Sonia Rangel
trajeto criativo
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Sonia Rangel
trajeto criativo
Copyright dos textos e ilustrações © 2015 Sonia Rangel
Edição Enéas Guerra Valéria Pergentino Design e editoração Valéria Pergentino Elaine Quirelli Capa Enéas Guerra Revisão do texto Cleise Mendes Texto revisado segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa que entrou em vigor em 2009.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rangel, Sonia Trajeto criativo / Sonia Rangel. -- Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2015. Bibliografia. ISBN 978-85-89059-70-1 15-06631 CDD-709 Índices para catálogo sistemático: 1. Ensaios : História e arte 709
Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 | 3369.2028 editora@solislunadesign.com.br www.solislunadesign.com.br www.solislunaeditora.com.br
Prefácio para esta edição
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rajeto Criativo foi publicado, também pela Solisluna, pela primeira vez em 2009, integrado ao Objeto Poético que constituiu a concepção do livro de arte com poemas e pinturas-desenhos intitulado Olho Desarmado, referindo-se a um ciclo de obras, mas também a uma operação poética que tem se repetido e ampliado como diferença, em temas e imagens, desdobrando-se em outros ciclos artísticos de minha autoria. Talvez por isso, este ensaio tem despertado amplos interesses principalmente para alunos de universidade da área de artes tanto na graduação como na pós-graduação. Considero importantes as ideias contidas nele, pois refletem uma busca que, desde ter realizado o curso de mestrado (1995), continuo trilhando e ampliando, da prática artística como pesquisa, ou seja, compreender o pensamento encarnado nas ações, afirmando que artistas em seus processos de criação não são incompatíveis com a academia. Pelo contrário, produzem um conhecimento singular de base muitas vezes intuitiva, mas justo por isso capaz de transgredir formas e formatos de pensar. Sem desejar apresentar nenhum modelo para
enquadramento, afirmo com meu trabalho ser possível realizar no âmbito da universidade projetos poéticos, estimulando artistas a traduzir seus pensamentos, a olhar com os próprios olhos e encontrar seus caminhos metodológicos em diálogo com os campos teóricos pertinentes a cada contingência e em permanente processo de transformação. Nesta perspectiva, compreender e instaurar os pensamentos “das” e “nas” ações faz toda a diferença. O lugar do “método” se constitui inicialmente como categoria “vazia”, mas pulsante, e a ser decifrada pelo sujeito a cada ciclo de seu próprio olhar nos encontros, ações e desejos de criação. Ao desarmar do olho, desarma-se o olhar, não só pelas obras de arte, mas também pelas reflexões, assim, mesmo referindo-se a ciclos de obras artísticas de minha autoria, com este texto pude inspirar a outros artistas interessados em realizar seus próprios projetos dentro ou fora da academia. Esclareço ainda que a noção de trajeto, que aparece no título, largamente utilizada em meus ensaios, designando o confronto de todas as forças objetivas-subjetivas que atuam e se atualizam na obra também como devir do sujeito, acontecimento, experiência, diálogo possível entre a matéria poética e o psiquismo do criador, é tomada e inspirada da acepção de Gilbert Durand, da sua antropologia do imaginário, quando ele afirma que o trajeto é a incessante troca que existe no campo do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas emanando do meio
cósmico e social (DURAND: 1997, 41). No caso do meu pensamento esta noção de trajeto está sempre associada aos processos de criação artística. Também, aos que ainda não o conhecem, aqui fica a sugestão de leitura do livro de arte Olho Desarmado, disponível em livrarias, bibliotecas e site da editora. Seus poemas-pinturas traduzem o desmontar do olhar com o próprio desmonte do olho. Fotografei a íris do meu olho (parte única como a impressão digital) e este fragmento é deslocado e montado com outras imagens. Trata do estranhamento que nos desarma no encontro-fusão com o olhar-criança, o olhar-poeta e o olhar-louco, devir pungente, lúdico e inquietante da experiência sensível do mundo, com suas dinâmicas em dobras e redobras de sete Secretos. Com esta reedição apenas do formato ensaio, sugerida pelos próprios editores, aos quais muito agradeço, quase nada no conteúdo se modifica: espero ampliar o acesso a leitores, artistas ou não, alunos ou não, reconhecida a meus parceiros e mestres de todos os tempos.
