Arembepe • Vale do CapAo • Bahia
clareou
Sergio Siqueira
Conversa pra boi leAo dormir
Arembepe • Vale do CapAo • Bahia
Clareou: conversa pra Boi Leão dormir copyright © 2020 Sérgio Siqueira EDIÇÃO
Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E DESIGN
Valéria Pergentino Elaine Quirelli FOTOGRAFIAS
Sérgio Siqueira ILUSTRAÇÕES
Elaine Quirelli Capa, páginas 01 e 03 (os desenhos foram inspirados nos bonecos do Seu Diva, o velho dos Passarinhos - ver pág. 158), 14, 24, 34, 43, 49, 51, 56, 57, 100, 103, 104, 128, 135, 139 e 141. REVISÃO DE TEXTO
Isabela Larangeira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
S618c
Siqueira, Sérgio Clareou: conversa para boi leão dormir / Sérgio Siqueira ; ilustrado por Elaine Quirelli. - Lauro de Freitas, BA : Solisluna, 2020. 160 p. ; 16cm x 23cm. ISBN: 978-65-86539-00-4 1. Literatura brasileira. 2. Prosa. I. Quirelli, Elaine. II. Título. CDD 869.985 CDU 869.0(81)
2020-503
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira : Prosa 869.985 2. Literatura brasileira : Prosa 869.0(81)
Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 www.solisluna.com.br editora@solisluna.com.br
Aos que tentam o drible e aos que sabem entrar e sair do Sistema. Em especial, a Cristina, Tacilla, Tiana, João Lucas, Letícia, Cauê e Cora, minha estrada, meu número sete.
Vertigem é a emoção que mais vibra em Clareou – Conversa pra Boi Leão dormir, que traz a invenção já no título e agarra o leitor com a prosa de um homem que arregala os olhos para os sonhos e redesenha a vida com traços de doçura, criatividade, encantamento e desvario. Todo esse universo especial entra por nossas retinas através das fotos do autor que ilustram as páginas. Exímio contador de casos, Sérgio Siqueira consegue manter, na escrita, o mesmo ritmo e humor de suas inacreditáveis e deliciosas histórias, muitas vividas no Vale do Capão – seu refúgio mágico. Os dedos correm nas páginas alinhavadas com assombrações – ou livusias –, espécies de extraterrestres, árvores que se comunicam, matadores, entrevistas e curiosidades da era hippie dos anos 70. Lembranças impagáveis, como seus passeios por cemitérios, onde chegou a depositar livros sobre sepulturas – para doar aos que visitam seus mortos – ou a viagem aditivada de um amigo que deixou de falar com a sogra depois que, num surto de doideira, lançou ao teto colheradas de seu doce de abóbora, “receita secreta da família”. O melhor de tudo, no entanto, é perceber a sensibilidade de um adulto que ainda tem o dom lúdico de ver alma em bonecos, como o coelho de pano que comprou: “Você sacava que o bicho tinha um parafuso a menos”. Clareou é assim, alumbrado. Isabela Larangeira
O xamã enxergou O xamã enxergou tudo, tudo, tinha tomado o chá e estava
em estado alterado de consciência. Falou que todo mundo era passageiro do mesmo barco. Ninguém podia pular porque a gravidade não deixava. Todo mundo preso à Terra. Gostei do não poder pular porque a gravidade não deixa. Pura verdade!
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O ipê-amarelo floriu e apareceu ontem pegada de onça lá pra bandas do Riacho do Ouro. Poucas notícias da cidade, telefone quebrado, sem internet e sem coragem de comprar rádio e televisão. Jornal não existe mais, só nas capitais e mesmo assim não
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chega a 60 mil exemplares num estado de 13 milhões de habitantes. O que acontece fora dessa pequena bolha chega via boca a boca nas conversas da Feira. Parece que o Brasil, entrou em parafuso, mas tudo passa, nós também.
Por aqui, passarinho ainda está cantando. Depois da chuva os pretos apareceram em turma. Marilu chegou, veio fazer um recital com a poesia de Manoel de Barros. O poeta era um velhinho retado, viajava nas palavras e dizia, para quem quisesse escutar, que a sorte dele foi ter herdado uma fazenda de gado, pois não prestava para nada, só para as coisas imprestáveis e para a poesia. Se não fosse isso estaria fodido. Falávamos alto sobre o poeta e o evento que iria acontecer e um cara da mesa ao lado entrou na conversa. Sempre tem alguém entrando na conversa, e isso na maioria das vezes é bom. Esse entrou eloquente.
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Intervenção do cara da mesa Manoel de Barros! Morreu fazendo poesia e aqui, senhores e senhoras, só tem gente de brancos cabelos! Eu, que já estou de bengala, vou apresentar uma poesia desse grande poeta, falando dessa última Estação, a dos cabelos brancos! “Elegia a um Antônio Ninguém Ando cheio de lodo pelas juntas, como os velhos navios naufragados. Crescem urtigas sobre os meus ombros Nascem goteiras por todo canto Meu olhar tem odor de extinção” E antes que declamasse o último verso, gritei por ele, completando a poesia: “Meu nome é Antônio, Antônio Ninguém!”. Uma farra, quase as mesas se juntam, todos encheram os copos e fizeram um brinde: Viva Antônio Ninguém, viva Manoel de Barros.
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Pegamos a estrada Capão/Guiné/Mucugê. Essa estrada tem história e aventura pelo caminho. Você encontra muita coisa diferente até chegar ao final.
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Numa das passagens, conheci um bistrô no meio do nada, próximo a Esbarrancado, aos pés da Serra do Sincorá. O Bistrô da Onça, elegância e alta gastronomia vegana naquele pedaço perdido numa vicinal de uma estrada que às vezes leva mais de 40 minutos sem passar um carro. O caminho é cheio de pequenas igrejas e muitos cemitérios. Encontrei um em que na tumba de uma senhora, estava seu penico. Já passei por esse cemitério de quatro a cinco vezes e o penico continuava lá. Que história daria isso? Em algumas civilizações antigas, os ricos exigiam ser enterrados com seus cavalos, comida e criados, pois poderiam precisar deles na próxima etapa e não queriam arriscar. Acho que essa senhora pensou assim, não queria incomodar ninguém à noite, quando era problemático ter acesso ao banheiro, sem que alguém ajudasse.
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O tempo passa acelerado, os mais velhos falavam sempre isso. Tudo é um sopro. Babi está de namorado novo, alegre da vida. Tatuou o nome dele nos dois calcanhares, disse que assim ela ia ter o amado sempre aos seus pés. Era bastante mística e acreditava nos sinais e na simbologia.
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