Revista APDA #21- 2º trimestre 2021

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REVISTA

EDIçãO 21 2º TRIMESTRE

2021 ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

VALOR E PREÇO DA ÁGUA: PARCEIROS DESAVINDOS


Edição APDA

Projeto Gráfico OTNovesete Comunicação

Diretor Sérgio Hora Lopes

Diretora Criativa Sandra Souza

Conselho Editorial Paulo Nico Pedro Béraud Pedro Laginha

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Coordenação Ana Antão Colaboração Especial Eduardo Paulino

ÓRGÃOS SOCIAIS DA APDA ASSEMBLEIA GERAL Presidente: Francisco Silvestre de Oliveira Secretário: Francisco Marques Secretário: Gertrudes Rodrigues

EDITORIAL

# FICHA TÉCNICA

CONSELHO DIRETIVO Presidente: Rui Godinho Vice-Presidente: Frederico Fernandes Vice-Presidente: Joana Felício Vice-Presidente: J. Henrique Salgado Zenha Vice-Presidente: Rui Marreiros Vice-Presidente: Susana Ferreira CONSELHO FISCAL Presidente: Carlos Pinto de Sá Secretário: Carlos Silva Secretário: Jorge Nemésio

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Durante séculos a “Teoria do Valor”, o estudo da formação do valor de bens e serviços, foi um dos principais temas de reflexão e investigação dos economistas e antes deles de muitos filósofos, começando provavelmente por Aristóteles. Quem definiu de um modo claro e bem percetivel o valor foi Adam Smith, filósofo e “pai” da economia política clássica. Segundo esta escola o valor dos bens e serviços pode ser visto enquanto “valor de uso” porque satisfazem necessidades e “valor de troca” porque podem ser trocados por outros. Hoje no entanto falamos muito em valor mas nunca o adjetivamos (de “uso” ou de “troca”), o que gera alguma confusão quando usamos a palavra valor. A ciência económica dominante também deixou cair praticamente a importância do “valor de uso”, passando o valor a ser visto muito mais como um preço e menos como valor. Ora esta simplificação é particularmente redutora no caso da água, o seu valor de uso é praticamente infinito. Como expressar tal em preços? Outra simplificação da corrente dominante consiste em não mostrar interesse em determinar o “valor de troca” dos bens e serviços produzidos, de forma mais ou menos independente dos preços fixados pelas flutuações do mercado. Ninguém praticamente pensa nesta questão: falamos de preços e chega. É interessante reparar que a “confusão”, chamemos-lhe assim, entre valor e preço, é algo que é muito comum e, como dizem vários autores, as pessoas cada vez mais conhecem o preço mas olvidam o valor. Ora, a questão da diferença entre valor e preço é algo a que quem trabalha no sector dos recursos hídricos, nomeadamente nos serviços de água, se tornou progressivamente mais sensível, mas mesmo assim também os

confundimos por vezes. Em primeiro lugar, temos de distinguir o valor da “água” do dos “serviços de água”. Tendo o primeiro uma abrangência muito maior. Depois, verdade ou mentira, temos a perceção que os consumidores não valorizam devidamente a possibilidade de acederem aos serviços que prestamos, o que interessa é o preço, e as entidades gestoras encontram-se sub-financiadas, sendo uma tarefa difícil conseguir obter os recursos necessários para poderem operar em condições, prestando os seus serviços adequadamente. Como se sabe esta problemática é extremamente complexa. Entre as muitas questões que ela suscita há uma cuja resposta é particularmente importante: porque será que os consumidores parecem estar dispostos a pagar mais por serviços de menor valor (menos necessários) como as comunicações, comprar um vinho, ou mesmo uma água engarrafada, do que pelos serviços de água? Se conseguirmos ter sucesso na resposta daremos um grande passo para se conseguir que a “disponibilidade para pagar” seja devidamente percebida e bem maior do que a que estamos habituados. (atenção: devemos pensar nos consumidores dos países ricos e não nos dos pobres; nestes, em geral, se o valor da água é quase incomensurável, o seu preço é muitas vezes imoral!). É relevante assinalar que o dilema do valor da água (troca e uso) é algo que nasce com a economia política. Foi Adam Smith que o introduziu e que formulou o que se chama o paradoxo da água e do diamante, que será abordado na revista. Uma segunda questão, que completa a primeira, é igualmente essencial: “como


# EDITORIAL conseguir que as entidades gestoras atinjam níveis de recuperação dos seus custos através dos preços pagos pelos consumidores que as tornem sustentáveis a longo prazo”. Esta questão remete, como se infere, mais para os preços e custos monetários do que para o valor. Diz-nos a experiência que sem autonomia financeira a entidade gestora não atinge a sustentabilidade financeira. Mas como conseguir tornar os preços sustentáveis? Como resolver este problema? Neste número da Revista APDA estas e outras questões em torno da problemática do Valor e do Preço da Água são tratadas por vários autores, refletindo diferentes ponto de vista. Temos assim artigos que analisam a multiplicidade concetual que enforma a problemática valor/preço, que examinam o que se passa em Portugal quanto aos preços praticados e quanto à forma como impactam sobre o rendimento das famílias e sobre a acessibilidade. Analisa-se a necessidade de aprofundar os estudos sobre a importância do setor para a economia e sociedade portuguesa. A diversidade da posição dos municípios está igualmente presente através de artigos de autarcas reconhecidamente conhecedores do sector que tiveram a amabilidade de escrever sobre a sua perspetiva desta problemática.

Sérgio Hora Lopes Diretor da Revista APDA


Dificuldades na Gestão da Água e a Emergência Climática: Mudanças Necessárias

TUDO O QUE PRECISA SABER SOBRE O SETOR DA ÁGUA E DO SANEAMENTO • MESAS REDONDAS

O confronto de opiniões

• COMUNICAÇÕES Organização:

O intercâmbio de ideias e experiências sobre temas atuais

• VISITAS

Técnicas e culturais na região do Algarve

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

• EXPOSIÇÃO DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS A maior mostra do setor

• PRÉMIOS TUBOS DE OURO

O reconhecimento dos melhores trabalhos no setor

• PIPE CONTEST

Uma saudável competição, em mais uma edição de Portugal

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Patrocinadores Silver:

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CONSELHO DIRETIVO

ESPAÇO RUI GODINHO Presidente do Conselho Diretivo da APDA


A Consciência do Valor da Água Está a ficar cada vez mais claro que a “Água” desempenha um incontornável lugar no planeamento e construção de políticas integradas de garantia da vida das sociedades, promovendo a saúde pública e o bem-estar das populações, assegurando melhores indicadores económicos e contribuindo de forma inequívoca para serem cumpridos os direitos humanos consagrados pela Comunidade Internacional, bem como criando os mecanismos adequados para a construção de um sólido Desenvolvimento Sustentável. O seu papel central no quadro das medidas para combater a pandemia de COVID-19 veio acentuar ainda mais a sua importância, sublinhando-se que, no caso de Portugal, como justamente a APDA tem salientado, possamos afirmar que, mais do que um recurso essencial (e raro, em inúmeras situações), estamos perante um verdadeiro “recurso vital”. O “valor da água”, porém, continua a ser diferenciadamente tratado entre nós, mantendo-se, no tocante ao seu “preço”, situações de “dispersão tarifária”, confirmando-se a necessidade de se caminhar para a aplicação de um maior rigor na determinação das tarifas pagas pelos utilizadores finais, que concorram para “esbater” as assimetrias existentes, através, por exemplo, de um Regulamento Tarifário assumido por todos os “stakeholders”, que seja tecnicamente equilibrado e acessível à generalidade das entidades gestoras, nomeadamente as de pequena dimensão, à garantia da segurança hídrica e alimentar e concorra para um maior equilíbrio dos ecossistemas terrestres e marinhos. Nesta abordagem, portanto, há que utilizar múltiplos mecanismos que, como vem desenvolvendo a OCDE desde 20131, constitua um quadro coerente de “boa governança” da água. Importa, pois, incluir neste enquadramento, não só a garantia dos serviços urbanos de água e saneamento - em quantidade e qualidade asseguradas e controladas -, como também que os suprimentos de água adequados estão disponíveis para a produção de alimentos e energia, indústria, transporte, turismo, bens culturais e paisagísticos, preservação dos ecossistemas e da biodiversidade e dos seus “serviços”, promovendo, nomeadamente, “soluções baseadas na natureza”, bem como incluir provisões água doce existente nas zonas húmidas, como “tampão” à disseminação de vírus perigosos de animais para humanos (como é o caso do SARS-CoV-2), potencialmente indutores de perigosas pandemias. A gestão da água e a determinação do seu “valor”, implica, portanto, uma análise comparada e sustentada, em permanência, dos vários usos dos recursos disponíveis. Acresce, ainda, que vêm ganhando uma pertinência gritante os “Riscos Relacionados com a Escassez e/ou o Excesso de Água”, potenciados de forma brutal pelas Mudanças Climáticas, por 1

OECD - Water Governance Initiative

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# ESPAÇO DO CONSELHO DIRETIVO forma a que constituam também prioridades estratégias para melhorar a resiliência dos sistemas de gestão e serviços e as medidas de proteção das populações e das infraestruturas relativamente aos perigos relacionados com a água. A ação combinada da elevação do nível do mar, do aumento da temperatura média, da redução da precipitação e do aumento da frequência dos episódios meteorológicos extremos, já se fazem sentir e irão ter efeitos potencialmente devastadores nos recursos de água doce e na disponibilidade dos serviços referidos2. Portanto, uma abordagem proativa da “Gestão Integrada de Recursos Hídricos” é necessária para equilibrar as necessidades concorrentes dos principais utilizadores com base na formação de um “valor agregado” e de obtenção de “segurança hídrica” para todas as partes interessadas. Verificando-se os cenários atrás descritos, que ocorrerão com uma forte probabilidade nos próximos anos e décadas do atual século XXI, é preocupante que seja ainda pouco conhecida a dimensão dos investimentos e o peso dos custos de exploração necessários para levar a água às torneiras dos consumidores nas situações mais extremas, nomeadamente a determinação da probabilidade de ocorrência de “Dias Zero” no abastecimento, para contribuir para a adequada despoluição dos meios recetores ou para a preservação e defesa das reservas estratégicas de águas subterrâneas nos principais aquíferos. Em Portugal, em concreto, não tem aumentado suficientemente a perceção e comparação dos custos atribuíveis ao setor - o que é agravado pelo pagamento dos resíduos sólidos na fatura dos serviços da água - com outros serviços, como a energia elétrica e telecomunicações, quando na realidade os custos da água comparam muito favoravelmente com os outros serviços e até com despesas habituais das famílias. As “Linhas Programáticas” apresentadas na recente eleição dos atuais Corpos Sociais da APDA sublinham estes aspetos, considerando imperioso colocar esta temática em debate nacional, com urgência, dando sequência às reflexões e documentos produzidos, tanto pelo Conselho Diretivo como por algumas Comissões Especializadas. É isso que agora acontece com a publicação deste número da Revista APDA, contribuindo assim para que este, como outros temas fundamentais para a gestão da água em Portugal, que têm acolhido pouca atenção da parte dos Altos Responsáveis pela Conformação e Governança, num quadro de “quase adormecimento geral”, sejam traduzidos para a agenda política no lugar que lhes compete, pela relevância que assumem na promoção da qualidade de vida das populações e no posicionamento de Portugal face ao European Green Deal.

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Miguel Miranda - IPMA - Conselho Económico e Social, Évora, janeiro 2019

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A complexidade de que se reveste não afasta, antes reforça, esta urgência de envolvimento por parte dos responsáveis aos mais diversos níveis - nacional, regional e local - bem como dos mais variados “stakeholders” e utilizadores do recurso água, institucionais, técnicos, científicos e utilizadores. A recente declaração impactante de que “A Seca está prestes a tornar-se a próxima pandemia, e não existe vacina para curá-la”, proferida pela Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, para a Redução do Risco de Desastres Naturais, Ms. Mami Mizutori, na apresentação do “Special Report on Drought 2021”3, é um alerta que deverá ser levado muito a sério.

3 UNDRR Special Report on Drought 2021, documento base para a Cimeira do Clima (COP 26), Glasgow, primeira semana de novembro de 2021

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# ATUALIDADE

Sérgio Hora Lopes

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Sobre o valor e o preço da água

Lídia Lopes, Paula Lopes, Paulo Gromicho

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As Tarifas em Portugal: uma síntese

João Simão Pires

38

A acessibilidade económica aos serviços pùblicos de águas

Anita Ferreira

52

A importância económica da água

# OPINIÃO

Álvaro Amaro

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Água pública - criar valor pela justiça social e a coesão dos territórios José Ribau Esteves

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A reforma dos sistemas de água e saneamento básico em Portugal

#

QUADRO LEGAL

LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

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LEGISLAÇÃO COMUNITÁRIA

78

# EVENTOS

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# INFOGRAFIA

84


€ O VALOR DA ÁGUA


ATUALIDADE


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# atualidade

SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA “A água deve ter um preço adequado às necessidades Sérgio Hora Lopes Diretor da Revista APDA

Economista. Entre 1974 e 2010 foi docente em várias escolas do ensino superior onde lecionou disciplinas de economia, política social, planeamento e gestão do ambiente. Dirigiu a pós-graduação de Gestão das Organizações e Desenvolvimento Sustentável da EGE/UCP. Trabalha no setor dos serviços de água e do ambiente desde 1982. Foi Diretor-Delegado dos SMAS de Matosinhos, Gestor do POA e Interlocutor Sectorial do Ambiente para o Fundo de Coesão e administrador de várias empresas do grupo AdP. Neste momento é assessor da AdDP e consultor da AdP Internacional. Elaborou vários trabalhos sobre planeamento, integração e fundos comunitários, economia do ambiente e da água, gestão de conflitos, prospetiva e publicou mais de uma dezena de ensaios e artigos em revistas da especialidade e capítulos de livros. Integrou vários cargos de direção da APDA, sendo membro da Comissão Especializada de Legislação e Economia.

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sociais, económicas e ambientais; esta é uma questão ética

e um factor de equidade, de justiça social e ambiental” Nowadays people know the price of everything and the value of nothing (Oscar Wilde)

Todos os néscios confundem valor e preço (António Machado)


SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

A. NOTA PRÉVIA

percepção daquilo de que se está verdadeiramente a falar.

