente do prescrito pelas rígidas normas da educação recebida”. Então, trocou alguns pertences por uma surrada rolleiflex e, disposto a desatar de vez os laços de família, bateu asas, foi parar na Córsega, mil e quinhentos quilômetros percorridos a pé, solto, registrando o mundo, o tempo, provando a absoluta e simples liberdade de viver. Não parou mais de viajar, mundo a fora, e de fotografar, por gosto e também por necessidade de fazer algum dinheiro, vendendo as imagens para jornais e revistas. Esteve em dezenas de lugares,
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em todos os continentes, sempre mirando seu foco na diversidade, nos jeitos de se comportar e nos modos de viver da raça humana espalhada por esse planeta errante. Viajou pela primeira vez à África — Argélia, Mali, Niger, Daomé — entre novembro de 1935 e março de 36. Em 1940, depois de uma rápida passagem pelo Brasil, apenas para regularizar documentos, foi mobilizado para a guerra, no Dacar, e lá conheceu Théodore Monod, diretor do Instituto Francês da África Negra, que lhe facilitaria mais tarde a estadia e suas pesquisas no continente africano. Logo que foi desmobilizado do conflito que se espalhava da Europa para o norte da África,Verger escapou por Guiné e as Ilhas de Cabo Verde com destino ao Brasil, chegando de navio ao Rio de Janeiro, no final de 1940. Mas o clima político do Estado Novo getulista brasileiro não estava propício para o foto-jornalismo livre. Apenas com sua rolleiflex e sem dinheiro, em março de 1941,Verger foi parar em Buenos Aires, a oferecer fotos nos jornais por algum trocado. Até que surgiu a oportunidade de realizar um gratificante trabalho, registrando os costumes dos índios dos Andes, do altiplano do Peru, por uns anos. Finda a segunda grande guerra na Europa e com algum trocado no bolso, o inquieto fotógrafo decidiu atravessar a Bolívia e entrar de novo no Brasil, por Corumbá. Passou por São Paulo, onde se encontrou com o professor, antropólogo e escritor francês Roger Bastide, que lhe falou com entusiasmo da importância da influência africana na Bahia e lhe indicou algumas pessoas na “boa terra” a quem procurar. Com milhares de negativos fotográficos do Peru e da Bolívia para mostrar, o fotógrafo Verger parou no Rio de Janeiro, com o propósito de conseguir um jeito de ver de perto essa tão falada Bahia. Era abril de 1946. Verger e sua rolleiflex na procissão do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, festa da Boa Viagem. Foto de Marcel Gautherot.
Tangos, pandeiros e pincéis A mãe, Constantina, era uma gaúcha de fronteira. O pai, Enea, italiano da Toscana, um trabalhador aventureiro. Tiveram cinco filhos. Um deles, o mais famoso, batizado pelo padre como Hector Bernabó, nascido no dia 7, mas só registrado a 9 de fevereiro de 1911, tornou-se mais conhecido como Carybé, pseudônimo adotado anos depois para assinar seus desenhos e pinturas sem o “Bernabó” — palavra que não lhe soava bem e já era a marca dos trabalhos do irmão mais velho, Roberto, artista plástico reconhecido em seu país de origem e com quem aprendeu a mexer com tintas e pincéis. Carybé fora o nome-apelido por ele escolhido nos tempos de escoteiro, na Gávea, Rio de Janeiro, garoto ainda, em homenagem a um peixe da Amazônia. Mas em algumas regiões do Brasil a palavra caribé significa também comida preparada com polpa de abacate, angu de farinha, pirão feito para mulher parida. Noutras, por esse interior sem fim de tantas linguagens, caribé é uma corujinha, daquelas que espiam a noite pousadas na cerca do quintal. O menino Hector tinha apenas seis meses, quando o pai arrumou as trouxas da família e rumou para a “velha bota”, a matar saudades. Então, veio a dureza da primeira grande guerra na Europa e, logo depois, o advento do fascismo na Itália, o que provocou a debandada dos Bernabó, que chegaram de mala e cuia em 1919, no Rio de Janeiro — Bonsucesso, Catete, Laranjeiras —, a família inteira desde cedo dando duro para sobreviver. O irmão mais velho, Roberto, montou um atelier em casa e Carybé entrou para a escola de Belas Artes. Até que foram contratados em 1929 para fazer a decoração de carnaval do Hotel Glória e do Copacabana Palace, o que rendeu dinheiro suficiente para a família retornar a Argentina, decisão do viajante pai italiano. A recessão provocada pela crise financeira da virada do decênio, porém, tornou a sobrevivência ainda mais trabalhosa para a família.
