Por trilhos e (c)asas, o fragmentado espaço do canto

FICHA TÉCNICA

ENSAIO TEÓRICO

Arte da Capa Jonny César Moreti Rodrigo Piloto Moreti

Áreas de Estudo Literatura, Filosofia, Arquitetura

Revisão de Texto Leonardo Vicente Vivaldo

Paginação Stephanie Laila Pires Souza

Fotografias Stephanie Laila Pires Souza

Desenhos Hilda Hilst e Mora Fuentes

Tema do Ensaio Teórico Espaço na Literatura: fenomenologia da imaginação na obra de Hilda Hilst

Título do Trabalho Por trilhos e (c)asas o espaço framentado do canto: Tu não te moves de ti, de HH

Nome da Aluna Stephanie Laila Pires Souza Orientadora Profa. Dra. Elane Ribeiro Peixoto

Prof. Dr. Miguel Gally

Prof. Dr. Alexandre Pilati

Profa. Dra. Elane Ribeiro

Amaríssimos, queridos, e tão fundamentais!

Por fazerem desta uma vida destemida.

Pelo que busco de mim em seus espelhos.

Pela arte que, partilhada, juntamos a graça no viver.

Pela ausência de cinzas e feitura de laços.

Aos que me fizeram carne e, além dela alma, presença neste mundo, meus amados pais Cláudia e Alex. Devo a vocês uma vida mais que bela, uma vida enfim. A minha família em eterna construção (que nos encaixemos em uma mesa cada vez maior!).

A quem me trouxe de volta a poesia e fez dela meu mais que universo: Leonardo. Agradeço a ti também como poeta, amado milord.

Aos amigos tão urgentes que se cativam e cultivam a cada dia, Rodrigo e Jonny. A minha grandiosa e sempre doce orientadora, Elane.

Obrigada por crescerem em mim!

O presente trabalho intenta mapear e analisar as imagens poéticas relativas ao espaço na obra Tu não te moves de ti (1980) de Hilda Hilst (1930-2004), tendo por base as propostas de Gaston Bachelard (1884-1962) em A Poética do Espaço (1989). Busco, por assim dizer, aproximações entre o espaço da narrativa literária e o espaço vivencial da escritora (A Casa do Sol) na procura da experiência do espaço físico que perpassa pelo espaço poético (não de maneira refletida, tal como um espelho, mas amalgamada – onde tudo é e nada foi). A poética de Hilst, rica na construção de imagens e símbolos, é foco juntamente com a residência que fez construir e morou a partir de 1963 – A Casa do Sol. Ainda que nem sempre reconhecida como um ponto de partida da produção de Hilda, esse espaço nos traz reflexões sobre o próprio arquétipo de casa proposto por Bachelard. Segundo ele, é necessária uma associação sistemática entre o ato da consciência criadora e a imagem poética para apreendermos a fenomenologia da imaginação. Através dos conflitos das personagens na obra estudada, intento absorver e recriar os universos espaciais que as contêm. O espaço, em primeira instância, parece pouco ou menos importante no desenrolar da narrativa (será mesmo?). Ainda que por vezes esparsas e confundidas a outros elementos procuro nas imagens poéticas a presença da casa – tão essencial, segundo Bachelard, para a representação da

“... a literatura vem desse conflito entre a ordem que você quer e a desordem que você tem.” (Hilda Hilst)

experiência humana e sua busca por proteção. Mais que isso, busco relacionar (no sentido de pôr em relação) a poesia da autora com a experiência humana – infinita e inexplicável, embora sempre provocativa, instigante e sedutora (como os textos de Hilda; como a própria Hilda; como a própria vida).

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I DA CASA. DO SONHO. DO MOVIMENTO.

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Casa e(m) carne: Hilda Hilst

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Da Casa: Um Sonho. O movimento!

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CAPÍTULO II O NÃO SAIR DO ESPAÇO (IN)VISÍVEL

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Das Máscaras

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Matamoros (da fantasia)

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Tadeu (da razão)

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Axelrod (da proporção)

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ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPÍTULO I DA CASA. DO SONHO. DO MOVIMENTO. 12

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Neste primeiro capítulo é tratada, brevemente, a vida e a obra de Hilda Hist – com foco, posterior, na morada da poeta: a famosa Casa do Sol (onde Hilda residiu a partir dos anos 60 até o final de sua vida).

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CASA E(M) CARNE: HILDA HILST 16

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Nascida em 21 de abril de 1930 em Jaú – interior de São Paulo, filha única, a escritora era dotada de uma personalidade irreverente e espontânea. [...] o comportamento liberal de Hilda em face do provincianismo moralista da classe média; a beleza da autora, que parecia reclamar mais atenção que a sua escrita; a distância que a sua obra mantém dos valores modernistas predominantes no Brasil, e ainda mais em São Paulo, sobretudo no que toca à questão do conteúdo “nacional” da literatura. (PÉCORA, p.09, 2010)

As várias imagens e facetas da autora, frequentemente mistificadas, decorrem de diversos momentos de sua vida: até 1963, Hilda Hilst cultivou uma vida agitada, boêmia e próxima da alta sociedade paulistana. Era personagem assídua em colunas sociais, jantares e em fotografias (por exemplo, ao lado do poeta Carlos Drummond de Andrade). Frequentou a conceituada Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas nunca chegou a atuar na profissão. Depois de 1965 passou a residir no interior do estado, Campinas, na Casa do Sol – espaço de extrema importância para uma de nossas análises subsequentes.

Hilda escolheu sair de uma vida agitada na capital e construir em uma grande chácara uma casa introspectiva e acolhedora para produzir de maneira mais intensa sua literatura. Ainda assim, mesmo feita para obter a introspecção necessária no trabalho da escrita, a casa foi palco de grande efervescência cultural. Foi frequentada por diversos pensadores e escritores

Aflição de ser eu e não ser outra. (...)

Aflição de não ser a grande ilha (...)

Aflição de ser água em meio à terra E ter a face conturbada e móvel.

E a um só tempo múltipla e imóvel Não saber se se ausenta ou se te espera.

Aflição de te amar, se te comove.

E sendo água, amor, querer ser terra.

(Hilda Hilst) 18

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como Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, J.L. Mora Fuentes, Maestro José Antônio de Almeida Prado e os físicos César Lattes e Mário Schenberg.

Para Hilda, a “[...] vida estava no outro e o buscava em sua perplexidade” (HILST, 1968). Por isso, fazia questão de um convívio, ainda que restrito, mas próximo das pessoas. O que sua figura e obra despertam no outro nos leva a compreender melhor sua personalidade intensa. Segundo uma de suas amigas, Inês Parada, “[...] nunca ninguém vai nos perceber em nossa totalidade como fomos percebidos pela Hilda”. [...] aí o escritor, que se pensava amado, fica íntimo daqueles que amavam o texto dele, e então só faltam cuspir nele quando ele se descabela, bebe, chora, arrota, quando ele se mostra derrotado diante das grandes perguntas, perplexo diante do mistério da vida e da morte, diante da maldade, do simiesco fútil da maior parte da humanidade. (HILST, em entrevista)

Além, é claro, das referências intelectuais e bibliográficas que a influenciaram, Hilda teve como figura muito importante o pai, que ficou esquizofrênico aos trinta e cinco anos. O fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio Hilst foi uma grande inspiração na vida e obra de Hilda, apesar de seus raros momentos de convivência com a poeta.

Os loucos se prendem a essa coisa que já contei várias vezes, à figura do meu pai, que era um homem lindo, deslumbrante, e acabou louco. Eu achava lindo ser louco. Daí toda a minha obra ser uma homenagem à loucura. Gostaria muito que, no

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futuro, a minha casa fosse transformada numa fundação chamada “Apolônio de Almeida Prado Hilst”. E num centro de estudos psíquicos sobre a ressurreição da carne e a imortalidade da alma. (HILST, em entrevista ao Suplemento Literário).

Assim como a vida, a obra de Hilda é intensa – além de extensa, vastamente premiada e traduzida. Produziu, pelo menos, quarenta livros entre poesia, prosa de ficção, novela, teatro e crônica. Afora, ainda, as parcerias e participações em coletâneas. Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, dispõe Hilda, junto com vários outros poetas, num grupo marcado por tendências formais e neosimbolistas – de caráter mais intimista e elevado. Contudo, fica de fora da análise do crítico boa parte, senão a melhor, da obra da poeta: a produção dos anos 60 em diante (sobretudo a dos anos 80 e 90). É quando a literatura de Hilda ganha verdadeiro destaque pela crítica especializada.

Por exemplo, o crítico Anatol Rosenfeld faz a abertura do livro Fluxo Floema (de 1970). Rosenfeld ressalta a poeta em prosa, embora sua dicção seja sempre, ou justamente por conta disso, poética – e relembrando a importância das tendências místicas e metafísicas da autora, além das fortes imagens e dualidades essenciais que ela já apresentava (e continuará, até suas últimas obras). Tudo isso numa expressão consideravelmente original e marcante.

Portanto, ao longo de sua obra, Hilda expressa, em um suceder constante, as transformações de seu tempo. Ou melhor: algumas das questões mais discutidas na contemporaneidade.

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Ao tratar da busca empreendida pela mulher, por exemplo, a escritora, no encalço de sua própria imagem, busca o caráter humano (psíquico-sociológico) de seu lugar no mundo, seu lugar no amor. As imagens de essência filosófica e metafísica, junto à condição humana e sua relação com o Divino, é abordada na lírica hilstiana de maneira a tentar redescobrir as forças terrestres e a própria morte como elementos essenciais desta relação Homem/Divindade.

Em interrogações vitais para o ser humano, Hilda altera-se ou amplia-se em círculos cada vez mais largos, verticalizando, aprofundando, sondando a palavra. Do interrogar atento e lírico (voltado para os seres e coisas que tocam o eu-lírico, sua produção literária sempre traz uma imensidão de símbolos): Contudo, o que a torna uma grande poeta é, em primeira instância, a capacidade de criar imagens poéticas através da aproximação de realidades distantes. Por exemplo, ao enxergar (aqui citando Amavisse, na edição de Massao Ohno de 1989, toda anotada por mim – esses poemas foram republicados em Do Desejo, editora Pontes, 1992, e pela Globo, em suas obras completas) Os ponteiros de anil no esguio das águas. Ao dizer que uma mulher dentro dela tinha o rosto de uns rios, e a viu no roxo das ciladas. Ao criar títulos como Rútilo Nad. Ou ao falar de Um peixe raro de asas/ As águas altas/ Um aguado de malva/ Sonhando o Nada, em Da Morte.

Odes Mínimas (Ed. Globo, 2001). E, no vertiginoso Cantares (Ed. Globo, 2001), ao descrever Um cemitério de pombas/ Sob as águas/ E águas-vivas na cinza./ Ósseas e lassas sobras/ Da minha e da tua vida. Essas imagens rompem com o discursivo, com o prosaico. Seguem o pensa-

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mento analógico, a lógica do inconsciente que desconhece os princípios da identidade e não-contradição – O que restou de nós decifrado nos sonhos, como diz em Amavisse –, da alucinação e da loucura: estendi-me ao lado da loucura/ Porque quis ouvir o vermelho do bronze. Transportam seu leitor do ‘real’ imediato, empírico, para o mundo dos sonhos, alucinações, fantasias, em suma, da imaginação em sua plenitude. (WILLER, 2005, s/p)

Novamente é da visão do humano, mas enquanto ser múltiplo e contraditório, por conta disso mesmo portador da luz divina e das trevas profanas, que parece surgir o ponto de partida da literatura de Hilda – produzindo, daí, essa síntese entre o real e o abstrato. Contudo, apesar destas temáticas que se repetem e se complementam ao longo de toda a sua produção, para Hilda: [...] havia uma enorme diferença entre o processo de criação de poesia e o da prosa de ficção. O primeiro era definido como um estado febril que inesperadamente a tomava por dias consecutivos. A autora começava anotando um verso aqui, uma frase ali. O processo se intensificava e os poemas tomavam forma. [...] Já o processo de criação da prosa era, até certo ponto, um trabalho disciplinado. [...] A prosa, entretanto, não estava livre da inspiração: segundo ela, uma primeira frase ou nome de personagem lhe ‘vinha’, e a partir daí iniciava a construção do texto. (PÉCORA, 2005, p.44)

As fortes imagens poéticas criadas por Hilda, tanto na poe23

sia quanto na prosa, parecem surgir, a rigor, dessa mistura: da ânsia obsessivamente lúcida de se chegar à essência do ser-objeto – através da precisão-concisão de alguns poemas ou da enchente de imagens que vão expandindo-afunilando o foco até os seus pontos mais macro-micro; daquela inspiração quase sacedortal onde o poeta é o porta-voz de uma nova interpretação dos símbolos do mundo – em que a realidade se confunde com o onírico e a face mais secreta das coisas.

Ainda que produzidas de maneira distinta, tanto na prosa quanto na poesia, as imagens tomam corpo na obra de Hilda Hist – onde a substância humana, morada de dores e sonhos, molda e preenche o espaço dessas imagens: surgindo e retornando para elas.

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da casa: um sonho. o movimento!

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Construída em 1965, a Casa do Sol foi guarida da autora até o seu falecimento, em 2004. Toda a propriedade tem cerca de 12.000m², sendo 800m² de área construída em meio a imensidão de área verde – os jardins, plantados gradativamente ao longo da vida da autora toma todo o solo fértil da chácara.

Sua construção ocorreu, em grande parte, a partir das indicações da proprietária, que tinha como intenção não somente proporcionar conforto e encontro em toda a sua residência, mas fazê-la de maneira tal onde coubessem as referências e inspirações da vida literária. O objetivo era claro: Hilda deixou a vida agitada da capital para, em um ambiente introspectivo e acolhedor, dedicar-se a sua literatura.

Pensar a Casa do Sol é afirmar o seu imaginário associado ao pátio interno. A tipologia do pátio está tão intrinsecamente ligada à casa de Hilda que até em viagens pelo mundo seus amigos lembraram com nostalgia esta tipologia arquitetônica.

Um desses amigos, em 1969, enviou um postal (imagem ao lado) de Las Palmas de Gran Canaria, na Espanha, com a imagem da Casa de Colón. Ele conta que, chegado ao pátio da Casa de Colón, foi imediatamente tomado pela imagem da Casa do Sol. O modelo da casa-pátio foi comumente adotado ao longo da história da arquitetura. Usado desde neolítico do Oriente Médio, o pátio perpassou o Egito Antigo, Grécia, Roma, Indonésia, China, as culturas árabes e os monastérios espanhóis.

Guarda mais do que a eficiência climática e a ideia de área semiprivativa compartilhada em seus aspectos marcantes. Segundo Reis-Alves o pátio também traz consigo

“Pátio, céu canalizado.

O pátio é o declive pelo qual se derrama o céu na casa.”

(Jorge Luís Borges) 28

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[...] um espaço psicológico, onde um edifício “introvertido” proporciona uma maior privacidade, vigilância e segurança para que o homem realize as suas atividades ao ar livre. [...] destacamos as condições climáticas, o pátio em lugar da casa isolada com suas quatro faces expostas ao Sol, ao vento, etc., fazia com que um edifício protegesse o outro, e este espaço descoberto poderia ser o local onde seria cultivado as plantas, as águas da chuva seriam recolhidas para o uso doméstico e na criação de um microclima menos hostil que o externo. [...] este espaço aberto relembra a imagem do homem no Paraíso terrestre. Acrescentamos aqui, os aspectos culturais; cada povo interpretou e usufruiu deste lugar conforme as particularidades de suas tradições. (REIS-ALVES, 2005, p. 01)

O pátio interno, nos mundos oriental e ocidental, estava ligado tanto aos universos residenciais como institucionais. Por isso também, apresenta diferentes finalidades de acordo com cada tradição. Tomaremos aqui por referência as culturas que influenciaram Hilst em sua escolha. Por isso destacamos apenas dois aspectos: 1. O peristilo grego – local de socialização que circundava os pátios dos templos. 2. O pátio interno espanhol – amplamente utilizado em mosteiros, que são tidos como instituição mista (espaço sacro e residencial).