O valor da água associado ou não ao preço cobrado é um dos temas mais referidos na literatura e um dos que mais preocupam todos os agentes que trabalham no setor, deixando sempre uns e outros com a sensação de que a população e os agentes económicos o desvalorizam por não terem uma correta

Dada a complexidade e o carácter verdadeiramente holístico da água (físico, social, económico, ambiental), não é fácil que utilizadores e consumidores tenham a percepção global do valor da água, mas não sendo esse um objectivo nada fácil de se atingir, é essencial consegui-lo. Talvez pegando

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de “cernelha”, como se diz na gíria tauromática, se consiga alguma coisa de produtivo. A leitura do livro “O Valor de Tudo”, de Mariana Mazzucato1, inspirou-me em ir aos fundamentos do valor e ver se por aí aparece uma forma diferente de tratar o tema. Sendo modesto na sua ambição, este trabalho tem um objetivo abrangente, ou melhor, dois objetivos. Em

Mazzucato, Maria, “O Valor de Tudo” Ed, Temas e Debates- Circulo dos Leitores, março 2019

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# atualidade primeiro lugar contribuir para que o valor da água seja compreendido na sua complexidade pelos seus utilizadores e responsáveis políticos (capítulos B e C) e depois apresentar uma proposta de abordagem na fixação dos preços da água das nossas faturas que tenha um racional associado com a expressão, senão total, pelo menos aproximada do seu valor (capítulo D). Terá sucesso ou não? Já se escreveu tanto sobre o assunto que o mais provável é que nada de novo se conseguirá dizer, mas a esperança é a última coisa a morrer…

B. VALOR E PREÇO 1. Quando utilizamos o conceito de Valor podemos-nos estar a referir a factos, exprimir realidades e a utilizar expressões que são usadas diferentemente na filosofia, nas ciências e no dia-a dia. Valor é um conceito comum à Ética, à Estética, à Política, à Religião, à Sociologia, à Economia, por exemplo,

tendo significados diferentes embora existindo sempre uma relação entre os vários tipos de abordagens. Como é bem conhecido, o caso do significado de valor na água é um daqueles em que é mais evidente esta heterogeneidade do conceito, o que torna o tratamento do tema tão difícil. Refira-se que esta multiplicidade de abordagens é acompanhada por uma perceção das pessoas, dos utilizadores, igualmente diferenciada, senão mesmo conflitual. A origem do valor dos produtos é um tema que desde muito cedo preocupa o pensamento humano. Aristóteles é considerado como o primeiro filósofo que escreveu sobre o tema mas foram os chamados economistas clássicos, Adam Smith2, desde logo, que mais aprofundaram o tema e o colocaram no centro da reflexão sobre a forma como os humanos se relacionavam com os recursos e os afetavam à satisfação das suas necessidades, à produção e distribuição de bens e serviços.

Adam Smith, o pai da chamada escola clássica, no seu livro conhecido normalmente por “A Riqueza das Nações”, afirma: “vou agora proceder à análise das regras que os homens naturalmente observam ao trocar os bens por dinheiro ou uns por outros. Estas regras determinam o que pode ser chamado de valor relativo ou permutável de bens. A palavra valor, deve ser observado, tem dois significados diferentes: às vezes expressa a utilidade de algum objeto particular, às vezes o poder de comprar outros bens que a posse desse objeto transmite. Um pode ser chamado de “valor de uso”; o outro, “valor de troca”. Afirma ainda Adam Smith, “Nada é mais útil do que a água, mas com ela praticamente quase nada se pode comprar; dificilmente se encontrariam bens com os quais trocá-la. Um diamante, pelo contrário, quase não tem nenhum valor de uso, mas encontrar-se-á frequentemente uma grande quantidade de outros bens com o qual trocá-lo.” É o que

Embora mais conhecido como economista, na verdade Adam Smith era professor de filosofia e o seu primeiro livro tem como título “ Teoria dos Sentimentos Morais”. O seu livro mais conhecido é “Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza da Nações”.

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SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

se designa por o paradoxo da água e do diamante. Adam Smith capta muito bem a dissonância entre valor de uso e de troca da água (e o mesmo se pode dizer, embora com menos intensidade, de qualquer bem de 1ª necessidade) e enuncia com clareza este paradoxo. Os critérios que determinam o valor de uso e de troca são portanto bem diferentes para todos os produtos e iremos ver que no caso de um bem como a água a diferença ainda é mais acentuada. 2. Mas como se calcula o valor relativo de um produto? Não irei entrar em detalhes, mas para a escola clássica (2ª metade do sec. XVIII / sec. XIX) o valor é determinado pelo trabalho incorporado na mercadoria. No entanto, segundo a corrente atualmente dominante, a designada por neo-clássica (2ª metade do sec. XIX / sec. XX), é a escassez e a utilidade (marginal) dos bens que explicam o valor e assim o paradoxo da água e do diamante explica-se pela abundância da água que a torna barata e a escassez dos diamantes que os torna caros. Como diz Mariana Mazzucato, “para os

marginalistas, esta teoria do valor escassez tornou-se a razão subjacente ao preço de tudo, dos diamantes aos salários dos trabalhadores, passando pela água.” Não entrando em discussão sobre afinal qual das teorias, do valor-trabalho ou valor-utilidade, estará mais próxima da realidade, o que parece certo é que sem incorporar factores de produção (trabalho na expressão dos clássicos) não existem bens e serviços e por isso poder-se-á dizer que a escassez e a utilidade (marginal) podem explicar os seus preços, mas não o seu valor. 3. Mas voltemos à questão do valor de troca e do preço. Será que são sinónimos? À primeira vista valor de troca, tal com Smith o define, e preço parecem significar a mesma coisa. No entanto, não será bem assim, ou pelo menos temos de ir ao âmago da questão para tentar perceber as subtis diferenças entre os dois conceitos. Na doutrina dominante no ensino da economia, a neo-clássica, como diz Mazzucato “usaram a utilidade marginal e a escassez para determinar os preços e a dimensão de um mercado… a oferta e a procura de

recursos escassos regula o valor expresso em dinheiro. Dado que as coisas que são trocadas numa economia monetária de mercado têm preços, o preço é, em última instância, a medida do valor.” Mas na verdade, se for assim, não se consegue chegar à verdadeira expressão do valor das coisas ou então o valor das coisas é muito efémero e reflete essenciamente o que poderia designar por “espírito do tempo”. Por exemplo, quando na sequência de uma “bolha imobiliária” uma casa vê o seu preço, o seu valor de mercado, passar de 100 para 150 e, devido ao rebentamento da mesma bolha, o preço se reduz para 80, tudo no espaço de um ano, qual o valor da casa: 150, 100 ou 80? O que explica a diferença de quase 100% do valor de um bem no espaço de um ano senão ocorrer um qualquer evento que mude radicalmente as condições da oferta e da procura? E no mercado bolsista, será que as “bolhas especulativas” têm alguma explicação assente no valor das mercadorias que as empresas vendem? Em sentido inverso, o mesmo se passa com um bem que um produtor pretende colocar no mercado por 50 mas que o Estado subsidia integralmente, porque REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# atualidade o considera de 1ª necessidade: qual o valor, 50 ou 0? Noutro exemplo, com implicações inversas, se um bem pode ser colocado no mercado por 100 mas o Estado cria um imposto que duplica o seu preço porque o considera prejudicial à saúde, o valor é 100 ou 200? Um outro excelente exemplo de que valor e preço não se confundem é o dos serviços de águas em que, para além das especificidades de que falaremos posteriormente, dado o seu caráter de “monopólio natural” o preço não pode reflectir o resultado de uma oferta e uma procura em confronto num mercado aberto. De todos estes exemplos se pode concluir que o preço é influenciado por muitos factores que vão para além do “valor dos recursos económicos incorporados” na mercadoria (custo do trabalho, ou força de trabalho na expressão de Marx, amortização de equipamentos, matérias primas e subsidiárias, custos de inovação, remuneração do capital, etc.). Falamos, como é evidente, da oferta e da procura, da existência de especulação bolsista ou outra, da intervenção do Estado (assuma este o seu âmbito nacional, local ou outro qualquer).

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Mas voltemos ao que diz Mazzucato: “A importância do conceito de valor económico no sentido que foi teorizado por Adam Smith foi perdendo importância a partir do momento em que os neo-clássicos se tornaram a escola dominante no ensino da economia. Ao mesmo tempo, o preço tornou-se o indicador de valor: desde que um bem seja comprado e vendido no mercado, tem de ter um valor. Assim, em vez de ser a teoria do valor a determinar o preço, é a teoria do preço que determina o valor.” Aplicando esta conclusão à água, será que podemos concluir que o valor da água é considerado baixo (degradado) porque reflete o seu baixo preço sendo que este não é fixado em função de critérios económicos mas mais políticos?

C. VALOR E PREÇO DA ÁGUA 4. Dada a conclusão anterior será que é porque o preço dos serviços de água é muito inferior aos de muitas outras utilities (e de outros bens de consumo, muitas vezes não essenciais) que o valor da água é percecionado pelos consumidores como baixo e que, refletindo essa

degradação, o seu preço também o deverá ser? Esta é uma possibilidade, mas existem outras, talvez menos sofisticadas, mas que igualmente merecem ser enunciadas. Uma forma de desvalorizar o valor da água é assumir que sendo ela um bem imprescindível à vida, deverá ser gratuita ou próximo disso. Neste caso comete-se um erro de indução que leva a uma confusão do valor “monetário” do bem para o consumidor com o “valor dos recursos económicos incorporados” (forma que pode ser entendida como uma versão mais simplificada da teoria do valor clássica acima referida). Ora, este é sempre um custo para a sociedade, para todos os consumidores e não consumidores, pois é ela que o suporta. Ao fazer isto estamos a confundir duas coisas diferentes. Uma coisa é o valor do bem, outra é criar condições para garantir o seu acesso a todos os que dele necessitam. Por outras palavras, garantir a todos os consumidores, quer tenham ou não uma “capacidade para pagar” pré existente, o acesso ao bem ou serviço de modo que ninguém fique de fora por falta de rendimentos.


SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

Outro argumento, próximo do anterior, é de que a água é de todos, sendo uma dádiva da natureza. Como se sabe, na realidade as coisas não se passam bem assim. Se é certo que a água provém da natureza (embora sendo certo que a componente recurso “man made” é cada vez maior) tal não significa que vá entrar na torneira de cada consumidor. Uma coisa é a água bruta, outra é a água que consumimos. Para que a água na natureza se transforme em água para consumo muito caminho tem de ser feito. Muitos recursos têm de ser usados. Também a natureza é pródiga em recursos em certos locais e/ou em certas épocas, noutros não. Ora, como bem se sabe, a prodigalidade e disponibilidade da natureza nem sempre coincidem com as necessidades humanas quanto ao local e ao tempo, além de que muitas vezes ela é “demasiado pródiga”, deixando atrás de si rastos de desastres e prejuízos enormes que temos de resolver, de pagar, o que tem igualmente um enorme valor. É evidente que a nossa ação tem ajudado a este comportamento da

natureza, cada vez mais difícil e complexo para nós humanos, o que só reforça a ideia de que as “dávidas” são cada vez mais raras e dispendiosas. 5. Como calcular o valor económico da água? Não é fácil, vejamos porquê. A água exerce um conjunto alargado de funções e valores que transformam o cálculo do seu valor em algo extremamente complexo, além de algo subjetivo. A Água exerce funções de regulação da vida no Planeta e na preservação dos eco-sistemas aquáticos e não aquáticos; fornece um bem imprescindível à vida humana e não humana; é utilizada como um recurso produtivo para a economia (agricultura, turismo, transportes, energia, etc.); tem capacidade de absorção de efluentes produzidos pelo homem; é um garante de amenidades, funções de carácter estético, psicológico, cultural, memória colectiva, etc. Tem valor ecológico, na preservação dos eco-sistemas e da biodiversidade;

económico, é imprescindível para o crescimento económico; valor social quando se refere à qualidade de vida, segurança, saúde, etc; cultural, quando olhamos às suas funções estéticas, à sua contribuição para a memória colectiva, etc. É um bem comum, de livre acesso, público, nas suas funções ecológicas nos habitats naturais, no uso recreativo, no carácter estético, de assimilação e económico, quando utilizado na produção de energia, na agricultura, na indústria, no turismo, etc. Como se vê, mais abrangente que a água não existe qualquer outro bem no planeta.O diagrama apresentado em seguida mostra bem a abrangência dos bens e serviços que a água fornece, em geral ao planeta, e especificamente na produção do que designamos normalmente por bens e serviços económicos mas também daquilo que na análise económica se designa normalmente por externalidades. O diagrama apresentado é da autoria de Robert A. Young e John B. Loomis3.

Determining the Economic Value of Water: Concepts and Methods 2nd Edition by Robert A. Young (Author), John B. Loomis (Author), Routledge; 2nd edition 3

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# atualidade Table 12.2: Classifying goods and services provided by water Commodity (or Private) Goods Producer’s Goods 1. Agricultural Producers

Consumer’s Goods 1. Residencial water supply

Non-Commodity (or Public) Goods Use Values

Non-use Values (Existence and bequest values)

1. Enhancing beneficial effects

n Crop Irrigation

n Ecosystem services

n Aquaculture

n Recreation

1. Protection of aquatic environment

n Aesthetics n Wildlife habitat n Fish habitat 2. Off-stream industries

2. Residential sanitation

2. Reducing adverse effects 2. Protection of wild lands

n Manufacturing

n Pollution abatement

n Commercial services

n Flood risk reduction

3. In-stream industries

3. Protection of biodiversity and endangered species

n Hydropower n Transportation n Fisheries Source: Young, 2005.

Tomando autonomamente os chamados serviços de água, abastecimento, águas residuais e pluviais, constata-se que os seus benefícios e efeitos multiplicadores são internacionalmente reconhecidos como muito elevados. “Recorrendo a indicadores internacionais de entidades como o Banco Mundial, a Organização

Mundial de Saúde, a UNICEF e a UN Water, é possível estimar que, por cada euro investido nestes serviços, se verifique um retorno económico de 5,5 euros, e que os ganhos globais de tais investimentos não serão inferiores a 1,5% do respetivo PIB nacional. As razões resultam dos efeitos benéficos em diversas áreas,

como a redução dos custos com cuidados de saúde para os cidadãos e para a sociedade, os ganhos de produtividade e os níveis de qualidade no trabalho e o aperfeiçoamento profissional. Contribuem, além disso, para proporcionar também melhores condições para a criação de novas atividades económicas, diversificando e

In O Valor da Água, Godinho, Rui, visto em: Opinião: “O Valor da Água” | Ambiente Magazine, Este tema tem vindo a ter uma crescente divulgação internacional. A propósito do impacto económico na saúde pode ler-se em publicação da OMS: “Economic benefits of investing in water and sanitation are considerable: they include an overall estimated gain of 1.5% of global GDP and a US$ 4.3 return for every dollar invested in water and sanitation services, due to reduced health care costs for individuals and society, and greater productivity and involvement in the workplace through better access to facilities.” Visto em https://www.who.int/water_sanitation_health/monitoring/economics/en/

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SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

melhorando globalmente o setor empresarial.”4 Mas qual é o valor da água, como calculá-lo? De acordo com a Economia Ecológica, ramo da ciência económica relativamente recente e criado para dar resposta aos novos conceitos e visões da economia, envolvendo uma perspetiva holística e derivado da consciência de que o ambiente não é um mera externalidade, a água tem um Valor Económico Total que pode ser calculado

do mesmo modo que o apresentado no quadro seguinte, relativo à natureza, recolhido da sítio do Office Internationale de l´Eau.5 Uma outra abordagem, muito aproximada da apresentada no diagrama anterior, sobre o significado de valor económico total da água, é a que faz João Fernando Marques, num documento da agência de informação de ambiente brasileira Embrapa, que se transcreve:

“De forma geral, o valor económico dos recursos ambientais tem sido desagregado na literatura da seguinte maneira: Valor Económico Total (VET) = Valor de Uso (VU) + Valor de Opção (VO) + Valor de Existência (VE). O valor de uso (VU) representa o valor atribuído pelas pessoas pelo uso, propriamente dito, dos recursos e serviços ambientais. O VU é composto pelo valor de Uso

Valor Económico dos Serviços Prestados pela Natureza

Valeur marchande

Prestations directement consommables

Nourriture: plante médicinales: activités récréatives payantes...

