Carybé, Verger & Jorge

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São imortais todos que fazem com que sua trajetória na vida seja inesquecível. Maria Stella de Azevedo Santos (Mãe Stella de Oxóssi)


Carybé, Verger & Jorge: Obás da Bahia © Fundação Pierre Verger

presidente Gilberto Pedreira de Freitas Sá

Todos os direitos reservados

diretora secretária

© Instituto Carybé

Angela Lühning

Todos os direitos reservados de uso de desenhos e pinturas de Carybé

© Fundação Pierre Verger Todos os direitos reservados de uso de fotografias de Pierre Verger

diretora tesoureira Denise Duque

superintendente Dione Baradel

© Fundação Casa de Jorge Amado Todos os direitos reservados de uso de fotografias de Zélia Gattai

apoio financeiro

projeto editorial Fundação Pierre Verger Solisluna Design Editora Enéas Guerra Valéria Pergentino

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, registrada, transmitida, transcrita ou armazenada em sistemas de recuperação, ou traduzida para alguma língua ou linguagem de computador, de nenhuma forma ou por meios eletrônicos, mecânicos, magnéticos, manual ou qualquer outro, sem a autorização por escrito da editora e dos detentores do copyright.

edição de imagens

www.pierreverger.org www.solisluna.com.br

Alex Baradel Valéria Pergentino

Segunda edição - 2017

concepção, edição e design

tratamento de imagens Elaine Quirelli Vicente Sampaio

edição do texto e redação José de Jesus Barreto

revisão do texto Maria José Bacelar Guimarães

tradução para o inglês Sabrina Gledhill

fotografias Arquivo Família Carybé Arquivo Fundação Pierre Verger Adenor Gondim Arlete Soares Sergio Benutti (reproduções Carybé) Luciano Andrade Vicente Sampaio (reproduções Carybé) Zélia Gattai – Fundação Casa de Jorge Amado

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carybé,Verger & Jorge : Obás da Bahia = Carybé,Verger & Jorge : Obás of  Bahia / [tradução para o inglês Sabrina Gledhill]. -Lauro de Freitas : Solisluna Editora ; Salvador : Fundação Pierre Verger, 2012. -- (Entre amigos ; 3) Edição bilíngue: português/inglês Bibliografia ISBN 978-85-88971-12-7 1. Amado, Jorge, 1912-2001 2. Bahia - Na arte 3. Bahia - Usos e costumes - Obras ilustradas 4. Candomblé (Culto) 5. Carybé, 1911-1997 6. Orixás 7.Verger, Pierre, 1906-1996 I. Título: Carybé,Verger & Jorge : Obás of Bahia. II. Série. 12-06900

CDD-704.94998142

Índices para catálogo sistemático: 1. Bahia : Iconografia : Artes 704.94998142

Este livro é dedicado à memória de Marco Antonio Martins Barreto 13/06/1973 - 18/12/2011


Carybé&Verger Jorge

Obás da Bahia Obás of Bahia


A vida ĂŠ feita de acontecimentos comuns e de milagres. Jorge Amado




Sumário

11

O resgate de uma certa Bahia

14

Amigos de fé

30

Jubiabá quem chamou

42

Candomblé da Bahia

113

Ilê Axé Opô Afonjá

134

Iyás da Bahia

146

Voo no tempo

161

Epílogo

167

Fontes

170

English translation



O resgate de uma certa Bahia É com grande alegria, associada ao sentimento de dever cumprido, que apresentamos este volume Carybé,Verger & Jorge: Obás da Bahia, fechando a trilogia “Entre Amigos”, selo criado e editado pela Fundação Pierre Verger e Solisluna Editora com o intento de celebrar a grande amizade que juntou, com olhares convergentes sobre a Baía de Todos-os-Santos, alguns dos mais representativos “baianos fundamentais”: o fotógrafo Pierre Verger, o pintor Carybé, o compositor Dorival Caymmi e o escritor mensageiro Jorge Amado, a quem, este ano, reverenciamos e celebramos pelo centenário de seu nascimento. A série começou no ano de 2008, quando comemorávamos os 20 anos da Fundação Pierre Verger, com o lançamento de Carybé & Verger: Gente da Bahia, um livro sobre a alegre e fraterna amizade desses dois viajantes que renasceram na Bahia e retrataram o dia a dia da gente mais simples de Salvador e do Recôncavo. A impressionante convergência de olhares permitiu que, na edição, fotos e desenhos se interpenetrassem e se completassem para deleite dos leitores. O segundo volume, Carybé,Verger & Caymmi: Mar da Bahia, lançado no ano de 2009, teve como motivo maior as águas atlânticas que abraçam a cidade, com seus pescadores, saveiros, festanças e mistérios... Tudo isso está nas fotos de Verger, nos traços de Carybé e no cancioneiro do mar do mestre Dorival Caymmi com sua emocionante poesia. Agora, quando comemoramos os cem anos de Jorge Amado – passados os centenários de Verger (nascido em 1902), de Carybé, comemorado em 2011, e também lembrando os 100 anos de fundação do Ilê Axé Opô Afonjá, casa de Xangô assentada por Mãe Aninha em São Gonçalo do Retiro no ano de 1910 –, lançamos o Carybé,Verger & Jorge: Obás da Bahia. Este, com o foco no candomblé, fonte maior do encantamento, do interesse e da grande amizade entre eles. Baianos fundamentais, Carybé,Verger, Caymmi e Jorge não foram fundamentais para o candomblé, mas o candomblé

