GLÁUCIA LEMOS
GLÁUCIA LEMOS
[ESPELHO CHINÊS]
“Todos os dias arranco meu coração, e ele torna a crescer.” De um diálogo no filme “O paciente inglês”
“[...] aprendi com as Primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.” Cecília Meireles In: Desenho (Mar absoluto e outros poemas)
Marce
copyright © 2013 Gláucia Lemos EDIÇÃO
Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E DESIGN
Valéria Pergentino Elaine Quirelli FOTOGRAFIAS
Kin Guerra (capa e págs. 2 e 3, 142 e 143) (modelo da capa: Stephanie Wicks) TEXTO DA CONTRACAPA
José de Jesus Barreto REVISÃO DE TEXTO
Maria José Bacelar Guimarães Texto revisado segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa que entrou em vigor em 2009.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lemos, Gláucia Marce [espelho chinês] / Gláucia Lemos. -Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2013. ISBN 978-85-89059-54-1 1. Ficção brasileira I. Título.
13-05018
CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 | 3369.2028 editora@solislunadesign.com.br www.solislunadesign.com.br www.solislunaeditora.com.br Contato com a autora: glaucialemos9@hotmail.com
A minhas filhas e a meus filhos, porque existem.
Aqui, outra vez, o espelho do hall, o mesmo espelho chinês. A cabeça do dragão mordendo a cauda, com o corpo em ouro velho. Ainda é o mesmo. Dizia-se, na minha infância, que fora comprado por um ancestral a um mercador chinês e carregava um atributo especial: prognosticaria maus presságios a quem nele se mirasse em momento marcante da vida. Nossa família não parecia dar crédito a isso, mencionando-o apenas como curiosidade. As crianças, conquanto não parecessem temê-lo, revelavam respeito, evitando-o, enquanto eu e Pedro, meu primo e cúmplice, o víamos com temerosa desconfiança, e fugíamos de parar diante dele, especialmente em vésperas de provas na escola. Mas crescemos e já não encontrávamos sentido no pavor da infância, o que só recordávamos quando, eventualmente, passávamos à sua frente. Volto agora e, mal acabo de chegar, não há como ignorar certas recordações. Aqui está o espelho. Ainda é o mesmo. Olho-o e me procuro. A face que nele se reflete é que não é a mesma. Procuro meu rosto e o que encontro me causa profunda sensação de perda. Este rosto nunca mais será aquele da última vez. 11
Nele me olhei no último dia em que morei nesta casa, de grinalda e véu. A grinalda ancestral, duvidoso atestado da minha indispensável integridade física, tão cara à sociedade em que vivi a adolescência, descambou pelo lado, na direção de minha face, e a ponta aguda da armação de arame riscou um traço de sangue no meu rosto. Desconfiei de uma premonição... era o espelho. O prenúncio da dor estava feito. Então vi os olhos espantados de Pedro, solidários a meus receios. Voltado para a porta aberta da biblioteca neste momento, o espelho me mostra Cibele, Argemiro e Dorival, alegremente em volta de uma mesa. Jogam cartas, um velho costume que não abandonaram nesses vinte anos. Todos eles estavam na igreja naquele dia. Terei que os cumprimentar dentro de instantes, mas sei que ainda não estou preparada para isso. Deixo o hall e me encaminho para uma porta lateral, atravessando o jardim. Caminho pelo terreno ao longo das janelas, cuidadosamente, para que os meus passos não trinquem as pedras roliças que recobrem a terra, denunciando minha chegada. Antigos cuidados que conservo à toa. Já não estou retornando de um encontro com Dante, e parece que disso não me apercebo, nos escrúpulos que ainda me tomam. E aqui vou. Mais como se estivesse em fuga, que em chegada. Alcanço, finalmente, a porta lateral. Dois degraus afastam-me da soleira. Interrompo meus passos, já não é possível recuar, porém. Há pessoas na pequena sala. É a antiga sala de costura. Era ali que Elaine permanecia nas tardes quentes, bordando ou lendo algum dos seus muitos livros. É como se revisse a cadeira austríaca, de balanço demorado, onde ninguém ousava sentar-se. Era somente dela, e o que era dela tornava-se sagrado, mesmo sem proibição expressa. Encontro um casal aconchegado no espaço entre uma larga estante de portas de vidro e um antigo aparador de vinhático. Beijam-se com uma paixão que me perturba e me deixa indecisa entre prosseguir ou recuar. Em poucos segundos, pressentem 12
