Maratonas - Um olhar cultural sobre as cidades

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UM OLHAR CULTURAL SOBRE AS CIDADES



NEY C AY R E S

UM OLHAR CULTURAL SOBRE AS CIDADES


Maratonas: um olhar cultural sobre as cidades copyright © 2014 Ney Cayres EDIÇÃO

Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E DESIGN

Valéria Pergentino Elaine Quirelli VINHETAS DAS CIDADES

Nildão FOTOGRAFIAS

Arquivo do autor (adquiridas durante as maratonas com direito a reprodução) REVISÃO DE TEXTO

Maria José Bacelar Guimarães Mariângela Nogueira REVISÃO DE PROVAS

Maria José Bacelar Guimarães Texto revisado segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa que entrou em vigor em 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cayres, Ney Maratonas : um olhar cultural sobre as cidades Ney Cayres. -- Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2014. ISBN 978-85-89059-62-6 1. Cidades - Diversidade cultural 2. Corridas de longa distância 3. Maratonas - Corridas 4. Viagens - Narrativas pessoais I. Título.

14-06206

CDD-796.425

Índices para catálogo sistemático: 1. Maratonas : Corridas : Esportes 796.425

Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 | 3369.2028 editora@solislunadesign.com.br www.solislunadesign.com.br www.solislunaeditora.com.br Contato com o autor: neycayres1@hotmail.com


Para Lulu adorรกvel, ainda menina.



Meus melhores agradecimentos a Renato da Silveira, constante incentivador, que, generosamente, me orientou e lançou uma luz em muitas situações duvidosas. A Lea, que compreendeu as minhas constantes viagens com inteligência e complacência.



SUMÁRIO

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PREFÁCIO

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“IMPORTANTE NÃO É VENCER, MAS PARTICIPAR”

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LONDON, LONDON

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BELA VISTA DE HAVANA

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O FIM DO MUNDO: A PATAGÔNIA

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PRIMAVERA EM PRAGA E CASTELOS DE BORDEAUX

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PASSEIO EM PARIS

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VINHEDOS DE BORDEAUX

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PORTÃO DE BRANDENBURGO

73

ROMA, CIDADE SITIADA

83

NAS MONTANHAS DA ÁFRICA

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NO CAMINHO DE KEROUAC

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SUBLIME TÓQUIO

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RUAS DA FILADÉLFIA

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BOSTON: LA CRÈME DE LA CRÈME

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TORONTO É UMA FESTA

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REGRESSO DA TRADIÇÃO EM BLUMENAU

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SILÊNCIO NA MARÉ VAZANTE



PREFÁCIO

Todo livro terminado é como um leão morto. Ernest Hemingway

U

m dia antes de correr a Maratona de Amsterdã, recebi por e-mail o convite de Ney para escrever este prefácio. Falar sobre um livro escrito por alguém que nutriu a minha coragem de assumir o desejo de correr uma maratona é tão emocionante quanto completá-la; é causa de um grande prazer. O livro me encanta pela sua estampa e textura. É um tecido de linguagem formada pelo entrelaçamento do amor ao esporte, à literatura, ao cinema, ao movimento pelo mundo, à vida em si mesma. As memórias das sensações e fatos vividos foram cuidadosamente armazenadas e depois transformadas em ricas histórias contadas. Ney encontrou, assim, a melhor forma de eternizar as suas experiências. Walter Benjamin, filósofo alemão, nos lembra que todo acontecimento vivido é finito, ao passo que o acontecimento lembrado e contado é sem limites, porque é uma chave para tudo que veio antes e virá depois. O antes não é marcado pelo início, tampouco o depois é o final. É o que nos mostra sua descrição da noite que antecedeu a Comrades. A imaginação da largada lá em cima, na pequena cidade montanhosa de Maritzburg, e da felicidade que sentiria ao ver o sol nascer por detrás das montanhas abrandavam a expectativa da prova desafiadora que viveria. O poder de imaginar a beleza da prova concedeu ao grande desafio Comrades uma leveza antes impensável.