foi fundamental para a amizade e a indiscutível, profunda baianidade deles. Não à toa, foram escolhidos e consagrados obás, ministros de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá pelas mãos da sempre reverenciada Iyalorixá Mãe Senhora. Neste livro, costurado por trechos do nosso escritor maior, Jorge Amado, o leitor encontrará magníficas imagens e desenhos de Verger e Carybé sobre o candomblé, e conhecerá um pouco sobre a crença nos Orixás, os significados de um terreiro baiano e o papel desempenhado por algumas Mães de Santo, sacerdotisas de tradicionais terreiros da Bahia no século passado. A agradável sensação de dever cumprido tomou conta de nós assim que vimos a forma final deste terceiro volume. Repassando os dois anteriores, tivemos, com prazer, a visão completa da real dimensão da série “Entre Amigos”, que orgulha a Fundação Pierre Verger. Entendemos então que, além de exibir um pouco mais da obra do extraordinário fotógrafo e etnólogo Verger, mais do que apresentar trabalhos do múltiplo Carybé e nos emocionar com a poesia de Caymmi, muito mais ainda do que reler um pouco de Jorge e mais até do que celebrar a grande amizade entre esses nossos personagens..., nessa trilogia que se fecha agora, conseguimos resgatar os elementos fundamentais de um tempo, de uma certa Bahia que nunca deveremos deixar se perder no esquecimento. Resta-nos agradecer a cada um deles, pelo que nos ofereceram de suas vidas através de suas artes, louvar o inspirado trabalho editorial da equipe da Solisluna Editora e admirar também a qualidade dos textos do escritor José Barreto, autor e organizador dos três volumes. Que o nosso prazer, neste instante, seja equivalente ao deleite de todos os que se dedicarem à leitura desta obra. Gilberto Sá Presidente da Fundação Pierre Verger 11



Pois lhe revelarei motivo de vaidade, quando o recordo penso que algo fiz pela terra da Bahia, nossa terra, chão e céu. O motivo é duplo, condiciona a ciência e a arte.Trata-se da descoberta mágica, do encontro da pátria verdadeira, território para a pesquisa e a criação, do desembarque de dois cidadãos eminentes, dois dos que mais concorreram para fazer da Bahia o que ela é, reconstruir-lhe a memória, restaurar-lhe a vida. Homem de ciência o mais velho, etnólogo, historiador, feiticeiro; artista o mais jovem, mestre do desenho e da aquarela, pintor e escultor, um duende, um capeta... Dei à Bahia o sábio e o artista, acha pouco? Tenho ou não motivo para vaidade? Não foi você, diz-me o bom senso, quem os trouxe na barra do mistério, foi o pai Jubiabá... Recolho-me à minha modesta condição, intérprete menor do povo da Bahia, com o que me basta e sobra. Jorge Amado

No início do livro, nas páginas 2 e 3, Carybé,Verger e Jorge no lançamento do livro “Oxossi, o caçador”, em 1981. Ao lado, Carybé e Verger na casa de Jorge no Rio Vermelho. Fotos Zélia Gattai. 13