O interesse pela cultura grega relaciona-se ao escritor, também grego, Nikos Kazantzakis, que aparece inclusive numa fotografia em um dos altares pessoais de Hilda. Seus textos têm, assim como os de Hilda Hilst, um aspecto de tensão, de 30

busca por um Deus capaz de transcender todas as misérias humanas. Na obra de Kazantzakis há sinais de uma inquieta trajetória espiritual. Hilst nunca deixou de estar em um caminho para a espiritualidade. O exercício da procura, elemento literário tão forte em ambos os autores, deveria estar refletido, de alguma forma, no espaço que habitaria a poeta. Os modelos se fundem: arquitetura de mosteiro espanhol para atender as buscas espirituais e sua devoção à literatura e peristilo grego para receber os amigos e outros literários em seu pedaço de casa a céu aberto.

O pátio, de formato quadrangular, tem aspecto, na verdade, circular ao se encerrar nele mesmo. É também cíclico, de caráter irradiador, pois todos os ambientes da casa voltam-se para ele. Podemos entender a transposição do aspecto cíclico e hermético do pátio como uma busca de verticalização do elemento céu na composição do espaço. A medida que temos como centro da vida monástica o claustro em suas prateleiras altas de pedra encerradas pelo teto, temos, além do pátio, as janelas sempre grandiosas ligando todo ambiente fechado a uma vista para o jardim.

A vida de devoção monástica à literatura (de Hilda) é alicerçada pela Casa do Sol até o fim dos seus dias. Repleta de imagens e simbolismo, a casa passa a ser um belo repertório para as criações textuais da autora. Talvez a imagem de maior presença na casa seja sua figueira centenária que, usada como varanda, serviu de abrigo e acolheu muitas das reuniões de Hilda. A autora conta em entrevista que certa vez, ainda moça, pediu à árvore que ela pudesse construir uma casa na31

quele lugar: Pedi, quando eu era mocinha, pra construir uma casa neste lugar. Queria fazer uma casa perto da de minha mãe, que não queria me dar o terreno. Minha mãe tinha uma hipoteca sobre toda a fazenda.

Daí eu tive que pagar, porque a mamãe estava sem dinheiro na época. Houve até um homem, chamado Pedro Romero, que se propôs a pagar a hipoteca em troca da figueira. Propôs na frente dos advogados, todos esperando com a caneta na mão.

Eu disse: “Não, essa figueira sou eu mesma. Não posso me vender para o senhor”.

Todo mundo ficou boquiaberto. Depois de uma meia hora, ele topou pagar a dívida sem me tomar a figueira. (HILST, em entrevista ao Suplemento Literário)

A figueira, assim como a videira e a oliveira, tem um amplo repertório simbólico em várias culturas. De qualquer forma, é unânime seu aspecto de abundância e de ligação entre o céu e a terra. Hilda considerava a árvore mágica e dizia que ela despertava a criatividade nas pessoas. Era um dos seus lugares preferidos da casa e, em momentos complicados da sua vida, abraçava a figueira e ficava em silêncio. Desde tempos imemoriais figueiras de diferentes espécies são consideradas sagradas. Sob uma figueira, Buda meditou até atingir o Nirvana, a paz absoluta. É por isso que na Índia ela é facilmente encontrada em templos e a consideram uma árvore habitada por divindades. No Brasil, em terreiros de candomblé, é comum encontrar sob seus pés oferendas aos orixás. Quando seu tronco está rodeado por um pano branco, diz-se que nela 32

vivem espíritos ancestrais e Irôko, orixá do Tempo, que domina os mistérios da vida e da morte e que pode ser invocado para questões difíceis.

A residência como um todo foi pensada por Hilst, que fez questão de definir como seria a disposição dos cômodos irradiados pelo pátio, as janelas amplas que permitem iluminação e ventilação natural em abundância, a sala e a cozinha grandes o suficiente para sempre receber visitas, o pátio de arcos...

Todos os cômodos possuem uma iluminação suave e convergem para um pátio interno a céu aberto, cercado de arcos. O terreno escolhido para a construção possui uma figueira centenária, embaixo de cuja sombra foram construídas quatro cadeiras de pedras e uma mesa. A figueira, o pátio interno e os cômodos de iluminação dúbia foram cenários de encontros e desencontros entre Hilda e amigos, artistas, paixões, curiosos, empregados e cachorros, que chegaram compor uma matilha de noventa e cinco membros. Também foi palco da tentativa de Hilda de se comunicar com o plano espiritual por meio de experimentos com ondas radiofônicas e da produção de trinta e quatro livros de sua autoria. (HILST, em entrevista ao Suplemento Literário)

Também entendemos como casa cada um dos animais que ali habita(va). Sempre repleta de cachorros, um dos cenários mais belos da residência é, justamente, o corredor de canis que se faz em meio a trepadeiras e folhagens secas do jardim.

Foi praticamente impossível durante a minha visita a casa não estar na presença de um cãozinho em qualquer cômodo que 33

fosse. Eles também são a alma da casa, são parte dela do início ao fim. Em uma conversa com Olga Bilenky (grande amiga de Hilda, artista plástica, atual curadora de todo o patrimônio cultural da casa e responsável pelo Instituto Hilda Hilst) ela contou que todos na região sabiam deste carinho de Hilda pelos caninos e era comum que eles fossem abandonados em sua propriedade. Aparentemente, os moradores da Casa do Sol nunca disseram não aos animais sem lar. A casa, segundo ela, era sempre cheia de vida: tinha os quartos ocupados na maior parte do tempo por moradores ou visitantes e os cômodos ecoavam as discussões alongadas de Hilda e Mora Fuentes. A escritora também fazia questão de partilhar sua obra durante a criação: reunia todos na sala, ao redor da figueira ou no pátio para discutirem os mais novos escritos de Hilst.

As figuras importantes para Hilda tomam as paredes da casa e dividem espaço com obras de arte, muitas delas feitas por Olga. Como em altares, as fotografias se montam tal mosaico ou vitrais na parede. A sala, o escritório e o quarto de Hilda contam com estantes verticais que tocam o teto: revestidas de pedra recebem os muitos livros do acervo da autora. As grandes portas e janelas de madeira, juntamente duas grandes varandas que compõem o entorno da casa, remontam uma atmosfera bucólica e neocolonial. A Casa do Sol produz sua própria luz a noite: junto da estante de pedra da sala, em sua base, há uma lareira para se aquecer do frio. Por ter um pé direito muito alto e tantas janelas, a casa é fria durante a noite.

Este foi o cenário de vida da autora durante boa parte de sua produção literária: o anteparo simbólico de sua escrita; o uni34

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verso primitivo de sua vida e, nessa encenação hiper-real, ou realidade ficcional, a casa paira como espectro em cada um de seus textos. Sendo descrita sempre de uma perspectiva parcial e fragmentada – em vórtice, torrencial, em busca dum abismo que está no céu, no mar ou alhures – os detalhes concretos são ambíguos, vagos ou indefinidos. Sendo Casa do Sol ou literatura, temos um mundo de possibilidades onde tudo foi e nada é imagem.

Ao sair deste universo real (Casa do Sol) e alcançar aquele onírico (obra literária de Hilda Hilst), recorremos à intuição ou experiência comum da leitura. Mas deve ser mais que isso: deve ser uma relação íntima, primordial, entre texto e leitor – eco profundo da experiência humana. Ao termos acesso as reflexões e conflitos das personagens temos acesso as nossas próprias questões mais profundas. Este fluxo, nem sempre de consciência, nos deixa caminhos interpretativos e possibilidades de reconstruções incompletas do espaço.

Contudo, dentre o limiar da escrita e as veredas imprecisas da tríade autora-obra-leitor, pela teoria, feito rota, ou fuga, usaremos como aproximação teórica uma das obras do crítico francês Gaston Bachelard: A Poética do Espaço. Neste livro, o autor afirma que por intermédio do espaço podemos alcançar a fenomenologia da imaginação – apreender a imagem em sua origem e essência. Mais do que um ensaio fenomenológico, esse exemplar é a tomada do espaço como “[...] instrumento de análise para a alma humana [...]” através da “[...] imagem poética [...]”. Como um tratado acerca das imagens recorrentes no universo da literatura e da mente humana, o autor co36

loca a arte como “[...] uma reduplicação da vida, uma espécie de emulação das surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono [...]” (BACHELARD, 1996, p.

1). Pois [...] é quase sempre no inverso da causalidade, na repercussão, tão agudamente estudada por Minkowski, que acreditamos encontrar as verdadeiras medidas do ser de uma imagem poética. Nessa repercussão, a imagem poética terá uma sonoridade de ser. O poeta fala no limiar do ser. (BACHELARD, 1996, p. 2)

Esta imagem poética, sonora ao ser, vinda da causalidade pode emergir da própria experiência fenomenológica da produção poética. O poeta não confere à imagem um caráter passado, pelo contrário, a “[...] imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Procede de uma ontologia direta [...]” (1996, p. 2). Assim, quando trabalhamos ou lemos o texto literário – o experimentamos fenomenologicamente (mais: humanamente). A imagem, construída através dele, texto, tem, muitas vezes, significado incutido em si mesmo; em nós mesmos.

A fenomenologia – ou a consideração do início da imagem numa consciência individual – pode nos ajudar a reconstituir a subjetividade das imagens e a medir, relativamente, sua amplitude e força. O sentido de transubjetividade da imagem.

Esta transubjetividade não pode ser determinada de maneira definitiva ou compreendida em essência apenas pelos hábitos das referências objetivas. “A imagem poética é, com efeito, 37

essencialmente variacional. Não é como o conceito, constitutiva”. (1996, p.3) A imagem, por sua vez, não deve ser encarada como objeto, nem como um substituto do objeto, por isso o autor coloca que é necessária a associação sistêmica entre a consciência criadora e a imagem poética.

Para bem especificar o que pode ser uma fenomenologia da imagem, para especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é, mais que uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma. (BACHELARD, 1996, p.8)

Segundo o autor, limitando a busca à origem da imagem poética a partir da imaginação pura, não precisamos nos preocupar, a priori, com a composição do poema . A imagem poética deve ser tomada em seu ser e, então, a consciência poética será absorvida pela imagem que aparece na linguagem. “Acima da linguagem costumeira, fala com a imagem poética uma linguagem tão nova que não se pode mais considerar com proveito correlações entre o passado e o presente.” (1996, p.13) A casa e seu conjunto de imagens correspondentes entre real e onírico, segundo o autor, nos dão as razões ou ilusões para nos sentirmos estáveis, protegidos. Bachelard, com esta obra, examina os espaços que fazem parte da vivência humana, ou seja, aqueles que desencadeiam sentimento, memória, lembrança. A casa é o abrigo primordial do homem, seu “verdadeiro cosmos”, seu “primeiro universo”. A casa, como um “arquétipo que evolui”, é considerada por Bachelard um esquema vertical, por assim dizer, da psicologia humana, indo desde o 38

sótão/telhado (consciência e razão) até o porão (inconsciente/ devaneios/proteção); ou, de outra maneira, nos remete a um esquema central, que nos leva à metáfora da cabana, que na sua simplicidade, propicia o encontro com a solidão e a reflexão. As lembranças tornam-se lendas. (1996, p.26). Para ele, “o espaço vivido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mesuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido” (1996, p. 16). E este espaço vivido de Bachelard aponta todas as “parcialidades da imaginação” e concentra o ser no interior dos limites que o protegem.

Como uma imagem singular pode revelar-se como a concentração de todo o psiquismo? Como esse acontecimento singular e efêmero que é o aparecimento poético singular pode reagir [...] de todos os pensamentos sensatos, felizes em sua imobilidade? [...] A imagem poética é, com efeito, variacional. (BACHELARD, 1996, p.3)

As imagens poéticas, que nos enchem os olhos, presentes em Tu não te moves de ti, são justamente aquelas que remetem ao espaço seja ele físico ou abstrato da casa e tudo que ela pode conter em seu universo. O arquétipo da casa em constante evolução/mutação de Bachelard é, para nós, o substrato mais importante da imagem nesta obra hilstiana. A partir dos fluxos narrativos desenvolvidos pelas personagens: Tadeu em Tadeu (da razão); Maria Matamoros em Matamoros (da fantasia) e Axelrod Silva em Axelrod (da proporção), coloco em questão as diferentes dimensões espaciais simbolizadas pelas imagens poéticas da narrativa.

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CAPÍTULO II o não sair do espaço (in)visível.

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O presente capítulo é dedicado às imagens poéticas, relativas ao espaço, presentes na segunda obra em prosa de Hilda Hilst: Tu não te moves de ti (1980). A narrativa traz imagens fragmentadas, representativas de um espaço partido, mutável, inconstante. Estas mudanças vêm do inconsciente conflituoso das personagens centrais que parecem ser simultaneamente tese, antítese, síntese. Os universos espaciais contêm as personagens e as personagens os contêm, ainda que por vezes esparsos e confundidos a outros elementos.

Tu não te moves de ti é uma obra distinta desde a estrutura.

Sua classificação, dentre os gêneros literários, é dúbia: rompendo os liames entre poesia e prosa, se constrói a partir de três contos, mas almeja ser uma novela. Os contos, ainda que distintos entre si, estão conectados tanto no enredo quanto na estrutura. Em Tadeu (da razão) – primeiro conto – o personagem homônimo é um empresário bem-sucedido que, em crise de meia-idade, passa a questionar a própria existência e a vida de aparências que leva em companhia da esposa, Rute.

Em dado momento ele passa a habitar a chamada “Casa dos Velhos” – onde viveu, por algum tempo e pouco antes dele, Maria Matamoros, personagem central de Matamoros (da fantasia): conto que relata sua trajetória desde menina, sempre inquieta e habituada ao contato com os homens. Em um mundo onde a natureza exerce sua força de vida, a mãe de Maria, Haiagá, transforma seu espaço na “Casa de Mortos”.

Haiagá é a tia de Axelrod Silva, professor que protagoniza o último conto, Axelrod (da proporção). Esta trama que encerra o volume retrata as especulações dele sobre a roda axial da história e tudo o que ela rege em seu mundo.

As imagens são tomadas por uma consciência poética que, aos poucos, é absorvida pela linguagem: vão, paulatinamente, 42

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sendo diluídas e revolvidas no espaço da casa e da proteção ou agonia que ela pode trazer. Sempre partindo e retornando às personagens, o arquétipo da casa de Bachelard, em constante transformação, é, para nós, o substrato mais importante da imagem nesta obra. A partir dos fluxos narrativos desenvolvidos em Tadeu (da razão); Matamoros (da fantasia) e Axelrod (da proporção), percorremos as mais distintas dimensões espaciais da narrativa que nos remetem ao espaço vivencial ou, por vezes, à própria composição psicológica da personagem.

Todavia, estes movimentos não são lineares, simples. Atuam como um eterno dínamo em transformação (do ser, do símbolo).