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O versátil Carybé, além de fazer desenhos e charges para jornais e revistas locais, cantou tangos na noite e tocou pandeiro, acompanhando Carmem Miranda e seu Bando da Lua em excursões por Buenos Aires. Em 1938, enviado pelo recém-fundado diário El Pregón, com a missão de desenhar e escrever textos dos lugares que visitasse, Carybé pegou um navio costeiro, o Itanagé, norte acima. Passou por Montevidéu, Paranaguá, Santos, Rio, Vitória, e ancorou de vez no porto de Salvador. Conhecer a Bahia era um sonho antigo, atiçado pela leitura do romance Jubiabá, de Jorge Amado. Mal chegou a Salvador, entretanto, soube por carta dos irmãos que o jornal El Pregón falira, tinha fechado as portas, e ele que se virasse sozinho. Foram oito meses na Bahia, disputando um cafezinho, uma merenda, vadiando pelas ruas, becos e bregas da cidade, fazendo amigos entre os capoeiristas, os saveiristas da rampa, os feirantes da Água de Meninos, os pescadores e o “povo de santo” dos candomblés. Conheceu o rio São Francisco, girou pela caatinga na esperança de ver os cangaceiros do bando de Lampião, morto e decapitado pelas “volantes” militares em Angicos, sertão de Sergipe, nesse mesmo ano. Terminou chegando à cidade de Estância, onde se encontrou pela primeira vez com o escritor Jorge Amado, de quem se tornou fraternal amigo. O pintor retornou para a Argentina já apaixonado pela Bahia, carregando consigo idéias, projetos e cenas rabiscadas que lhe renderam exposições, novas propostas de trabalho e vários convites para ilustrações de livros, catálogos, almanaques, salões e até uma bolsa de estudo e trabalho, que lhe permitiu viajar por vários países da América do Sul. O artista voltou à Bahia ainda, em 1941 e em 1944, na ânsia de vivenciá-la mais, a beber e desenhar tudo o que via.
Carybé na rampa do Mercado, em foto de Flávio Damm.
Irrequieto, declaradamente “à procura de um lugar para viver e pintar”, andou pelos Andes, viveu em comunidades indígenas nas montanhas, zanzando por aldeias e mercados, participando das festas tradicionais da região... Até que, numa dessas andanças, encontrou a jovem Nancy, no povoado de Chicoana, com quem se casou para sempre. A seu lado, em núpcias, tomou um trem rumo ao Rio de Janeiro, onde foi trabalhar na implantação da Tribuna da Imprensa, a convite do jornalista e político Carlos Lacerda. Era maio de 1946.
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Os talentos nascem como cogumelos, não exigem nenhuma explicação. Salvador Dali
Entre amigos Foi ao redor das mesas do refeitório de uma pensão barata localizada na Rua Djalma Ultrich, no efervescente bairro carioca de Copacabana, nos idos de maio/junho de 1946, que o fotógrafo Verger e o artista-jornalista Carybé se conheceram. Ali começaram a construir uma relação de fraternidade que nunca mais os afastou, a despeito das eventuais ausências em função de viagens e compromissos profissionais. A dona da pensão, uma imigrante polonesa, improvisara um restaurante de comida caseira, a preços acessíveis, onde jovens intelectuais, artistas e jornalistas marcavam ponto, buscavam o que fazer e jogavam muita conversa fora. Carybé e Nancy, recém-casados, hospedavam-se num dos poucos aposentos da pensão, ele já integrado na feitura do diário carioca Tribuna da Imprensa. Num prédio ao lado, Pierre Verger, também recém-chegado e em busca de trabalho, dividia apartamento com o arquiteto e fotógrafo Marcel Gautherot, seu conhecido desde a França. Por intermédio da bem relacionada articulista Vera Pacheco Jordão,Verger tentava emplacar umas fotos de comunidades incas peruanas na revista O Cruzeiro, veículo impresso de circulação nacional e o de maior tiragem do país, pertencente à rede dos Diários Associados comandada pelo influente jornalista e empresário