Sumário
13 Pensamento em Configurações 21 Gênese do Processo Criativo 29 Imagens e Repercussões 35 Visibilidades 43 JogoCriação 53 ImagemSímbolo 61 Enigmas: Marc, Francisco, Clarice,
Akira, Renato, Aurélia...
69 Clave de Operadores 73 Perguntas-Passaporte 78 Referências
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Pensamento em Configurações Falar é um dever, justamente porque o essencial permanece mudo. (BARBA, 1991:11)
Minha vida não é essa hora abrupta em que me vês precipitado. Sou uma árvore ante meu cenário; Não sou senão uma de minhas bocas: Essa dentre tantas, que será a primeira a fechar-se. (RILKE, 1960: 321)
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inha pesquisa, como artista e professora, tem sido conduzida pelo desejo de compreender processos criativos e gerar novo ciclo de obras, partindo da leitura de temas e imagens de poemas articulada com obras visuais. Ao tempo em que o objeto poético é configurado, são também configuradas as várias fases da criação acompanhadas por uma clave de autores que inspiram uma abordagem para esse movimento criador. Por isso este livro encontra-se dividido em duas partes: o objeto poético e este ensaio sobre um trajeto criativo e sua abordagem. Como um corpus gerador situa-se aqui a gênese do percurso recorrente nele como conjunto de poemas e um modo de leitura em imagens e repercussões. Essa leitura inicial, inspirada no método da psicocrítica de Charles Mauron, é definidora para todas as configurações
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e formatos posteriores; nela, é tomada como instrumento para a identificação e articulações o que se convencionou chamar de “aparição”, termo que engloba a própria imagem, sua alusão, fragmento ou citação. Seu corpus trajeto constitui os desdobramentos dessa leitura e configura aqui a própria concepção para Olho Desarmado, tanto para o livro quanto para outros objetos poéticos, tais como instalação ou encenação, decorrentes deste mesmo ciclo; essa operação é recorrente em outros ciclos já realizados. Como corpus pensamento são apresentadas as ideias de “visibilidade” implicadas na pesquisa. Partindo inicialmente desse conceito em Calvino, somam-se a ele o jogo, a imagem e a memória, como elementos que constelam, permeiam e articulam a emergência das configurações e formatos materializados. O conceito de “visibilidade” em Calvino traduz-se como um princípio criador, onde “pensar por imagens” apresenta-se como o sistema mais eficiente de escolha entre as formas infinitas do possível e do impossível. O conceito de “jogo como fundamento da cultura” inspira-se em Huizinga e Caillois e o conceito de “imagem como produtora de conhecimento” é considerado sob a ótica de Bachelard e Durand. A recepção inclui também os elementos de jogo, imagem e memória como um tipo de fruição que completará a visibilidade da obra como uma cartografia. São reafirmados os argumentos definidores na sua escolha e construção. Este trabalho pode ser também 14
inserido numa vertente da pesquisa sobre o imaginário, tendo como objeto: a imagem, a memória e o jogo como geradores da criação. “O poeta está diante da linguagem como o pintor diante do objeto”, nos diz Claude Lévi Strauss. (apud CHARBONNIER, 1989: 99-100) O “poético” é “exatamente a capacidade simbólica de uma forma” nos diz Roland Barthes. (BARTHES, 1990: 113-114) Nesse sentido, a imagem é aqui tratada como material direto para o poeta: artista visual ou cênico. O conceito de imagem visto sob a ótica de Gaston Bachelard também se soma nesta direção; na Poética do Espaço ele afirma que “a imagem é um produto direto da imaginação, a vida da imagem está toda em sua fulgurância, no fato de que a imagem é uma superação de todos os dados da sensibilidade.” Assim sendo, na sua formulação, a imaginação aparece “como uma potência maior da natureza humana.” (BACHELARD, 1989: 16-18) Neste sentido despe-se em Bachelard o conceito de imagem de todo e qualquer resquício de imagem-reprodução e restitui-se a fulgurância da imagem como produtora de conhecimento. Gilbert Durand, em seu livro A imaginação simbólica, fornece o estudo do caminho do que ele denomina “hermenêuticas redutoras” e “hermenêuticas instauradoras.” As redutoras, mesmo reintroduzindo o simbólico no domínio da ciência, vão tratá-lo ao nível do signo, ou seja, daquela interpretação em que o significante é 15