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Muitas provas tiveram a mesma duração, mas cada uma tem a sua existência plena e própria. A força que rejuvenesce está sempre presente, mas em lugares diferentes, com outros que são diferentes, fazendo surgir, da mesma energia primária, um novo homem com o olhar mais generoso para o mundo, capaz de despertar o desejo de correr, latente em muito mais pessoas do que se imagina. Depois de afirmar que os seres humanos são capazes de suportar desde as mais violentas intempéries da natureza até as inaceitáveis adversidades da vida, Ney confessa com simplicidade a sua apreensão antes da Maratona de Londres, mesmo depois de ter corrido muitas provas. Há espaços em todo o texto para que o leitor, sobretudo o corredor, encontre significado e se identifique. Eu não resisto à tentação de destacar os mais lindos para mim. Na Maratona de Havana, a descrição da morena de olhos dourados e olhar oblíquo, num rosto belo e brilhante pelo suor, mostra a pulsão de vida do maratonista, que consegue alargar o passo, e o talento do escritor, que nos traz a intensidade e a beleza do momento e, no final da prova, pleno de emoção, pensa na nossa América do Sul e em suas veias abertas, nos seus contrastes, desertos, suas cadeias de

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montanhas e seus campos verdejantes. A arte de reconhecer o próprio, sem perder a sede de pesquisa de outros mundos, é vista em mais de um capítulo. Quando os raios de sol surgem atrás das colunas romanas, Ney, cheio de imagens de filmes marcantes, anestesiado por tanta beleza, corre a Maratona de Roma. À semelhança dos grandes cineastas, para quem fazer um bom filme é um gesto de amor, deixa registrado um belíssimo e cinematográfico relato daquela maratona. Mais uma vez, a realidade é atingida pelos conteúdos internos do autor, que nos trazem a alegria da surpresa. Se o início da experiência com o livro nos coloca diante da matéria do corredor – as maratonas –, com a passagem das páginas até o final, defrontamo-nos com a corrida como uma metáfora do desejo – afinal, são longos os percursos transpostos até um livro ser escrito. Com tantas maratonas realizadas, Ney está nos dizendo que, para sentir tanto amor não basta criar; é preciso sentir na pele, no coração e nos músculos a força da criação. As histórias contadas neste livro mostram que nem sempre o mais importante é correr no menor tempo, mas viver o tempo de uma corrida da melhor maneira possível. Foi assim que Ney conseguiu dar toda essa impressão de vida às suas maratonas. Jussamara Brito

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“IMPORTANTE NÃO É VENCER, MAS PARTICIPAR” Nenhum atleta depende tanto da obstinação quanto o corredor de Maratona. É dele o teste épico, a provação destruidora do fôlego e dos músculos. Allan LLoyde

H

á três milhões de anos, Lucy, nossa mais famosa ancestral, descoberta na região de Afar na Etiópia, talvez fosse sedentária – ou pelo menos usava mais os braços do que as pernas. Vivia próxima aos alimentos vegetais e à água doce. Não tinha necessidade de movimentar-se vigorosamente. O tempo passou inexoravelmente, o clima da Terra mudou, a evolução humana continuou e, por volta de dois milhões de anos mais tarde, surgiu o Homo ergaster. Agora, sim, os nossos ancestrais podiam correr, fugindo dos predadores ou perseguindo suas presas. Por isso, andavam eretos e possuíam pernas longas, ágeis e estáveis. Em 490 a.C., o soldado-mensageiro grego Filípedes correu heroicamente os quarenta quilômetros que separavam as cidades de Maratona e Atenas para anunciar a vitória na guerra contra os persas. Em seguida faleceu, acometido de uma estafa fabulosa. Antes de morrer, porém, declarou: “Regozijem-se, atenienses, vencemos!” E assim criou-se o mito da maratona. Uma lenda – ainda mais gloriosa –, alguns historiadores contam, jurando que o soldado, na realidade, venceu os duzentos quarenta quilômetros que distanciam Atenas de Esparta, ou seja, correu uma ultramaratona em quarenta e oito horas. E eis que surge em nossos tempos o surpreendente Spiridon Louis, vencedor da primeira maratona dos Jogos Olímpicos 14


Modernos, em 1896. Correu da cidade de Maratona ao estádio Panathinaikos, em Atenas, em menos de três horas. Este camponês de 23 anos tornou-se uma lenda entre os maratonistas, ao ser o primeiro vencedor moderno, repetindo o trajeto feito pelo soldado-mensageiro. Na atualidade, existem milhares de maratonas e talvez milhões de maratonistas pelo mundo afora. O aumento considerável nos últimos tempos, provavelmente, advém do fato de ser maratonista ter-se tornado motivo de orgulho e prazer. Além disso, há a possibilidade de visitar cidades, de fazer novas amizades, de ser admirado pelos amigos, de preservar a saúde. Descrições das cidades onde corri, mescladas com literatura, às vezes com gastronomia, outras vezes com histórias engraçadas que aconteceram durante as competições, outras ainda com descrições históricas e até com detalhes técnicos da evolução do atletismo, é o que coloco à disposição do leitor neste livro. Acredito que viajar para correr já envolve uma gama enorme de interesses. Mas é evidente que, muito além de organizarem maratonas, as cidades oferecem uma diversidade de situações que interessam aos mais variados desejos, expectativas e curiosidades. Escolhi relatar corridas nas cidades que mais me deram prazer, sem ordem cronológica. Por isso, algumas maratonas já muito conhecidas e comentadas ficaram de fora, embora a participação nelas seja valorativa para qualquer um. Correr pelas ruas e avenidas dessas cidades agradáveis e conhecê-las simultaneamente já é em si um prazer imenso e forma o melhor estado de espírito do ser maratonista. Apenas assim é possível não só corroborar como enriquecer a máxima do Barão de Coubertin, criador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna: “O importante não é vencer, mas participar.” 15