A casa e seu conjunto de imagens correspondentes entre real e onírico nos dão as razões ou ilusões para nos sentirmos estáveis (?), protegidos (?). Esses espaços desencadeiam sentimento, memória, lembrança que implicam na percepção humana em seu sentido mais amplo. O espaço/tempo da narrativa é inconstante e, por vezes, nebuloso. Devemos nos transportar para o “olho do furacão”, mergulhar em cada um dos fragmentos espaciais e temporais e, a partir deles, (re) montar o universo primitivo do homem – a morada e a proteção, além das localidades obscuras de seu inconsciente: à imensidão desprotegida ou o canto, atrás da porta, espaço inerente da reflexão (mas talvez também do abandono).

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das máscaras 461ª edição desenhada por Mora Fuentes Capa original da

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Assim como a capa original da primeira edição desenhada por Mora Fuentes, o fio condutor da obra pode ser retratado por um trilho de trem que se perde de vista cercado por três faces idênticas, trianguladas, cíclicas. Três “eus” que se multiplicam e se fragmentam, atores de uma vida que, há tempos, é mais que encenação, é jogo dramático. Uma máscara é retirada após a outra até que pouco resta. Tudo foi (e nada é), ainda que superficial e leviano, máscara sobre máscara. Como uma construção que depende do tijolo, estas criaturas se solidificaram e se dissolveram na persona, na armadura simbólica que o personagem, a marionete viva, se designa. Face após face, aquele ou outro rosto torna-se superficial e, ao menos por algum tempo, definitivo. Por detrás da máscara poderia estar qualquer rosto vivo, humano, irrisório. Mas, por ora, ele é Tadeu, Matamoros e Axelrod.

RAZÃO FANTASIA yllaG→leu giM .rD .→ forPROPORÇÃO P TADEU → MATAMOROS → AXELROD

“Eu sou o que todos nós somos, eu sou um rosto tripartido à procura de sua primeira identidade.” (Hilda Hilst)

Como uma confluência narrativa, vistas à distância, a razão, erdnaxecoincidem lA .rD .foem rP um só ponto. São a a fantasiaitealaiPproporção tríade flutuante que rege a trama – colocam em dúvida o que é real, verdadeiro. A noção de real, tal qual um triângulo, tem pontas que (des)equilibram as bordas da história, confundem nosso discernimento de real e onírico. A cada trama temos uma nova visão de real que passa a ser predominante, definirieclareza biR en E .arD .do afotempo rP ou na definição do tiva. Nãoohá naalpassagem 48

espaço. Tudo emerge ou submerge da abstração dos protagonistas em relação ao que é real e ainda que isto se alterne, a tríade permanece flutuante, como pano de fundo na narrativa.

Tadeu Matamoros Axelrod

3 tempos

RAZÃO

→ Real = essencial

FANTASIA

→ Real = o não visível

PROPORÇÃO → Real = alívio

E o trem que se move ao centro do triângulo nos lembra do que não sai de nós: nós. O eu encarcerado na eterna existência de ser se mistura ao trem que se move, não cessa, mas é direcionado, destinado, trilhado. Todos têm um fim e por mais distinto que ele ocorra é o fim. O ponto. Os vagões passam a ser abrigo, órgãos, vida. O espaço se mescla a existência e transborda as possibilidades de se mostrar junto à consProf. Dr. Miguel Gally ciência que muitas vezes não tem domínio de si, não pode ter. Através de uma narrativa fluidificada e dissolvida entre sonhos, diálogos e pensamentos, capturamos um cenário tão líquido quanto o tempo interior dessas personagens. E a casa, o abrigo universal de Bachelard, vai muito além da descrição do espaço: perpassa seus fragmentos psicológicos.

Prof. Dr. Alexandre Pilati

Profa. Dra. Elane Ribeiro 49

tadeu (da razĂŁo) 50

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Tadeu é a figura que permeia toda a narrativa e a primeira a se fragmentar e fundir-se ao espaço, ao universo da casa. É importante lembrar que esta obra não possui apenas uma casa ou arquétipo de casa. Não incomum, a mesma casa, habitada por mais de uma personagem passa a ser plural, passa a fazer parte do corpo, da alma e, principalmente, da carne (de maneira diferente a cada ponto de vista) de cada protagonista.

A partir de uma fulguração intuitiva, Tadeu ao mesmo tempo em que questiona tudo ao seu redor, possibilita o surgimento e desenvolvimento das outras duas personagens centrais: aquela que atinge o sonho e a fantasia (Matamoros); e a outra que busca a proporção e o equilíbrio (Axelrod). Elas são projeções de Tadeu e, por sua vez, Tadeu é um sonho por elas sonhado. Por intermédio da palavra, de sua poesia oculta, dos escritos (e escritores) escondidos no fundo gaveta, no alto da estante ou nos cantos da casa. Tadeu assemelha-se a um artista – aquele que não só cria, mas recria seus mundos, sejam eles reais ou devaneios de seu ego.

Para o nome Tadeu temos, primeiramente, Tad, do inglês, algo pequeno, juntamente com o pronome Eu. Esta primeira interpretação seria a base para entender o ego de TadEU, pequeno demais para, em apenas uma vida, existir pluralmente.

Em outra perspectiva temos que Tadeu é aquele que louva a Deus ou, ainda ele é o próprio (ta)deus. De qualquer forma, ele precisa mais que existir, deve criar e recriar, em seu domínio, outras vidas. A única maneira de alcançar outras realidades, que não a sua, é através de projeções, de vestir outras máscaras, ser outro alguém. Quem.

Projetar se torna urgente, pois Tadeu é um homem em deterioração. Executivo, encaixotado nos costumes burgueses, o homem-máquina subitamente rompe consigo mesmo, com a

“Foi isso, Tadeu?

A comoção de se saber o eixo de outra vida?”

(Hilda Hilst) 52

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“[...] como se um rio grosso encharcasse os juncos e eles mergulhassem no espírito das águas, como se tudo, luta repouso dentro de mim se entranhasse, como se a pedra fosse minha própria alma viva, assim minha vida, olho espiralado olhando o mundo, volúpia de estar vivo, ouve Rute o que se passa quando os meus olhos se abrem na manhã de gozo, (de desgosto, se repenso o mundo).” (p. 17) “OUVE, Rute, nunca fui esse que pretendes, nem nunca posso ser marido ou presidente de qualquer coisa, agora aos cinquenta as cordas que me ligavam à tua vida apodreceram, sou novo, olha ao redor e entende que nada dentro da casa é carne de mim, apenas as minhas pedras [...]” (p. 18) “Pare de olhar a vida com esse jeito assombrado, o que é que andas vendo que o pessoal não vê? A porta do meu quarto.” (p.

19) “Sépia sobre as nossas caras, véu devagar se diluindo, ainda não te vejo, o crepe do teu vestido pousando no meu braço,

ventava, a flor diminuta dos limoeiros salpicava os sapatos, pedimos a alguém que passava por favor, pode nos tirar um retrato?” (p. 20) “Comovidos comoventes todos esses anos, o suco de laranja as torradas o sol batendo na imensa vidraça, Tadeu é reflexão postura, tiro os sapatos, caminho até o terraço do quarto, que coisa é essa em mim que aspira esse fulgor da noite, que coisa é mais que demasia em mim? Já vi outras vezes a mesma lua e no entanto isso vivo amarelo brilhoso redondo sobre a casa é outra lua como se fosse esforço de ser Tadeu suspenso sobre a casa.” (p. 20) “Não há mais névoa agora, há fatos e retratos, quando pensavas que víamos juntos as mesmas coisas não era verdade, que os fatos as coisas os retratos o verde o branco coalhado da flor dos limoeiros estava ali à nossa frente e víamos tudo isso com o mesmo olho, ah, nada nada, não víamos, teu limite é distante do meu [...]” (p.20) “[...] roubas a paisagem à tua frente e ela se engasta lá no teu de dentro e ficas novo sem

esposa, com os antigos afetos e costumes. Para ele, tudo está em decomposição, até mesmo sua maneira de ver o mundo tem cheiro de apodrecimento. Envelhece e sua casa (tudo aquilo que faz parte dele, que ele construiu), juntamente dele, começa a se desfazer. Todos os artigos de luxo que compunham o seu espaço agora pouco importam, são cinza. Seu lugar é o que resta de si, de sua essência: a gaveta, os cantos, as pedras de ágata de sua coleção, seus livros favoritos inacessíveis no alto da estante, sua carne apodrecida vestida de alma.

Nesta primeira etapa da narrativa há, ainda, outra figura que ladeia Tadeu – sua esposa Rute. Seu nome significa companheira. Rute realiza de maneira impecável o papel de consorte e, para um homem de negócios, nada mais conveniente que uma companheira pragmática – perfeita, sem nenhum defeito “de fábrica”. A vida, para ela, é um tanto quanto linear, inorgânica e repetitiva, como um ritmo de máquina ajustado a uma linha de produção. Rute é a personificação da sua frase repetida diversas vezes: “Dispenso o motorista?”.

Casados há trinta anos, na vida de ambos, este é um momento de ruptura, e mesmo que os questionamentos sejam de Tadeu, os dois são afetados por eles – seu espaço é afetado, desmembrado por eles. Este novo Tadeu, demiurgo, assume a vontade velada de ser poeta, de se entregar as questões fundamentais da existência e deixar para trás sua vida de empresário, da qual Rute tanto se orgulha. O caminho de Tadeu não é claro e não se sabe ainda se ele seguirá vivendo de suas máscaras ou romperá definitivamente com o que lhe tolhe.

Para Rute, que só enxerga a vida de uma forma, as questões de Tadeu não têm sentido – vivem bem, moram bem, comem bem, é o sonho de vida para muitos. No seu entendimento, 54

a empresa e tudo aquilo que ela oferece ao casal, deve ser o corpo (a carne) que basta a Tadeu – talvez o melhor, pois não envelhece, não putrefaz, não têm fraquezas. O corpo sólido de uma edificação corporativa, uma empresa personificada sem ouvidos, sem alma: assim deve ser Tadeu, como ele havia sido durante trinta anos. A empresa é uma entidade que não pode (e não deve) ser quebrada.

Tadeu pensa em deixá-la (Rute). O que significa deixar a vida de aparências. Quer dar espaço às novas experiências, pois envelhece e não tem muito tempo. Para Tadeu, sua esposa divide-se em duas imagens: a do presente e outra pretérita. As Rutes confundem-se na imaginação do marido – Rute velha (ao menos na idade e não na aparência) dizendo: “são trinta anos juntos” e isso é tempo demais para ser deixado para trás; Rute moça, inclinada a tomar um barco ou um navio com Tadeu para mudar a vida para melhor. Que imagem é realmente verdadeira não importa, mas Tadeu se parte de Rute, quebra as amarras e passa a enxergar um todo fragmentado, um espaço disperso e rarefeito.

O corpo, para Tadeu, e tudo a sua volta são aquáticos, liquefazem-se. Para Rute, mesmo que por um instante, por um lapso na memória, também é assim. Proteger-se no barco, convidá -lo para o abrigo aquático e instável é quase assumir a versão encharcada e confusa de Tadeu. É aceitar que a casa de um pode e deve ser a casa do outro. São carne da mesma carne, são guarida um do outro. Mas esta Rute é memória, é passado. A esposa do executivo jamais molharia seus sapatos caros de novo, sua casa é seca, elevada do chão.

Tadeu clama: sua primeira imagem no livro nos invade e encharca, banha nossa alma, mergulha no nosso espírito. Líquido. Da ferocidade de Rute nasce o conflito com uma alma 55

deixares de ser esse Tadeu, o outro, a calma daquelas águas, as mais fundas, e a mesma volúpia há de voltar [...]” (p. 21) “Como se o ar de fora nunca cintilasse, como se tu visses a vida cheia de dedos estigma das tuas falanges na vidraça, inútil não querer insistir nas diferenças tu e eu, eu e o outro, eu e a empresa, blocos nítidos e separados” (p. 21) “Tenho mania de roupas brancas, Tadeu, que magnífica simetria nos nossos armários, incrível tocar nos estufados rolos brancos.” (p. 22) “Semiobscuridade do quarto, uma tarde estarei aqui, na cama, uma noite na manhã (quando?) estarei em agonia, suor e urina encharcando os linhos da ilha, imaculados estarão os lençóis sobre as prateleiras, dentro do armário a ordem e ramos de alecrim [...]” (p. 22) “[...] daqui a pouco é preciso voltar para casa e começar tudo de velho, o banho quente, o sabão importado, os mármores perfeitos, as toalhas da melhor qualidade, sim a casa é toda lavanda alecrim maçãs

laranjas torradas, Rute é de pêssego.” (p. 23) “No Balanço? Impulsiono o balanço de repente, Tadeu nos ares, flutua, agora dece, coloca a planta dos pés sobre a areia, senta-se e contempla ao redor, montanha mar extensão tremulosa, corpo aquecido e livre repensando o seu estar no mundo como quem nunca esteve no mundo porque desde sempre consumiu-se na aparência, trancou-se [...]” (p. 23) “[...] de mim Tadeu há tantos anos sonâmbulo deitando-me e levantando-me para te dar o que tu ainda chamas de delicadeza, delicadeza-prato-de prata sob outros pratos – delicadeza de louça portuguesa, delicadeza-ânforas aladas, delicadeza-moldura cinzeiros caixas, deitando-me e levantando-me para que a casa conserve a mesma atmosfera do de dentro dos cofres, silenciosa e severa e em cada canto uma delicadeza feita do meu sangue, meu verso esse sim delicado escondido na minha velha gaveta, meu desenho de luz e sobriedade, ponta seca, homem-Tadeu de asa curvada sobre o fio da vida [...]” (p. 25)

que é pedra. Uma rocha viva, que se contrapõe à água, mas ainda: ela pedra, estática. Rute. Ainda que deixada de lado por um instante, a alma de pedra que ocupa Tadeu, que é Rute, é predominante. São trinta anos.

Entre idas (algumas sem volta) e vindas da narrativa, movimentam-se também as imagens poéticas e o espaço nelas contido. O espaço divide ou mescla protagonismo com suas personagens, pois, em certos momentos, são a mesma coisa. Quando tomamos para análise o espaço fragmentado de Tadeu, estamos também falando da alma em frangalhos de Tadeu. A casa tão linear, bem decorada é, por conseguinte, a personalidade plana e de aparências de Rute. Ainda que Tadeu e Rute morem no mesmo espaço físico, a casa de Tadeu é muito diferente da casa de Rute. A princípio a casa foi, para o casal, a imagem uterina de proteção, felicidade, aconchego.

Por vezes, Tadeu parece querer esta casa de volta, este espaço abrasado de belas memórias e da carne de Rute que hoje se putrefaz – mesmo disfarçada por aromas artificiais.

Rute não pede pela casa do passado, pois, para ela, esta casa nunca mudou; a casa continua cheia de louças caras, lençóis brancos e retratos que remontam seu casamento adequado.

Uma casa tão cheia de eixos é o suficiente para uma vida cheia de regras. A casa, para Rute, é um edifício com paredes que encerram o vento e, desde que estas paredes estejam limpas e sem os efeitos do tempo, elas conformam o abrigo ideal. O ornamento para Rute é indispensável, ele condiz com a mulher fina, rica, que merece o mármore no chão, as louças portuguesas na cozinha e uma bela piscina para receber as amigas. Estas são as imagens recorrentes da casa de Rute, juntamente com a presença dos tecidos aromatizados e das janelas envidraçadas. As janelas de Rute, sempre que 56

possível, estão vedadas, lacradas. Se ela pudesse, impediria a passagem do tempo. Rute pretende não envelhecer, mas, ainda assim, é a imagem da própria morte para Tadeu que, por vezes, a ela se refere com evocações de jazigo e mortalha.