arbitrário e apenas adequado a um significado já fornecido antes. As segundas, as instauradoras, levam o simbólico para o nível realmente do símbolo, cujo significante é não-arbitrário, não-convencional, e cujo significado “nunca pode ser atingido pelo pensamento direto, nunca é fornecido fora do processo simbólico”. (DURAND, 1988: 16-18) Precedendo Durand, identificam-se em Jung as raízes dessa formulação, separando “instaurador” de “redutor” e signo de símbolo: “não considero o símbolo em sentido alegórico ou semiótico, mas propriamente como a melhor designação e formulação possíveis de um objeto não perfeitamente identificável em todos os seus aspectos”. (JUNG, 1982: 67-68) Na linha das “hermenêuticas instauradoras”, como as definiu Durand, e considerando imagem como um operador que equivale a símbolo é que este processo criativo se faz inspirar. No tocante à memória é importante ressaltar que não se trata de fazer comparações entre vida e obra visando à recomposição biográfica; se estes elementos vierem a se tornar visíveis será unicamente no sentido de formular um processo
criativo para a construção de uma poética, na poesia ou na visualidade, no espaço plástico ou na encenação, ou seja, uma ficção. A imagem associada à memória valerá por si mesma, pelo ato de superação e de comunicação que ela pode estabelecer enquanto arte. Neste conceito é também Bachelard a fonte de inspiração por ser rigorosamente antibiógrafo1 e considerar a obra a partir de elementos da psicologia, mas sem nenhuma vinculação a estudos comparativos de relações entre vida e obra. Como forma de encenação, o trabalho inspira-se ainda numa linha de eventos contemporâneos estudados na intercessão da Cena e da Plástica como Performance, no que ela guarda de um topos experimental. Para Renato Cohen “a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade”, (COHEN, 1986: 30)
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Sobre relações vida e obra em BACHELARD, ver A Poética do Devaneio, 1988: 9-10 e A Poética do Espaço, 1989: 17. 17
ela é antes de tudo uma expressão cênica e podemos entendê-la como “uma função do espaço e do tempo”. Ao longo do século passado assistimos à introdução dos objetos, dos conceitos, das tecnologias e especificamente do corpo, nas artes plásticas, subvertendo os seus meios e tornando imprecisos às vezes, e outras mais abrangentes, os limites entre as formas dos seus produtos artísticos. Fenômeno semelhante deu-se em todas as artes, gerando produtos híbridos em novas formas de articulação e aproximação como, por exemplo, na dança-teatro; todavia, para o movimento criador aqui tratado, importa mais o hibridismo ligado às demandas do próprio sujeito em seus trajetos do que o das referências históricas.
Interessam também para este trabalho certas formas de articulação com o jogo e com a memória na construção e na fruição da obra. Por ser o objeto central da pesquisa o processo criador no limite entre os eventos visual, literário e cênico, foram priorizadas as leituras mais relacionadas com o processo do que com o produto. As referências teóricas e históricas, embora se façam presentes, em nenhum momento se tornarão modelos para enquadrar a produção ou identificar e explicar a obra. Do mesmo modo que com as imagens o sentido não pode ser fornecido antes, todas as fontes são usadas como elementos inspiradores, implicados na elaboração da obra artística, dialogando com ela em todos os momentos de seu processo criativo.