Valeur d’usage directe

Avantage fonctionnel

Fonction de protection; fonction écologique; function hydrologique

Valeur d’option

Usages potentiels futurs; conservation pour les générations futures

Sources potentielles de matiéres premiéres, opportunités de loisir, conservation d’habitant, de paysages...

Valeur d’héritage

Valeur patrimoniale; altruisme; legs aux générations futures

Paysages, espéces animales et végétales

Valeur d’existence

Attachement à la nature en dehors de tout usage. La nature a une valeur en elle-méme, une valeur intrinsèque

Valeur d’usage directe

Valeur d’usage

Valeur non marchande Valeur de non usage

La valeur économique totale

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https://www.oieau.fr/theme/valeurs-de-lenvironnement

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# atualidade Direto (VUD) e pelo Valor de Uso Indireto (VUI). O VUD corresponde ao valor atribuído pelo indivíduo devido á utilização efetiva e atual de um bem ou serviço ambiental, por exemplo, extração, visitação ou alguma outra forma de atividade produtiva ou consumo direto, com relação às florestas, e VUI representa o benefício atual do recurso, derivado de funções ecossistêmicas como, por exemplo, a proteção do solo, a estabilidade climática e a proteção dos corpos d’água decorrentes da preservação das florestas. O Valor de Opção (VO) representa aquilo que pessoas atribuem no presente para que no futuro os serviços prestados pelo meio possam ser utilizados. Assim, trata-se de um valor relacionado os usos futuros que podem gerar alguma forma de benefício ou satisfação aos indivíduos. Por

exemplo, o benefício advindo de fármacos desenvolvidos com base em propriedades medicinais ainda não descobertas de plantas existentes nas florestas. O terceiro componente, o Valor de Existência (VE), caracteriza-se como um valor de não-uso. Esta parcela representa um valor atribuído à existência de atributos do meio ambiente, independentemente, do uso presente ou futuro. Representa um valor conferido pelas pessoas a certos recursos ambientais, como florestas e animais em extinção, mesmo que não tencionem usá-los ou apreciá-los na atualidade ou no futuro. A atribuição do valor de existência é derivada de uma posição moral, cultural, ética ou altruística em relação aos direitos de existência de espécies não-humanas ou da preservação de outras riquezas naturais, mesmo

que estas não representem uso atual ou futuro para o indivíduo.”6 6. Como se pode ver o Valor Económico Total é difícil de calcular, temos valores tangíveis e intangíveis o que exige a utilização de estimativas assentes em pressupostos pouco consensuais ou mesmo conflituais entre os vários interessados (indústria e ambientalistas, silvicultores e agricultores, etc.).7 No entanto, seja qual for o método de cálculo, o valor atingirá montantes muito elevados, só recuperáveis através da conjugação das vontades dos vários tipos de interessados. Por isso, a preservação dos recursos hídricos tem de ser financiada através de vários tipos de meios: preços, impostos e transferências, e com o contributo dos vários agentes económicos, utilizadores diversos, poluidores, Estado, etc.

“https://www.agencia.cnptia.embrapa.br/Agencia23/AG01/arvore/AG01_29_299200692526.html “Consolidating the different approaches and methods for valuing water across multiple dimensions and perspectives will likely remain challenging. Even within a specific water use sector, different approaches can lead to strikingly different valuations. Trying to reconcile valuations across sectors would normally increase the overall level of difficulty, as would taking account of some of the more intangible values attributed to water in different sociocultural contexts. While there may be scope to reduce complexities and standardize metrics in some circumstances, the reality is the need for better means to recognize, maintain and accommodate different values” in United Nations, The United Nations World Water Development Report 2021: Valuing Water. UNESCO, Paris.

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SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

Para percebermos bem a questão da recuperação dos custos suportados para produzir todos os bens e serviços, temos de ter a consciência que serão sempre as famílias e empresas a pagar. A questão está em definir concretamente quem e quanto pagará cada um, sendo assim, em termos práticos, uma questão da distribuição dos custos. Por outras palavras, nem que a água seja gratuita para o consumidor alguém tem de a pagar: as gerações presentes ou as futuras, os contribuintes nacionais ou os estrangeiros, se existir ajuda ou subsidiação comunitária, como é o caso português, com mais imposto local ou nacional, ou com preços mais ou menos próximos dos custos, etc. Já nos pontos 4 e 5 a questão dos preços foi abordada mas a sua importância e o seu caráter polémico e divisivo exigem que seja analisada de um modo mais detalhado. Por motivos de simplicidade vamos limitar a análise à problemática dos serviços urbanos de água, onde existe uma maior visibilidade para os consumidores (ciclo urbano da água) e em que o caráter de bem económico (e social) é mais óbvio. Igualmente,

sendo o consumo urbano só uma parte pequena do uso do recurso ambiental, é o que ocupa mais páginas de jornais devido, pode-se imaginar, à sua maior centralidade na discussão político-partidária e não propriamente ao facto de ser o mais importante para a natureza e os seres humanos. Pensando nos serviços de água, em que existe uma prestação direta de serviço ao utilizador quer em termos de águas de abastecimento quer de águas residuais, quer mesmo de pluviais, o papel do preço será seguramente importante nomeadamente numa economia de mercado madura com é a nossa. Neste caso a abordagem seria a de que a água, bem económico, tem um preço que idealmente deveria cobrir os custos. Sabemos que por motivos de acessibilidade e de “disponibilidade para pagar” de muitos utilizadores, a recuperação total de custos para os de menor rendimento é impossível. Mas nada impede que para os que se encontram em escalões de rendimentos mais elevados tal não possa (não deva) acontecer. Deverá ser através de “tarifas sociais” ou de “tarifas para famílias numerosas” que se assegurará a universalidade do acesso

e não de uma redução geral das tarifas da qual beneficiará “indevidamente” quem não necessita de qualquer apoio social. Sendo o preço uma receita direta da entidade gestora, não dependente de terceiros, quanto maior for o seu peso no conjunto dos rendimentos da mesma maior será a sua autonomia e por isso maior a sua capacidade de focar a sua atividade na melhoria do serviço prestado aos seus clientes e menor o desvio de atenção para a procura de meios de financiamento, e menor também carga divisiva que a intervenção política terá. Esta é uma questão que quem teve ou tem responsabilidade de gestão percebe bem e que confere maior razoabilidade à ação crítica dos agentes políticos face à atuação das entidades gestoras. Igualmente, o preço ajuda a equilibrar a oferta e a procura assim como a conseguir uma maior parcimónia nos gastos dos consumidores. Sendo a água escassa, cada vez mais ao que tudo indica, há um interesse real na sociedade em que exista contenção no seu uso. A Economia Ambiental e dos Recursos Naturais tem vindo a enfatizar REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# atualidade muito a importância do preço enquanto instrumento de racionalização do consumo. Preços baixos levam ao desperdício. Não será por acaso que é na Irlanda, único país da EU em que os consumidores domésticos têm água gratuita, que o valor de água não faturada é o maior da EU, da ordem dos 50% em 2019. (dados da Global Water Intelligence) A própria legislação, quer nacional quer comunitária, é clara quanto à importância que a utilização do instrumento preço tem numa gestão eficiente dos recursos hídricos. Toda ela aponta para a recuperação de custos, mais ou menos nuanceada. A título de exemplo veja-se o que diz a Lei da Água no seu artº 77 nº1, (Lei 58/2005 de 29 de dezembro): O regime económico e financeiro promove a utilização sustentável dos recursos hídricos, designadamente mediante: a) A internalização dos custos decorrentes de atividades suscetíveis de causar um impacte negativo no estado de qualidade e de quantidade de água e, em especial, através da aplicação do princípio do poluidor-pagador e do utilizador-pagador;

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b) A recuperação dos custos das prestações públicas que proporcionem vantagens aos utilizadores ou que envolvam a realização de despesas públicas, designadamente através das prestações dos serviços de fiscalização, planeamento e de proteção da quantidade e da qualidade das águas; c) A recuperação dos custos dos serviços de águas, incluindo os custos de escassez. Por seu lado no seu nº4 diz: “As políticas de preços da água devem constituir incentivos adequados para que os utilizadores utilizem eficientemente os recursos hídricos, devendo atender-se às consequências sociais, ambientais e económicas da recuperação dos custos, bem como às condições geográficas e climatéricas da região ou regiões afetadas.” Como se percebe, este artigo da lei mostra o cuidado do legislador em contextualizar a complexidade ambiental, económica, regional e social da água de modo a garantir preços eficientes, justos e instrumentais de uma política económica, ambiental e

social adequada. Tarefa nada fácil, como referimos. 7. Embora em Portugal seja (ainda?) uma “não questão”, uma breve referência aos chamados “mercados da água”, onde se fixam preços de compra e venda de água bruta, merece ser feita. O aparecimento de verdadeiros “mercados” de compra e venda de títulos de acesso à água, normalmente designados por “direitos de água” (water rights), são já comuns em vários países como, por exemplo, Austrália, EUA, Chile ou Espanha. Neste mercado existem normalmente intervenientes de grande dimensão como agricultores e suas associações, indústria, munícipios, etc. dispostos a comprar ou vender, temporária ou permanentemente, os seus direitos. Tal como em qualquer mercado institucionalizado existem “corretores”, intermediários entre as partes. O aparecimento de mercados está associado à escassez de água bruta e a uma menor tradição reguladora do Estado, daí que esteja mais difundido em regiões do mundo como a Austrália ou em Estados da costa oeste


SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

dos EUA, onde se destaca a Califórnia, mas também em Espanha.

de dólares do mercado de água da Califórnia, nos Estados Unidos.

A evolução destes mercados parece ser bastante animadora, aliás à semelhança do que acontece com outros mercados de recursos naturais, como por ex. o “mercado de emissões”. Recentemente foi criado na bolsa de Nova Iorque um “mercado de futuros” para a água, que apresenta a particularidade de que os contratos não exigem entrega fisíca da água.

Segundo o Grupo CME, os contratos futuros (futures) ajudarão os utilizadores da água a gerir o risco e a alinhar melhor a oferta e a procura, refere a agência Bloomberg.

Segundo um artigo publicado em 07/12 de 2020 no jornal digital Eco, “A água começou a ser negociada como recurso (commodity) em contratos futuros na bolsa de Nova Iorque, à semelhança do que já acontece com o petróleo ou o ouro, mas sem poder ser fisicamente transacionada, segundo a Bloomberg. Agricultores, hedge funds (fundos especulativos) e municípios poderão apostar contra ou a favor da escassez da água, já que o Grupo CME lançou contratos ligados à indústria de cerca de 1,1 mil milhões

8

Os “futures” da água, os primeiros de sempre nos Estados Unidos, foram anunciados em setembro, altura em que os incêndios florestais assolaram a costa oeste dos EUA, onde se situa a Califórnia. Os contratos serão acordados financeiramente e não requererão a efetiva entrega física de água, e estão baseados no índice de Água Nasdaq Veles Califórnia lançado há dois anos. Este índice estabelece um número de referência semanal do preço do direito à água na Califórnia, sustentado pela média ponderada por volume dos preços de transação nos cinco maiores e mais negociados mercados de água do estado.

Atualmente se um agricultor quiser saber quanto vai custar a água na Califórnia dentro de seis meses, é uma questão de “palpite”, disse numa entrevista Patrick Wolf, da Nasdaq, com os “futures” a permitirem saber “quais são os palpites de toda a gente”. A Bloomberg aponta ainda que os contratos destinam-se a servir tanto como cobertura para os maiores consumidores de água da Califórnia face ao aumento exponencial de preços, como ser uma bitola de escassez para os investidores a nível mundial. “As alterações climáticas, as secas, o aumento da população e a poluição tornarão provavelmente os problemas de escassez de água e o seu preço um tema quente nos próximos anos”, disse o diretor e analista da RBC Capital Markets Deane Dray, citado pela Bloomberg, afiançando ainda que irá “definitivamente acompanhar” a evolução dos futures da água.8 Como se pode retirar da longa transcrição do artigo, o preço é aqui fixado como o

https://eco.sapo.pt/2020/12/07/agua-comeca-a-ser-negociada-em-contratos-futuros-na-bolsa-de-nova-iorque/

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# atualidade de qualquer outra mercadoria (commodity), deixando a água de ser vista, tal como estamos habituados, como uma “mercadoria” diferente das outras. Como se referiu no início deste ponto, temos de perceber que estamos a falar de mercados concorrenciais, ainda que imperfeitos, com pouca tradição de intervenção estatal. A vantagem normalmente apresentada para a adoção de soluções de mercado mesmo na fixação de preços de bens “quase públicos”, a da transparência na sua formação, tem de ser vista com muita cautela dada a complexidade de valores em causa (sociais, ambientais, externalidades, etc.).

D. NOTAS FINAIS E A NECESSIDADE DE UMA ABORDAGEM RACIONAL E ÉTICA “A água deve ter um preço adequado às necessidades sociais, económicas e ambientais; esta é uma questão ética e um factor de equidade, de justiça social e ambiental” 8. Depois do que vimos nos pontos anteriores parece claro que a questão valor/ preço da água é um tema complexo, mesmo só usando argumentos de base científica. Se damos um pequeno salto para argumentos contrários à ciência e ao pensamento

crítico, tão na moda neste início do século XXI, e já não falo em pensamentos mágicos e teorias da conspiração, então torna-se impossível alcançar-se um minímo de entendimento comum. É necessária criar uma plataforma de discussão sobre o tema em que a dupla perspetiva, a razoabilidade e a racionalidade, deontológica e teleológica, nos termos de Jonh Rawls9, imperem e passem a ser integradas pelos “stakeholders” determinantes (consumidores, agentes políticos, empresas, técnicos, ambientalistas). Como é evidente, têm de estar de fora deste entendimento comum visões “mágicas”, como por exemplo a de dizer que a água vem do

Uma discussão aprofundada sobre o que significam estes conceitos ultrapassa o objectivo deste trabalho. Mas é necessário criar uma base de partida para a reflexão/decisão e por isso recorri a conceitos que fossem relativamente conhecidos na filosofia política como bases num processo de decisão. Utilizei os conceitos segundo o pensamento do filósofo político John Rawls. Para uma explicitação recorro a duas citações de autores que se debruçaram sobre o pensamento de Rawls e que o sintetizam com simplicidade e rigor. “John Rawls destaca duas capacidades morais: a racionalidade e a razoabilidade, respectivamente, a capacidade de conceber um bem, um projeto de vida e de buscar os meios adequados para realizá-los e a capacidade de propor e aceitar acordos justos, de negociar regras e normas com ponderação e reciprocidade. A primeira mantém correlação com a razão estratégica e a segunda com a civilidade e a capacidade de negociar consensos e contratos justos. A razoabilidade diz respeito a valores da esfera política, e exige uma formação que favoreça o florescimento de virtudes políticas, sem as quais a pessoa não poderia participar do debate público.” In “Razoabilidade, Pluralismo e Educação segundo John Rawls”, de Reinaldo da Silva, Sidney. Visto em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/8709/8709.PDFXXvmi “ A razoabilidade é a condição necessária para pôr em comum as razões em que se apoiam as diferentes opiniões … significa estar disposto a limar as posições extremas…para que todos os agentes se reconheçam como parte da solução acordada”. Por seu lado , “ A racionalidade é uma faculdade que acompanha a ação humana , que é uma ação teleológica, direcionada para fins determinados e para procurar os meios necessários para os atingir. Somos racionais na medida em que somos capazes de estabelecer para nós próprios uns quantos objetivos e de disponibilizar os instrumentos mais eficazes para os atingir.” In pag 60 e 61 de Elogio da Dúvida, Camps, Victoria, Ediçoes 70, janeiro de 2021.