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LONDON, LONDON Adoro as coisas simples. Elas são o último refúgio de um espírito complexo. Oscar Wilde

E

nquanto o táxi desliza suavemente em direção ao hotel no Westminster onde me hospedarei, recordo-me da primeira vez que estive aqui em Londres. Quase vinte e cinco anos se passaram. Voltei duas vezes, mas, surpreendentemente, minhas melhores recordações vêm daquele tempo. Lembro-me ainda da namorada francesa no meu curso de inglês. Logo nas primeiras horas da aula de apresentação olhou-me com ternura. Cruzamos olhares tímidos durante dois ou três dias. Finalmente, criamos coragem e nos apresentamos, usando uma mistura de um inglês tosco e vacilante com gestos e sinais risíveis. Apesar de todas essas barreiras, era imensamente excitante. Ela falava um péssimo inglês. O meu era ainda pior! Invariavelmente, todas as tardes, logo após as aulas, saíamos para a região central, King’s Road e Picadilly Circus. Às vezes, com alguns colegas, terminávamos a noite no West End, região dos teatros, dos cinemas e do Covent Garden. Aqueles foram dias absolutamente maravilhosos! Ainda hoje consigo lembrar-me do rosto angelical de Sandrine, que sempre falava do seu plano e de sua esperança de tornar-se secretária bilíngue numa empresa


multinacional nos arredores de Lyon. Lembro-me dos seus olhos pequenos e azuis de extrema delicadeza, dos gestos calmos e suaves, da voz baixa e atrativamente quase inaudível. Desta vez, entretanto, venho a Londres à procura de prazer e também de sofrimento. É deste modo que descrevo o ato de correr uma maratona: uma mescla de masoquismo e hedonismo. Sem dúvida, maratonas não são para todo mundo. Os seres humanos são capazes de suportar quase tudo, desde as mais violentas intempéries da natureza até as inaceitáveis adversidades da vida. Alguns conseguem domar a dor inerente à maratona com resignação. Outros, atingindo o seu limiar de dor, ultrapassam a linha de chegada com tranquilidade. Em contrapartida, muitos outros sofrem estoicamente. Mesmo consciente desta capacidade de adaptação do ser humano, ainda me sinto apreensivo em correr mais esta maratona. Experiente e já com muitas provas no currículo, sei que é sempre exigido para cada uma delas uma motivação, assim como uma estratégia individual. Mas a motivação psicológica é importante e até crucial, a fim de minorar o sofrimento. Podemos dedicá-la a alguém em especial. Isto implica em impulsionar o corpo para frente, reduzir a decadência física nos trechos finais críticos e camuflar a dor. Há também momentos de reflexões e monólogos. Aqueles momentos em que sussurramos secretamente os nossos desejos mais íntimos. Outros em que pensamos nos objetivos a serem alcançados, e não apenas no autoflagelo que poderíamos sentir durante e ao final. Enfim, ter consciência de que ali poderia ser criada uma história a ser contada mais tarde aos amigos, filhos e netos. É primavera aqui em Londres. Um sol brilhante invade e alegra as ruas, os parques, desencadeando uma vibração singular, diferente daquela que vivenciei quando passei uma curta temporada em pleno inverno. É neste clima frio, porém alegre que, apesar de sentir o corpo ainda combalido por uma forte gripe recente, vou em direção ao Greenwich Park, local de largada da Maratona de 18