Outras imagens imóveis são associadas à Rute, como a “samambaia” e o “banco de convento”. Estas imagens reforçam a ideia de que Rute em trinta anos não mudou. É a mesma.

Morrerá, também desta forma, ou melhor, será que um dia ela viveu? Tadeu associa Rute a mais uma aroma artificial; junto à lavanda e ao alecrim que entorpecem os lençóis brancos, ela era o pêssego. O pêssego, aqui, é o símbolo da longevidade, da juventude, daquilo que permanece imutável. Rute não deixa se manifestar o cheiro das coisas orgânicas, do suor, da vida, por isso sua casa sempre exala velas e aromatizadores de ambiente (artificialidades, portanto).

Para ela, fria, impoluta, cândida, sem alma, as imagens da casa são montadas pelo “crepe branco”, pelos “lençóis brancos”, pelo estofado brilhante do armário. Obcecada por assepsia, limpeza, brancura; e preocupada sempre com as aparências, não suporta os cheiros da vida, deste “apodrecimento” que começa a tomar Tadeu e seus laços com ela. Rute vive em uma casa envidraçada, em uma redoma protegida dos perigos orgânicos de existir. Borrifando aromas artificiais por todo e qualquer tecido que encontra pela casa, ela tem sempre a urgência pela limpeza e alvura das coisas. Urgência pelo que foi e não deve mudar.

Rute fazia questão de afastar a poesia de Tadeu, lhe proibia os livros favoritos, os colocava no mais alto da estante, porque se a poesia se fizesse sangue, a alma de Tadeu rejeitaria Rute, a veria esvaziada, um abismo tal qual a Empresa, a Causa.

Causa esta que antes era sustentar todo e qualquer capricho 57

“[...] a cada instante viste a minha fivela? abrindo as gavetas segurando o tufo de cabelos sobre a nuca, Tadeu, ajuda, procura a minha fivela, Tadeu te olhava estendido na cama, tu parecias rara, muito, se não falavas.” (p. 26) “Tadeu se pergunta: Por que, Rute, minha came quis a tua?

Mas não é a came que pede alguma coisa, é antes a alma, eu te tocava assombrado de mim, mas não é Rute que vai alimentar o embrião-milagre, vai matá-lo, embrião-poesia -bulbo acetinado, por que a came desejou a tua, se a alma de ti nada sabia? Gostas da aquarela? Eu não te vejo pintor muito menos poeta Bem, mas com o tempo posso chegar a Te vejo tão perfeito na liderança da empresa Sei, mas gostas ao menos um pouco deste traço? olha o título que coloquei aqui quase apagado no canto da aquarela Ah sim...

“Rute depois do gozo”... engraçado, nunca me vi assim, te lembraste de outra? nunca tive esse cabelo, nem esse rosto comprido, o olho tão redondo, não gosto quando me mostras teus desenhos, teus versos, nunca me vejo neles, é como se tu fosses outro cada vez que

me mostras esboços, palavras” (p.26) “Tadeu comungado no mesmo existir duro da pedra e ainda assim Tadeu distanciado, te vejo, nos vemos, mas tudo é absolutamente desigual, e isso repito e repenso porque parece maldito o meu olhar. Vi com alguém, em alguma tarde, umsó-olhar te vendo, pré-posse augurada, te vi, árvore do paraíso?” (p. 27) “Um filho... seria a minha suprema delicadeza, não é, Rute? Entranha de Rute repleta de azeitonas gregas, cerejas, andorinhas, ninhos aromáticos onde pelas vizinhanças flutuaria um menino Tadeu, futuro homem de empresa será eficiente como tu mesmo, sem os teus maus momentos meus maus momentos?” (p. 28) “E chamas de amor, Rute, o estar na mesma casa, comer na mesma mesa, e a consciência nada comprometida na mesma direção?” (p.30) “Demais igual, demais igual às outras, olhando a casa com o teu olho vazio, sorrindo, sorriso dente-alvin, uma vez por mês a visita ao dentista, perbo-

de Rute: seus ornamentos, suas capas artificiais, seu sorriso envidraçado, o motorista.

Tadeu passa, aos poucos, a cultivar uma raiva da esposa. Os diminutivos não são mais por carinho ou afeto, mas porque a via em sua pequenez. Ela passou incólume no tempo: não cresceu. Chamá-la pequena é desapontar-se, atestar que sua companheira não envelheceu com dele. Ainda é a mesma criança fútil, menor, preocupada com o corpo, com a sociedade. A casca de Rute não muda, por isso sua percepção de espaço também não muda. Por Tadeu ser a voz direta na narrativa, temos uma única perspectiva desta companheira – a dele. Ainda assim, renegar o que ele foi junto dela durante trinta anos não anula o fato de ele o ter sido. A raiva que sente camufla a raiva de si mesmo, raiva de não ter sido outro ou um que pudesse sentir a força de viver. Tomar esta casa como sua, enchê-la de algo mais do que pedras esparsas e retratos em preto e branco. Toda vez que observa o espaço, seu desespero aumenta: não há Tadeu ali. Seu altar a si mesmo, a essência do morar, perde-se para decorações vãs e impessoais. Resta a Tadeu a memória e tudo aquilo que ascende, de alguma forma, nesta casa. No terraço, com os pés descalços sobre o piso e olhando para lua, Tadeu sente-se parte da casa, do telhado, do céu estrelado, cobertura mais interessante e menos racional do que um telhado de telhas. O balanço que o deixa nos ares e aquece o peito por fazê-lo sentir-se livre é mais um elemento que o verticaliza; os livros favoritos (aliás, Drummond e Jorge de Lima) só são alcançados por meio de uma escada comprida; a escada que leva ao quarto e que ele sobe sem fazer barulho; de novo o terraço do quarto, que o deixa suspenso sobre a casa.

A verticalidade está ligada de maneira inerente à expressão 58

da casa de Tadeu. Por isto ele também busca a árvore como símbolo, ainda que somente no retrato. O romper do solo e a busca pela ascensão traduzem o crescimento ou sua procura. Nesta perspectiva, a semente, atraída pela luz do sol, atinge três níveis: o das raízes (subterrâneo e profundezas), o da superfície (o tronco) e o ponto mais alto (os galhos que ascendem e buscam o infinito). Ou seja, os fragmentos da casa de Tadeu estão tão enraizados quanto suspensos no ar. Ele entende sua casa como um altar pessoal, o local de exaltação da existência pela existência, um espaço que mostra, em cada um de seus cantos, a personalidade, a alma de quem o habita.

Mesmo que dotada de muitos cantos, estes têm, por vezes, de serem limpos – “é preciso que se desfaçam as teias, o elaborado de horas, o equilíbrio suspenso, fio tecido dos humores de um ser vivo, limpar os cantos é tudo isso” (HH in caderno de notas, p. 32) – eles são a imagem de sua inquietação, de suas ideias entremeadas aos conflitos de sua existência finita e orgânica. Geralmente nos referimos aos cantos como locais de reflexão e, ao mesmo tempo, de proteção. Neste caso, os cantos de Tadeu são a própria reflexão, mas estão poluídos demais para serem guarida. Seus sentimentos conflituosos permeiam-se a estrutura líquida da casa. O seu quarto, intimamente acolhedor, agora o assombra com memórias futuras.

Até quando será possível esconder a podridão de seu corpo dos lençóis cândidos de Rute? O corpo do casal que ali dorme, há muito, não é o mesmo, não se misturam. E a carne de Tadeu não mais quer ser carne de Rute; não quer mais um filho de Rute – uma réplica do corpo vazio da mãe ou uma miniatura dela (para que diminuir o que já está tão ínfimo?): corpo sem alma. A possível mãe afirma que o menino teria pés firmes, de terra, diferente dos de água de seu pai. Tadeu 59

rato de sódio, duas vezes por semana a massagem com algas no instituto, os banhos de pinho, as máscaras de mel, teu corpo oco, minha mão gelada no teu seio de menina, te preferia gasta, tomada pela vida” (p. 31) “Como foi de repente poder ficar nesta casa, na empresa, levantar-me pensando no algarismo santo, perder a alma perdi-a, perdi-a, Rute ainda não me perdeste, Tadeu A alma, eu dizia, alma de mim, Tadeu-homin, lá na Casa dos Velhos, lá vou saber até onde se faz verdade a minha volúpia” (p. 31) “Longe, a Casa que eu vi um dia, perguntei a um amigo, ele me disse que lá viviam os velhos, aqueles que são difíceis de guardar no quarto, de emparedar, aqueles que fedem à urina e mofo, pais sogros avós.” (p. 31) “[...] carne nova de Tadeu imaculada, por que não te buscas lá, onde os velhos dormem, tua clausura de pedra, goivos alados, asa e precisão ocupando um espaço, Rute, se te tomo, me sabes além da espessura do corpo? (meu pai na varanda, café-exportação, o sol so-

bre a maçã: Tadeu tem os pés de água, amolda-se) Amoldeime? Até onde?” (p. 33) “[...] delicado quer dizer outra coisa, cuidar é diferente na sua boca que são coisas finas delicado e cuidar e coisa fina não é o que são as coisas, se tocas essas coisas que dizes, sentindo-as como tu sentes, as coisas adquirem uma topografia banal inesperada, banalidade é o que se incorpora às coisas que tocaste, banalidade insuspeitada das coisas sob os dedos de Rute. Porque é caro, não é isso, Rute? Claro” (p.

33) “Ela não sabia do poço. Da alma da empresa sim – do tabernáculo – dentro dele o oco, não Aquele, acrescentaram peso a Empresa-pobre-corpo, se fosses feita de carne como serias? Gorda, o pelo ruivo cobriria a superfície ondulada, ferrosa, ferroso é o que serias, tabernáculo, ferroso como o sopro das bruxas, ímã para que tudo à tua carne se apegasse, carne da empresa é guilhot, assim teu escuro nome – de engolir – de ilha – guilhotina, rapace isolada assassina da alma de Tadeu, comedora de almas porque atrás de ti há um

sempre se amoldou, percorreu os caminhos seguindo pegadas, nada mais. Ele não quer um filho de Rute, uma criança que não cresceria no útero materno, mas sim em suas entranhas – não que elas sejam asquerosas, pois elas são, ou seriam, tudo o que Rute aprecia: azeitonas gregas, cerejas, ninhos aromáticos... A cama, antes leito de amor, de partilha, confidência, agora, é sinônimo dos anteparos hospitalares que recebem corpos semimortos e prontos para o fim.

A porta passa a ser o limite entre dois mundos. Tadeu não mais entra no quarto se Rute dele faz parte. E, lentamente, o portal de divisor passa a fomentador dos pensamentos de Tadeu: Rute, que fora carne de sua carne; a empresa, sua inércia; aquela lua do terraço, sem sapatos, suspensa. A memória poderia ser um onde mais ameno: novamente o retrato em sépia traz a flor do limoeiro; a árvore e suas raízes profundas que mergulham no subterrâneo; sua copa tocando o alto e recebendo as energias celestes. A árvore é um símbolo que reúne todos os elementos: a água que circula em sua seiva, a terra que se mistura às raízes, o ar que lhe nutre e finalmente o fogo, produzido ao esfregar de seus galhos um contra outro.

Além de símbolo vital e eixo do mundo, a árvore também possui um aspecto de transformação, morte e regeneração. Um meio cíclico que permeia as (des)ilusões de Tadeu, trata e reflete seu meio. Ele, a cada minuto, se entrega, se rende e sua única força é ainda a conexão de suas questões de antes, do céu por meio da palavra e de sua arte. Quanto mais Tadeu busca o verbo, maior é sua frustração ao perceber que a esposa é mais rara quanto menos fala. Rute, com suas questões terrenas, não se preocupa com as problemáticas de Tadeu e assim o cala ou o interrompe: “[...] dispenso o motorista?”.

Ele água. Ela pedra. Esta frase recorrente de Rute parece ir 60

além do racionalismo e da futilidade. Estas palavras sempre tiravam o marido de sua zona de conforto e o faziam tomar uma decisão pragmática em relação à vida: desta vez Tadeu assumirá o outro lado, dirá adeus ou fará o trajeto habitual para a empresa? Esses eram momentos de retomar o controle, afetar Tadeu: a golfada para deixar Tadeu tenso, incrédulo e fazer com que ele voltasse a cumprir seu papel.

De fato, dispensar ou não o motorista desequilibrava Tadeu, mas o fazia lembrar do quanto não queria desempenhar este papel, e isso lhe dava forças. O incentivava a escalar a estante em busca dos poetas, enfrentar Rute, emaranhar os lençóis, deixar de lado os livros de logística. Depois de confrontá-la, o que lhe restava não era mais do que sua gaveta habitual dentro do armário estofado de Rute. Ao passo que ela possuía todo um armário esterilizado e livre de lençóis entranhados, ele tinha posse de uma pequena e bagunçada gaveta. Tadeu buscava constantemente seus escritos, suas roupas, em uma única gaveta – aquela que parece conter todo o seu mundo, mas que, novamente, não pode ser muito grande, não é (ainda) muito grande: cabe em uma única gaveta. Como os poços dos olhos de Tadeu, a gaveta era funda, infindável.

Tadeu refere-se ao Fovea Centralis (poço central) para descrever os olhos. Mais que um oco ou um fundo escuro, ele indaga a profundidade que um par de olhos pode chegar, ou seja, a profundidade das janelas da alma, das janelas da própria casa. Por vezes, ele se questionava se, ao fitá-lo, Rute tinha conhecimento do poço, do fundo falso de sua gaveta, do universo nele contido. Tadeu tinha a impressão de que a esposa o olhava como se soubesse do poço, mas sua conclusão era definitiva e decepcionante: “Olho amarelo vazio me olhava.

Era só isso. Ela não sabia do poço.” (p.28) 61

corpo que sustenta ideias que se dizem políticas, isentas de fraternidade, arrogantes dispenso o motorista?” (p. 34) “Até onde o horizonte, até onde a linha acinzentada, longe, onde vês os pássaros, estica a tua linguagem, fala, Tadeu, batizando a palavra, lambuza de sal a pátina colada às consoantes, justifica as vogais, ajoelha-te, os joelhos colados na madeira lavada. Que sim. Que não te assemelhas.

Aos que te rodeiam. À hora de Rute. Que és novo como o começo inverso de um novelo.