Amigos de fé A frase de Mãe Stella – São imortais todos os que fazem com que sua trajetória na vida seja inesquecível – no artigo dedicado ao escritor Jorge Amado e reverenciando o centenário do seu nascimento, bem pode ser estendida e abarcar, juntos, os amigos Carybé e Verger, tanto pela trajetória de vida como pelo legado inesquecível de cada um deles na construção de uma identidade baiana. As grandezas e os sofrimentos do povo da Bahia foram matéria-prima dos escritos de Jorge; como também os fazeres e a religiosidade dessa gente mestiça, afro-baiana, foram inspiração e fundamentos dos olhares convergentes de Verger – as fotos, os estudos – e de Carybé, com seus traços, suas formas, sua obra. E o mundo dos terreiros de Candomblé tornou-se, mais do que qualquer outra motivação, o grande encantamento, o amálgama da amizade entre eles, um foco destacado de seus trabalhos e, mais ainda, acresceu um significado especial a suas vidas. Seria apropriado dizer como Gilberto Sá, presidente da Fundação Pierre Verger, que os conheceu de perto: Amigos, contemporâneos, baianos fundamentais, Carybé,Verger e Jorge não foram fundamentais para o candomblé, mas o candomblé foi fundamental para cada um deles. Quando Jorge Amado, aos 23 anos (nasceu em 10 de agosto de 1912), publicou “Jubiabá”, seu quarto romance e o primeiro voltado para as questões do negro/mestiço baiano, Verger já rodava mundo com sua roleiflex focada, a lente voltada para os contrastes das luminosidades, as diferenças da humanidade; e Carybé ganhava a vida com as artes de seus ofícios, tantos, o olho mirando formas, movimentos, sombras, claridades e manifestações, os sentidos na direção da diversidade cultural dos povos. Contam que esse escrito de Jorge sobre a Bahia e seu povo os intrigou.Viajantes, curiosos, ávidos por sabores e saberes distintos, baixaram na Bahia, cada um a seu tempo, e aí encontraram assento e agasalhos sobre os quais muito criaram, e teceram uma grande fraternidade. 14

O primeiro a chegar foi Carybé, até porque, argentino de nascença, vizinho hermano, vivera no Rio de Janeiro dos 8 aos 19 anos de idade, época em que adotou o nome Carybé, segundo dizia, um peixe amazônico. Aportou pela primeira vez em Salvador no ano de 1938, jovem repórter (nascido em fevereiro de 1911) e ilustrador do falido jornal El Pregon. Passou seis meses na cidade, misturando-se com o povo, pongando em bondes, subindo e descendo ladeiras, tomando seus “rabo-de-galo” em bodegas e feiras, conversando com pescadores, saveiristas, dormindo no cais do porto, no Pelourinho, nos prostíbulos, aprendendo berimbau e dando pernadas nas rodas de capoeira, frequentando terreiros de candomblé, fascinado pelos tambores, as danças, as futricas e os segredos. Tornou-se baiano. Ele próprio escreveu, depois de retornar a Buenos Aires, passando pelo Rio de Janeiro, a bordo do mesmo navio Itanagé em que chegara: Voltava, depois de seis meses de gostoso miserê, com os desenhos e aquarelas de minha primeira exposição individual, e com a certeza de que meu lugar, como pintor, era na Bahia. Retornou à Bahia algumas vezes, nos anos 1940, mas chegou de vez, para ficar, já ao lado da mulher (Dona Nancy) e do filho (o pequenino Ramiro), no começo de 1950, com uma carta de apresentação do jornalista-escritor Rubem Braga em mãos, endereçada ao então secretário de Educação e Cultura do Estado, o professor Anísio Teixeira. Ganhou um emprego e daí, até o último dia de sua vida, o que fez e produziu foi um ato de amor à Bahia, a sua gente mais simples como o chamado “povo de santo” dos terreiros baianos. Jorge Amado escreveu: O mais baiano de todos os baianos é o escritor Carybé, nascido no mar, dos ilícitos amores de Yemanjá com um certo senhor H.J.P de Bernabó, de duvidosa nacionalidade. Baiano é um estado de


espírito. Carybé plantou raízes tão fundas na terra baiana como nenhum cidadão aqui nascido e amamentado. Bebeu avidamente essa verdade e esse mistério, fez da Bahia carne de sua carne, sangue de seu sangue, porque a recriou a cada dia com maior conhecimento e amor incomparável. No seu antológico livro “Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios”, Jorge Amado cravou de forma definitiva: Quando tudo se faz na Bahia para degradar a grandeza da cidade, roubar-lhe o verde das árvores, a brisa do mar, as velas dos saveiros, poluir o céu e as praias, matar os peixes e reduzir os pescadores à miséria, quando agridem a paisagem a cada momento, com espantosos edifícios rompendo a harmonia dos locais mais belos, fazendo da lagoa do Abaeté e da doçura de Itapuã, cantadas por Caymmi, caminhos do lucro imobiliário sem o menor controle, quando tantas forças se juntam para destruir a cidade da Bahia, “construída no oriente do mundo”, onde os sangues se misturam