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SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

céu, dando-lhe por isso um significado puramente místico: pode ser uma bonita frase mas omite o essencial, pois como já referimos a água que cai das nuvens não satisfaz diretamente as necessidades e é por isso e só por isso que passa a ter valor económico. Não reconhecer isto contribui ainda mais para a quase esquizofrenia que existe em Portugal, embora não estejamos isolados, na abordagem do valor e do preço da água.

Considerar a água como um direito universal é uma conquista civilizacional que vem confirmar a necessidade de garantir a todos o acesso ao recurso água e a todos os serviços que ele pode prestar. Mas sabe-se bem que a concretização de um direito não implica necessariamente gratuitidade ou preços com mero valor simbólico. Para se garantir a justiça distributiva, que neste caso garante a acessibilidade, tem de existir igualmente uma justiça contributiva,

isto é, a comunidade tem de contribuir positivamente, através do cumprimento dos seus deveres sociais e políticos, para a concretização dos direitos humanos. Esta é uma obrigação ética para todos. Para que se crie uma plataforma de análise que possa apoiar uma discussão racional e razoável sobre o preço e o valor da água é necessário que exista transparência na informação fornecida aos consumidores

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# atualidade e que estes não sejam vistos como um bloco, como se fossem todos iguais e não um grupo diverso de famílias e utilizadores coletivos. Temos de ter em conta que para os consumidores o problema não está somente na maior ou menor “disponibilidade para pagar”, mas também na sua “capacidade para pagar”, na existência ou inexistência de solvabilidade. Vejamos, a concluir, algumas notas e considerações para melhor precisar o contexto e condições para que da base de discussão acima designada de razoável e racional se possa retirar alguma vantagem. A primeira nota é sobre a (in)compreensão do consumidor sobre o que paga e sobre como se forma o preço. Desde logo as nossas faturas são muito pouco legíveis, incluem serviços alheios à água e a forma de cálculo do preço final é complexa, mesmo para um consumidor informado. Conseguir uma fatura “amiga do consumidor” é uma exigência consensual. Designar a factura como de “serviços ambientais”, como algumas entidades gestoras já fazem, e não de água, reflete melhor o conteúdo da actual

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fatura mas torna-a mais complicada para o objetivo da facilidade na perceção do custo da água. Em segundo lugar temos de ter em conta que o mercado é segmentado, não existindo um consumidor de água médio, um consumidor tipo, existem isso sim consumidores com caraterísticas específicas. Não entrando em todas as diferenças entre os utilizadores de água, circunscrevamo-nos aos aspetos relativos ao rendimento. Simplificando podemos admitir que existem consumidores solváveis e financeiramente autónomos e insolváveis e sem autonomia financeira. O que está aqui em causa não é a questão do valor da água mas a do preço. Isto é, se a água é um direito humano universal o preço deve ser modelado para que a acessibilidade seja assegurada a todos. A utilização de preços “subsidiados”, garantidos preferencialmente, devido a questões de equidade e justiça social, por financiamento exterior ao sector, é necessária, pois frequentemente o que está em causa não é se os consumidores querem ou não pagar, mas se têm capacidade

para isso. A “disponibilidade para pagar” é outro problema, frequentemente grave dada a incompreensão do valor da água por uma parte significativa dos consumidores solváveis e financeiramente autónomos. No entanto, os argumentos racionais, económicos mas também ambientais, a necessidade de moderação no consumo que o preço sempre provoca, devem ser vivamente defendidos, a legislação cumprida e a regulação vigilante. Pagar adequadamente pela água que se consome tem de ser visto como uma obrigação ética e um acto de solidariedade com a comunidade. Uma terceira nota sobre as caraterísticas hidrológicas do território. Embora seja uma obrigação geral a da moderação do uso dos recursos naturais, sempre que a escassez predomina aquela ganha uma maior acuidade, o valor da água aumenta e o preço deve refletir esta realidade. Também aqui os consumidores não são todos iguais. Uma quarta nota para reforçar que ambientalmente é inaceitável não usar o preço


SOBRE O VALOR E O PREÇO DA ÁGUA

como um instrumento para sinalizar aos consumidores a disponibilidade de recursos, a curto mas também a médio e longo prazo. Por exemplo, manter preços muito abaixo do valor, não distingindo consumidores solváveis e não solváveis, é um incentivo a que os primeiros consumam para além do necessário e inevitavelmente a que aumente a carga fiscal para todos os cidadãos solváveis, os que pagam impostos, obviamente. Não pagam como consumidores mas fazem-no como contribuintes, com a agravante de incentivar o aparecimento de “free riders”. Como última nota, digamos que mesmo que o preço da água não reflita o seu valor, nem sequer o seu custo direto de produção, a verdade é que a sociedade no seu conjunto vai ter, de uma forma ou de outra, de suportar os custos. Como os economistas gostam de lembrar, “Não existem almoços grátis”.

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# atualidade

As Tarifas em Portugal : uma síntese

Lídia Lopes Coordenadora da Comissão Especializada de Legislação e Economia da APDA. Diretora do Departamento Administrativo e Financeiro dos SMAS de Sintra.

Paula Lopes Membro da Comissão Especializada de Legislação e Economia da APDA. Dirigente na área Financeira e Contratação nos SMAS de Sintra.

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“Quando analisamos a evolução do preço da água e do saneamento podemos observar que o custo

do saneamento de águas residuais mantem-se inferior ao custo da água...“

Paulo Gromicho Membro da Comissão Especializada de Legislação e Economia da APDA. DPO (Data Protection Officer) e Gestão de Ativos na Águas do Tejo Atlântico.


As Tarifas em Portugal : uma síntese

C

omo é conhecido a APDA publica bienalmente uma análise detalhada sobre os preços praticados em Portugal onde é analisada a diversidade existente no país no setor dos serviços de águas. Este artigo foi elaborado de modo a fornecer aos leitores um retrato, tão impressivo quanto possível em meia dúzia de páginas do que se passa no país.

A estrutura da mais recente edição do livro “Água e Saneamento em Portugal - O Mercado e os Preços” não se afasta muito das anteriores, com o objetivo assumido de manter a lógica de análise dos dados recolhidos ao longo das edições, garantindo a continuidade da análise e proporcionando a comparação da situação atual com a dos anos anteriores.

A análise desenvolve-se essencialmente em duas vertentes: - a conformação geral do setor, presente na avaliação do Regime Jurídico, na caraterização das Entidades Gestoras e nos desenvolvimentos nacionais e internacionais mais recentes; - a tipificação e a evolução das tarifas.

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# atualidade Em relação à caraterização das Entidades Gestoras, num cômputo geral e numa retrospetiva das últimas décadas, verifica-se uma multiplicidade de soluções tanto em “alta” como em

“baixa”, mantendo-se a predominância do modelo de gestão Câmara Municipal quer em termos de clientes domésticos como em população residente e número de entidades

gestoras, tanto ao nível do abastecimento de água como dos sistemas de drenagem de águas residuais, onde se concentram igualmente as entidades gestoras de menor dimensão.

CARACTERIZAÇÃO POR TIPO DE ENTIDADE GESTORA - ABASTECIMENTO DE ÁGUA Câmara Municipal

Serviços Municipalizados

CM -

Gestão Delegada Municipal

Gestão Delegada Estatal

Concessão

População Servida (2020)

Clientes domésticos

30%

22%

12%

20%

16%

CM População residente

27%

23%

Nº Municípios

56%

Nº EG

12%

19%

7%

0%

20 %

8%

40 %

19%

9%

17%

69%

60 %

Serviços Municipalizados 23% - 2,38 M Concessões 19% - 1,92 M Gestão Delegada Municipal 19% - 1,96 M Gestão Delegada Estatal 12% - 1,25 M

9%

2%

11%

Agregações 2020 resultaram num aumento de 18% na população e nº de clientes domésticos nos Modelos de Gestão Delegada Municipal e Estatal (Face a 2018)

12%

80 %

1 0 0%

CARATERIZAÇÃO POR DIMENSÃO DE ENTIDADE GESTORA - ABASTECIMENTO DE ÁGUA < 5.000 clientes

5.000 a 10.000 clientes

Clientes domésticos

4%

População residente

3%

9%

9%

8%

11%

Nº Municípios

29%

Nº EG

28%

0%

32

10.000 a 20.000 clientes

1 0%

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20.000 a 50.000 clientes

28%

20%

30%

27%

21%

30%

30%

17%

27%

2 0%

30 %

50.000 a 100.000 clientes

4 0%

15%

50 %

6 0%

Assiste-se a uma redução m ais ac en t uada n as duas dim en s õ es m ais baixas (- 28 EG) face a 2018

16%

19%

7 0%

> 100.000 clientes

8 0%

6% 2%

7%

9 0%

4%

1 00%

C o m as agregaç õ es em 2020, 202 mil clientes passaram para as dimensões acima dos 50.000 clientes, passando estas a representar 50% do n.º de clientes domésticos e 11% das EG


As Tarifas em Portugal : uma síntese

Nesta edição pretendeu-se ampliar o âmbito dos indicadores considerados nas

edições anteriores - défice de cobertura, défice de adesão e taxa de ligação - de forma

a contribuir para a análise da dimensão económica das entidades gestoras.

INDICADORES POR DIMENSÃO DA ENTIDADE GESTORA ABASTECIMENTO DE ÁGUA

Alojamentos com Serviço Disponível DÉFICE DE ADESÃO

Alojamentos com Serviço Efetivo TAXA DE LIGAÇÃO

1,2%

0,8%

14.5%

11.3%

8.1%

85.5%

88.7%

91.9%

6,7%

6,1%

10,9%

6,0%

13.4%

13.0%

18.3%

86.6%

87.0%

81.7%

< 5.000 clientes

5.000 a 10.000 clientes

10.000 a 20.000 clientes

Méd ia 8 7,6%

20.000 a 50.000 50.000 a 100.000 > 100.000 clientes clientes clientes

ÁGUAS RESIDUAIS 30,4%

26,6%

32,6%

15.9%

15.6%

84.4%

84.1%

84.4%

< 5.000 clientes

5.000 a 10.000 clientes

10.000 a 20.000 clientes

15.6%

19,7%

7,4%

14.1%

10.8%

4,4% 5.5%

M éd ia

8 8 ,7%

89.2%

85.9%

94.5%

Alojamentos Existentes DÉFICE DE COBERTURA 20.000 a 50.000 50.000 a 100.000 > 100.000 clientes clientes clientes Défice de adesão

Taxa de ligação

Défice de cobertura

COBERTURA DE GASTOS DE ÁGUA 2019 150%

101,8%

100%

70,1%

112,9%

120,2%

115,41%

78,5%

50%

0% < 5.000 clientes

5.000 a 10.000 clientes

10.000 a 20.000 20.000 a 50.000 50.000 a 100.000 clientes clientes clientes

> 100.000 clientes

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# atualidade Também foram incluídos os indicadores água não faturada e cobertura dos gastos, tanto para o abastecimento de água como para o saneamento de águas residuais. Assistiu-se a uma melhoria dos indicadores nos dois tipos de sistemas em especial

no setor de saneamento de águas residuais, sendo de relevar o aumento da taxa de ligação e a redução significativa dos défices de cobertura e adesão, nos últimos anos, o que evidencia um esforço considerável nesta vertente da atividade das entidades gestoras em termos gerais.

Quando analisamos a evolução do preço da água e do saneamento podemos observar que o custo do saneamento de águas residuais mantem-se inferior ao custo da água, mas com a taxa média de crescimento anual (TMCA) superior ao dobro da água, a 10 anos.

EVOLUÇÃO DO PREÇO GLOBAL ENTRE 2010 E 2020 (€/m3) Crescimento médio anual 2010-2020

AA +AR AA AR

1.461

0.923

0.538

2010

34

1.571

1.690

1.732

1.774

1.822

1.865

1.879

1.907

1.956

+1,74%

2.015

0.997

1.013

1.028

1.045

1.059

1.067

1.078

1.099

1.124

0.944

0.746

0.777

0.806

0.812

0.829

0.857

0.627

0.719

0.892

0.693

2012

2013

2011

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+3,16% 2014

2015

2016

2017

2018

2019

2020

+3,27%

+1,98% +5,19%


As Tarifas em Portugal : uma síntese

Para o triénio 2017/2020 a TMCA da água foi de 1,74% e a do saneamento de águas residuais de 3,16%. Nos últimos 10 anos, exceção

para 2017 em que a variação anual foi quase idêntica, observamos um ajustamento maior na vertente de saneamento, o que parece

refletir a necessidade de aproximar o preço, mais baixo que o da água, ao seu custo real.

PREÇOS MÉDIOS PONDERADOS DE AA + AR POR DIMENSÃO DE ENTIDADE GESTORA DE 2010 VS 2020 (EUR/m3) 2010

2.078

2.146

2.067

1.456

1.361

1.4659

1.5650

1.4625

1.6580

0.9805

0.9058

< 5.000 clientes

2.123

2020

5.000 a 10.000 clientes 10.000 a 20.000 clie ntes 20.000 a 50.000 clie ntes 50.000 a 100.000 clientes

> 100.000 clientes

Taxa média De crescimento anual

4,16%

4,04%

3,55%

3,10%

3,52%

2,61%

% de Clientes Domésticos AA

4%

9%

9%

28%

20%

30%

Na análise por dimensão de entidade gestora, os preços médios ponderados de AA+AR em 2010 o valor nacional era de 1,461 €/m3, podemos observar que apenas as entidades gestoras com menos de 10.000 clientes apresentavam um preço médio ponderado muito inferior, 65% da média nacional. Em 2020 com

um valor médio nacional de 2,015 €/m3, as mesmas entidades gestoras mantêm um preço inferior, sendo o preço 70% da média nacional, representando 13% do total de clientes domésticos de água a nível nacional. Podemos constatar no gráfico anterior que a TMCA das entidades gestora com menos de 20.000 clientes

nos últimos 10 anos, está acima da TMCA nacional para o mesmo período de 3,27%. O estudo que desenvolvemos aborda as vantagens e desvantagens das agregações, em sentido amplo, e permitiu retirar algumas conclusões importantes sobre o processo de agregações no nosso

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# atualidade país e fazer uma avaliação sobre as questões que essas agregações suscitam para o desenvolvimento dos serviços de água, principalmente em regiões de baixa densidade populacional, as quais impõem sobretudo exigências ao nível da eficiência económica, sustentabilidade económica, financeira e ambiental, profissionalização e inovação. Mais do que a questão da eficiência económicofinanceira das agregações, a ausência de dimensão e qualificação técnica mínimas, constituem o principal problema destes sistemas ao pôr em causa a qualidade dos produtos e serviços. Em relação ao contexto internacional, conclui-se que as tarifas médias praticadas em Portugal se encontram alinhadas com as aplicadas na Europa mediterrânica, e posicionam-se numa escala intermédia entre os casos de tarifas mais baixas e os de tarifas mais elevadas, aproximando-se, no entanto, das tarifas mais reduzidas. Em jeito de conclusão, poderemos dizer que as políticas da água em Portugal têm de continuar a promover

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soluções para ultrapassar a deficiente resposta dos sistemas de menor dimensão, não porque são os únicos com deficiências mas porque a ausência de sustentabilidade económica e a carência de suporte técnico ferem drasticamente a sua capacidade de resposta. Ao invés, os sistemas de maior dimensão quando se revelam ineficazes ou ineficientes, normalmente essa situação resulta de fatores específicos de sobredimensionamento ou de gestão, passíveis de ser contornados com os seus próprios meios potenciando as suas capacidades. Portugal dispõe atualmente de dois instrumentos poderosos para apoiar uma evolução do redimensionamento e modernização dos pequenos sistemas - a independência do regulador e a articulação do anunciado PENSAARP 2030 com a dimensão e regras de atribuição de fundos. A emergência de um novo plano estratégico, com uma ambição temporal de uma década é uma oportunidade única para vencer a ineficácia de resposta em vários planos de sustentação técnica, transversal a todo o setor.

