O mar, quando quebra na praia, ĂŠ bonito... ĂŠ bonito!
Carybé, Verger & Caymmi - Mar da Bahia © Fundação Pierre Verger
presidente Gilberto Pedreira de Freitas Sá
Todos os direitos reservados
diretora secretária
© Instituto Carybé
Angela Lühning
Todos os direitos reservados de uso de desenhos e pinturas de Carybé
© Fundação Pierre Verger Todos os direitos reservados de uso de fotografias de Pierre Verger
diretora tesoureira Denise Duque
superintendente Dione Baradel
© Dorival Caymmi Todos os direitos reservados das obras musicais (ver página 168)
patrocinador
projeto editorial Fundação Pierre Verger Solisluna Design e Editora
concepção, edição e design Enéas Guerra Valéria Pergentino
edição de imagens Alex Baradel Valéria Pergentino
tratamento de imagens
Este livro teve sua primeira edição, em 2009, através da Lei Rouanet - Ministério da Cultura, patrocinada pela:
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, registrada, transmitida, transcrita ou armazenada em sistemas de recuperação, ou traduzida para alguma língua ou linguagem de computador, de nenhuma forma ou por meios eletrônicos, mecânicos, magnéticos, manual ou qualquer outro, sem a autorização por escrito da editora e dos detentores do copyright.
Elaine Quirelli Vicente Sampaio
www.pierreverger.org www.solislunadesign.com.br
edição do texto e redação
Segunda edição - 2012
José de Jesus Barreto
revisão do texto Maria José Bacelar Guimarães
tradução para o inglês Sabrina Gledhill
fotografias Arquivo Família Carybé Adenor Gondim Arlete Soares Sergio Benutti German Lorca Agradecemos aos fotógrafos German Lorca e Arlete Soares pela liberação das fotografias sem ônus.
C277 Carybé Verger & Caymmi : Mar da Bahia / [org. e redação do texto José Barreto de Jesus]. – Salvador : Fundação Pierre Verger : Solisluna Design Editora, 2009. 168 p. : il. – (Entreamigos) Inclui bibliografia. Texto em português e inglês. ISBN 978-85-88971-07-3 1. Carybé, 1911 - 1997 - Amigos e companheiros. 2.Verger, Pierre, 1902 - 1996 - Amigos e companheiros. 3. Caymmi, Dorival 1914 2008 - Amigos e companheiros. 4. Pintura - Salvador (BA) Brasil. 5. Fotografia - Salvador (BA) Brasil. 6. Música - Salvador (BA) Brasil. I. Barreto, José de Jesus. II. Série. CDD - 700 Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa – UFBA
Bahia’s Sea
Três artistas amigos da Bahia Irmãos na arte e na fé, o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Fatumbi Verger, o artista argentino Hector Páride de Bernabó, ou simplesmente Carybé, e o compositor baiano Dorival Caymmi foram protagonistas de um feito que vai muito além de suas artes. De origens e formações distintas e unidos por uma visão muito particular sobre os mistérios do mar e da gente da Bahia, eles descortinaram para o mundo as cores e a cultura afro-baiana. Três artistas que só se tornaram amigos pela coragem de romper fronteiras. Fronteiras físicas, sim, mas, mais do que isso, fronteiras das crenças e do pensamento. O legado deixado por esses grandes “brasileiros” transcende suas expressões artísticas e incursiona pela característica comum de abertura ao novo e da curiosidade por culturas desconhecidas. Criadores e criaturas, pois, ao mesmo tempo em que traduziam em traços, cores e sons a cultura de um povo, mergulharam também nessa mesma cultura dando-lhe singulares contribuições, sobretudo no plano da prática do valor intrínseco e libertador da diversidade. Nesse sentido, são, talvez, exemplos da importância de somar e de compartilhar conhecimento e de que as relações se perenizam pelo permanente reconhecimento do outro, à medida que todos contribuam e se engrandeçam em proporções equivalentes, influenciando e sendo influenciados. É por acreditar que novas perspectivas e, mais ainda, o respeito pelas tradições, princípios e crenças de cada um – como tão bem fizeram esses três amigos da Bahia – são fundamentais para o crescimento e a longevidade de nosso país ou de qualquer nação, que nos sentimos gratificados por patrocinar esta obra e, por meio dela, também contribuir para a continuidade e a perenidade dessa verdadeira lição de vida. Construir relacionamentos duradouros e compartilhar conhecimento são dois dos vetores que norteiam