para criar a nação brasileira, nessa hora de agonia e vileza, Obá Onã Xocum, dito Carybé, nascido Hector Júlio Páride de Bernabó na primeira encarnação, tomou dos instrumentos, da goiva, do formão, do macete, dos materiais mais nobres, a madeira, o cimento, o barro, e, armado com a força dos Orixás fixou para sempre a face da verdadeira Bahia, a que está sendo assassinada. Quando nada mais restar de autêntico, quando tudo já se fizer apenas representação, mercadoria e transformar-se em dinheiro na sociedade de consumo, a memória perdurará pura, pois o filho de Oxóssi e de Oxum, o Obá de Xangô, guardou a verdade íntegra na criação de uma obra sem igual pela autenticidade, pela beleza, feita com as mãos, o talento e o coração. Em Congonhas do Campo os profetas do Aleijadinho são uma memória de um tempo e de um povo. Na cidade de Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, os Orixás, os jagunços, os beatos, as mães e filhas de santo, os mestres de saveiro, o rei de Ketu e a Senhora das Águas, a criação de Carybé, Obá Onã Xocum, são a memória imortal e mágica do mistério, do axé da Bahia. 15


Carybé e Jorge no estádio da Fonte Nova em Salvador, em foto de Zélia Gattai. Na página ao lado, foto de Adenor Gondim.

Sua obra nos engrandeceu, deu-nos maioridade artística. A Bahia, ao mesmo tempo, fez dele o grande mestre do desenho, da pintura, da escultura. Artista principal da Bahia, dela nasce todas as manhãs e todas as manhãs a recria em sua beleza, em seu mistério, em toda a sua verdade. Carybé tem fixado, há mais de um quarto de século, no quadro a óleo, no desenho, na gravura, na aguada, no mural, no painel, na madeira, no concreto, o viver baiano nesse fim de um tempo que não voltará. Porque, para nossa alegria e maior grandeza, um dia esse grande artista mestre da vida, senhor da ternura e da solidariedade humana, aportou na Bahia, para impedir que a nossa verdade mais profunda se perdesse na indiferença, na vigarice, engolida pelas 16

máquinas no passar do tempo, enterrada sob arranha-céus. Carybé fixou para sempre nossa vida de povo e nossa magia. Carybé conheceu o fotógrafo Pierre Verger no Rio de Janeiro, numa pensão localizada em Copacabana, no ano de 1946. O pintor trabalhava num jornal carioca e o francês Verger, fotógrafo-viajante recém-chegado dos Andes, era um homem livre cheio de curiosidades sobre a negritude baiana, instigado pela leitura de Jubiabá e estimulado mais ainda após um encontro com o professor francês Roger Bastide, que lecionava Sociologia na Universidade de São Paulo (USP): Bastide me falou com bastante calor de sua recente



viagem à Bahia e me deu alguns nomes de pessoas para saudar, de sua parte. Foi o primeiro a assinalar-me a importância da influência africana na Bahia, da qual eu havia, entretanto, tido algumas noções ao ler uma tradução francesa do romance Jubiabá [...], recordava o fotógrafo. A cultura popular e o culto aos deuses africanos na Bahia eram assuntos de interesse comum que, daí por diante, foram cerzindo a amizade entre ele e o fotógrafo, jornalistas de ocasião. Nesse mesmo ano,Verger chegou a Salvador, onde se encontrou com o jornalista Odorico Tavares e com ele fez dupla, elaborando grandes reportagens sobre a religiosidade e manifestações culturais populares para a revista O Cruzeiro, impresso de maior circulação nacional à época. Escreveu Carybé, na apresentação do livro “Retratos da Bahia”, com fotos de Verger clicadas nos anos de 1946 a 1952 (primeira edição em 1980):

No ano de 1946, vindo de todos os caminhos e encruzilhadas do mundo, chegou à Bahia um exu dos melhores. Chegou com seus olhos cor de mormaço cheios de perguntas, um baú de lata e uma roleiflex pendurada no pescoço. Naquele tempo era francês e não sabia do encantamento que o prenderia à Roma Negra de Bastide (outro francês). Foi se deixando impregnar pela graça e pela força da Bahia até que, por poderes de D. Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, transformou-se em Oju Obá. [...] Tudo o que é vida está preso, fixo por sempre nestas fotos de Oju Obá, Pierre Fatumbi Verger, Xangôwimi, Ojê Rindê, Essa Elemexô, Gbeto Windi, Otun Mogba Xangô Omô Orô, Ologbonhi, príncipe da luz e das vivências de nossa terra que, nas noites de segunda-feira pode ser visto no Alto do Corrupio ou corrupiando desembestado pelas ladeiras dali. Jorge completa, no livro “Bahia de Todos-os-Santos: guias de ruas e mistérios”:


Pierre Verger, mestre francês de artes e de ciências, andou meio mundo, cruzou caminhos do Oriente e do Ocidente, mares e desertos, montanhas e arranha-céus; era um ser errante, um inquieto. Já duvidava da alegria quando de súbito a encontrou ao chegar às ladeiras da cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos... Chegara à pátria de seu coração. Ao chegar,Verger foi morar na rua Chile (centro histórico), num quartinho de hotel com janela para os telhados da cidade baixa e, adiante, o mar da Baía de Todos-os-Santos. Esse quarto era meu orgulho, pois da Rampa do Mercado ele parecia ser o ponto mais elevado da Cidade Alta, destacando-se sob um céu azul que nenhum edifício encobria, escreveu.Viajou para Recife, onde fotografou maracatus e xangôs, os cultos pernambucanos para orixás nagôs. Andou também por Belém do Pará, Guiana Holandesa, Haiti e São Luís do Maranhão, as lentes da roleiflex focadas nas manifestações religiosas de matriz africana. O encontro com Mãe Senhora,Yalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, que mexeu com sua vida e traçou destinos da viagem ao Daomé e Nigéria – aconteceu na primavera de 1948. Somente em 1951, retornando de uma viagem à África, Verger mudou-se para a parte mais antiga do Centro Histórico de Salvador, perto do Pelourinho, a rua Pethion de Villar: Era a metade de um sótão de um imóvel de quatro andares, situado no alto do Caminho Novo do Taboão, ao lado de uma loja chamada “A Bola verde”. O locatário principal, que me havia cedido o local, tinha o apelido de “Papai Noel”, um mestre de estiva dos bons tempos, quando os navios acostavam ainda em grande número na Bahia. Nesta época, todos os transportes se faziam ainda por via marítima, pois não havia praticamente estradas para o interior. A de Feira de Santana era apenas um lamaçal cavado pelas patas das boiadas que vinham para o matadouro do Retiro. Eu havia sido autorizado a fazer, na parede dessa peça sombria, um buraco quadrado de cinquenta centímetros de largura. O resultado dessa operação foi admirável. Eu tinha, através dessa abertura, uma vista que, passando sobre o Taboão, dava na parte detrás das casas

dispostas ao longo do Pelourinho, no fundo, a silhueta da Catedral e à direita, a descida do Taboão [...] No batente dessa janela um pouco sumária, repousava uma moringa onde a água refrescava na corrente de ar. Esta moringa servia de sinal aos amigos e conhecidos que, da rua, podiam avistar minha janela e saber se eu estava em casa, pois tinha o cuidado, quando saía, de colocar uma xícara emborcada sobre a moringa em sinal de ausência. Os amigos podiam evitar assim subir inutilmente a estreita e íngreme escada que levava até o meu quarto. O seu interior era modestamente mobiliado com uma cama e algumas caixas. Foi este local que serviu de modelo a Jorge Amado para sua descrição do “sórdido pardieiro” no qual se deu uma das mortes de Quincas Berro d’Água. O santeiro, personagem da novela, vivia embaixo, numa lojinha do térreo. Carybé chegou pra ficar na Bahia em janeiro de 1950. Com emprego garantido e a missão primeira de retratar a história do povo, criando painéis em novas escolas públicas, danou-se a desenhar, pintar, esculpir... impregnou-se da Bahia, mergulhando fundo no dia a dia de sua gente, dando um novo significado a sua vida e uma nova dimensão a sua arte. Nunca fora tão feliz, trabalhando com o que mais sonhara fazer. Com Nancy e Ramiro foi morar no segundo andar de um sobrado situado no Largo de Santana do Rio Vermelho, bem ao lado da igrejinha antiga, com vista para o mar, num tempo em que o bairro era de veraneio e o principal transporte para se chegar lá era o bonde elétrico. Esse trio de “baianos fundamentais” – Jorge,Verger e Carybé – foi consolidando sólida amizade apoiada em inquietações comuns, de olhares convergentes para a cultura afro-baiana que, para cada um deles, exibia suas manifestações mais fortes e encantadoras nos terreiros de candomblé espalhados pelas quebradas da cidade. Jorge e Carybé se conheceram por iniciativa do pintor/ jornalista argentino. Dona Nancy, a esposa amada de uma vida inteira, recorda, num depoimento de novembro de 2007: Carybé veio aqui na Bahia em 1938, quando conheceu Jorge Amado. Ainda não era casado comigo. Nos conhecemos na Argentina, quando ele já pensava em vir morar na Bahia. Ele não 19


Jorge,Verger e Carybé. Fotos Zélia Gattai.


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