Assis Chateaubriand, o Chatô. De olho na qualidade do trabalho de Verger, Chatô lhe propôs um contrato que asseguraria ao francês um oportuno “visto de residente” no país. E, habilmente, para evitar ciumeiras com o fotógrafo Jean Manzon — um francês que fazia dupla famosa com o premiado repórter David Nasser —, Chatô proporcionou a Verger uma ida à Bahia, tudo o que ele mais queria, sugerindo-lhe um encontro com o jornalista Odorico Tavares, um pernambucano que dirigia a principal sucursal nordestina dos Associados e era o correspondente de O Cruzeiro, em Salvador. Com ele, o fotógrafo Verger terminou realizando uma série de reportagens sobre a histórica 18
Salvador e a variedade de manifestações culturais, religiosas e festeiras do povo baiano. A Bahia tornou-se assim o tema maior de comum interesse nas animadas conversas que regaram a verdejante relação de amizade com Carybé. O pintor lhe mostrou desenhos e falou com paixão da luminosidade do céu, do magnífico azul do mar da Baía de Todos os Santos, da forte influência africana que se irradiava em tudo, dava até para sentir no cheiro entranhado pelos cantos da cidade. E contou-lhe ainda sobre a beleza oculta dos candomblés, a graça do balanço dos saveiros agasalhando-se no cais, sobre os traçados dos movimentos ágeis da capoeira, sobre o agito, a mistura de cores e sons nas festas de rua... Além de relatos da bravura, fé e resistência do homem sertanejo, narrou-lhe muitas histórias sobre as múltiplas demonstrações da alegria de viver desse povo mestiço e tão singular. Uma gente festeira, acolhedora e comunicativa, bem diferente dos interessantes, mas desconfiados andinos, irmãos latinos que ambos conheciam muito bem. Para iniciá-lo em “baianidades”, Carybé até levou Verger a uns terreiros de umbanda, no Rio, mas sempre fazia a ressalva de que o candomblé que vira na Bahia era muito diferente e mais encantador. O falante e sedutor argentino continuou no Rio, por um tempo. Mas, enfadado com a rotina de redação, voltou a Buenos Aires, retomando seu ofício mais prazeroso. Já era um artista consagrado como desenhista, ilustrador, pintor, muralista, escultor e fazedor de tantas outras artes além. Mesmo na Argentina, Carybé manteve-se em sintonia com a Bahia. Em 1949, expôs no I Salão Baiano de Belas Artes, ao lado de uma nova geração de artistas brasileiros, no Hotel da Bahia, em Salvador. Nessa época,Verger já havia esparramado raízes no chão da boa terra, retratando tudo, fixando a paisagem humana e o cotidiano da cidade com o foco colorido do preto e branco de sua rolleiflex, para sempre.
As fotos de Verger, da Bahia, são um retrato denso e profundo de seu povo, vivência intensa e amor pela cidade. Alegrias, festas, crenças, tendo como pano de fundo a bela arquitetura, igrejas, fortes, sobrados, arvoredos, o mar... Mas o ator principal é o povo que nele vive, chora, dança, dá gargalhadas. Alegres como a luz e as cores dos casarios. Tudo o que é vida está preso, fixo para sempre nas fotos de Oju Oba, Pierre Fatumbi Verger, Xangô Wimi, Ojê Rindê, Essa Elemaxô, Gbeto Windi, Otum Moogba Xangô Omô Orô, Ologboni, Príncipe da luz! Carybé
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Da Rua Chile ao Taboão Pierre Verger chegou no cais do porto de Salvador no dia 5 de agosto de 1946, depois de 12 dias de penosa viagem a bordo do velho vapor costeiro Comandante Capella, que realizava seu derradeiro trajeto. Dentro dele estava também o então jovem e esbelto estudante Cid Teixeira, retornando de um congresso estudantil, com quem logo fez camaradagem, em função de ser o único próximo que “arranhava” alguma palavra em francês e por causa de seu vozeirão, que chamava a atenção.Verger o chamava de Cid “estereofônico”. Tornaram-se amigos. No percurso, trocaram algum “de comer” e muitas informações. O astuto