a PricewaterhouseCoopers e que, em nosso entender, fundamentam nossa própria história de longevidade empresarial. No Brasil, desde 1915, nossa organização tem também absoluto compromisso com o desenvolvimento do país, razão pela qual entendemos que a preservação da memória cultural de nossa gente é uma ação que celebra nosso conceito de responsabilidade social corporativa e, igualmente, expressa nossa percepção de liderança. A Fundação Pierre Verger reafirma seu importante trabalho social e cultural por meio do resgate, do registro e da disseminação da memória baiana, ao editar a série “Entre Amigos”, em especial este segundo volume, que põe em foco o mar da Bahia, mar que trouxe Verger e Carybé e tanto inspirou Caymmi. Fernando Alves Sócio-Presidente PricewaterhouseCoopers - Brasil
Mar da Bahia Não teríamos como registrar a arrebatadora emoção de nos envolvermos com o Mar da Bahia e sua gente, sem as velas dos eternos saveiros de Verger, sem as alegres e inesquecíveis puxadas de rede de Carybé ou sem os pescadores das formosas jangadas de Caymmi. Desde o primeiro momento, o tema escolhido para o segundo livro desta série nos trouxe a certeza da imprescindível participação do mais legítimo senhor das águas desse mar, um dos baianos fundamentais; compositor, músico, escritor, pintor e dileto amigo de Verger e Carybé: Caymmi. E, como não podia deixar de ser, o produto desse novo encontro, o Mar da Bahia, se imortaliza ao ganhar vida nas fotos em preto e branco de Verger, se ilumina no colorido das telas de Carybé, com seus personagens e embarcações, e ecoa conquistando o mundo nas canções de Caymmi. Soteropolitano da gema, nascido e criado na velha cidade do Salvador, Caymmi é umbilicalmente ligado aos mistérios das águas de Yemanjá. Ele acrescentaria, com a languidez e sensibilidade de um poeta em contemplação profunda, serena e comovente, inigualáveis acordes e poemas aos insuperáveis registros fotográficos de Verger e às magistrais criações pictóricas de Carybé. Nesta obra, as imagens captadas por Verger ou Carybé parecem inspirar as doces rimas de Caymmi, enquanto seus versos parecem embalar as cenas que seus dois amigos registraram para a eternidade. Caymmi já conhecia Carybé desde o ano de 1938, no Rio de Janeiro, e viria a conhecer Verger pelas mãos de Odorico Tavares, o mago do jornalismo baiano, no ano
de 1946. Nessa época, já famoso, foi por ele fotografado na praia de Itapuã e na lagoa do Abaeté, para uma reportagem da revista O Cruzeiro, carro chefe dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Desde então, os amigos só se separaram já longevos, quando cada um a seu tempo deixou de habitar esse nosso mundo enriquecido com as heranças de suas criações:Verger, o mais velho, em 1996, Carybé em 1997 e Caymmi em 2008. Esta referencial trilogia, que raramente se manifesta no plano da criação artística, deixou-nos muitas lembranças, uma imensa saudade e um legado que fixou, de maneira indelével e definitiva, o admirável mundo baiano que os acolheu e deslumbrou e que tão bem souberam retratar. Hoje, o Oju Obá Pierre Fatumbi Verger, o Obá Onã Xocum Hector Bernabó Carybé e o Obá Onicoyi Dorival Caymmi, outra vez reunidos e felizes, a tudo assistem celebrando seus reencontros, enquanto seguem dedicados a explorar o inesgotável tema: o Mar da Bahia, suas águas, seus saveiros e jangadas, sua gente, suas festas, seus encantos e mistérios. Mais uma vez, a sensibilidade de Enéas Guerra, da Solisluna, e de José Barreto, com seu texto tão emocionado, permitiram à Fundação Pierre Verger, com o apoio entusiasmado da PricewaterhouseCoopers, oferecer esta obra de raro prazer. Gilberto Sá Presidente da Fundação Pierre Verger
Agradecemos a todos que participaram e colaboraram com a edição deste livro, em especial a Henrique Luz, Danilo Caymmi, Stella Caymmi, Nancy e Solange Bernabó.