Londres. Nesse imenso parque, um inesperado vento frio e cortante me obriga a aquecer-me vigorosamente. Faço alguns sprints (seções de tiros curtos) demoradamente, até sentir-me preparado e aquecido. Faz algum tempo que o Greenwich Park está tomado, em sua quase totalidade, pelos corredores. Alguns punks fantasiados, em evidente exibicionismo, como se participassem de uma rave psicodélica, fazem barulho como crianças chegando à escola. Outros, bem-comportados, carregados de apetrechos, cronômetros com GPS de última geração, falam em celulares como se estivessem dentro de um pub com amigos num alegre happy hour. Com tanta diversidade, penso mesmo que a Maratona de Londres tornou-se bem peculiar e bem diferente daquelas de que já participei. Ao menos, tudo isto desconstrói todos os estereótipos da fleuma inglesa. Mesmo porque se sabe, por empirismo, que todo maratonista tem como característica comum a joie de vivre – a alegria de viver. O que talvez se explique pelo fato de que produzem grande quantidade de endorfina, pela movimentação do corpo por períodos prolongados. Imediatamente, no primeiro quilômetro, observo minha velocidade no GPS, a fim de estabelecer um ritmo conservador. Uma francesa baixinha e magra, ao meu lado, me pergunta sobre o pace, o ritmo. Respondo sem entusiasmo, preferindo me concentrar na corrida. Ela insiste em iniciar uma conversa. O clichê de sempre. Velocidade média, tempo de maratona, quantas maratonas até hoje... Minutos depois, abandono a conversa para não perder o foco. Além disso, ela fala um francês quase esnobe, deixando-me confuso e incomodado. Algum tempo depois, volto a observar os arredores, os prédios, os pontos turísticos interessantes. Estamos em Victoria Embankment. Toda esta região me faz lembrar Notting Hill, o bairro dos descolados, que fica um pouco distante do centro habitado por yuppies, pela alta classe média, boêmios chiques etc. Lá na Portobello’s Road tem sempre uma feira bem interessante, que 19


visitei ontem. Incentivado pelo filme Notting Hill de Roger Michell, visitei também a livraria onde William – Hugh Grant – era o livreiro. Por alguns instantes, admirei os livros de viagem, apesar de, é claro, não ter nenhum propósito de imitar a ficção, roubando algum livro. Ao sair, imaginei mesmo a presença de Julia Roberts, adentrando na livraria, alegre, acessível, exibindo um largo sorriso. Todos esses pensamentos eliminam temporariamente uma dor leve e desprezível que surge nesses primeiros quilômetros. Ainda tenho um longo caminho a percorrer. Com tanto tempo ainda pela frente, obviamente não é momento de preocupar-me com pequenos desconfortos. A cada instante esta competição londrina revela-se excitante. O público participa e aplaude com entusiasmo. A primeira banda de música surge por volta da quarta milha, tocando Yellow Submarine com vibração. Neste trecho, lembro-me do Abbey Road Studio e da lendária passarela de pedestres em frente. Ontem a visitei pela primeira vez. Imortalizada no álbum Abbey Road dos Beatles, de 1969, ainda hoje é inundada de turistas todos os dias. Com tantas lembranças, esqueço por alguns momentos a noite mal dormida e a febre que me acompanhou nos últimos dois dias, resultante de um vírus que me atacou nas últimas duas semanas. Infelizmente, ele conseguiu minar a minha resistência nos treinos finais. Creio, entretanto, que todo maratonista deve estar preparado para o imprevisível. Às vezes treinamos a fio durante meses e, de repente, um pequeno detalhe, ou mesmo um treino excessivo, destrói todo o trabalho exaustivamente realizado. Em certo momento, na quarta parte do percurso, surge uma sucessão de bandas, estimulando e enchendo de alegria os maratonistas. Há bandas de hip-hop, música clássica, reggae etc. Em frente à Young Men’s Christian Association (YMCA) – Associação Cristã de Moços –, vejo um palco e uma enorme aparelhagem de som com centenas de estudantes promovendo uma festa maravilhosa. Honestamente, desejaria parar um pouco por ali, se pudesse, e agarrar uma daquelas canecas de cerveja. Impressionantemente, 20