fotógrafo colheu indicações sobre pessoas interessantes a quem procurar e também sobre a cidade, onde reencontraria uns amigos franceses e imaginou passar uns seis meses, apenas. Mas no colo da acolhedora “mãe preta” terminou se aninhando e foi ficando cada vez mais, até o fim. Seu primeiro e provisório endereço na cidade foi um quarto simples e calorento no Hotel Chile, dotado de uma janela que lhe dava, por cima dos telhados da cidade baixa, uma visão panorâmica da Baía de Todos os Santos com todo o seu clarão azul-prateado. Ficava bem por trás e na direção das torres da Igreja da Conceição da Praia, com boa visão do cais do porto e da rampa do antigo Mercado Modelo; o Forte de São Marcelo, redondo, mais à frente, plantado nas águas; o Monte Serrat e o Bonfim ao longe, à direita; e a Ilha de Itaparica mais distante, bordando um naco do horizonte que se veste de cores avermelhadas a cada pôr do sol. Verger abraçou a Bahia com amorosa inquietude e cruzou mares, cavou os chãos da história em busca da compreensão de seus mistérios. Na África dos Iorubás, onde constatou os assentamentos ancestrais e as raízes do candomblé da Bahia, foi recebido e batizado Fatumbi (que significa “renascido pelas graças de Ifá”), na cidade de Queto, em março de 1953, e tornou-se 20
um Babalaô (literalmente, “pai do mistério”, aquele que vê o futuro), consagrando sua vida a novos desígnios. Apesar de suas idas e vindas e sumiços constantes, o andarilho fotógrafo já parecia ter escolhido em 1951 a “querida Bahia” como guarida. Tanto que fixou morada no sótão de um velho sobrado de quatro andares situado no alto do Caminho Novo do Taboão, Rua Pethion de Villar, uma das ligações entre a cidade alta e baixa, nas imediações do Pelourinho. Era um quartinho pequeno e escuro, mobiliado com uma cama e alguns caixotes. Para melhor arejá-lo e ainda ganhar uma vista para o porto e as águas da Baía de Todos os Santos,Verger mandou furar na parede um vão de quase 50 centímetros. No batente dessa singela janela costumava deixar refrescando uma moringa d’água. Um caneco-xícara sinalizava sua presença na casa, quando estava colocado ao lado da moringa; ou sua ausência, quando emborcado sobre a boca do vaso de barro. A morada era “um casebre sórdido”, na descrição do amigo Jorge Amado, que o “aluga” como ambiente para uma das mortes do personagem principal de seu romance A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água. Mas o francês gostava da rua, de muros e paredes de limo caindo aos pedaços, algumas bananeiras pela encosta, além de um constante cheiro forte de café e cachaça que exalava de uma torrefadora e de um depósito de aguardente, poucos metros abaixo de sua janelinha. E tinha ainda o Pelourinho bem próximo, com seus casarões, igrejas, casas de meretrizes, armazéns, pensões, bodegas ordinárias e muita gente a subir e descer, de manhã à noite, transportando mercadorias, tocando burros de carga, vendendo em balaios, circulando e conversando fiado. O fotógrafo se deliciava e bebia daquilo tudo. Circulava à vontade, rolleiflex à mão, andarilho ou pongando nos bondes, abordando a mulher do tabuleiro, o saveirista do cais, o capoeirista do mercado, a filha-de-santo na feira, o ambulante de rua, o desocupado da esquina...
E como prova de seu encanto e dedicação, deixou tudo registrado em dezenas de milhares de fotos e muitos escritos, sua definitiva tradução. Sua obra é o testemunho de um tempo, o retrato de incontáveis lugares, a partir de uma mirada precisa e cuidadosa. Focos e enquadramentos que resultam de um olhar e de um sentimento especiais. São registros, em imagens, da resplandecência de uma gente que lhe concedeu o renascimento, simplesmente deixando transparecer em seu cotidiano que há sempre novos significados e razões para viver. Basta abrir os olhos e querer.