Sumário 17
Carybé, Verger & Caymmi: caminhos do mar
28
Bahia cidade de São Salvador
40
Um bem na terra, um bem no mar
48
Ô canoeiro puxa a rede...
83
Saudade de Itapoã
107
Meu Senhor dos Navegantes venha me valer
121
Minha sereia, rainha do mar
137
O que é que a baiana tem?
157
Epílogo
158
Fontes
160
English translation
Nota do Editor A grafia das canções de Caymmi, neste livro, foi mantida conforme originais do compositor na obra Dorival Caymmi – Cancioneiro da Bahia, exemplar da 4a edição, publicada pela Livraria Martins Editora.
Minha jangada vai sair pro mar Vou trabalhar, meu bem querer. Se Deus quiser, quando eu voltar do mar Um peixe bom eu vou trazer Meus companheiros também vão voltar E a Deus do céu vamos agradecer. História de Pescadores – Canção da Partida
12
13
Vamos chamar o vento Vamos chamar o vento (assovio) Vento que dá na vela Vela que leva o barco Barco que leva a gente Gente que leva o peixe Peixe que dá dinheiro: Curiman ê Curiman lambaio Curiman Vamos chamar o vento O Vento
Carybé, Verger e Caymmi: caminhos do mar Quem ouve desde menino Aprende a acreditar Que o vento sopra o destino Pelos caminhos do mar (Caymmi, Caminhos do Mar). Águas tramam caminhos, traçam destinos. O mar é caminho da humanidade. Fecundo. Eterno desafio, na sua profundeza de encantamentos. Encantos que tornam possível olhares e percepções convergentes, que irmanam pessoas de origens e histórias tão distintas — como o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Fatumbi Verger, o artista argentino Carybé e o compositor baiano Caymmi — e desabrocham em arte. Perene. Na Bahia, o mar é mãe. Reino de mistérios, vaivém da vida, ente de devoção. Reino de Yemanjá, tão bem louvado nas histórias contadas em letras por Jorge Amado. Todos eles irmãos, filhos do mar e da Bahia. Amigos partícipes e também criadores, cada um com seu modo de fazer, de um comportamento ou jeito de viver expresso como “baianidade”, que tem raízes na mistura étnica e cultural desse povo. Artífices do século XX que legaram, para sempre, registros vivos de uma época, de uma forma de encarar a vida num certo e iluminado lugar à beira do mar atlântico. O foco de Verger, o traço de Carybé como a sonoridade e cores de Caymmi são artes plenas de encantamento do mar. Antes de chegar à Bahia, em 1946, a bordo do acanhado navio “Comandante Capella”, curioso da africanidade de uma gente diferente, o parisiense Pierre Edouard Léopold Verger, que completaria 44 anos, já era um fotógrafo respeitado, um viajante-navegante por opção de vida. Conhecera e fotografara portos, cidades e povos do mar dos cinco continentes — Europa, Ásia, Oceania, África e Américas. Um
mundo de luz e sombras registrado pela lente de sua rolleiflex. A grandeza das águas e a labuta da gente vistosa do cais e suas embarcações desde cedo atraíram seu olhar. Em Salvador, fascinado pela luminosidade única do céu e das águas atlânticas, apaixonou-se pela sinuosidade dos saveiros do Recôncavo e por todo o movimento em torno do chega-e-sai das embarcações na Rampa do Mercado, na feira de Água de Meninos, portos e ancoradouros: os mestres, a tripulação de negros e mulatos ágeis, os carregadores atléticos, toda a coreografia do cais; e também os pescadores da orla, na lida diária de redes, jangadas, canoas e suas aventuras nas ondas do mar aberto pelo breu da noite à cata do peixe bom. Por algum tempo abrigou-se num calorento quarto do Hotel Chile, na cidade alta, de onde, pela janela, vislumbrava a amplidão azul das águas da Baía de Todos-os-Santos. Depois, residiu no andar de cima de um velho sobrado do Taboão, onde mandou abrir um vão na parede, para que pudesse ver o mar. Costumava caminhar até o cais, a Rampa do Mercado para conversar com os trabalhadores do porto, os carregadores, os saveiristas e fotografar. As colônias de pesca no litoral norte, do Rio Vermelho a Itapuã, ficavam bem distantes do centro urbano na Cidade da Bahia dos anos 40/50 do século XX. Esse mesmo mundo de mar foi captado e desenhado pelo artista múltiplo Hector Páride de Bernabó, nascido nas franjas de Buenos Aires em fevereiro de 1911, mais conhecido como Carybé. Já era desenhista, pintor, escultor, decorador e jornalista quando aportou pela primeira vez na Bahia, no ano de 1938, a bordo do costeiro “Itanagé” e logo foi definitivamente tarrafeado por sua luz, sua gente, seu mar, sua terra, suas coisas. Nesse ano, ávido por conhecer o dia a dia daquele povo distinto, descrito no romance Jubiabá, de Jorge Amado, o buliçoso Carybé passou seis meses de alegria e penúria 17
No navio, bem embaixo de onde eu estava, uma mulher teve um ataque, e, se estrebuchando no chão, virou a saia ao contrário, onde só se viam a barriga e as pernas, o lado de cima estava coberto pela saia. Foi a primeira visão surrealista que tive, o primeiro sexo de mulher-feita que vi. (Bruno Furrer, Carybé).