Para finalizar, uma questão que é reconhecida por todos os operadores, independentemente do modelo de gestão adotado e que se impõe contornar, é o desconhecimento da opinião pública sobre o esforço acrescido do setor, designadamente, quanto à dimensão do investimento que é necessário realizar para a criação e reabilitação das infraestruturas, o peso dos custos de exploração necessários para levar a água às torneiras dos consumidores e contribuir para a despoluição dos meios recetores, estabelecendo a comparação dos custos atribuíveis ao setor com os de outros serviços, designadamente de energia elétrica e telecomunicações, quando sabemos que na realidade os custos dos serviços de água e saneamento para os utilizadores se apresentam mais favoráveis. Será por isso necessário que a nossa atuação vá no sentido de apoiar e promover campanhas de divulgação desse esforço, a nível nacional, para que se consiga base de sustentação para o desenvolvimento de medidas necessárias ao cumprimento


As Tarifas em Portugal : uma síntese

dos restantes objetivos do setor, de forma a responder aos desafios e oportunidades que se perspetivam nos próximos anos. O trabalho desenvolvido ao longo de quase duas décadas foi o contributo da CELE para, na nossa perspetiva, dar a conhecer o setor em que estamos diariamente empenhados!

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# atualidade

A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS João Simão Pires Membro da Comissão Especializada de Legislação e Economia da APDA

Licenciado em Economia pela Universidade Católica de Lisboa, onde iniciou atividade docente em 1992, e MBA pela Universidade de Rochester, EUA. Extensa experiência em consultoria de estratégia com a Monitor Company (escritórios de Nova Iorque, Londres, Atenas e Madrid). Durante três anos assumiu responsabilidades como Diretor de Planeamento e Controlo de Gestão na EPAL, tendo subsequentemente integrado a Comissão Executiva da Sonae Indústria na África do Sul. Vogal do Conselho Diretivo da ERSAR entre 2006 e 2010, com responsabilidade sobre a regulação económica e desenvolvimento de projetos legislativos e regulamentares. Consultor de organizações públicas e privadas no domínio da regulação de serviços públicos de águas e resíduos, quer em Portugal quer a nível internacional, é desde 2012 Diretor Executivo da Parceria Portuguesa para a Água. Membro do Conselho Consultivo da ERSAR como perito independente e Presidente da CAGER - Comissão de Acompanhamento da Gestão de Resíduos.

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APDA _ 2021 | REVISTA APDA_

“... enquanto os serviços de águas e resíduos representam 1,3% das despesas, a factura energética habitacional (essencialmente sob a forma de electricidade e gás) atinge 6,3% ...”


A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

1. ENQUADRAMENTO

incorridos com a sua prestação.

O panorama nacional no que concerne à recuperação dos custos dos serviços urbanos de águas (abastecimento e saneamento) pela via tarifária mantém-se preocupante na medida em que, em cerca de metade dos municípios, representando um quarto da população, os proveitos gerados por esta via continuam a ser manifestamente insuficientes para recuperar os custos

Se, no plano teórico, este défice poderia ser politicamente assumido através da afectação de recursos gerados por via fiscal (“T2”, na terminologia da OCDE, 2009), na prática, duas características destes serviços tendem a conduzir a que esta “insustentabilidade financeira” (no sentido de ausência de autonomia) se traduza ao longo do tempo em situações

de insustentabilidade operacional e precaridade na garantia de adequados níveis de acesso ao serviço e qualidade na sua prestação: • Custos marginais de investimento associados ao aumento do grau de cobertura das redes públicas progressivamente crescentes (à medida em que estas se alargam a zonas de menor densidade de consumo). Trata-se de investimentos que, mesmo quando financeiramente REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# atualidade rentáveis, oferecem períodos de retorno muito dilatados. • Pouca “visibilidade pública e mediática” das infra-estruturas (em grande parte, literalmente “enterradas”). Na medida em que estes activos oferecem vidas úteis técnicas muito longas (na ordem de décadas), tende a ser “fácil” para os decisores postecipar sucessivamente investimentos de manutenção, reabilitação e substituição destas instalações, conduzindo a processos longos, mas inexoráveis, de sua progressiva degradação e obsolescência técnica. Disso têm sido testemunha os vários relatórios emitidos pelo Grupo de Acompanhamento e Gestão (GAG) do PENSAAR 2020. Se esta apreciação é relativamente consensual no sector (entre académicos e quadros técnicos, quadros dirigentes de entidades gestoras e os responsáveis da administração pública mais ligados ao sector), a realidade é que, a níveis de decisão mais elevados (eminentemente de cariz mais político e mediaticamente exposto),

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quer a nível local, quer central, a determinação no sentido de aumentar os níveis tarifários tem sido tipicamente tímida. Neste artigo reitera-se a tese de que, felizmente, o nível de desenvolvimento económico da sociedade portuguesa há muito que permite que, objectivamente, a sustentabilidade financeira do sector seja uma realidade. Para o efeito, procura-se, de forma simples, integrar dados de múltiplas fontes no sentido de caracterizar a realidade actual das famílias portuguesas nos planos do seu rendimento disponível, perfil demográfico, composição da despesa e efectiva acessibilidade económica a estes serviços, contextualizando e enquadrando internacionalmente esta análise. Entre as principais fontes utilizadas contam-se: • Portais INE - Instituto Nacional de Estatística/ PORDATA, 2021, destacando-se o mais recente “Inquérito às Despesas das Famílias - 2015/16” do INE; • ERSAR - Entidade

Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos; “RASARP - Relatório dos Serviços de Águas e resíduos em Portugal - 2020”; • GWI - Global Water Intelligence: “Water Tariff Survey - 2020”.

2. PERFIL DEMOGRÁFICO DAS FAMÍLIAS PORTUGUESAS A transformação na realidade demográfica da sociedade portuguesa ocorrida ao longo das últimas décadas é confirmada pelos resultados estatísticos publicados pelo INE, estando actualmente em curso o Censos de 2021. Não só é a dimensão média do agregado familiar, situada em 2,5 elementos, significativamente inferior à “referência familiar clássica”, como: • 53% dos agregados familiares não incluem crianças dependentes; • 21% dos agregados são unipessoais, na sua maioria compreendendo indivíduos com mais de 65 anos de idade. No que concerne à distribuição geográfica da população, de acordo com os


A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

mais recentes dados do INE, 13,2% das famílias residem em áreas predominantemente rurais, sendo que a percentagem inserida em áreas predominantemente urbanas atinge já os 73%. Por último, uma importante realidade com relevância para os serviços de águas é evidenciada por estes últimos resultados: 32% dos

6 milhões de alojamentos residenciais contabilizados não correspondem a habitação permanente. Tal significa que, em média, cada uma em duas famílias portuguesas dispõe de uma segunda habitação. Tratando-se de alojamentos de utilização esporádica ou de todo não utilizados, este é um dos factores que

contribui para o défice de adesão aos serviços de águas documentado pela entidade reguladora no seu mais recente relatório anual (RASARP, 2020). Com efeito, quer no caso do serviço de abastecimento, quer no de saneamento, cerca de 11% dos alojamentos que têm estes serviços “disponíveis”, não utilizam os mesmos (Quadro 1).

Quadro 1 - Acessibilidade física aos serviços de águas e grau de adesão - 2019

Alojamentos com serviço disponível Alojamentos com serviço efectivo Défice de adesão aos serviços

Abastecimento 96.1% 84.7% 11.8%

Saneamento 85.2% 75.7% 11.1% Fonte: ERSAR – RASARP, 2020

3. EVOLUÇÃO DO RENDIMENTO DAS FAMÍLIAS Reportando-nos ao início da década de 60 do século passado, podemos decompor os últimos 60 anos de evolução do PIB per capita nacional em quatro grandes fases. Para melhor percepção do seu significado, na Figura 1, que apresenta a evolução deste indicador a preços constantes de 2016, são igualmente representados os níveis do PIB per capita

actuais de algumas outras economias (ver Figura 1). No início da década de 60, o nível de rendimento da população portuguesa equivalia ao que é hoje usufruído no Reino de Marrocos. Até ao início da década de 70, a nossa economia registou um crescimento assinalável, duplicando o seu rendimento neste período. Por alturas da revolução em 1974, o PIB per capita português equivalia já ao

nível que o Brasil apresenta hoje (cerca de 8 mil €). A década subsequente foi algo conturbada e, em meados da década de 80, altura em que Portugal aderiu à Comunidade Económica Europeia, o nível de rendimento era marginalmente superior e similar ao que a China apresenta actualmente. Os quinze anos subsequentes, até ao virar do século, foram novamente caracterizados por um apreciável crescimento. O PIB per capita, em termos REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# atualidade

Figura 1 - Evolução do PIB per capita português nos últimos 60 anos (preços constantes 2016)

reais, voltou a duplicar, atingindo-se, no ano 2000, um patamar equivalente ao da Grécia. Todavia, desde o virar do século, tem-se vivido novamente um período de estagnação e, por vezes, de crise. Fruto de alguma recuperação observada desde 2015, o rendimento per capita português é actualmente equiparável ao da Polónia, bem que se situando ainda 25% aquém da média da União Europeia (EU 27). Neste quadro, a questão de fundo que se coloca é se o nível de rendimento

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de que a nossa sociedade já há muito usufrui lhe permite equacionar uma universalidade e autonomia financeira dos serviços públicos de águas sem ferir gravemente condições de acessibilidade económica a estes serviços essenciais. É essa a perspectiva do autor, apresentada e documentada no remanescente deste artigo.

4. COMPOSIÇÃO DA DESPESA DAS FAMÍLIAS Na presente secção, procura-se avaliar a mais recente informação quanto ao real peso que os encargos com os serviços de águas representam no orçamento das famílias portuguesas. Para o efeito, a fonte mais completa constitui o “IDEF - Inquérito às Despesas das Famílias” realizado pelo INE a cada intervalo de 5 anos. Tratando-se de uma grande operação estatística, integrada nos Household Budget Surveys da União


A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

Europeia, a sua metodologia passa pelo preenchimento de cadernetas de todas as despesas familiares e individuais, complementadas com entrevistas individuais, de acordo com a nomenclatura COICOP: Classificação do Consumo Individual por Objectivo. Na sua última edição de 2015/2016 foram entrevistados 11 398 alojamentos o que constitui uma amostra muito assinalável. Atendendo a que

a despesa anual média por agregado nesta amostra se situa em 20,4 mil €, o que equivale a 60% do rendimento médio disponível familiar de 34,4 mil €, apurado pelo sistema de contas nacionais, importa ter presente que os pesos percentuais reportados em algumas categorias de despesa poderão se encontrar por esta via sobrestimados face à realidade. Na Figura 2, de acordo com esta fonte, representa-se a evolução da composição da

despesa das famílias ao longo dos últimos 15 anos. Como se observa, a principal transformação ocorrida neste período foi o expressivo aumento, em quase 12 pontos percentuais, do peso das despesas com habitação e utilities (onde se inserem os serviços de águas), apenas parcialmente compensado pela redução dos gastos com produtos alimentares e bebidas não alcoólicas.

% DA DESPESA MÉDIA ANUAL POR AGREGADO

Fonte: IDEF - Inquérito às Despesas das Famílias, 2015/16, INE. Nota: Categorias de despesa de acordo com a Classificação Individual por Objectivo (COICOP)

Figura 2 - Evolução da estrutura de despesas das famílias portuguesas nos últimos 15 anos

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# atualidade Na medida em que as despesas se encontram classificadas e agrupadas de acordo com o seu “objectivo de consumo”, poder-se-á eventualmente especular se o significativo aumento do peso das despesas

associadas à habitação não terá contribuído para uma crescente sensibilidade dos consumidores a todos os encargos (incluindo utilities) que na sua mente se enquadram neste objectivo de consumo.

Todavia, uma maior desagregação da análise da estrutura de despesas, como a apresentada na Figura 3, torna patente o diminuto peso dos encargos com os serviços de águas nos orçamentos familiares:

% DA DESPESA TOTAL ANUAL MÉDIA POR AGREGADO - 2015/2016

Habitação (incluindo reparação e conservação)

23.70%

Produtos alimentares

13.40%

Despesas com a utilização de veículos pessoais

9.20%

Hóteis, restaurantes, cafés e similares

8.80%

Electricidade, gás e outros combustíveis de uso residencial

6.30%

Lazer, distração e cultura

4.20%

Bebidas alcoólicas e tabaco

1.60%

Abastecimento de água, saneamento e recolha de resíduos

1.30% 0%

10 0%

Fonte: IDEF - inquérito às Despesas das Famílias, 2015/16, INE. Nota: Categorias de despesa de acordo com a Classificação Individual por Objectivo (COICOP

Figura 3 - Enquadramento das despesas com os serviços de águas no orçamento das famílias

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20%

30%


A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

Assinale-se que, enquanto os serviços de águas e resíduos representam 1,3% das despesas, a factura energética

habitacional (essencialmente sob a forma de electricidade e gás) atinge 6,3% (cerca de cinco vezes mais). Na Figura 4,

apresenta-se uma comparação mais desagregada face a outras utilities e gastos discricionários.

% DA DESPESA TOTAL ANUAL MÉDIA POR AGREGADO - 2015/2016

Restaurantes, cafés e similares

7.5% 6.2%

Electricidade

3.7%

Serviços telefónicos

3.1%

Gás (canalizado e liquefeito)

1.9%

Serviços recreativos e culturais

1.3%

Serviços de cabeleireiro e análogos

1.2%

Serviços de abastecimento e saneamento

1.2%

Tabaco

0.9%

Bebidas alcoólicas

0.7%

Águas minerais ou de nascente, refrigerantes e sumos

0.5% 0%

5%

10%

Fonte: IDEF - inquérito às Despesas das Famílias, 2015/16, INE. Nota: Categorias de despesa de acordo com a Classificação Individual por Objectivo (COICOP)

Figura 4 - Comparação com outras “utilities” e algumas categorias de gastos discricionários

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# atualidade Uma forma eventualmente mais perceptível para o consumidor de comunicar o real preço dos serviços de abastecimento e saneamento será através da sua comparação com actos de consumo utilizando “litros” como numerário.