minha presença, embora eu tenha estado silenciosa e, tomada de surpresa, tenha tido a discrição de interromper-me sem transpor a soleira. Mas pressentem. O homem, rapidamente, afasta-se e me olha ligeiro por cima do ombro, fingindo uma atitude disfarçada. Não o reconheço. Também finjo, por certo muito mal, não ter percebido o que faziam, e entro na sala. A mulher permanece encostada à parede. Por um rápido olhar, posso ver que é pequenina e tem olhos escuros, particularmente grandes. Rosto de boneca. Põe em mim os olhos assustados. Não sei se me reconhece, mas eu a estranho. Fica a impressão dos olhos. Tudo no seu rosto desaparece e tenho certeza de que nada existe mais em sua fisionomia, à minha percepção, senão olhos. Enormes, escuros, algo perturbadores. Em poucos passos, chego à porta da direita, que está fechada. Estranhos namorados, beijavam-se, talvez, furtando um momento, pois tinham tido o cuidado de fechar a porta. Que relação terão comigo? Primos, certamente. Mas, qual dos dois? Ele? Alto, cabelos escuros, bastos. Usa blazer cor de vinho. O rosto, vi tão ligeiramente, não tenho certeza. Talvez seja bonito. Pelo menos não é feio. Será ela? Não tem o tipo da família. Pequena demais. O porte elegante e a alta estatura eram características dos Torres Alvar. Família de gente grande. Exceção do tio Joca. Ninguém sabe a quem puxou com seu modesto metro e sessenta e cinco. Mas, como era elegante! Tinha o costume de caminhar bastante ereto, como que tentando disfarçar a pequena estatura, numa família onde era o que menos crescera. No entanto, mesmo vestindo bermudas, tio Joaquim tinha a elegância de um lorde. Há muito acerto em se dizer que a elegância está no ser, não no que o veste. Não falo com eles. Suponho que me acompanham com o olhar. Talvez me antipatizem pelo quanto sou inoportuna com minha chegada. Uma porta comunica com a outra sala. A maçaneta não obedece, mas há uma chave. Rodo-a maciamente e consigo deixar o ambiente sem reolhar o casal. Não sei se retornam ao idílio, suponho que não; parece-me que o homem se encaminha 13
para a porta que conduz ao jardim. Sinto-o sem vê-lo; só escuto os passos. Na sala seguinte há apenas um homem lendo um jornal, relaxado em uma poltrona de couro negro. Não o reconheço, não vejo seu rosto, escondido pelas folhas abertas. De onde estou, posso ver, além do corredor, Cibele, Argemiro e Dorival em torno de uma mesa. A cena que vi refletida no espelho, à hora em que chegara. O homem, alto e maduro, afasta as folhas a ver quem entra. Sem hesitar, levanta-se, olhos fixos em mim. Não o reconheço imediatamente; os cabelos revoltos caem um pouco por cima do rosto. Rapidamente, abraça-me apertado, chora de emoção. Um choro de soluços entrecortados, com o rosto em meus cabelos. Aperta-me entre os braços, como se me abrigasse, ou como se precisasse de abrigo. Com o rosto à altura de seus ombros, cobertos pela camisa estampada, sinto dele o antigo cheiro de colônia inglesa. Meu Deus, esta ruína é Pedro. Que tempo passou que fez de Pedro este resto que é agora? As surpresas do tempo assemelham-se à fome dos abutres, muitas vezes. Não resisto à emoção e choro também. Meu fiel Pedro. Quem ou o que te pôde fazer tanto mal? – Pensei que não viesse. Ele começa, afrouxando o abraço e enxugando o rosto com um lenço. Os olhos semiapertados. Afastamo-nos para a varanda dos fundos e nos debruçamos para o quintal. Pedro tem muitos vincos no rosto, principalmente nos cantos dos olhos e na testa. Os cabelos, ainda volumosos, não estão cortados, e sim penteados com descuido. A pele mais queimada, como se andasse ao sol. Já não se parece com Robin Hood. Ou é agora o que seria um resquício de Robin Hood, daquele olhar sensual e da boca bonita. Pedro Hood!, eu o chamava, brincando. Mas ainda o mesmo halo de carinho a expandir-se da sua expressão. – Não queria vir. Relutei, mas Filipe me escreveu duas vezes. Apelou um pouco na última vez, argumentando que os primos não poderiam sofrer as consequências do desentendimento entre mim e a tia Ela, que o testamento não seria aberto sem a presença 14