entre capoeiristas, prostitutas, mestres de saveiro, feirantes, pescadores, gente do cais... e danou-se a desenhar. Era também fascinado pelo mar. Lembrava dos anos de infância em Gênova, norte da Itália paterna, vividos numa casinha ao alto de um morro, de onde se via o porto e as águas do Mediterrâneo. E, mais ainda, da longa viagem, aos oito anos, de volta para a América do Sul, rumo ao Rio de Janeiro, na terceira classe do velho navio “Sofia” que ancorou em portos do norte da África antes da travessia atlântica. Inesquecíveis as imagens dos meninos pretos mergulhando atrás de moedas, as belas mulheres de Dakar envoltas em panos coloridos, os pobres pedindo esmolas em Las Palmas, a cerimônia fúnebre de um passageiro que morreu ao passar por Tenerife e teve o corpo atirado ao mar com rezas e longos apitos. E mais relatou: 18
Somente em 1950 o pintor argentino viria definitivamente para a “boa terra”, onde se tornou para sempre baiano. Morou por um tempo no bairro costeiro de Ondina e depois num sobrado defronte da praia do Rio Vermelho, então um sítio de veraneio e de pescadores. O mar sempre foi uma referência na vida, em seu trabalho. Mar da Bahia, inspiração e colo do compositor-cantor Caymmi, nascido em Salvador, cidade aconchegada nas águas, a 30 de abril de 1914. Era filho de Aurelinda Cândida de Aragão Soares (Dona Sinhá), mulher de “boa família”, e do mulato Durval: elegante, boa vida, fiscal de navio mercante no cais, bom de violão, frequentador de missa dominical e terreiro de candomblé, sem distinção. Durval dava muito trabalho, no dizer de Dona Sinhá. O filho Dorival, que muito puxou ao pai, menino ainda pegava escondido o violão paterno e construía seus primeiros acordes. A cidade da infância de Dorival Caymmi, que viveu a adolescência e juventude na Ladeira do Carmo, centro histórico, tinha cerca de 150 mil habitantes. O bonde de tração elétrica era o transporte. Os elevadores Lacerda, do Taboão e o Plano Inclinado Gonçalves já ligavam as cidades alta e baixa, e a novidade urbana era a abertura da Avenida Sete de Setembro, rasgando o centro em direção à Barra. A primeira visão do mar do guri Dorival aconteceu num veraneio à casa da tia Pipi (irmã de Sinhá), na então colônia de pescadores do Rio Vermelho. Subiu no muro do quintal para ver a imensidão das águas e cortou o pé num caco de vidro. Restou uma sensação de encantamento e dor; o azul do mar e o vermelho do sangue gravados na memória. No Carmo, conheceu Zezinho, vizinho e amigo para tudo, com quem “conheceu a vida” batendo pernas pela Página ao lado,Verger e Caymmi fotografados por Arlete Soares.