Como ponto de partida, basta-nos ter presente que, em 2019, o encargo médio nacional com um m³ (ou seja mil litros), aferido para um nível de consumo de 10 m³/ mês, é de 2 euros, ou seja, 0.2 cêntimos por cada

litro de água (e saneamento). Assim, no quadro seguinte, expressa-se nesta unidade o equivalente a alguns comuns actos de consumo de natureza recorrente e/ ou discricionária.

Quadro 2 - “Equivalente em litros” de AA + AR de actos de consumo correntes

1 drageia Chiclet (em pacote de 12 unidades)

1 cigarro de marca Marlboro

1 litro de água mineral Vitalis

(em pacote de 20)

(em garrafão de 6 litros)

1 Sagres Mini (comprada em pack de 15 no super)

1 barra de Snack Chocolate KitKat Chunky (40 gramas)

38 litros

120 litros

150 litros

466 litros

1 litro de gasóleo normal

1 hora de estacionamento

1 garrafa de whisky

Passe diário festival NOS alive

(em Maio de 2021)

(em zona de tarifa vermelha)

(blended corrente no super)

(em 2019)

(combinado pernas inteiras + axilas + virilhas)

662 litros

800 litros

7 245 litros

30 500 litros

44 500 litros

Fonte: consultas de preços on-line em Maio de 2021

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495 litros

Depilação laser


A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

Neste domínio, cabe destacar a figura seguinte, retirada do site da APIAM - Associação Portuguesa dos Industriais de

Águas Minerais Naturais e de Nascente (www.apiam.pt), que representa o consumo per capita de águas

engarrafadas em diferentes países da União Europeia.

Eslovénia

77,1 Eslováquia

Roménia

Polónia

70,7

113,1

75,0 Lituania

Letónia

Hungria

Estónia

Bélgica

Alemanha

57,8

61,6 R. Checa

Itália

131,4

104,5

97,6 Austria

Espanha

Bulgária

148,3

135,0

138,0

118,0

168,8

Nota: Águas engarrafadas (incluindo Water Coolers)

França

Irlanda

42,0

20,5 Holanda

Reino Unido

29,3 Holanda

Portugal

10,6 Suécia

18,0 Finlândia

Grécia

Total UE

61,9

134,6

146,4

139,7

litros

122,5

203,5

CONSUMO POR HABITANTE (PAÍSES) 2015 | 2019

Fonte:

Figura 5 - Comparação do consumo per capita de águas engarrafadas na UE (litros/ per capita/ ano)

Num simples exercício de cálculo, o consumidor Português tivesse um padrão de consumo similar ao do Reino Unido, o diferencial de 100 litros/ per capita/ano, atendendo à nossa população de cerca de 10 milhões de habitantes, representaria uma poupança de 1 000 milhões de litros/ano, que valorizada “por baixo”, ao preço de 30 cêntimos por litro (garrafão de 6 litros

no hipermercado), ascende a 300 milhões de euros ano, valor que confortavelmente “cobre” qualquer défice tarifário no sector dos serviços urbanos de águas.

5. CONTEXTUALIZAÇÃO INTERNACIONAL DO PESO DOS ENCARGOS COM SERVIÇOS DE ÁGUAS Se em comparação com outras despesas, o peso dos serviços de águas se afigura diminuto, será legítimo interrogarmo-nos se no plano internacional, este indicador não se apresenta eventualmente excessivo.

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# atualidade Atendendo a que o nível de encargos tarifários com os serviços de abastecimento e saneamento aplicados em Lisboa é similar à

média nacional (208 euros e 239 euros em 2019, respectivamente, para um consumo mensal de 10 m³), começa-se por enquadrar

a tarifa média em Lisboa no panorama das capitais e principais cidades do espaço económico europeu (Figura 6).

Figura 6 - Tarifa média dos serviços de abastecimento e saneamento no espaço europeu - 2020

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A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

Como se observa, podemos decompor esta amostra em dois segmentos: • Um primeiro, em que os rendimentos per capita se situam num intervalo entre 30 e 45 mil $/ ano e as tarifas médias oscilam entre $1.5 e $2.5 por m³. Lisboa (e Portugal, em média), enquadra-se no centro deste cluster; • Já num segundo segmento, em que os rendimentos per capita ultrapassam os

50 mil $/ ano, composto essencialmente pelas economias do norte da Europa, os níveis tarifários médios situam-se entre os $3.0 e $6.0 por m³. Neste quadro, importa analisar estes níveis tarifários atendendo às diferenças no poder de compra entre estes diferentes países, utilizando-se para o efeito o indicador de acessibilidade económica preconizado pela ERSAR (% no rendimento médio

disponível das famílias dos encargos anuais com os serviços de abastecimento e saneamento, para um nível de consumo mensal de 10 m³). Como se observa na Figura 7, o peso dos serviços de águas no rendimento disponível em Lisboa (0.55%) e em Portugal (0,63%) encontra-se alinhado com os níveis observados nas outras capitais e principais cidades europeias da amostra.

Figura 7 - Acessibilidade económica aos serviços de abastecimento e saneamento no espaço europeu - 2020

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# atualidade No caso português, o sector, em termos globais, veria a sua autonomia financeira sustentavelmente assegurada se o peso dos serviços de águas atingisse um valor entre 0,7% e 0,8% face ao nível actual de 0,63%. Tal seria um valor ainda aquém dos das economias emergentes da Europa de Leste (Polónia, Repúblicas Checa e Eslovaca, Hungria, Croácia e Bulgária), mantendo-se ainda próximo do de países como a Alemanha, França e Holanda.

consistente e robustece a razoabilidade das recomendações que têm sido emitidas sobre esta matéria pela entidade reguladora sectorial.

6. CONCLUSÕES

No Quadro 3, sintetizam-se os resultados publicados no último relatório anual da ERSAR (RASARP, 2020): • O encargo anual

Na perspectiva do autor, a evidência apresentada nas secções anteriores é

Em concreto, a ERSAR recomenda um limiar de 1% do rendimento disponível das famílias para o conjunto dos serviços de abastecimento e saneamento, só considerando insatisfatórias as situações em que o limiar de 2% é ultrapassado (ou de 1%, se cada serviço for analisado individualmente).

médio com os serviços de abastecimento e saneamento corresponde a 0,63% do rendimento médio disponível das famílias (valor equiparável ao do IDEF se tivermos em atenção que a média da despesa das famílias na amostra corresponde a apenas 60% do real nível de rendimento disponível médio das famílias) • Não se observam casos em que o peso conjunto destes serviços atinja níveis insatisfatórios (superior a 2%) e a vasta maioria das entidades gestoras (EG’s) aplica níveis tarifários inferiores ao limiar de “boa acessibilidade” (1% para os dois serviços em conjunto).

Quadro 3 - Acessibilidade económica aos serviços de águas em Portugal - 2019

Serviços de águas

Abastecimento Saneamento Total

Encargo anual % do rendimento médio (€/ 120 m³) médio disponível 135 104 239

0,36 0,27 0,63

EG’s abaixo de 0,5% (limiar de “bom”) 209 (82%) 251 (97%) 90% (estimativa)

EG’s abaixo de 1% (limiar de “mediano”) 256 (100%) 257 (100%) 100% Fonte: ERSAR – RASARP 2020

Neste artigo reiterou-se a tese de que, felizmente, o nível de desenvolvimento económico da sociedade portuguesa há muito que permite que, objectivamente,

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a sustentabilidade financeira do sector seja uma realidade. Se este diagnóstico é relativamente consensual no sector (entre académicos e

quadros técnicos, quadros dirigentes de entidades gestoras e os responsáveis da administração pública mais ligados ao sector), a realidade é que, a


A ACESSIBILIDADE ECONÓMICA AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUAS

níveis de decisão mais elevados (eminentemente de cariz mais político e mediaticamente exposto), quer a nível local, quer central, a determinação no sentido de aumentar os níveis tarifários tem sido tipicamente tímida. Com efeito, o receio quanto aos “impactos sociais” (ou “mediáticos e eleitorais”, consoante a perspectiva) é desde sempre uma forte barreira à reforma tarifária.

Neste quadro, a estagnação económica que Portugal já experiência desde o início do século XXI, agudizada sobre a forma de recessão económica desde 2008, veio tornar mais adverso e hostil o contexto envolvente aos actores com poderes decisionais nesta matéria. Apesar da recuperação económica observada desde 2015, o contexto de pandemia que se instalou desde o início de 2020 e que perdura à data do presente

artigo, veio novamente reforçar este fenómeno. Sem prejuízo, pretendeu-se aqui contribuir para uma mais objectiva percepção da real dimensão do fenómeno no sentido de evitar reacções hiperbolizadas a “motivações conjunturais” que nos distraiam dos “imperativos estruturais” há muito diagnosticados. Nota: O Autor escreve ao abrigo do anterior acordo ortográfico

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# atualidade

A importância económica da Água

Anita Ferreira Diretora de Planeamento e Controlo de Gestão na EPAL, SA e na Águas do Vale do Tejo, SA.

Membro da Comissão Especializada de Legislação e Economia da APDA. Iniciou a sua atividade profissional como Auditor Financeiro na PriceWaterhouse. Depois trabalhou essencialmente no setor da Grande Distribuição, nas áreas Financeira e de Planeamento e Controlo de Gestão.

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“Gradualmente e à medida que fui aprofundando o conhecimento do setor tomei consciência, também, das

externalidades positivas que este tem na nossa economia.”


A importância económica da Água

E

ntrei no setor das águas há cerca de 20 anos. A minha experiência profissional tinha sido, até aí, principalmente no setor do retalho e grande distribuição alimentar. Já tinha a noção, como cidadã e cliente, da importância da água na perspetiva do consumidor, mas o que mais me impressionou foi a dimensão do setor das águas e a sua

importância para a economia e para a sociedade. Enquanto cliente não tinha a perceção: • Das infraestruturas necessárias à prestação do serviço de águas e respetivo valor de investimento necessário para construir e manter esses ativos;

indiretamente no setor, para que a água esteja disponível 24 horas por dia nas nossas casas. Direta e indiretamente trabalham mais de 17 mil pessoas nos serviços de abastecimento de água e na gestão de águas residuais.

• Do financiamento que é necessário para viabilizar estes ativos de elevado valor e de longa duração; • Do número de pessoas que trabalha direta e REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# atualidade RECURSOS HUMANOS E OUTSOURCING AA+AR ∑ 13336

∑ 13196

∑ 3004

∑ 3294

∑ 3132

Alta

Baixa

∑ 13599

Alta

Baixa

Alta

2019

2018

AA - Pessoal próprio afeto ao serviço AR - Pessoal próprio afeto ao serviço

Baixa 2020

AA - Pessoal em outsourcing AR - Pessoal em outsourcing

Números publicados pela ERSAR no RASARP

• Da quantidade de energia que é consumida nos serviços de abastecimento

e de saneamento. Consomem-se atualmente 1 085 M kwh/ano de

energia nos serviços de abastecimento de água e na gestão de águas residuais.

CONSUMO DE ENERGIA (M kWh) ∑ 1101

2018 AA - Consumo de energia - Alta AR - Consumo de energia - Alta Números publicados pela ERSAR no RASARP

54

APDA _ 2021 | REVISTA APDA_

∑ 1183

2019

∑ 1085

2020 AA - Consumo de energia - Baixa AR - Consumo de energia - Baixa


A importância económica da Água

Gradualmente e à medida que fui aprofundando o conhecimento do setor tomei consciência, também, das externalidades positivas que este tem na nossa economia. As externalidades, definem os economistas, são os efeitos sociais, económicos e ambientais indiretamente proporcionados pela venda de água potável e pela prestação de serviço de tratamento de águas residuais. Faz parte do meu trabalho, no Planeamento e Controlo de Gestão, quando faço análises custo-benefício (ACB), avaliar

as externalidades, para além dos custos e benefícios que decorrem diretamente do investimento. A ACB visa averiguar as vantagens ou desvantagens económicas de uma decisão de investimento. Procura-se avaliar o valor para a sociedade da realização de um determinado investimento, ponderando se os benefícios económicos, sociais e ambientais gerados pelo projeto são superiores aos custos associados à sua concretização. Tal implica converter em termos monetários os benefícios

não-monetários. Sinto que muitos destes benefícios não são, de uma forma integrada, comunicados ao cliente e são muito difíceis de quantificar. Não é por falta de informação no setor. Desde 2004 a ERSAR compila a realidade do setor, através do Relatório dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal, que é publicado anualmente e que no seu volume 1 caracteriza o setor. Creio que até 2014 tinha um volume só com a caracterização económico-financeiro do setor e que era muito útil.

VAB POR DOMÍNIO AMBIENTAL (2016-2018)

Fonte: INE (Contas do Setor dos Bens e Serviços Ambientais)

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# atualidade PRODUÇÃO DOS SERVIÇOS DE PROTEÇÃO DO AMBIENTE (SERVIÇOS PA), POR DOMÍNIO AMBIENTAL (2018)

Fonte: INE (Contas de Despesas em Proteção do Ambiente)

Também o INE publica um conjunto de informação, anualmente, sobre o setor, no seu inquérito Contas do Setor de Bens e Serviços Ambientais. O mesmo sucede com a APDA que, através de um conjunto de publicações, da qual destaco o “mercado dos preços”, disponibiliza um conjunto de informação sobre os preços de uma forma global, por água e saneamento e a nível nacional. Creio que poderíamos explicar melhor a importância económica da água através da elaboração de um estudo de impacto socioeconómico e ambiental. Estes estudos

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já são feitos em Portugal em diversos setores de atividade. Com este estudo todos os stakeholders entenderiam mais facilmente a importância da água para a economia e seria mais fácil comunicar e chegar ao cidadão. Seria um estudo que iria demonstrar o valor que o setor gerou - de forma direta, indireta e induzida - para o nosso país. Este tipo de estudo representa uma clara mais-valia, pois permite identificar o valor gerado em termos socioeconómicos - “Valor Partilhado” - na organização e sociedade, numa perspetiva transversal.

Por exemplo: • Qual a contribuição do setor para a saúde pública; • Qual a contribuição do setor para os rios e meios recetores; • Qual a contribuição do setor da água para o PIB; • Qual a contribuição do setor para o investimento; • Qual a contribuição do setor para o emprego; • Qual a contribuição do setor. Respondendo à primeira pergunta: Qual a contribuição do setor para a saúde pública? Está disponível no site da World Health Organization (WHO) a seguinte informação:


A importância económica da Água

“Os benefícios de investir em água e saneamento são consideráveis: eles incluem um ganho geral estimado de: • 1,5% do PIB global e • Um retorno de US$ 4,3 para cada dólar investido em serviços de água e saneamento, devido a

redução de custos com a saúde para indivíduos e sociedade.” 1,5% do PIB é notável. Deixo aqui esta sugestão, pois penso que seria uma ótima ferramenta para que

todos (incluindo todos os stakeholders do setor) pudéssemos compreender e comunicar melhor A importância económica da Água aumentando a perceção do seu valor pela sociedade.