Que a morte não existe, seria o sem forma, o escuro indizível, e tudo é geometria e palavra, navega, cola-te ao corpo da Vida. Te comportas como todos os que chegam à meia-idade [...]” (p. 35) “Entro na casa dos velhos e o cheiro dos frutos pousa no corpo de Tadeu, ar suculento, pesado de aroma raro, não vejo o que pensava que veria, as caras magras, a brancura dos braços, o peito transparente e glabro, não, há cochichos e fingida sonolência [...]” (p. 36) “Bem, deixa, são cálidos os cães, convivência mais jubi-

losa que a memória, porque a memória às vezes tem sarcasmos e é quase que inteira peso, pois não é?” (p. 37) “Pois que nunca os herdei já está o senhor a ver, a casa não é parda, nem há pombas, algumas vezes duas e nem se sabe de onde, há nabos sim e couves, mas plantados por nós, Heredera ficou meu nome para sempre porque por estes lados dão alcunha por qualquer coisa pequena que nos aconteça, e morando sozinha me veio à ideia um passar a morar com outros, herederos de sonhos, por que não? Pois é verdade, senhor, na velhice se sonha, e o sonho fica um fato recrescente, tantas vezes se repete no peito e na cabeça sonhos tantos, que o sonhado uma vez em trêmito contente, volta adubado, faz-se verdade” (p. 37) “Guxo, um dos nossos velhos cães, os pelos ao redor dos olhos estão assim molhados porque é muito lagrimeiro, mas é limpo como os arminhos, sabe o senhor Tadeu que os arminhos falecem se os colocamos numa poça de lama? que nunca mais se mexem e ficam lá parados para que se

Rute era rasa, e ainda que não soubesse do poço, ele existia entre eles e entre Tadeu e a empresa. Era o que espelhava a distância dos mundos do casal, o que abrigava o abismo, não mais vencível, de duas vidas desconectadas, de retratos partidos, cantos sujos e louças quebradas. Rute, ainda que eterna, também se quebra. Sua partida faz com que Tadeu, de vez, assuma a Casa dos Velhos – lugar onde se guardam, segundo ele, os velhos que são difíceis de emparedar, de prender no quarto, que fedem a mofo e a excrementos. O espaço de Tadeu, por mais íntimo e circunscrito que seja, não possui muros. É o mais aberto possível diante dos limites do objeto – é, quem sabe, sua própria consciência que se expande e sua experiência-limite que não mais se prende a qualquer corpo ou espaço. É a morte, mas também o desejo da vida, da nova vida, do recomeço.

A Casa dos Velhos não é apenas a ideia do asilo, apesar de conter todos os seus cheiros e dificuldades. É a proposta da noite e do silêncio experimentados por Tadeu no terraço do quarto; são os cochichos e frases soltas, quando nota o olhar vazio de Rute para a casa em que vivem. É o réquiem, a marcha fúnebre que antecipa a morte acalmada de Tadeu e a mumificação eterna de Rute. Mesmo que a perda soe tão dolorida, esta casa passa a ser um onde mais cheiroso do que ele previra, talvez tão aromático (porém bem menos artificial) quanto os lençóis de Rute. Com grandes quintais para cultivo e muita gente disposta, o asilo que encontra Tadeu é demasiado calmo e aconchegante, cheira a mangas frescas e cravos amarelos. Tudo ali é morno como a luz do sol. A espera da morte passa a ser mais do que a imagem da asa curva sobre a vida, do que o corvo ensimesmado e preso a papéis – sejam eles narrados ou descritos, vestíveis como máscaras ou feito 62

para se amassarem.

Tadeu, na Casa dos Velhos, encontra diversas personagens que o buscam, de certa forma. Em seu novo grupo estão o que parecem ser fragmentos de uma personalidade, ainda rastros da memória e do passado: cada máscara que se apresenta a Tadeu é plana, rapidamente reconhecível e interpretada.

Primeiro conhece Extenso, um senhor que adora se alongar contando histórias e que rapidamente se mistura a Convicta, alguém que sempre tem certeza dos fatos sejam eles contados ou futuros. Eles adoram discutir a razão, relembrar Maria Matamoros, que ali também vivia até ceifar a própria vida. Eles diziam que ela parecia Heredera, mulher que sofre pelas heranças várias que deveria ganhar, mas nunca as ganhou. Heredera deixou de ser sozinha e, segundo ela, resolveu morar com pessoas que também eram, ao menos, herdeiros de sonhos.

Na velhice se sonha. Exumado cuida de campos inteiros de cravos e cava as sepulturas das flores, uma a uma. Às vezes cava muito fundo, mas não tem importância, as flores são defuntas em pé e buscam a superfície. O curioso é que ele cava e enterra, enquanto seu nome remete ao que foi retirado da sepultura e suas flores são aquelas habitualmente utilizadas para cobrir os defuntos. A morte aproxima-se cada vez mais de Tadeu. Exumado fala dos cães da casa e, especialmente, de Guxo, que carrega lágrimas nos olhos, mas é limpo como os arminhos. Os olhos molhados são de piedade por aqueles que estão naquela casa. Mas, aqui, a imagem mais importante é a do arminho que, segundo a história de Exumado, morre se colocado em uma poça de lama, pois não mais se mexe para que a alvura de seus pelos não se manche.

A imagem da alvura faz Tadeu voltar a sua antiga casa, a morada clara e intocada de Rute. Salvo “[...]das águas, das águas de 63

não manche a alvura do pelo?” (p. 39) “Eternidade e seu corpo de pedra e dentro desse corpo o tempo procraz, insolência soterrado na carne, ai Rute, se o tempo no teu rosto te cobrisse de rugas, se tivesses a dura e adocicada comunhão com as coisas, talvez sim tu serias mais bela porque o rosto adquire refulgência se dor e maravilha e matéria de tudo o que te rodeia te penetra, e ao invés de gastares teu ouro no apagar de umas linhas finas e de sulcos, tu te tocarias amante, mansa, sabendo que o vestígio de todas as solidões se fez presença no teu rosto, que o sofrido da água é cicatriz agora ao redor da tua boca, que tomaste para a tua fronte a linha funda da pedra, Ruteidade de Rute se te conhecesses como Tadeu desejaria, se deixasses que o Tempo fizesse a sua casa no teu centro, se a nossa casa tivesse sido a vida de nossas próprias almas, se Tadeu tivesse ouvido aquele murmúrio ecoante adolescente que se fez inesperado em verso: cria a tua larva em silêncio, também estou mudo e aguardo.” (p. 40)

“[...] fizemos tudo ao avesso, antes se lhe deveria ter mostrado os aposentos, e depois fazê-lo confidente de lérias, perguntante, vê só, senhor, é bem formosa a visão que se vê da janela, as janelas desta casa têm fundura magna mas neste quarto apenas é que há o parapeito largo, de pedras, pode o senhor Tadeu alegrar-se com este cair de tarde” (p. 43) “Guardados. Tu não os guardava, Rute, proibia-os de mim porque eu os amava, porque se a poesia se fizesse o meu sangue, a alma de Tadeu solar rejeitaria teus algarismos santos, porque se o poeta em mim amanhecesse no traço ou no verso, Tadeu veria Rute esvaziada, e vazia igualmente a Empresa, a Causa. Tadeu salvo das águas, das águas de Rute móvil, sempre escorrendo, atos aparentemente diminutos, frases pequenas de duvidosa transparência, Rute rápida, a golfadas, se é preciso lembrar palavras não me lembro, dispenso o motorista perguntavas de repente porque talvez adivinhasses a tensão que me provocava a frase, era preciso optar a cada manhã, eu repetiria o trajeto até a Empresa ou enfim diria adeus?” (p.

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Rute móvel, sempre escorrendo, atos aparentemente diminutos, frases pequenas de duvidosa transparência” (p. 41). Primeiro, Tadeu amolda-se ao exterior, à Rute, à empresa, para, em seguida, nadar contra a corrente, voltar às memórias de Rute ainda viva, do que ela poderia ter sido, do que eles deveriam ter sido. A busca por um passado exaltado e belo é inevitável quando se vê frente ao fim, mas ele fracassa bem dentro, no fundo confrontado: e então, “[...] dispenso o motorista?”.

“Rute, a empresa, a minha vida, caberiam num copo, como cabe a cinza na urna mínima, ainda que pertencido parecesse não pertenci a Rute, olhei-a sem poder agarrar Ruteidade semeando o vazio, não pertenci à empresa e nem ela valia pertencença, pertenciam os outros, aqueles empolados, à verdadeira Causa? Ganhar o dinheiro e usá-lo para aprender a olhar, quem o faria? Tão poucos os que se detêm na raiz, o olhar alagado de vigorosa emoção, estou vivo e é por isso que o peito se desmancha contemplando, o coração é que contempla o mundo e absorve matéria do infinito, eu contemplando sou uma única e solitária visão, no entanto soma-se a mim o indescritível e único ser do outro, um contorno poderoso, uma outra vastidão de corpos, frescor e sofrimento, mergulho no hálito de tudo que contemplo, sou eu-teu-corpo ali, lançado às estrelas, sou no infinito, sou em tudo porque meu coração-pensamento existe em tumulto, espanto, piedade, te sabe, te contempla. Eu, homem rico Tadeu agora tento o veio, o nódulo primeiro, estou em algum lugar onde me pretendo, sagrada ubiquidade, braçadas neste pleno do espaço, nascido de uma carne nado veloz à esplêndida matriz.

Então, Tadeu, dispenso o motorista?” (p. 54)

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MATAMOROS (da FANTASIA) 65

O ambiente deste conto, muito distante do primeiro, é o bucólico. Sua atemporalidade e (com)fusão entre realidade/sonho restauram uma atmosfera de contato com a natureza e as práticas pastoris. De declarado sensualismo, esta vida campestre de dimensão simbólica passa a palco de uma tragédia amorosa. A Casa dos Velhos, mesmo tendo sido por algum tempo morada de Matamoros e palco de seu fim, não mais é o cenário da trama. Temos aqui todo um universo distribuído em memórias pela aldeia onde cresceu Matamoros e Axelrod.

Nos lábios de Maria menina, a história contada começa com a evocação da morte: “Matamoros talvez porque mato-me a mim mesma desde pequenina” (p. 61). Maria assim se coloca (de maneira punitiva) pelo contanto desde muito cedo com os homens. Descobriu seu corpo ainda nova e dele, desde então, fez seu templo, seu mar de desejo. A consciência dela é tátil, conhece o mundo através de seu paladar íntimo (sexual).

Sendo assim, a mãe acha que a menina está sob a ação de forças malignas e superiores e chama uma figura religiosa para curá-la, mas o sacerdote abusa da menina, que se diverte com a situação. Curioso é que Matamoros, na cultura mexicana ao menos, foi a figura de um padre liberal (é importante ressaltar que vários nomes neste conto possuem origem ou forma hispânica).

Entre o encontro com o padre e com os outros meninos/homens da vila, as divagações de Matamoros vão se tornando mais substanciais. A fantasia não se dá apenas por uma forma sinonímica de imaginação, ela é mais do que a ideia reprodutora comum: funciona como uma imaginação simbolizadora, alegorizadora e poética, logo criadora. Ao discorrer da narrativa vão se reconstituindo as memórias de Matamoros e tudo que nelas provoca êxtase ou terror – não sabemos ao certo em

“... desde sempre tudo toquei, só assim é que conheço o que vejo...”

(Hilda Hilst) 66

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“eu abria-me ao pé da água, “eu abria-me ao pé da água, encostada ao corpo do rio, e sem que o homem percebesse eu o lavava, primeiro as mãos na água, depois no costado do homem porque se faz nesse comprido da medula o mais intenso sentir, depois apalpava-o na semilua do ventre, molhava-lhe os pelos vagarosa e antes de tocá-lo no mais fundo esfregava minhas mãos na minha cabeça, aquecia-as para que a água das palmas se fizesse em mornidão, e depois sim tocava-o, singela e de rudeza mas com finuras de mulher educada, pois era assim que eu era, e se destruí algumas coisas com a polpa dos meus dedos, tinha cuidados e era desvelosa com o corpo da água” (p. 64) “Que é preciso que eu respire agora, afogada que estou, úmida de lembranças, que o espírito perceba que eu morreria amplidões de vezes para voltar à minha tarde rara, tomada de paixão, de sentires sem nome, que sou neste momento o que era Haiága antes de vê-lo e quando simplesmente apenas minha mãe, Haiága velha, o pretume das saias nos joelhos, ralhante, feixe pela casa,

muitas palavras parecendo sábias, muito carregante de limpezas, e na alma a secura misturada à volúpia e à vergonha, Matamoros e Haiága uma só antes não éramos, somo-os agora, ela morta, eu viva como se, mortas as duas ainda que eu pareça a vida desta Casa de mortos como dizem, então não me tocou depois, depois do de joelhos cara a cara, das visões, perguntou-me se eu morava longe e que o viver comigo numa mesma casa se faria no instante, que casa ele não tinha, na mente carregava arco-íris e cristais para uma casa tão viva como a vida, que nunca se saberia dentro dela porque as casas da mente, as soberbas moradas, não são feitas de argila nem as bases se assentam num espaço da Terra, enquanto caminhávamos descrevia umas muralhas altas, umas portas de sonho, nenhuma aldrava porque se nos fechamos conosco à procura de novos nomes para as coisas, amigos não teremos, que rodeando a casa a alguns passos da muralha encantada, um ribeiro, e nas margens um todo de glicínias para que Matamo-

que dimensões estão o sonho, a realidade e as sensações: tudo está atravessado.

Portanto, sem um referencial preciso da realidade/sonho, o tempo também se confunde. A atemporalidade é marcada pelas formas passadas mescladas às construções do presente: não sabemos ao certo o que nos é contado como fato ou como projeção fantasiosa. Não que esta fantasia seja sã, ela acaba como a “louca da casa”: Maria Matamoros é tida como a demente da Casa dos Velhos que ceifa a própria vida de maneira insana e desmedida – fere seu próprio meio subindo a faca até o ventre. Talvez ela estivesse se punindo ou se abrindo por uma última vez. Não se sabe o que da morte ela esperava, se era alívio. Mas Maria não se salva, como Tadeu não se salvou.

Com a faca introduzida em seu oco, espaço destinado a gerar vida, Maria nega a própria existência, revolta-se contra a fertilidade da própria mãe, do ser mãe. A morte, pelas próprias mãos, é a sua purificação, seu último rompimento com os limites, sua volta à água, a natureza.

Era costumeiro que Matamoros se abrisse ao pé da água, este ato dava acesso a tudo o que tinha em si, ao seu templo, sua casa. A figura aquática aqui não é mais aquela que vai contra a pedra ou que se amolda a cada pegada de terra, como em Tadeu. O rio tem seu curso, lava e purifica, assim como Maria ao se lavar e lavar os homens que haviam no corpo d’água. Repare que é corpo e não curso. Para ela, a água é corpo também, é carne que se modifica, se banha e se mistura aos elementos da natureza. A própria Maria mistura-se à água ao aquecer as mãos antes de tocá-la, deixar morna a pele molhada.

A água a envolve tanto que chega a afogá-la: temos dúvida se esta é uma memória póstuma, pois Matamoros coloca sua casa e de sua mãe como uma Casa de mortos e se diz o pouco 68

de vida que ainda resta nesta casa. Seus corredores são marcados pela saia preta de Haiága que se arrasta pelo piso de madeira. Haiága mãe. A outra (hai)Ága, por origem do nome, era tida como concubina de Abraão (pai de muitos) – esta imagem de Haiága mulher primeiramente goteja e depois encharca a visão de Maria. A constituição da família é muito conturbada: os papéis de mãe e filha misturam-se, se contradizem. Matamoros observa sua mãe, as curvas que ela ainda apresenta e a admira: a sabe digna de erotismo e sensualidade. Talvez essa proximidade com Haiága mulher seja algo assustador, pois ela apaga a figura antes predominante: figura materna. Novamente aparece a questão daquilo que é velho, mas agora ele não é mais sinônimo de carne putrefada e sim motivo de cobiça: Matamoros inveja a maturidade da mãe por ela ser mais velha, mais mulher.

Sua vontade de ser mais se agiganta e seu ciúme é aflorado graças à presença de um homem na vida de ambas as moradoras da Casa de Mortos. Neste conto temos incialmente a figura masculina como objeto de descoberta de Matamoros: os homens são brinquedos. Todas as figuras são a mesma, ela não os olhava nos olhos, na face. Apenas lhe interessava a habilidade deles ao toque, a capacidade que tinham de fazê-la se misturar à terra, sentir-se parte das folhas caídas e do feno: quanto mais se sentia aconchegada no espaço, mais aquele homem servia para o momento.