cidade e aprendendo o falar corriqueiro do povo, ouvindo histórias dos mais velhos, ensaiando músicas, fuçando emissoras de rádio no intuito de mostrar seu talento, tentando sem êxito ganhar a vida como vendedor, e, mais importante do que tudo isso, aventurando-se em longos passeios até a longínqua Itapuã, então uma bucólica aldeia de pescadores. Chegar até lá era uma aventura. Ali alugavam uma palhoça e acompanhavam o dia a dia daquele povo do mar, preguiçando, fazendo ousadias, ouvindo histórias e explorando as dunas de areia fina que se estendiam até a Lagoa do Abaeté, em liberdade plena, os ouvidos apurados no som do quebrar das ondas, do vento no coqueiral sem fim, no sotaque e na cantoria da gente das águas. Aos 24 anos de idade, frustrado com a falta de oportunidade de “ganhar a vida” em Salvador, embarcou com a bênção de Durval e Dona Sinhá no navio costeiro “Itapé”, tendo como destino o Rio de Janeiro, sonho baiano àqueles tempos, com o inseparável violão empacotado sob o braço, um livro presenteado pelo amigo Zezinho e charutos doados pelo pai. Era 1º de abril de 1938. Foram alguns meses de pindaíba em quarto de pensão barata perto da Avenida Rio Branco, mas o mulato sestroso e talentoso foi se enturmando com os cariocas da “era do 20
Jorge Amado, Caymmi e Carybé. Arquivo família Carybé.
rádio” e nesse mesmo ano já algumas emissoras abriam os microfones famosos para aquele violão tocado de forma diferente, com acordes de vagas e berimbaus, a voz grave aveludada e canções baianas genuinamente brasileiras, populares e tão elegantes. O grande salto para o sucesso aconteceu ao lado de Carmem Miranda, “a pequena notável”, ídolo maior da música brasileira à época, que encenava musicais para Hollywood. Carmen faria seu quinto filme, Banana da Terra e precisava de canções novas. Então, o compositor e radialista Almirante apresentou-lhe Caymmi, que a encantou com O que é que a Baiana tem? Era começo de 1939. Carmem abriu as portas para o jovem baiano que sugeriu os trajes e os trejeitos que ela faria ao cantar, até o revirar dos olhos. Tornaram-se grandes amigos. Dorival Caymmi conheceu Carybé em 1938, quando o argentino desembarcou no Rio de Janeiro, naquela vadiagem de volta ao mundo e foi levado por um amigo a conhecer “um nordestino de talento” que começava na noite carioca. Estive no primeiro show de sua carreira, no Flamengo... relembrava Carybé sobre o amigo. Como escreveu a
jornalista e escritora Stella Caymmi, neta de Dorival, eles tinham muito em comum: o amor à Bahia, à pintura, o gosto pela safadeza. Carybé tocava pandeiro e berimbau; Caymmi também gostava de cores e pincéis e já traçava suas pinturas. Eram jovens artistas, amantes da noite, das mulheres, da vida. Tornaram-se grandes amigos, de sair juntos. O falante Carybé lembrava das estripulias à época da juventude pelos bares e boates do Rio, a capital e centro cultural do país, com cerca de um milhão e meio de habitantes nos anos 40: Eu e Caymmi estivemos juntos em várias “broncas de cabaré” e até fomos presos. Numa delas, eu saí com um olho preto e ele com dois. Nos metemos com um capoeirista [...] (Marília Barboza e Vera de Alencar, Caymmi Som Imagem Magia).