Economic benefits of investing in water and sanitation are considerable: they include an overall estimated gain of 1.5% of global GDP and a US$ 4.3 return for every dollar invested in water and sanitation services, due to reduced health care costs for individuals and society, and greater productivity and involvement in the workplace through better access to facilities. In: https://www.who.int/water_sanitation_health/monitoring/economics/en/

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OPINIÃO


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# OPINIÃO

Água pública - criar valor pela justiça social e a coesão dos territórios

“... fica clara a oposição Álvaro Balseiro Amaro Presidente da Câmara Municipal de Palmela

à consagração desse princípio, do utilizador-pagador, em

qualquer documento legal e regulatório, por considerar que essa visão é atentatória

de relevantes objetivos nacionais...” Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas Estudos Portugueses e Franceses e Mestre em Relações Interculturais - Ciências da Educação. Professor do quadro da Escola Secundária de Pinhal Novo, é Presidente da Câmara Municipal de Palmela desde 2013, tendo sido Vereador no mandato 2009-2013. Foi Presidente da Junta de Freguesia de Pinhal Novo, a sua terra, entre 1997 e 2009, e Deputado do PCP na Assembleia da República em 1987 e 88. Assume, entre outras, as funções de Presidente do Conselho Diretivo da Associação Intermunicipal da Água da Região de Setúbal e de Vice-Presidente do Conselho de Administração da RECEVIN. Mantém uma carreira como músico e compositor.

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Água pública - criar valor pela justiça social e a coesão dos territórios

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ebruça-se o presente número da Revista APDA sobre o tema do valor e preço da água, que invoca, por exemplo, a questão da recuperação dos custos nas entidades gestoras dos serviços de água. Em jeito de reflexão, a partir de uma perspetiva assumidamente progressista da governação local, começo por sublinhar o entendimento de que, nas

sociedades desenvolvidas - aquelas que se propõem cumprir os direitos humanos fundamentais e assumem responsabilidades quanto à promoção da equidade e bem-estar social das suas populações - estabelecer o preço e/ou a forma de financiar o fornecimento de um bem ou serviço não deve estar dissociado da natureza desse serviço. Quanto mais alto é o valor social e o valor estruturante de um dado bem, mais se tende a aceitar

a vantagem coletiva de a sua produção ser financiada coletivamente, no princípio de a cada um/a pelas suas possibilidades, i.e. por via tributária. São casos de grande consenso as funções de soberania, a saúde, a educação, a segurança social, etc. Permitam-me uma pequena incursão sobre a questão do valor dos serviços de águas, não para abordar a importante e muito

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# OPINIÃO estimulante discussão das diferentes teorias económicas, mas para enumerar, brevemente e sem pretensões totalizadoras, as esferas socioeconómicas sobre as quais os serviços de águas impactam num território, criando valor e potenciando novas etapas de criação de valor. É incontornável começar pela mais óbvia e direta: os serviços de águas são importantes promotores da boa saúde das populações que atendem e estão na primeira linha da saúde preventiva. A disponibilidade de água boa para consumo humano elimina, tendencialmente, a propagação de doenças de contágio pela água, permite a higiene pessoal, da habitação, dos alimentos e dos espaços coletivos, etc. Aspectos que contribuem, de forma determinante, para um bom estado de saúde dos indivíduos de uma comunidade, sendo que uma população saudável tende a ser mais feliz, criativa e produtiva. Os serviços de águas às populações suprem, também, necessidades de bem-estar, que vão para além das estritas necessidades básicas, designadamente, de âmbito cultural, desportivo

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e lúdico, o que tende a reforçar a dinâmica descrita anteriormente.

vigor de relevantes atividades económicas, como as pescas ou o turismo.

Por outro lado, os serviços de águas criam emprego e atividade económica, direta e indiretamente. Bons serviços de águas são essenciais a uma dinâmica económica assente no trabalho valorizado e qualificado. Um território que não disponha de bons serviços de saúde, educação, águas e resíduos não será atrativo para pessoas qualificadas, o que, por sua vez, reduzirá muito a sua atratividade junto de instituições e empresas que deles necessitem. Perpetuam-se, assim, dificuldades de alavancagem do desenvolvimento das regiões, com reflexos na desqualificação, empobrecimento e desertificação dos territórios apanhados neste ciclo, infelizmente, tantas vezes presente no interior de Portugal.

Feitas estas reflexões iniciais, fica claro que a aplicação do princípio do utilizador/ pagador a esta problemática pode ser ótimo para a criação do negócio dos serviços de águas, mas totalmente desajustado ao objetivo mais lato de promoção do bemestar das populações e da equidade de acesso a todos aos direitos que as sociedades modernas e progressistas consideram essenciais: liberdade, vida, saúde, justiça, trabalho, educação, habitação, cultura, etc.

Uma última nota sobre o valor dos serviços de águas para sublinhar a extrema relevância dos serviços de tratamento de águas residuais na preservação ambiental dos territórios, aspeto fundamental à saúde e bem-estar, bem como ao

Importa destacar a problemática da coesão territorial, recordando que disponibilizar serviços de água em diferentes territórios pressupõe encargos bastante diferentes. Não será novidade para o público especializado recordar que o custo de entregar 1 m3 de água ou de tratar um 1 m3 de afluente será tanto mais oneroso quanto menor a densidade populacional de um território, o que significa que é muito mais caro produzir estes serviços num concelho do interior de Portugal (ou num concelho que, mesmo


Água pública - criar valor pela justiça social e a coesão dos territórios

no litoral e inserido numa área metropolitana, como é o caso de Palmela, cuja Câmara Municipal atualmente presido, tem um baixo rácio população/território) do que nos concelhos densamente povoados. Também este aspeto reforça a insuficiência e injustiça da aplicação do princípio do utilizador/ pagador para assegurar a coesão territorial, iguais condições sociais de acesso à água em todo o território nacional, igual qualidade do serviço e sustentabilidade a longo termo dos sistemas. Estou, pois, convicto de que o financiamento dos serviços deve ser feito num “mix afinado” de impostos e tarifa. Assim, preconizo, no essencial, o princípio dos 3 T definido pela OCDE, i.e. o financiamento dos serviços de águas deve ser conseguido por três vias: tarifa (T1); subsídio ao investimento (T2); e subsídios à exploração (T3). Por exclusão de partes, fica clara a oposição à consagração desse princípio, do utilizador-pagador, em qualquer documento legal e regulatório, por considerar que essa visão é atentatória de relevantes objetivos nacionais, sendo

contrária ao superior desígnio de assegurar o direito universal à água e ao saneamento, “Objetivo de Desenvolvimento Sustentável” da Agenda 2030. Antes de nos debruçarmos sobre a proposta - sempre inacabada - de afinação do mix de geometria variável dos 3 T do financiamento, importa identificar dois elementos essenciais ao cumprimento dos desígnios de justiça e progresso social e económico que antes se enunciam: a gestão pública e de âmbito local dos sistemas e a eficiência e eficácia na sua gestão e operação. Considera-se que, se dúvidas houvesse, as experiências neoliberais das últimas décadas demonstraram que a gestão pública local é a solução que cria maior valor social no caso de serviços com características de monopólio natural e de superlativa relevância para a saúde, qualidade de vida e desenvolvimento de uma comunidade. Das experiências de gestão privada implementadas, vistas como um todo, não só não resultaram vantagens económicas substantivas para o bem comum -

caso da tão propalada partilha de riscos, sendo a mais relevante do setor o afastamento da procura dos dimensionamentos de projeto, sempre endereçada contratualmente ao concedente -, como resultaram custos sociais tangíveis e não tangíveis ocultos (custos de gestão de contrato, sobrecustos resultantes dos desvios às projeções de procura, quer por alterações não previstas nas dinâmicas demográficas ou por aspetos culturais não considerados, degradação a longo prazo da influência sindical, dos direitos, rendimentos e segurança do trabalho, perceção social negativa em face à complexidade contratual e ao débil posicionamento negocial do contratante público, alimentação do processo de concentração de riqueza e desigualdade), todos estes aspetos resultando numa degradação objetiva e subjetiva da qualidade da Democracia. A importância dessa gestão pública ser local prende-se com a relevância para a qualidade da Democracia, para a coesão territorial e para o desenvolvimento local das soluções de proximidade, não só porque tem condição REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# OPINIÃO de responder mais facilmente aos problemas concretos - e este é um aspeto relevante para fixação do preço e dos mecanismos de financiamento, tal como aqui se propõem mas, também, porque a sua sindicância e avaliação política são mais eficazes. Sublinha-se, também, que a sustentabilidade dos serviços de águas assente num financiamento com origem nos 3 T não prescinde, em qualquer circunstância, de eficácia e eficiência na prestação dos serviços de águas. O alinhamento com a gestão eficiente é incontornável. Primeiro, porque será totalmente injusto solicitar, quer à/ao contribuinte, quer a quem utiliza, mais recursos do que os necessários para o financiamento do adequado patamar de serviço, num dado momento histórico do processo produtivo, e segundo, mas não menos importante, porque, vivendo nós numa sociedade de recursos limitados mas de objetivos ambiciosos, a alocação desnecessária de recursos a um dado objetivo compromete, necessariamente, a consumação de outros, também socialmente importantes.

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Definidas as condições necessárias ao adequado funcionamento desta solução, apresenta-se uma análise mais detalhada do mix de financiamento. Em termos globais e simplificados, o que se propõe é uma equação em que SI+SF+T=CSLP (SI=Subsídios ao Investimento, SF=Subsídios à Exploração, T=Tarifa e CSLP=Custo do Serviço a Longo Prazo). Aos subsídios ao investimento cumpriria cobrir o diferencial de custos originados pela produção em condições adversas, em particular, as com origem na interioridade, baixa densidade populacional e povoamento disperso e condições orográficas penalizantes. Tal exigiria a determinação de uma situação de referência que, sem excluir outras hipóteses, poderia ser estabelecida através das médias das duas áreas metropolitanas. Esta fatia do financiamento seria garantida através de um fundo nacional, com recursos de origem fiscal, o que, no caso português, implicaria uma contribuição de tipo progressivo e promotora de redistribuição. Aos subsídios à exploração cumpriria cobrir a lacuna

resultante das diferenças, entre territórios, das médias do rendimento das famílias, com vista à fixação de uma tarifa com adequação local em termos de acessibilidade económica ao serviço e/ou suportar eventuais intervenções tarifárias no âmbito das políticas públicas locais, de cariz social e económico, designadamente, apoios e incentivos às famílias e à atividade económica. O Poder Local deveria ter autonomia para usar este instrumento no âmbito dos legítimos processos de decisão que lhe estão acometidos, com o recurso a este instrumento balizado pela sustentabilidade global das contas do grupo autárquico e a sua avaliação em sede do processo democrático, através da escolha popular. Por último, caberia à tarifa arrecadar a participação dos utilizadores no financiamento do serviço, como marcador do compromisso económico com esforço coletivo que a disponibilidade de um sistema comporta (tarifa fixa) e estímulo económico à moderação do uso (tarifa variável) - sendo certo que, numa faixa inicial, a utilização de água pelas famílias


Água pública - criar valor pela justiça social e a coesão dos territórios

tem baixa elasticidade, admitindo-se que um uso entre os 2-3m3 /pessoa/mês seja necessária à satisfação das necessidades básicas, várias opções de estilo de vida poderão, no entanto, projetar consumos individuais muito acima destes valores, originando impactos económicos e ambientais negativos nos sistemas, que deverão ser desincentivados e, na pior das hipóteses, cobrados como forma de ressarcir as externalidades negativas.

quantidade utilizada, esta tende, historicamente, a organizar-se em escalões, que relacionam a demografia média com os níveis de necessidades e conforto que um dado uso de serviço disponibiliza. Embora não se descarte a possibilidade de as TI virem a disponibilizar soluções mais “personalizadas”, esta é uma solução adequada ao momento, implicando, no entanto, para cumprimento do princípio da equidade, a correção de penalizações

tarifárias com origem em desvios dos agregados habitacionais aos padrões demográficos típicos (o caso de agregados acima de 4 pessoas), pelo que será justo que a tarifa contenha um elemento de correção desta penalização económica injustificada. Por último, há a considerar um instrumento de garantia absoluta de direito de acesso à água - a designada tarifa social, a financiar pelos subsídios à exploração.

O preço a fixar deverá ter como azimute a acessibilidade económica concreta de uma dada comunidade, tendo como contraparte o financiamento proveniente do subsídio à exploração, e proveitos gerados por um preço acima do custo aplicável aos consumos de subconforto e a atividades económicas deverão financiar a tarifa média. O preço a aplicar aos usos de serviço pelas atividades económicas poderão merecer abordagem diferente, em circunstâncias especiais, considerando a tarifa como instrumento de política pública local. Tendo a tarifa a importante missão de moderar a REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# OPINIÃO Entende-se desapropriado fazer política social com base em solidariedade económica entre utilizadoras/es de serviços de águas cujos rendimentos corresponderão a todo o espectro económico. Sobre este assunto, importa recordar que o desejável numa sociedade inclusiva e de justiça social é que o recurso a esta tarifa seja excecional, uma vez que a dignidade humana pressupõe, desde logo, políticas sociais estruturantes de nível nacional, que garantam que as pessoas não caem em situações de pobreza extrema em que necessitam de recorrer a esta tarifa. Exposto, no essencial, o que considero ser um modelo de financiamento que garantiria o direito univeral à água, bem como a sustentabilidade de longo termo dos sistemas e das autarquias, permito-me dois últimos comentários colaterais. O primeiro para assinalar a necessidade imperiosa de montar um mecanismo desta natureza com urgência absoluta. Urge a substituição de parte significativa das infraestruturas em baixa, e não se trata de uma

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questão localizada, mas de um problema nacional. O financiamento desta operação de transcendente dimensão, a nível nacional, acantonada no princípio do utilizador-pagador, constitui um custo não suportável por parte significativa da população portuguesa. Por último, é determinante pôr fim às sucessivas tentativas de retirar ao Poder Local as suas competências relativas à supressão das necessidades de serviços de águas e resíduos às suas populações. Portugal encontra-se em reformulação permanente dos respetivos modelos setoriais, como cortina de fumo para esse propósito, num processo que boicota todos os esforços para encontrar novas soluções e compromissos entre os diversos atores. Este processo já destruiu muito valor e urge que lhe seja posto termo, garantindo, rapidamente, a estabilidade de uma solução que reconheça a importância e a autonomia do Poder Local neste processo.


Água pública - criar valor pela justiça social e a coesão dos territórios

ÁGUA, ONDE A VIDA SE MULTIPLICA

A VALORIZAR A ÁGUA E A VIDA

APDA - Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas Avenida de Berlim, 15 | 1800-031 Lisboa - Portugal Tel.: (+351) 218 551 359 | geral@apda.pt | www.apda.pt

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

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# OPINIÃO

A Reforma dos Sistemas de Água e Saneamento Básico em Portugal “Partilho neste artigo algumas das linhas-força que entendo exigirem um debate José Ribau Esteves Presidente da Câmara Municipal de Aveiro

Nascido em Luanda, a 21 de outubro de 1966, José Agostinho Ribau Esteves licenciou-se em Engenharia Zootécnica na UTAD/Vila Real no período 1985-1990, tendo desempenhado funções de Diretor Comercial da empresa Purina Portugal entre 1991 e 1997. Desempenhou a função de Vereador da Câmara Municipal de Ílhavo de 1990 a 1993, tendo assumido a Presidência da autarquia no período de 1998 a 2013, eleito pelo Partido Social Democrata (no qual foi Secretário-Geral entre outubro de 2007 e junho de 2008). Foi também Presidente da Associação Oceano XXI (entidade gestora do Cluster do Conhecimento e Economia do Mar). Atualmente preside à Câmara Municipal de Aveiro e ao Conselho Intermunicipal da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro e desempenha, entre outras, também a função de Vice-Presidente do Conselho Diretivo da ANMP e de Membro do Comité das Regiões da União Europeia.