Acontece que essa figura, antes tão plural, passou a ser única, marcante. Matamoros, à procura de flores que melhor decorassem sua casa, entremeada aos ramos de flores amarelas, buscava algo que amenizasse a escuridão que tomava a casa sua e de Haiága – talvez a natureza trouxesse um ar menos morto ao lar. Em meio às ramagens aparece mais um rosto 69

ros deslizasse comprida sobre as águas e tivesse como apoio o cetim das flores, calava uns espaços, parávamos, de cócoras, ele sorria um pouco, os dentes de vidro pareciam, tão unidos, leitosos, a boca se mexia de maneira formosa e sei que o dedo atento desses estudiosos de fazer a imagem, não poderia fazê-la mais rigorosa, da suavidade e da doçura das avencas, que uns brancos porcos conviveriam conosco porque se faz preciso para o homem lembrar-se de si mesmo tal um porco lavado mas sempre um porco [...]” (p. 68) “[...] mas ficava satisfeito de saber das coisas antes de chegar à minha casa, às vezes sim adivinhava uns baços da lua, se a chuva chegaria, uns caminhos do vento, mas isso era nada, dom de muita gente, concluiu. De devoção me fiz.

Ele, de pastoreio.” (p. 70) “a casa ficou clara, lavaram-se as madeiras, Haiága me auxiliava com tais contentamentos que de início pensei que era por mim, de ver a filha quase uma senhora, um homem cuidando dos campos, do rebanho, Matamoros na feitura de pães, no zelar das flores,

a cadela Gravina tendo nós três por pais, os dias com significados, quero dizer que se pensava no cuidar de tudo, e a palavra futuro se colou à casa, a varanda maior, não é Maria? e pedras mais polidas neste poço e pássaros que poderemos comprar, nas gaiolas de início, mais tarde em liberdade, que sim, que se afeiçoam e nunca mais se vão, são todos como gente, se tratamos com carícias e desvelos por que hão de tentar a imensidão, voar para onde não conhecem?” (p. 71) “Haiága era mãe, por sê-lo é que tornou-se tão outra eu meditava, embelezou-se para que a filha não sofresse a visão de Haiága velha, encheu-se de cantares porque convém dizer que também eu de muita beleza me fizera, andava pela casa Matamoros muito leve, muito de asa, um pequeno cansaço sabendo a descanso, cansaço amoroso pois que cada noite era noite de abraço” (p. 73) “Um olhar de lua atravessado de nuvens, um mais no fundo que eu não sabia, escuro de matagais, aparição pontuda, ouriço antes de ser mordido

sem nome, mas era já um rosto e não mais um toque: Maria nutre real interesse por este homem. Colhendo flores amarelas acaba por colher uma figura masculina, talvez uma figura onírica, resultado de seus devaneios – buscava flores. Ainda assim, o homem quer habitar Maria, viver junto dela, nela.

Pensar que Matamoros levaria um estranho para habitar com ela e sua mãe somente por caridade ou insanidade é muito superficial. Ela está levando para casa mais um corpo, uma carne para complementar a sua própria, um volume para preencher o vazio que a inquieta desde os tempos de menina. A carne de Maria repele, de certa forma, a carne da mãe, o que rompe os laços uterinos da família, do lar. Matamoros pede carne, corpo: ela clama pelo vazio que a consome. Precisa de mais.

O estranho não tem casa, ao menos não uma física, de barro, fincada na terra. Ele fala de uma casa tão viva como a vida, de uma morada tão mutável quanto a mente, de uma casa que é a própria mente. A imagem da casa passa a ser mais que o centro do próprio homem, é o centro do mundo, a imagem do universo. Nem mesmo como universo, em seu sentido mais amplo, a casa deixa de ter amarras, conexões diretas com a psique das personagens. Matamoros e o mais novo companheiro perdem-se longamente descrevendo a casa que agora partilhariam: dotada de grandes muralhas – elemento tradicionalmente protetor, mas que encerra um mundo nele mesmo (ela seria rodeada por belíssimas glicínias e estaria próxima a um ribeiro. Vale ressaltar que as glicínias são flores comumente utilizadas em grandes caramanchões, ou seja, funcionariam, de certa forma, como uma cobertura para esta morada, apesar de estarem locadas no seu entorno). Obviamente, não faltaria o elemento que compõe o mais (in)completo de Matamoros: 70

a água corrente. Haveria também, em sua entrada, um grande portão de sonho que, assim como a porta, simboliza um local de passagem entre dois mundos. É curioso que, mesmo encerrados por tantos elementos, eles se preocupem com a não presença da aldrava. O casal não quer se obstruir, dificultar a passagem dos amigos: talvez a preocupação venha do sentido desta aldrava como argola que, quando fechada, é sinônimo de autodefesa. Mas a muralha não?

A casa sonhada pelo casal, ainda que somente em projeção, gerou mudanças no espaço previamente habitado por Matamoros e Haiága. A casa, antes de mortos, agora via o futuro: pensavam ampliar a varanda, polir as pedras do poço. Seria este o mesmo poço dos olhos de Tadeu? Ao pensar esta casa tão morta temos a imagem dos olhos cerrados, de poços escuros, poluídos. Esta nova presença faz com que os olhos se abram, com que o mundo se amplie. Traz um poço mais limpo, uma casa de janelas mais iluminadas. Haiága, antes tão velada e arrastada pela casa, agora se fazia bela: passou a ser uma figura radiante, de cantares possui um passo leve pelo chão. Era um ponto amarelo para a filha.

Esta figura masculina, batizada de Meu por Simeona, A Burra (ela vendia água montada em uma mula, por isso A Burra), logo passou de grande novidade para desarmonizador da casa: Matamoros, ao tomar conhecimento de que a mãe levantase de madrugada para preparar a comida de Meu, sente que ela está usurpando funções que deveriam ser restritas à filha.

Haiága não entende, pois se sente renovada com a presença de Meu, encontrou alegria na velhice, uma alegria maior que a de Maria. A filha passa a ler a mãe como ameaça: na forma de beligerância feminina, disputam o mesmo homem – não há outro motivo para uma felicidade tão excessiva vinda da 71

e um segundo antes de expelir espinhos amarelos, cravou-se coisa comprida em mim, Haiága tinha usado um ferir espinhudo para levantar a pedra, eu olhava lá dentro e ainda não via” (p. 74) “Andou como a rainha até a varanda, nem me olhou, as mãos nas mangas enfiadas, tentei abraçá-la por trás, as mãos na cintura, encostei meus cabelos nas espáduas retas, empurroume altiva usando os cotovelos larga-me menina” (p. 74) “Matamoros rica de quentura, luzente de graça, tão pequenina lagartixa, que não era nada, que os velhos têm garganta gemedora mas que no mais das vezes é porque a vida esvai-se, por isso que nós os velhos gememos, cara partibular porque ao encontro do tempo, do limite, daqui a pouco Maria, estou com Deus cara a cara, ou com o outro, ria-se, pedia-me que risse também, não te ponhas assim toda espremida, te preparo teu leite” (p. 75) “mãe, não é preciso mais que te levantes antes da madrugada Emudeceu encostando-se à mesa, a pele tinha a alvura da pele moribunda, passou a

língua nos lábios, no canto da boca a carne com tremuras, as mãos geladas tocaram-me por quê, Maria? para que não te canses cansada ficarei de estar na cama na tua idade as pessoas descansam Disse para feri-la, para que lhe faltasse o ar, e ela como se adivinhasse deu respiros, curvou-se num tossir de ecos me vem às vezes pensar que a montanha me faria bem, na velhice vai nos faltando o ar pois há montanhas rodeando o universo, mãe” (p. 76) “olhando-as me detive nas ancas, que largas eram, que coisa desejável e espaçosa para um homem mover-se sobre elas, esfregar-se, contorná-las com aquelas grandes mãos que eram as mãos do meu homem, olhei minhas próprias ancas e vi pobreza, duras, estreitas, alta que sou, pensei, está bem que sejam como são, mas não estava de contentamento, alisei disfarçada meu encovado ventre, e de canto de olhos vi o de Haiága, um delicadíssimo redondo, curvatura de pequena maçã, pensei antes o meu porque toda a terra está cheia de velhas com seus ventres fofos, mas não estava de contentamento,

mãe. Matamoros-mirrada tem traços ainda de menina, não há como competir com as formas redondas e volumosas da mãe, que agora é amante, rival. O ciúme cega Maria: não vê nada além dele, está perdida neste mundo.

Matamoros está tomada por Meu, presa ao fascínio da perfeição masculina. Enlaçada por este “homem sem casa”, quer lhe oferecer a casa que falta. E, como ele mesmo disse, não carece de um abrigo de tijolos, mas lhe falta a morada do ventre, os cuidados uterinos de mulher, um corpo que lhe aqueça a alma. Maria filha não quer dividir o papel de mulher ou de amante. Ela dá conta dos afazeres domésticos e ele do pastoreio, são adultos e completos – não querem e não precisam ser tríade.

A atmosfera deste meio volta a ser escura e nebulosa, nem mais a luz que Meu trazia para as janelas tem efeito sob uma rixa tão forte, de sangue. As montanhas da aldeia parecem fechar a visão de Matamoros, sua mágoa alcança qualquer cume, está traída, suja, precisa se lavar, se misturar ao corpo d’água e fazê-lo seu novamente. Ao buscar um novo corpo purificado na correnteza, Maria tem uma revelação, um surto de esclarecimento.

Vê Simeona – quem nos primórdios é a forma feminina do segundo filho de Jacó: significa “Deus ouve” – a figura da benzedeira, da entidade natural, da força da natureza. Vale ressaltar que ela era antes querida pela aldeia, mas passou a ser odiada e vista como bruxa após proferir uma visão: “sangue numa casa da aldeia sujando para sempre as mãos da nossa gente” (p. 87). Simeona poderia ser a consciência latente de Maria Matamoros ou sua pior divagação, mas, de qualquer forma ela, é ouvida, é voz latente no universo de Maria. A feiticeira faz questão de mostrar a ela que Meu não é real.

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Chama-o assim justamente por poder ser resultado de qualquer sonho de qualquer mulher – amolda-se como a vida exigir dele (como Tadeu). Ele é de todas, é a perfeição do desejo.

Meu é “homem-anjo”, não deve ser tocado, não pode ser. É beleza demais para pertencer a alguém, é luz pura e amarela.

Neste flash de esclarecimento, Simeona ainda traz algo mais profundo: Meu seria a criação de uma entidade ainda maior, tadeus, Deus. Aqui temos a retomada da versão de Tadeu demiurgo, aquele que cria uma entidade maior que rege toda e qualquer visão fantasiosa de vida. A versão real de Meu, Tadeus, no espelho de terra da bruxa, possui casa e cama de importância – é rei.

Meu é o resultado dos desejos mais profundos de Maria: saído da penumbra das saias pretas de Haiága, do sangue cinza e nebuloso da Casa de Mortos, ele é o poder que faz Maria sentir a água fluindo em seu ser sem precisar do corpo d’água. A figura masculina de Meu é a personificação da morada ideal, completa: uma casa iluminada, limpa, arejada, uma família sempre a mesa, na varanda – água fresca do poço, gado bem cuidado tomando o campo. Maria não quer mais o sentimento de ciúme, de partilha – pede a Simeona que o retire: “tens que largar o homem, varrê-lo da casa e da cabeça, é sombra encorpada, é vento de carne, é nada feito homem, no instante em que digo estas palavras ele já é semente, já é larva no coração de outras mulheres” (p. 91).

E, ao invés de recuperar o estado de felicidade ao lado de Meu, Maria apenas amplia a fissura entre desejo e realidade ao perceber a mesma canção sem palavras nos lábios do amado e de Haiága. Meu, do alto da montanha, cuidando do gado, é um feixe de luz aos olhos de Matamoros, é luz excessiva, realeza. A mãe, abaixo dela, é um ponto amarelo: são como 73

de rancor o confronto, Haiága vencia se um homem nos colocasse à frente do desejo [...]” (p. 76) “Matamoros andava atrás como se a mãe soubesse de uma trilha de bois, em tudo tão mais sábia, tão terra gordurosa, tão farta e azulada de luz naquele caminhar, por que via Matamoros agora a mãe como se fosse de brilhoso de fada, como se fosse mulher de umas estórias que na aldeia se ouvia, mulheres muito de centelha, de fitas, de bordados, uma estrela na ponta de uma vara? Por que vê-la assim, de trigança encantada?” (p. 77) “Devagar e curvada, animal de rapina comecei a escalar o pequeno monte, será que a mãe tem poderes de maga e pode estar no alto da colina e deixar-se contemplar no baixio do monte? Que demência, pensei de mim, se continuo maligna na cabeça termino por ouvir a voz do demo” (p.

79) “levanta-se e caminha ao encontro do sol, não sei se a muita claridade nas minhas pálpebras me faz vê-lo rodea-

do de luzes, pequeninas abelhas de diamante, ai que mercê, que dádiva enxergá-lo, era meu esse homem, o encantado se fazendo carne, meu nas noites e fervoroso tanto, vinho e leite me sabia seu corpo, sim, meu nas noites e encolho-me ferida porque penso: de Haiága nas madrugadas?

Volto a levantar a cabeça, estou deitada de bruços, uma pedra me esconde, de soluços lá dentro muito surdos o peito se sacode, era verdade o que eu soube menina, dos velhos, desde que me sei por gente?” (p. 80) “[...] a aparência mais do que gentil, o sabor de um sem fim apetite, o cheiro de uma terra de maçãs e nêsperas” (p. 81) “[...] um bocado para ti, Matamoros, outro bocado para tua velha mãe, de velha fez-se redonda adolescente, de velha rouca fez-se rouxinol, de feixe fez-se outra vez redonda, de pudores fez-se muito despudorada, de ralhante fez-se doce e deixou de ser mãe para tornar-se amante.” (p.81) “[...] muitos fios e pelos se juntando é que formam a casa de abutres, desses de asa ne-

coroas.

Maria passa a entender a dimensão da morada como um castelo – construção sólida e de difícil acesso, sinônimo de proteção e isolamento – graças ao aspecto longilíneo e vertical encerra-se em si mesmo, é inacessível a outros. Como a corte do castelo temos o rei: Meu; e as rainhas: Haiága e Matamoros. Perceba que há aqui a triangulação da coroa e, automaticamente, dos papéis familiares. Um reinado não pode ter duas rainhas e uma casa não pode ter duas mães. Quem está realmente assumindo o papel da outra nesta triangulação amorosa/familiar? Será mesmo Haiága?

As palavras de Simeona tornam-se fenda, tomam Matamoros como insuportável verdade, como materialidade onírica.

Matamoros entende a profecia: seu nome traz a morte, seu destino é rastro de sangue: “[...] ai Maria, penso que é tua a casa onde sangue se via, mulher e cadela há de morrer e parir” (p. 90).

O sangue simboliza, aqui, todos os valores solidários ao fogo, ao calor e a vida que vem do sol. O sangue misturado a terra deu origem aos seres, é o veículo da alma. Mas o sangue também vira fogo, incendeia, se espalha rapidamente, infiltra.

Matamoros pensa derramar o sangue da própria mãe e, sobre ele, dar início a nova morada juntamente de seu amado. Mas Haiága gera sangue dentro dela, está grávida. A partir desta revelação o mundo de Maria passa a ser cada vez mais áspero e inóspito: seus lençóis macios repartidos com Meu dão lugar aos cantos ásperos do quarto e a escada que divide a alcova da sala de comer.