Tarde da noite, o Comandante Capella chegou à Bahia de Todos os Santos. Da cidade distinguiam-se, apenas, as luzes de anúncio publicitário instalado na Praça Municipal. A alegria era tamanha, a bordo, que se mostrou inútil tentar dormir até amanhecer [...] Do convés do navio vimos nascer, na madrugada, os primeiros reflexos do sol, destacando-se, deste fundo luminoso, as silhuetas das torres das igrejas da Cidade Alta. Pierre Verger À bordo do Capella, na terceira classe, sem acomodação nenhuma, dormindo pelos bancos no meio dos estudantes vinha aquele francês de olhar curioso, que gesticulava e não sabia palavra de português. Meu francês colegial mal passava de um “bonjour”, mas como a comida de bordo acabou cedo, trocávamos lata de sardinha por leite condensado, e fomos nos entendendo. Fui falando das coisas da Bahia, dos candomblés, de Mãe Senhora, dei nome de pessoas a quem ele deveria procurar, onde encontrá-las, indiquei lugares onde ir e onde poderia ficar [...] e foi assim que fiz boa amizade com o extraordinário fotógrafo Verger, também um arguto e respeitável pesquisador das raízes afro-baianas, que costumava ir à minha casa, sempre, comer um pirão e conversar fiado. Grande e saudosa figura! Professor Cid Teixeira
Ontem pela manhã Verger e eu vagabundeamos na cidade baixa [...] Verger conhece uma quantidade incrível de pobres-diabos que vivem no porto: carregadores, engraxates, marinheiros e outros sem ocupação bem definida. Ele dá-lhes dinheiro, dirige-lhes gracejos, quer saber porque eles não estão presos [...] Eu o vejo subindo e descendo o Pelourinho, parando, curvado, diante das baianas-de-acarajé, mãe de santo ou simplesmente sua mãe. Eu o vejo também tomando chá-mate frio com mel, na esperança de facilitar a digestão do pneu carbonizado que lhe terá sido servido no simpático restaurante que freqüentávamos. À noite, um bonde sacolejante o conduz aos terreiros que você escala pela lama. Suas mãos levantadas exprimem seu respeito pelos Orixás... Alfred Métraux O fotógrafo fora confessadamente seduzido pelo povo da “boa terra”. Enfeitiçado por sua alegria, pela receptividade, pela religiosidade, pelo jeito de falar e de andar, pelas comidas. Sentia-se integrado no dia-a-dia da cidade, tocado com a força da africanidade de uma gente negra, mulata, colorida, misturada e, apesar das dificuldades da pobreza, de ar feliz. Caminheiro pelas ruas, freqüentou terreiros e feiras livres, subiu e desceu ladeiras, tecendo amizades com homens e mulheres trabalhadores de rua e também com os intelectuais e artistas que freqüentavam o concorrido escritório do influente Odorico Tavares, seu parceiro de reportagens. Por lá passavam Jorge Amado, Mário Cravo Júnior, José Valadares, Dorival Caymmi,Vivaldo Costa Lima, Godofredo Filho, Mirabeau Sampaio, José Pedreira,Vasconcellos Maia, Dom Clemente Nigra, do São Bento, Lygia Sampaio, Rubem Valentim, Wilson Lins e, claro, Carybé, que parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Somente para os órgãos dos Diários Associados — sobretudo para a revista O Cruzeiro, o mais importante deles —,Verger fez em torno de 200 reportagens, segundo
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“A primeira vez que soube da Bahia era por ter lido a tradução francesa do romance Jubiabá, de Jorge Amado. Tive assim a noção de que existia um lugar onde a vida me parecia simpática.” Pierre Verger
suas próprias anotações, com fotos exuberantes. Cerca de 60 delas foram publicadas, boa parte sobre temas baianos; a maioria com textos de Odorico Tavares. Fui seduzido na Bahia pela presença de numerosos descendentes africanos e por sua influência sobre a vida cotidiana deste lugar. Esta cidade possui um não-sei-o-quê que me prendeu e me enfeitiçou. Gosto da parte antiga com suas ruas estreitas, as praças irregulares rodeadas de sobrados um pouco deteriorados que retomam sua dignidade antiga na penumbra do dia [...] Fotografei os atléticos e bronzeados carregadores que se distraíam praticando a capoeira, luta dançada de origem angolana. Ia ver os jogos de futebol e ficava a ver os torcedores, de costas para o campo [...] Pierre Verger.
Verger em sua mesa de trabalho, com o gato Jean Jacques Rousseau, em foto de Mário Cravo Neto. 22