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aberto e profundo, e decisões

durante o próximo ano 2022...”


A Reforma dos Sistemas de Água e Saneamento Básico em Portugal

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A questão do valor e do preço da água conta-se entre as temáticas mais vastas e abrangentes no quadro da atividade das entidades gestoras de água ou saneamento, fazendo parte da grande arquitetura das soluções adotadas. Num tempo em que essa grande arquitetura parece ter deixado de estar no centro das atenções, é importante

regressar a ela, nas suas mais relevantes facetas, como é o caso da temática em causa ou a do modelo de gestão implementado, com a qual intimamente interage. É neste enquadramento que me afasto do tema que me foi proposto, mas menos do que poderia parecer. O caminho do futuro próximo da gestão dos sistemas de captação, tratamento e distribuição de água e de saneamento básico

em Portugal tem de passar por uma reforma corajosa e feita em trabalho de equipa entre os Municípios, a empresa Águas de Portugal (AdP) e as empresas privadas que operam no setor. Num horizonte de dez anos, temos de apostar em rever conceitos e matrizes da modelação empresarial no Grupo AdP, que necessita de uma profunda reforma que lhe dê a agilidade e a produtividade que não tem,

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# OPINIÃO

nomeadamente na sua “casa-mãe”, assim como alterar a estrutura base dos EVEF - Estudos de Viabilidade Económico-Financeira, facultando às empresas participadas maior autonomia e racionalidade económica. Partilho neste artigo algumas das linhas-força que entendo exigirem um debate aberto e profundo, e decisões durante o próximo ano 2022, de forma a que a sua implementação aconteça em tempo útil. Em primeiro lugar é tempo de acabar com o conceito

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que estrutura e separa os sistemas em alta e baixa, e implementar a integração dos sistemas de alta+baixa e de água+saneamento básico, em razão do território, preferencialmente justapondo os sistemas às NUTIII e à circunscrição base das Comunidades Intermunicipais e Áreas Metropolitanas, com os necessários ajustamentos que tecnicamente sejam pertinentes. Há seguramente boas conquistas a alcançar com a redução do número de entidades gestoras, de custos de gestão e de contexto,

assim como de ganhos de articulação com a gestão de outros valores ambientais e urbanos. Em segundo lugar, a gestão dos Fundos Comunitários do novo Quadro 2021/2027 deve assentar nos Programas Operacionais Regionais e assumir de uma vez por todas a reforma que falta fazer nos sistemas sem massa crítica, assentes em tarifários que não permitem a sustentabilidade dos sistemas, alguns deles ainda de circunscrição Municipal ou de Freguesia.


A Reforma dos Sistemas de Água e Saneamento Básico em Portugal

Em terceiro lugar é fundamental investir nos sistemas de forma a melhorar a sua performance ambiental, nomeadamente no que respeita à captação de água e ao tratamento e destino final dos efluentes de ETAR’s e de fontes emissoras que ainda descarregam para a linha de água mais próxima, implementando também medidas de poupança de energia e de utilização de energias renováveis. Uma quarta ideia radica na necessidade de libertação legal dos Municípios da sua participação em empresas do Grupo AdP imposta por Lei, sem sentido objetivo ao nível técnico, ambiental e político, garantindo a liberdade de opção da entidade que é detentora legal da gestão dos sistemas de água e saneamento básico em baixa, o que nos tempos que vivemos não pode deixar de acontecer. Em quinto lugar, é necessário assumir em definitivo o investimento na boa estruturação, funcionamento e gestão dos sistemas de redes de águas pluviais, que são de relevante importância para os sistemas de águas residuais, e são

um problema que se agrava com a mudança do regime de pluviosidade que vamos tendo, com chuva intensa em curtos espaços de tempo, que obrigam a aumentar a capacidade de escoamento das redes, o que deve determinar a sua elegibilidade ao financiamento pelos Fundos Comunitários que há muito deixou de existir. O tema que apresento neste artigo saiu da agenda do Governo e da atenção da opinião pública, mas está todos os dias na vida das entidades gestoras e dos Cidadãos, com bases que têm anos demais, exigindo-se uma focalização de atenção e de investimento que garanta uma reforma de modernidade, de eficiência e de revalorização ambiental.

do Centro Litoral, ativando uma única entidade que faça a gestão integrada de todos os sistemas de alta+baixa + água+saneamento. Façamos o debate, para reformarmos e modernizarmos devidamente a estrutura e o modelo de gestão desses sistemas de relevante importância para a boa gestão ambiental e urbana dos Municípios, das Regiões e do País, e para a continuada elevação da qualidade de vida dos Cidadãos.

Em Aveiro temos bons exemplos de desenvolvimento e de gestão dos sistemas de água e saneamento, pelo trabalho dos Municípios e da AdP, da empresa Águas da Região de Aveiro e da Associação de Municípios do Carvoeiro-Vouga, mas estamos apostados em realizar uma reforma que faça a integração da parte respeitante à Região de Aveiro da empresa Águas REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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QUADRO LEGAL

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# QUADRO LEGAL

LEGISLAÇÃO PORTUGUESA 74

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LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

Decreto-Lei n.º 4/2021, de 8 de janeiro Estabelece o alargamento da ADSE aos titulares de contrato individual de trabalho que exerçam funções em entidades de natureza jurídica pública. Portaria n.º 12-A/2021, de 11 de janeiro Procede à primeira alteração à Portaria n.º 125-A/2019, de 30 de abril, que regulamenta a tramitação do procedimento concursal de recrutamento, nos termos do n.º 2 do artigo 37.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho. Lei n.º 1-A/2021, de 13 de janeiro Alarga até 30 de junho de 2021 o prazo para a realização por meios de comunicação à distância das reuniões dos órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aprova medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/2021, de 19 de janeiro Aprova o modelo do projetopiloto relativo à avaliação prévia de impacto legislativo na ação climática. Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro Aprova o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas. Portaria n.º 25/2021, de 29 de janeiro* Estabelece a classificação do risco e as medidas mínimas a serem adotadas pelos responsáveis dos equipamentos, redes e sistemas, previstos no artigo 2.º da Lei n.º 52/2018, de 20 de agosto, em função da avaliação do risco de contaminação e disseminação da bactéria Legionella que decorra dos resultados analíticos apurados, no âmbito do programa de monitorização e tratamento da água. (*Retificada pela Declaração de Retificação n.º 7/2021, de 24 de fevereiro).

Decreto-Lei n.º 10/2021, de 1 de fevereiro Estabelece a atualização da base remuneratória da Administração Pública e o valor do montante pecuniário correspondente aos níveis 5 (703,13 euros), 6 (750,26 euros) e 7 (801,91 euros) da tabela remuneratória única. Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro Estabelece um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentos decorrentes das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março. Decreto-Lei n.º 16/2021, de 24 de fevereiro Altera os sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e introduz medidas relativas à geração e recuperação dos desvios de recuperação de determinados gastos. Decreto-Lei n.º 16-A/2021, de 25 de fevereiro Altera o regime de proteção nas eventualidades de invalidez e velhice dos beneficiários do regime geral de segurança social. REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# QUADRO LEGAL

LEGISLAÇÃO PORTUGUESA 76

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LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2021, de 3 de março Cria um programa extraordinário de estágios na administração direta e indireta do Estado, destinado à carreira de Técnico Superior. Portaria n.º 48/2021, de 4 de março Estabelece os procedimentos de antecipação de fundos europeus de inscrição orçamental e de assunção de encargos plurianuais. Decreto Regulamentar n.º 1/2021, de 8 de março Procede à fixação do universo dos contribuintes abrangidos pela declaração automática de rendimentos. Lei n.º 11/2021, de 9 de março Suspensão excecional de prazos associados à sobrevigência e caducidade de convenção coletiva de trabalho.

Decreto-Lei n.º 19/2021, de 15 de março Altera o modelo de formação na Administração Pública, cria o Instituto Nacional de Administração, I.P., (INA, I.P.), e extingue a DireçãoGeral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas. Decreto-Lei n.º 23/2021, de 23 de março Determina a cessação de vigência de decretos-leis publicados entre os anos de 1986 e 1991. Decreto-Lei n.º 24/2021, de 26 de março Estabelece um regime excecional e temporário em matéria de obrigações e dívidas fiscais e de contribuições à Segurança Social. Decreto-Lei n.º 25/2021, de 29 de março Altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.

Portaria n.º 53/2021, de 10 de março Estabelece, em 66 anos e 7 meses, a idade normal de acesso à pensão de velhice do regime geral de segurança social em 2022. REVISTA APDA_ APDA _ 2021

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# QUADRO LEGAL

LEGISLAÇÃO COMUNITÁRIA

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LEGISLAÇÃO comunitária

Decisão de Execução (UE) 2021/157, da Comissão, de 9 de fevereiro Altera a Decisão de Execução (UE) 2019/1616 no que diz respeito a válvulas industriais, procedimentos de soldadura, equipamentos para sistemas frigoríficos e bombas de calor, caldeiras de tubos de fumo, tubagens industriais metálicas, cobre e ligas de cobre, equipamentos e acessórios para GPL e dispositivos de segurança para proteção contra pressões excessivas (JO, L46, de 2021/02/10). Decisão de Execução (UE) 2021/173, da Comissão, de 12 de fevereiro Cria a Agência de Execução Europeia do Clima, das Infraestruturas e do Ambiente, a Agência de Execução Europeia da Saúde e do Digital, a Agência de Execução Europeia da Investigação, a Agência de Execução do Conselho Europeu da Inovação e das PME, a Agência de Execução do Conselho Europeu da Investigação e a Agência de Execução Europeia da Educação e da Cultura, e que revoga as Decisões de Execução 2013/801/UE, 2013/771/UE, 2013/778/UE,

2013/779/UE, 2013/776/UE, e 2013/770/UE (JO, L50, de 2021/02/15). Recomendação (UE) 2021/402, da Comissão, de 4 de março Sobre um apoio ativo e eficaz ao emprego na sequência da crise da COVID-19 (EASE) (JO, L80, de 2021/03/08). Recomendação (UE) 2021/472, da Comissão, de 17 de março Relativa a uma abordagem comum para o estabelecimento de uma vigilância sistemática do SARS-CoV-2 e das suas variantes nas águas residuais da UE (JO, L98, de 2021/03/19).

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EVENTOS


S

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# EVENTOS Eventos APDA Ciclo de Webinars: Conversas Com Tema - O Setor da Água em Movimento • Avaliação do Risco nas Entidades Gestoras de acordo com os requisitos da ERSAR APDA | Comissão Especializada de Qualidade da Água Data: 18 junho 2021

eventos

• Prioridades de investimento considerando as alterações climáticas e os princípios da Gestão de Ativos APDA | Comissão Especializada de Gestão de Ativos Data: 2 julho 2021

Para mais informações www.apda.pt

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APDA _ 2021 | REVISTA APDA_

ENEG 2021 - Encontro Nacional de Entidades Gestoras de Água e Saneamento APDA Local: Tivoli Marina Vilamoura - Centro de Congressos do Algarve Data: 23-26 novembro 2021


APDA, NACIONAIS E INTERNACIONAIS

Eventos nacionais

Eventos INTERnacionais

Debate “Cooperação Transfronteiriça para a Gestão da Água - Que desafios?” APRH Formato online Data: 8 julho 2021

Water Knowledge Europe 2021 Special Summer edition Water Europe Formato online Data: 15 julho 2021

XIV Encontro Nacional de Riscos “Risco de cheias e risco de inundações fluviais: Aprender com o passado” APEMETA Formato online Data: 16-17 julho 2021

XIX SILUBESA - Simpósio Luso-Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental ABES | APESB | APRH Formato online Data: 25-27 agosto 2021 5th International Conference on Water Economics, Statistics and Finance and International Conference on Rethinking Treatment with Asset Management IWA Local: Porto, Portugal Data: 22-24 setembro 2021

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O VALOR DA ÁGUA Todos sabemos que a água tem muito valor. Mas quanto vale a água ao certo? Uma boa pergunta – com muitas respostas…

NO MUNDO Preço médio por metro cúbico de água considerando água potável e residual

6

6

4

4

2

2

0

N/A

8

N/A

8

N/A

10

N/A

10

N/A

Preço médio (€/ m3)

(dependendo do país, os números fornecidos são de 2017 a 2019)

0

AT BE BG CH CY CZ DE DK EE EL ES FI FR HU HR IE IT LU MT NL NO PL PT RO RS SI SE SK UK

INFOGRAFIA

Mean Median

EUR

Fonte: https://www.eureau.org/resources/publications/eureau-s-publications/5824-europe-s-water-in-figures-2021/file

NO DIA-A-DIA Pegada hídrica média global

1 automóvel

400 mil litros

1 par de sapatos

8 mil litros

1 folha de papel A4

1 calça jeans

10 mil litros

10 litros

1 computador

1 t-shirt de algodão

400 litros Escovar os dentes [torneira aberta]

E AC

2.5 mil litros

ROU PA S

IOS ÓR SS

1 ovo (60 g)

36 litros

196 litros

Lavar as mãos

Carne bovina (1 Kg)

5 litros

15.5 mil litros

1 Banho (15 min)

240 litros

Ver TV

30 mil litros

Queijo (1 Kg)

3.2 mil litros Copo de cerveja (250 ml)

74 litros

Café (125 ml)

140 litros

Pão (100 gr)

160 litros

NT A L IME

OS

Fontes: https://www.waterfootprint.org · http://www.watercalculator.org/


População

População

7.750.000.000

Disponibilidade e gestão sustentável de água e saneamento

10.325.000

EM PORTUGAL Qualidade de serviço

4.200 milhões de pessoas Necessitam de saneamento gerido de forma segura

2.200 milhões de pessoas Necessitam de água potável gerida de forma segura

A escassez de água pode deslocar até 2030

700 milhões de pessoas 61%

Déficit de de financiamento em alguns países para atingir as metas da água e do saneamento

Gestão direta municipal

33%

dos consumidores de água potável

39%

da recolha de águas residuais domésticas

Gestão pública delegada

52%

abrange dos consumidores de água potável

Gestão privada delegada

A agricultura é responsável por

70%

da água usada no mundo

7.2 m Extensão da rede de águas residuais per capita

46%

abrange da recolha de águas residuais domésticas

Fonte: https://unstats.un.org/sdgs/report/2020

Consumo de água na agricultura

11.3 m Extensão da rede de água potável per capita

204

Consumo residencial médio

15%

abrange dos consumidores de água potável

15%

abrange da recolha de águas residuais domésticas

1.82

3

Preço médio

Em 2050, o uso de água na agricultura precisará de aumentar

19%

Fonte: https://www.eureau.org/resources/news/478-governance-of-water-services-in-europe

2.000 milhões de pessoas

Segundo as Nações Unidas, um ser humano precisa de:

para alimentar um adicional de

110 litros

de água por dia Fonte: https://gro-intelligence.com/insights/infographics/agricultural-water-consumption

Em Portugal, gastamos

187

litros de água por dia

Fonte: https://www.portaldaagua.pt/valor-da-agua.html


ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS


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