de todos os possíveis herdeiros, que meus bons sentimentos não estenderiam meus rancores para os primos, e por fim apelou: que você pre-ci-sa-va me ver! Era a apelação mais poderosa, ele sabia. Você deu o meu endereço, me traiu. – Desculpe. Não tive opção. Virão todos. Até Marcelo, que agora é correspondente no Iraque. Dolores e Filipe estão procurando ser corretos, obedientes a todas as determinações. – Eu não faria falta. Não me importo com isso e não me interesso por nada do que existe por aqui. Vivo a minha vida com o ganho do meu trabalho. Não sinto falta de nada do que tive na infância. Só vim para evitar novos comentários em torno do meu nome. Além disso, não tinha certeza se falar de você era só apelação. Felizmente era. Você está bem. Ele hesitou e respondeu – Estou. E, como você, também não me importo com o que há por aqui; nunca fui ambicioso, mas não tenho os seus motivos. Os meus são apenas diferença de convicções. Confirmo com um gesto da cabeça, e silenciamos. Pedro demora-se olhando para mim, como se fizesse um reconhecimento. Vejo nos seus olhos a terníssima procura. – Você quase não mudou. Só amadureceu. Era bonita, tornou-se bela na maturidade. A passagem do tempo lhe está sendo favorável – falou e sorriu lisonjeiro. Ri também. Ele completou: – Está mais morena, a pele bronzeada. Talvez seja o salitre, você se tornou praieira. Que mudança! O tempo, Marce... O tempo, esse guerreiro contra o qual lutamos em vão. Voltamos a sorrir. Seu sorriso, porém, é quase melancólico, tem uma conotação de amargura. Também começo a me sentir amarga. – Os anos passam, Pedro. Eu sinto que mudei muito. A gente um dia descobre que não é mais a mesma pessoa e disso não se tinha apercebido. Hoje, agora, quando entrei e revi o espelho da premonição, lembra-se? O sinal anunciador. Era verdade. 15
Ele balança a cabeça com segurança. – Claro que me lembro! Nunca esqueceria aquele dia. O pavor no seu rosto, e eu sem ter o que fazer para ajudá-la. – Não foi premonição do casamento, foi dali para a frente, o que viria dali para a frente. Revi o espelho agora, na entrada. Procurei o rosto daquele tempo, alguma coisa, um leve sinal que fosse, daquele rosto puro de menina que tudo o que queria era viver e ser feliz. Alguma coisa da expressão da mesma Marcelina anterior à maldição que recebi do clã. Não há mais nada. O rosto talvez ainda seja o mesmo, mas nele não me encontrei mais. Sou outra pessoa. Para ser sincera, não sei o que estou fazendo aqui. Não pertenço mais a este núcleo, eu sozinha sou toda a minha família. Não tenho laços, não tenho parentes. Foram circunstâncias, sei, no entanto... – Que é isso, eu ainda estou aqui, Marce. Já deixei de ser um bom motivo para a sua presença? Sempre estivemos do mesmo lado, nunca esqueça isso. Nós não mudamos. Ele sorri. – Você deve saber, minha atitude não o inclui nem preciso dizer isto. Só há mesmo você, que tanto me acolheu naquele tempo. Você continua sendo o que sempre foi; o irmão que não tive. Minha expressão amarga emociona Pedro. Vejo seus olhos levemente úmidos, enquanto fala. – Sendo assim, existe alguém com você. Aliás, ninguém tem nada contra a sua presença. Verá que já nem somos os mesmos. Ainda que alguém se tornasse hostil, quem enfrentaria o seu sempre fiel escudeiro? – brinca, tentando relaxar a tensão que se instala. – Oh Pedro... Pedrinho... – comovo-me, apertando-lhe a mão que repousa sobre a minha valise. – Estou ansiosa que acabe tudo depressa. Quando começarão? – São esperados amanhã o juiz e o escrivão. – Não deveríamos todos ir ao fórum para a solenidade, em vez de vir a nós o juiz? Os Torres Alvar ainda conseguem tudo? Nunca se convencerão de que estão decadentes? É bom, mas irei embora logo que terminem. 16