quase quinhentos metros adiante, ainda ouço a música alta e estridente do YMCA. Ainda correndo na mesma velocidade de antes, e ansiosamente esperando pela próxima banda de música, vejo um corredor gordo, em seus trinta e poucos anos de idade, caído junto ao meio-fio. Dois paramédicos nervosos, rodeados por alguns voluntários, fazem o que suponho ser uma respiração artificial. E antes que a cena desapareça definitivamente do meu alcance, percebo o seu rosto já muito pálido, prenunciando talvez o pior. Aproximo-me da meia maratona. Vejo com júbilo a placa da milha treze. Com sorte e determinação chego até aqui. O corpo dá sinais evidentes e antecipados de cansaço, apesar de estar prudentemente correndo abaixo da minha velocidade habitual. Então, eis que surge a Tower Bridge e o Rio Tâmisa. Atravesso a ponte pela primeira vez. Ao meu lado, a magia e a beleza da torre de Londres também contribuem para me desvencilhar da dor e do infortúnio. Melhor pensar: a torre de Londres já foi uma antiga residência da monarquia inglesa, mais tarde transformada em prisão e lugar de torturas inenarráveis. Um lugar de sofrimento e batalhas sangrentas na Idade Média. Atravesso este pântano de outros tempos, onde muito sangue foi derramado, e vou em direção à city. Atualmente, este bairro é um lugar aprazível, mas nem sempre foi assim. Hoje, o moderno e o antigo se fundem harmoniosamente, o que percebo, ao ver ruelas antigas e preservadas ligadas às avenidas de arranha-céus lado a lado e sem destoarem. Ou seja, a pujança do capitalismo associada ao bucolismo e à pobreza lembrados por Dickens, Oscar Wilde e William Thackeray em seus romances e poemas. Deixando para trás a city, sinto a minha velocidade diminuir a cada passo. Esforço-me para, pelo menos, manter um ritmo razoável. Com toda a minha experiência e conhecimento do corpo, é o momento de investir no controle do estado psicológico. Aproximando-me da propalada wall da terça parte final, a “parede” no jargão dos corredores, um limite importante a ser vencido, 21


vejo a Catedral de São Paulo. E lembro-me do casamento real da princesa Diana, alguns anos atrás. Uma mulher bonita e tímida, qualidades que os homens, geralmente, desejam em uma mulher. O destino, por vezes cruel, foi implacável com Lady Di. Em contrapartida, fica difícil entender a preferência do príncipe Charles por Camila Bowles, uma mulher sem carisma e rejeitada pelos súditos. Passando bem próximo à Picadilly Circus e Trafalgar Square, na iminência de entrar em Victoria Embankment, inicio uma conversa com uma inglesa de mais ou menos quarenta anos, que corre ao meu lado. Geralmente evito longas conversas durante a maratona. Mas agora eu preciso disso! Porque já sei de antemão que não chegarei nem perto do meu próprio recorde. Pelo contrário, provavelmente estarei muito aquém do meu tempo habitual. Desejo agora simplesmente que os quilômetros passem mais rapidamente. Intencionalmente mantenho esta conversa por muito tempo. Ela me diz que sempre corre em apoio a uma instituição de caridade. Às vezes para uma casa de repouso, outras, para uma associação de incapacitados visuais. Isto significa que ela paga uma inscrição muito mais cara do que os outros corredores normais. E acrescenta que se sente muito feliz com isso. Depois de falarmos sobre outras maratonas, vou me distanciando vagarosamente, deixando-a para trás. Maratona é assim mesmo. Um lugar de encontros e desencontros. Agora correndo em paralelo ao Rio Tâmisa, novamente posso ver ao longe o Big Ben e o Parlamento inglês. Esta visão me enche de energia. Sei que estou me aproximando da linha de chegada. Neste trecho, a multidão aumenta consideravelmente em ambos os lados das calçadas. O barulho dos aplausos também se torna um uníssono mais e mais cativante. As forças se recompõem disso, obviamente! Em frente ao Buckingham’s Palace, aumento a velocidade em quase um sprint. Apenas uma curva a mais e atravesso o belíssimo portão dourado do St. James’s Park. À distância, no interior deste lindo parque, vejo o portal de chegada e ouço o barulho 22


ensurdecedor da multidão. Atravesso-o com infinito contentamento, mas com o corpo totalmente deteriorado. Afinal, quando iniciei esta maratona, tinha óbvias dúvidas quanto à possibilidade de conseguir levar pra casa a medalha que recebem todos os que cruzam a linha de chegada: uma das cinco mais valiosas do mundo, neste caso. Uma vez mais, enquanto o tradicional táxi preto londrino me leva de volta ao aeroporto de Heathrow, volto aos meus pensamentos. Penso nas maratonas de que já participei; nas maratonas que virão; nos meus planos para o futuro; nas amizades surgidas e multiplicadas neste esporte, sinceras e verdadeiras; na Maratona de Nova York do ano passado; no meu plano de um dia ainda entrar no Clube dos Sete Continentes – isto é, participar ao menos de uma prova em cada continente. Finalmente, antes de bater a porta do táxi, penso com emoção no desejo de correr em breve a Maratona de Havana. Esta sim, outra grande história a ser contada!

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