Meu, sempre tão atencioso ao toque e aos caprichos de Maria, quando recebe a notícia da gravidez de Haiága, toma Matamoros no canto áspero do quarto. Ela se sente agredida, está 74

de pé, a parede risca a pele, aquele não era Meu, era Tadeus.

Não estavam mais na mesma casa, a morada de Meu jamais machucaria o templo de Maria. A figura masculina finalmente assume a sua coroa de rei, de pai.

O companheiro de Maria seria na verdade seu pai? Haiága jura nunca ter sido tocada por outro homem que não o que “colocara Maria nela”. A mãe, a princípio traidora, passa a ser traída – Maria estaria se vingando? Ou simplesmente mascarando o trauma do incesto com uma bela fantasia de criança?

Não se sabe ao certo, pois este é o conto que transcende a realidade. Matamoros diz ter sempre amado de maneira escura por pertencer a terra, elemento tão turvo quanto o espelho de Simeona. O que nos deixa a hipótese dos elementos verticais – os muros, as montanhas e as torres do castelo – serem, na verdade, barreiras metafóricas para evitar o toque maldoso do pai.

Maria ria-se com a possibilidade de Haiága estar grávida, chega a compará-la a uma cadela que sofria as dores de não ser mãe. De nome Córdula (coração), a cachorrinha teve apenas um filhote, que logo morreu, e sua dor era tanta que vivia a desenterrar a cria das várias covas feitas para despistá-la. A comparação talvez venha de uma vontade impetuosa de nunca ter nascido naquela casa ou, ainda, de ter nascido e não ter vingado, como o filhote de Córdula. A fertilidade de sua mãe é uma praga: sua casa não deveria gerar outras casas de alcovas distorcidas e abuso de crianças.

Afinal, passa a questionar Matamoros: o que havia nesta casa que tanto remetia a névoa e a doença? Talvez este homem que era três – Meu, Tadeus, homem de Haiága – e nenhum ou a disputa pela carne que ainda não se sabe morta ou viva.

Maria mesma coloca: “o que vem a ser isso de sonho e ver75

gra, um todo emaranhado de corvos dentro do meu sangue, de castigo sim me queriam, de desgraça, desço rastejante, as pedras se enfiando na minha triste carne, o meu homem cantava a canção de Haiága, a velha deve tê-la cantado entre os lençóis” (p. 81) “[...] entro na mata para encontrar o riacho e lavar-me da grossa fumaça de pensamentos tão repugnantes, lavo-me, mas quem deveria lavar-se era o homem e ela, como podia o homem cansar-me horas inteiras ocupando meu espaço, molhando-me encharcada, e depois levantar-se e ocupar potente o buraco de Haiága?

Como se tivesse o corpo de um rio, um patear de águas engolindo a terra, subindo montes e enchendo os buracos com seu corpo borbulhoso de cascata” (p. 82) “[...] hão de tocar-se mas de espanto os dedos encolhidos saberão que tocaram o hórrido vazio, matéria de ninguém, eu noutro espaço, de risos hei de preencher a casa, risos que hão de ouvir tão perto nos caminhos do ouvido e tão longe e nos altos como se viessem de torres, Haiága há de ficar toda

cosida, sem falas, e eu da torre do alto e do fundo do ouvido, encorpada num branco etéreo e gelatinoso me farei sentida, emporcalhando intenções e canduras, ai sim, nunca mais se dirão sons de mel os dois velhacos” (p. 82) “[...] o quarto se transforme em sedento brioso, assim por diante até chegar a paixão que pretendia Haiága, até chegar à ternura de mim, olhando-a como se a visse de fada, até chegar a esta minha hora, hora da morte de Matamoros na beirada da água, ah, então era assim? Pois enganava-se, morte minha esta multipontuada senhora mãe não verá, ficarei viva borbulha na sua incandescente superfície” (p. 83) “Pesados fios penugentos é o que são, caroços espinhudos ponta a ponta, a mãe se vê a si mesma envelhecida quando a filha se vê desabrochada, medem-se as duas como duas lagartas, uma se dizendo de sabedoria, de caldo grosso e aromado, e a outra passarinha exibindo plumas ofuscantes, plumas novinhas e pernas apressadas” (p. 84)

dade?” A sugestão de incesto passa de situação horrenda a uma aceitação aparente do triângulo amoroso inicialmente proposto. Matamoros, embriagada, está imersa em um sonho e, ao escutar o canto afinado de Meu e de Haiága, acaba por aceitar como verdade a Matamoros – Maria filha de Haiága e de Meu.

“Matamoros-criança melada de Meu, saboreando um pai que tirou de sua própria cabeça, construindo uma nova armadura para suportar manhãs madrugadas e noites. Como se entendesse o meu papel e pesquisasse demorado o seu, colocou-me ao colo e demorou-se nuns afagos largos e muito licenciosos, olhava ao redor do quarto, às vezes vigiava a porta como se temesse de Haiága a entrada, a garganta fingia um canto pequenino de ninar entrecortado de palavras baixas, rápidas, pedindo que me abrisse mais, ia me abrindo escorrida de gozo, um riacho nas coxas, devagar ele dizia, quieta, sem gritar dizia, vestidos os dois como se aquele instante fosse roubado ao meio do dia e logo mais tivéssemos que nos apresentar frente à rainha, como pôde saber tão sabiamente o seu papel de rei -pai desejoso da filha, se apenas na minha cabeça é que havia esse muito obsceno colocar? Obsceno, Maria? Os nomes carregados de susto, falei obsceno e obsceno não era, que coisa é que fizeram às palavras, que coisa às gentes, grudaram-se à língua e aos nossos costados letras e culpas, que coisa quer dizer isso de se sentir em desejo e culpada? Se pude inventar essa estória do rei e ter parceria madura para concretizá-la, alguma coisa em mim sabe outra coisa que não sei, talvez porque Matamoros dormindo não sonhasse, e somente no dia a dia daquilo que os homens chamam de realidade, fosse possível transformar em verdade o que seria apropriado à fantasia da noite, Matamoros dos sonhos esquecida, vê-se tomada de sonhos no muito denominado concreto da vida, e o que vem a ser isso de sonho e verdade?” (p. 123)

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axelrod (da proporção) 77

Axelrod, também em crise como os personagens anteriores, faz parte de um cenário urbano e conturbado, assim como Tadeu. A ruptura com o conto anterior, em um primeiro momento, é abrupta, mas em seguida vão sendo remontadas memórias neste mesmo cenário da aldeia, onde Axelrod também passou boa parte da meninice. Sua busca por conforto é menos abstrata que a de Tadeu e se corporifica no elemento mais marcante de sua infância: o trem em movimento que não deixa perder de vista a roda axial da vida.

Temos neste volume que encerra o livro a retomada da epígrafe: Axelrod ainda menino questiona o pai sobre os trens que partem. Primeiramente, a plataforma não é um ponto de partida apenas para os trens, mas para a evolução pessoal e o crescimento psicológico. O trem, como veículo inflexível, não muda a rota, tem sempre um caminho pré-definido, predestinado. Ainda assim, não deixa de ser a ideia da constante evolução, da mudança de vagão para vagão – e risco que se perde no infinito. O pai diz ao menino que os trens podem ir a qualquer lugar, não importa o destino final deles ou se há mesmo um destino. A grande lição se faz no seu interior, no íntimo do trem: quem, em seu vagão, sairá de si mesmo.

O pai parece deixar claro que os homens são estáticos, engessados na própria casca e na própria máscara. Talvez por isso Axelrod Silva escolhe ser professor de História: assim busca outras identidades pelos retratos dos tempos passados na parede. Ele é uma personagem cindida, partida, um alguém que assume diversas faces a fim de não escolher nenhuma. Axel se aproxima de axial, de eixo e Rod, haste – Axelrod é o eixo da geometria, é o guia, o apoio em linha reta. Axelrod é o trilho, o próprio percurso de uma viagem de trem. A mudança ainda o assombra: será possível não sair de mim? O andar altivo

“Pra onde vão os trens meu pai? Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti.”

(Hilda Hilst) 78

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“A ver com os homens? homens num só ritmo, sangue sempre, ambições, as máscaras endurecidas sobre a cara, repetia curioso, curioso meus alunos a verdade é nil novi super terram, nada de novo, nada de novo professor Axelrod Silva? Nada, roda sempre cuspindo a mesma água, axial a história meus queridos, feixes duros partindo de um só eixo, intensíssima ordem, a luz batendo nos feixes e no eixo em diversificadas horas é que vos dá a ideia de que na história nada se repete, oh sim tudo, tudo é um só dente, uma só carne, uma garra grossa, um grossar indecomponível, um isso para sempre.” (p. 131) “pois é sempre o isso meus queridos, cinco ou seis pensamenteando, folhetos folhetins afrescos, sussurro no casebre, na casinhola das ferramentas, no poço seco, e depois uma nítida vivosa sangueira, e em seguida o quê? um vertical de luzes cristalizado por um tempo, um limpar de lixões, alguns anos, e outra vez ideias, bandeirolas, tudo da cor conforme a cor de novos cinco ou seis.

Um isso rígido, cegante, nele e no que o envolvia, cinzeiros, mesa, canetas, compêndios,

espátulas, ombros retos, medula esticada, ordem-matriz dentro de si mesmo, haveria uns moles, alguma coisa fresca que lá por dentro ainda se movia? Alguma convulsão?

Pensou-se Axelrod Silva.” (p.

132) “um aquém de mim mesmo, um, que não sei, move-se se vejo fotografias daqueles escavados, aqueles de Auschwitz Belzek Treblinka Madjanek, se vejo bocas de fome, esquálidas negruras, se vejo, vejamos, se penso no relato de minha aluna” (p. 133) “Tu não te moves de ti, tunãotemovesdeti de ti de ti, o passo do trem, tu e o trem, penso que me movo, Einstein meu bem quem me vê passar diz que o trem se move comigo amém, sentado imóvel, topografia tensa da minha víscera, articulo pausado uns intangíveis, Axelrod vai se dizendo que, até que enfim, então movi-me, sou este corpo do trem, cinza cascoso, há em mim estridências, recuadas, movome imóvel em direção à aldeia onde nasci, o existir de Haiága minha tia, com seus cactus cizais, seu cogito arrumado de duros verdolengos” (p. 133)

como de uma personalidade completa denuncia o que dela realmente se faz: fragmentada, se divide em Axelrod-História, Axelrod-Mosaico, Axelrod-Vítima, Axelrod-Verdugo. Sua identidade em crise se desintegra ao passo que ele olha pela janela do trem e por ela vê passando as imagens do presente.

Elas são a ponte para o passado: vêm-lhe os flashs, as centelhas da memória. Axelrod parece não possuir uma consciência íntegra e completamente formada, isto é, ao integrar o pensamento e as sensações ele se perde em um looping de pensamentos lógicos e não se encontra mais no presente ou no passado – trava como uma engrenagem sem eixo.

A janela do trem, assim como as vidraças de Rute, protegem Axelrod das mudanças externas. Mas, por vezes, o vidro é translúcido e o transporta para a Casa de Mortos da tia Haiága. Em contato com as verdes folhagens que a tia cultivava, o menino parece despertar curiosidades sexuais – os seios da tia são belos, mas logo é reprimido pelo olhar severo do pai: “tu não te moves de ti”. De imediato o toque molhado das mãos de Haiága e das verduras frescas se transforma num aveludado de tarântulas: é o pai trazendo a vida como metáfora. A vida para o pai sempre parece uma coisa pesada, nebulosa, combina com animais peçonhentos, adagas, feras selvagens e tudo aquilo que envolve caçar, ferir ou sangrar.

Ao buscar incessantemente a proporção, Axelrod tenta equilibrar os estímulos que recebe do exterior e suas memórias, mas não consegue. Por conta da grande opressão sofrida quando criança, ele é forçado, inconscientemente, a associar sua morada ao casebre, a casinhola de ferramentas, ao poço seco, ao cinzeiro, a mesa que o deixa rígido e ereto, espátulas.

Cada um destes elementos, presentes no manual de como ser um macho, associado ao sobrenome Silva resultam no enges80

samento ideal de homem perfeito. A verdade é que Axelrod tem sempre uma convulsão interna quando ligado a estes elementos, sente-se travado tal quais as alegorias descritas pelo pai. Axelrod transparece sua agressividade interior ao tratar mulheres, por exemplo. A única figura feminina que de fato existe como algo positivo para ele é a História. Ela o engole, fagocita seus sentidos mais íntimos e o excita. Quanto as mulheres reais, Axelrod sempre as espanta pelo jeito indiferente ou nada delicado de tratá-las na cama. A mulher perfeita para Axelrod é a única que possuiu um eixo sequencial: a História.

O espaço de Axelrod é sufocante, sem ar, vedado, como o de Rute. Talvez ele não quisesse voltar no tempo como ela não queria avançar no tempo, mas isso o sufoca, o engasga, o enjoa. A casa real e expressiva desta personagem é sua viagem de trem: movido pela inércia física do veículo ele sente suas vísceras sendo parte da paisagem, da topografia; o cinza de sua alma mistura-se ao chumbo da máquina e, mais uma vez, retorna ao passado.

Durante esta viagem, o protagonista vai algumas vezes ao banheiro ou, apenas uma, mas se demora tanto que esta imagem se alonga na narrativa. O toalete do trem parece ser o espaço mais íntimo para Axelrod: ali, desabotoa-se com graça, admira-se no espelho, pensa suas fantasias, olhando o buraco do vaso e se toca (se masturba). Sua estadia ali se alonga, é um local de memória e sofrimento. Existir, para ele, é memória e sofrimento, agonia.

Na busca pelo consolo, ressuscita sempre a figura do pai, não como que de maneira espontânea e alegre, ela vem mais como um mecanismo, como algo poluído que não desagrega. Axelrod tem vontade de tornar a ser menino, leitoso, quer experimentar do colo da tia, ouvi-la falar das amoreiras e figueiras, 81

“Como é a outra alma do pai?

Quem é que sabe, alma de leopardo, onceira, esses bichos grandes, raros. Raro é ouro, o pai é raro? Ah isso ele é, meu menino, isso sim ele é. Raro cada um de nós, raro cada movimento aparentemente habitual, sento-me ao lado da janela, os cílios se tocaram num segundo e um segundo antes vi o ser do cachorro olhando o trem, o corpo torto, ele inteiro exsudando angústia, lá na escuridão das vísceras movime inteiro vendo o cachorro exsudar angústia, e aqui neste clarão, sentado neste corrido de trem, o moço me olhando à minha frente, o moço não viu que me movi por inteiro, que no ser do cachorro olhando o trem também eu Axelrod-cachorro, a cada dia, na minha anterioridade, no meu Antes, também eu-tu-moço um dia olhando alguém que se soube num segundo tomado de sua alma primitiva, e no clarão, sentado, composto, acendendo o cigarro me distancio de tudo o que sei há tempos que eu não andava de trem. E você?” (p. 138) “Vejo o avesso das casas, os quintais, gaiolas, varais, vejo o fundo das fachadas, uma me-

ninazinha defecando junto à cerca de tábuas, mais lento o corpo cascoso do trem se movendo, mangueiras e alguém num sonho me dizendo que À escura senhora muito lhe apetece esse gosto amarelo e esse cheiro molento das mangueiras. A escura senhora. A morte. Alguém me dissera em sonhos que a morte gosta de mangas? Por quê?” (p. 139) “o que é tarântula hen? Dizem, filho, que quando ela pica, a gente canta e dança, licosa tarântula adentrando o mundo, os homens, o coração do homem é uma tarântula, filho, por isso corta a ponta das adagas, de muitas, e pontilha o teu coração, uma arma de carne pontilhada de pontas e então esmaga. Adaga? Fere como a ponta da faca, esmaga as tarântulas.” (p. 140) “juntos num mictório de trem, soluçando, tu não te moves de ti, movo-me um pouco sim, meu pai, movo-me da mesma forma que te movias na casinhola de ferramentas, rouco, movo-me como aqueles cinco ou seis que pensamentearam no casebre, sussurros, cicios, folhetos, folhetins, afrescos, movo-me cobrindo de palavras

quer o quintal da aldeia, as montanhas. Mas não sem lembrar as lições de “cutelada” do pai, daquilo que fere, rasga, dilacera.