de Caymmi que hoje me sinto cansada. Por causa da vida profissional noturna e da bebida, Dorival começou a ter problemas de saúde ainda no final dos anos 1950. Só foi parar de beber, definitivamente, por volta de 1972. Mas é um homem fabuloso e se eu tivesse de começar tudo de novo não vacilaria: recomeçaria com ele, derramava-se Stella. A primeira metade da década de 1940 não foi nada fácil, a despeito de todo o glamour carioca. O mundo estava em guerra, o nazifascismo arrasava a Europa, o país vivia a ditadura do Estado Novo de Vargas e havia escassez de tudo. Mas Caymmi, trabalhando na noite e nas rádios, ganhou prestígio e espaço com sua voz e violão cantando o mar da Bahia. Carybé conheceu Verger finda a guerra, em 1946, numa pensão-refeitório dirigida por uma polonesa, localizada na
Caymmi casou-se com Stella Maris, uma jovem, bela e determinada cantora mineira batizada como Adelaide Tostes, em abril de 1940. Foi sua paixão eterna, mãe de seus filhos Dori, Nana e Danilo, todos músicos. Stella era um dengo que metia medo, dizia. Contemporâneo de farras e música, o compositor pernambucano Fernando Lobo resumiu, com todo o assentimento do baiano: A vida de Caymmi sem Stella seria muito engraçada: um vagabundo que tocava violão no meio da rua. Stella é aquela mulher que ele ganhava 50 mil réis e ela roubava 35. Grande mulher, minha comadre Stella. Ela, que é uma pessoa desorganizada, organizou Caymmi. Stella a vida toda mandou nele. Ele saía da linha, teimoso, e ela puxava. No carinho ou na porrada. Ela manda nele, sim, graças a Deus. A apaixonada Stella, que abandonou a carreira de cantora por decisão própria ao decidir viver com Dorival, relembrava ao lado do amado já de cabelos brancos: Ele era terrível com esse negócio de mulher. Não era santo não, elas davam em cima dele, na minha cara [...] Controlei tanto a vida Carybé participou do Bando da Lua como pandeirista em turnês de Carmem Miranda pela Argentina. 21
Rua Djalma Ultrich, em Copacabana. Carybé, recém-casado com Nancy, a futura mãe de seus filhos Ramiro e Solange, e mulher de toda a vida, trabalhava na feitura do jornal Tribuna da Imprensa. O fotógrafo, recém-chegado de uma experiência de vida entre comunidades dos Andes, na penúria, em busca de um trabalho. Um interesse comum os uniu fraternalmente até o fim de suas vidas: a Bahia, sua luz, seu mar e, sobretudo, sua gente mestiça com fortes raízes culturais africanas. Nesse mesmo ano, em 5 de agosto, o fotógrafo Verger desembarcaria em Salvador, recomendado pelo empresário Assis Chateaubriand, com a missão de fazer grandes reportagens sobre as manifestações populares baianas para a revista O Cruzeiro, então o órgão de imprensa de maior tiragem no país, ao lado do jornalista Odorico Tavares. Pois foi certamente através de Odorico, então diretor dos “Diários Associados” no Nordeste, que Verger conheceu Caymmi. Na agenda de bolso do fotógrafo está anotado em letrinhas miúdas, no dia 28 de outubro de 1946, pela primeira vez, o nome do compositor: “Photos Caymmi”. Seguramente, marcando a feitura das fotos depois editadas na matéria “Caymmi na Bahia”, em destaque na edição de 5 de maio de 1947 da revista O Cruzeiro, com texto de Odorico Tavares.Verger, então, clicou Dorival Caymmi em p&b à vontade, passeando pela cidade com seu violão, sob coqueirais à beira da praia, olhando o seu mar da Bahia. De Salvador, no dia 3 de janeiro de 1947, o cronista, radialista e compositor pernambucano Antonio Maria escreveria para o amigo Dorival, que a essa altura já havia retornado ao Rio de Janeiro, onde morava: Escrevo-lhe, roubando tempo dos outros, quando poderia estar trabalhando para o ilustre Dr. Chateaubriand. Mas não há de ser nada. Não sabe o “ilustre passageiro”que chegou a minha big radiovitrola, com mudança para 12
Acima Verger e Caymmi, foto Arlete Soares. Ao lado Carybé, foto German Lorca.
discos etc. O gramofone de Odorico, numa atitude muito natural de pudor, está mudo, conservando apenas sua atitude de pobre e feio adorno. Grandes gravações foram compradas e pena que o Caymmi e sua quadrilha não passassem o Natal conosco e o Ano Bom [...] A garrafa de Black Label está lá pela metade, esperando um Caymmi ou um farrapo humano qualquer que a queira sorver [...] Ass: Seu pobre e desterrado amigo. É também de Verger a foto/capa do LP Canto de Amor à Bahia e Quatro Acalantos de Gabriela, Cravo e Canela, uma parceria do escritor Jorge Amado com o músico Caymmi, que saiu pela gravadora Festa. Foi lançado no Rio de Janeiro junto com o romance Gabriela Cravo e Canela, tornando-se o grande acontecimento literário-musical do ano de 1958. O mesmo Pierre Verger, então mais pesquisador e escritor do que fotógrafo, estava presente ao lado de Caymmi em Paris, em agosto de 1984, quando o compositor comemorava 70 anos e recebeu a comenda Ordre des Arts e des Lettres, no Palais Royal, das mãos do então ministro da Cultura 23