O narrador sempre recorre à janela como elemento de passagem, como portal entre mundos. A janela do trem, para Axelrod, equivale à porta do quarto de Tadeu e ao portão de sonhos de Matamoros. Ele próprio se chama, em certo ponto, de Axelrod-mosaico: podemos entender que esta personagem está somente partida ou que além de dividida, lhe faltam pedaços. Como a imagem do trem permeia cada memória e visão de Axelrod, é interessante colocar cada fragmento deste narrador em um vagão, assim quando emendamos cada trecho de Axelrod em seu eixo linear vemos que, mesmo com tantas peças ainda falta a peça fundamental: uma alma, uma atmosfera que enevoe esta vida de maneira mais humana.

Talvez o último vagão que ele adentrou tenha sido o de Axelrod-Cachorro, onde ele (eu-tu-moço) retoma a alma primitiva daquela criança que admira o cão de olhar vago ao trem que se demora. Ao voltar a esse momento, Axelrod ainda não tinha tomado o trem: era plataforma. Alguém predisposto a mudanças, mas que de mudanças ainda não se perseguia, somente de memória, do olhar piedoso do cão.

Axelrod é o fim da crise de todos, não por resolvê-la, mas por extingui-la ao jogar-se no abismo. Ele não mais se move dele, não tem escolha, não consegue fugir, tentou proporção e falhou, enlouqueceu com tantos vagões para ministrar ao mesmo tempo. Paradoxalmente, ao ordenar seus egos de maneira lógica, outros surgem e o desestabilizam. Seus vários fragmentos estão se degladiando. Axelrod como vítima e verdugo descobre-se, não se encerra em seus limites e, como forças opostas, infernizam seu subconsciente nas palavras do pai, na 82

maldição jogada pelo pai: “Tu não te moves de ti”.

Em um ato mais do que desesperado, Axelrod salta do trem, salta de si, tenta fugir de si mesmo. E em seu último momento de reflexão sente o toque de uma mão pesada, curta, úmida. A voz que lhe chama pronuncia apenas Axel, como o eixo axial. Nesta cena, está presente a figura religiosa. Não se sabe se Axelrod quer, agora, ser um sacerdote ou se a mão que o socorre pertence a um sacerdote. Talvez esta figura seja a mesma que assombrou Matamoros. Ele mesmo poderia ser a figura religiosa, ou ela nada mais é do que a morte que se aproxima e o empurra no abismo.

“tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro, teu sangue, tua cabeça, amoitado, às apalpadelas, meio cego cedendo, cedendo sempre, ah Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado, de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando, vítima verde amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado, de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca de miséria, me exteriorizo grudado à minha História, ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras [...] me dá tua mão Axel A mão do moço, pesada, curta, seca, não está em emoção, a palma toca a minha, molhada, a voz num tom de sacristia, baixa respeitosa, me dá tua mão, Axel, (comeu-me o sufixo, não importa) talvez me veja um pouco abade, abacial, tenho ares de, apesar da magreza, abade Axelrod, ali vai Axel o abade, amanhã ventrudo, tropeçou, vê só, me dá a tua mão, Axel, que tons, como se os turíbulos tivessem passado há um segundo, como se eu lhe tivesse dado escapulários, obrigado abade Axel, posso lhe beijar a mão? vou me levantando inteiro abade, curvado vou me fazendo, tento chamar a velhice, fazer ares de, quero ser velhíssimo neste instante, e agachado correndo, num urro senil estaco. E numa cambalhota despenco aqui de cima, nos ares, morrendo, deste lado do abismo.” (p. 154)

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o meu muro, ainda não sei se é possível juntar palavras possuídas da mesma precisão da cutelada, frases de vivida unidade, frases como um triângulo, triângulo sempre antes de mim de ti [...]” (p. 145) “um Axelrod primeiro, leitoso pequenino, ou um de pedra, ou apenas uma larva, ou um verdoso mínimo [...] não me lembro, olhar sonâmbulo no trem a paisagem de fora e ver só o visível, a precisão da cutelada, túrgido de medo só sentir sentimentos-perigo, pensar a morte sim, mas só porque podia te perder” (p. 146) “ou vem Axelrod-mosaico, viajo para te ver melhor, inteiro, distanciado reconhecer o momento, o lugar onde te fizeste opressor.” (p. 147)

últimas considerações.

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Novamente, retomamos Tadeu, aquele que pode ser ao mesmo tempo o sonho da Matamoros e a hiperlucidez que busca Axelrod. Tadeu é a personagem que primeiro captou centelhas e, não tendo a possibilidade de viver pluralmente, talvez tenha tentado, de maneira desesperada, compor algo mais que um flash de vida. Já Matamoros é a própria centelha: lhe falta a lucidez e a dimensão do que é real, tudo em sua existência é confuso e questionável dentro da realidade. E Axelrod será sempre bipartido: a lucidez que busca versus a fantasia que o atormenta. Sua consciência é confusa como a dos outros, mas ele não aceita o ilógico, o real deve ser um alívio.

O espaço, nesta obra, tem aspectos muito peculiares: ele não somente reflete as sensações das personagens, ele é a própria sensação. A casa, aqui, representa não somente o (in)consciente humano, como coloca Bachelard, mas é a exteriorização deste homem, a corporificação de seus anseios, de seu ego, é seu próprio corpo, sua carne.

A carne, desta forma, se coloca como imagem fundamental ao longo de toda a obra: o corpo é a maior morada, a maior e mais complexa das casas: “tu não te moves de ti”. A carne que é finita, que se desfaz, se aproxima cada vez mais do fim.

Está em contraposição com o espírito, pois em sua fragilidade, representa um caráter transitório. Por mais que estas criaturas busquem incansavelmente aquilo que transcende, que as faz levitar, a carne as arrasta para baixo. O corpo é terreno, faz parte do chão e de tudo que ele contém. As personagens buscam, a cada cena um passo mais ao alto, uma (c)asa, mas acabam por se deparar com o abismo, com o ponto mais alto que a terra lhes oferece e depois caem, despencam de volta ao centro da terra.

Ao passo que o espaço vai ficando mais aéreo e mais abstrato,

“À escura senhora muito lhe apetece esse gosto amarelo e esse cheiro molento das mangueiras. A escura senhora. A morte.

Alguém me dissera em sonhos que a morte gosta de mangas...”

(Hilda Hilst) 86

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ao longo da narrativa, temos uma aproximação maior com o abismo que a desfecha. As próprias personagens vão se perdendo, se desfazendo ao longo dos contos até que não sobra nada além do abismo que está à frente de Axelrod, a frente de todos eles. O corpo se fragmenta, a carne se desfaz logo a morada se desfaz também. Ela já era rarefeita e sinônimo de cacos desde o início, mas a partir do momento que as personagens passam a buscar ascensão, esta casa terrena se transforma cada vez mais em um habitar aéreo, mais próximo do transcendental, mais próximo da Casa de Mortos.

A figura da morte permeia os três contos e nenhum personagem se salva. Aliás, quando um não se salva, nenhum deles mais consegue: são as três possibilidades de uma só pessoa nos três textos. A morte não é presente somente de maneira literal, está dissolvida pela presença da cor amarela, que já aparece no fim do primeiro conto com a imagem da manga e dos cravos na Casa dos Velhos e passa a ser recorrente em Matamoros para falar da mãe, que aparece como um ponto amarelo, ou das flores que decoram os pratos no jantar. E, em Axelrod, o amarelo volta para a imagem da manga. O amarelo, intenso, violento, agudo até a estridência, ou amplo e cegante é a mais quente das cores. Mas é também a pele da terra, nossa pele, que fica amarela com a aproximação da morte.

Todos estão rodeados pela atmosfera da morte, pela Casa dos Velhos, pela terra da sepultura. E mesmo que este amarelo, a priori, não esteja na derme, está difundido nas refeições, na luz externa do sol, nas bandeiras históricas, nas flores das árvores.

Uma morada limitada a paredes vai dando lugar a um espaço cada vez menos palpável. Primeiramente temos a casa de Rute e de Tadeu: hermética. Rute mantém as janelas vedadas 88

e os lençóis impecavelmente lisos e dobrados. E, Tadeu, por mais que busque o céu, a árvore, a ascensão, está preso em um universo limitado na subida: sobe as escadas – que acabam no quarto, experimenta o balanço – que toca sempre o chão na volta, alcança os livros na prateleira – que finda no teto, chega ao terraço – mas deixa os pés descalços para sentir o chão. Quando ele se afasta da casa que tinha com Rute e chega a Casa dos Velhos, passa a ter contato com a terra, com as frutas, com os cheiros da natureza. O seu espaço passa a ser mais aberto: se estende agora aos jardins de cravo de Exumado, às mangueiras do quintal e as estórias de Extenso e Convicta. Talvez a proximidade com a morte tenha feito a casa de Tadeu se abrir.

E a casa continua a se expandir: Maria Matamoros, que era entregue à terra e à água, tem por limite o espaço compreendido entre o céu e as montanhas que rodeiam sua aldeia. O quintal da casa não se limita ao alpendre, dele fazem parte os riachos, as montanhas, as árvores extensas e os caminhos entre as pedras. E o quer era demasiado artificial ou apenas imaginado por Tadeu, passa a ser cotidiano na história de Matamoros. O artificial vai dando lugar ao natural. Os aromas verdes e de flores ou frutas que aparecem na casa de Tadeu são sempre resultado de aromatizadores industrializados de Rute. Já em Matamoros também há a presença constante do aroma da terra, das flores, das frutas, mas todos eles vêm mesmo da terra, da natureza que cerca a vivência da aldeia.

Em Axelrod, os aromas se perdem novamente e não aparecem como pano de fundo marcante, apenas como marca da memória passada, de quando o garoto vivia na mesma aldeia que Matamoros, eram primos. O choque do espaço novamente é grande, a busca de uma hiperlucidez lógica pelo professor, o 89

leva ao hermético de novo, ele tem medo das sensações, dos sentimentos – fica trancado por detrás das vidraças do trem.

Podemos notar que a busca pela transcendência é constante e, talvez justamente por isso temos um espaço que passa da condição de fragmentado a rarefeito: no último conto não temos mais a presença de aromas que caracterizem o ambiente, os elementos passam a ser mais genéricos na paisagem e as imagens comuns como a janela e a cor amarela passam a ser mais esparsas e menos evidentes.

Entre Tadeu e Matamoros há, ainda, uma inversão entre o real e o onírico, entre aquilo que reprime e o que liberta. Assim também vemos uma inversão no jogo da temporalidade entre Matamoros e Axelrod: o que era claro passa a ser resultado de simulacros, o tempo passa por atemporal até beirar a ruína no último conto. O jogo de criação e recriação do tempo, do espaço, das personagens não cessa, engrena na roda axial de Axelrod e retorna ao hábitos de Tadeu, que se perde no tempo de Matamoros...

Tudo também podem ser estórias, causos da Casa dos Velhos: espaço de extrema riqueza para a compreensão de Tu não te moves de ti. Início e fim se misturam no estranho território da Casa dos Velhos que, como núcleo proliferador de histórias e heranças de sonhos (como diria Heredera) exibe as memórias de sangue de Matamoros e é palco para a descoberta da tranquilidade por Tadeu. De maneira direta ou indireta cruzamse, portanto, no terreno do incontável: Tadeu, Matamorros e Axerold, criaturas constituídas da carne e escravas dela.

Outro elemento que é parte integrante da casa, talvez em seu aspecto mais vivo e fiel, é o cão. Todos os contos desta obra têm, ao menos, um cachorro para traduzir mensagens fundamentais: o cão que se apieda da condição humana na Casa 90

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dos Velhos, a cadela de Haiága que sofre com a perda da cria, o filhote da estação que tem olhos perdidos no horizonte e a inocência de criança. Este animal é quase um mensageiro divino para aliviar a dor terrena dos homens, a sabedoria onisciente que reconhece, antes dos próprios homens, o sofrimento e o pesar que irão sentir.

O cão tem uma forte simbologia presente desde as culturas antigas do mundo: muitas vezes era o representante ou acompanhante das divindades. Não somente associado à passagem entre a vida e a morte, o cão também guia as almas dos homens até o paraíso ou até as portas do inferno: é símbolo do oculto.

Através deste olhar de cão, podemos nos transferir novamente ao espaço real da casa, aquela que me inspirou a buscar a essência mais profunda do morar: A Casa do Sol. Mergulhar neste universo, primeiramente, dependeu da aprovação de cada um dos cães que ainda habita a casa construída por Hilda e, devo dizer que um dos espaços mais belos e reflexivos da casa é, justamente, o corredor que leva aos canis, hoje tomado por trepadeiras e folhagens, como imagino que seja o alpendre da casa de Matamoros, talvez desabitada, inexistente. A figura onisciente do cão nos espaços da casa e ao longo da narrativa traz, novamente, uma imagem orgânica e viva da casa: espaços que sentem, buscam e crescem.

A Casa do Sol, como as personagens de Tu não te moves de ti, também ascende: com o pé direito alto, janelas tão amplas e um jardim que se perde de vista. Tendo enquanto varanda a própria sombra da Figueira, esta árvore é um elemento vivo da moradia: respira assim como cada um dos altares na sala de estar. Não são altares religiosos ou para entidades, são locais de exaltação das inspirações da escritora: grandes amigos, 92

outros escritores e poetas. A vida está em todos os lugares: rodeada de memórias, inspirações e anseios, a casa possui vários amuletos, lembranças de viagens, presentes de amigos, recortes emoldurados de jornais. Assim como suas personagens, Hilda nutre um grande carinho pelo canto. Os encontros de parede na casa sempre são ornamentados de memórias, retratos e belas obras de arte. Na sala tem até o Canto dos Amigos – batizado assim por conter fotografias de todos que a visitavam.

O perder-se pelas imagens poéticas (ou não) é quase simultâneo ao adentrarmos o mundo real, tão onírico, da Casa do Sol. Este universo encerrado pelos arcos do pátio e pelas grandes janelas nos permite perder de nós aquilo que nos é mais precioso: nós. O mantra: “tu não te moves de ti” é também espectro da casa, como a casa é espectro do mantra. Talvez esta seja a imagem poética mais forte e indissociável de todo o espaço contido e continente da obra, da Casa do Sol... Bachelard, ao colocar a poesia como “fenomenologia da alma”, dá espaço para irmos além da imagem poética, além da própria casa, da própria alma.

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Bibliografia: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BARBIERI, Cláudia. Arquitetura literária: sobre a composição do espaço narrativo. In:______ FILHO, O. Borges e BARBOSA, S. (organizadoras). Poéticas do espaço literário. São Carlos, São Paulo: Claraluz, 2009, p. 105 – 126.

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