Chupa Manga Zine nº 2

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chupa manga zine

número 2 ● abril 2016

CHAPA MAMBA

ORNITORRINCOS

A GUERRA DO VINIL PLUNDERFONIA BEETHOVEN

BENITO DI PAULA QUADRINHOS

capa1


chupa manga zine

número 2 / abril 2016

EXPEDIENTE

cbna

editor-chefe Stêvz

agradecimentos Daniel Villaverde

colaboram nesta edição Biu Ramos Diego Gerlach Guilherme Guedes Gabriel Góes

fale conosco chupamangarecords@gmail.com chupamanga.tumblr.com

Impresso na Ideograf (RS), no suave outono de 2016

Chupa Manga Records capa2

Porto Alegre • Brasil

na capa: Chapa Mamba em ação, foto de Joelma Antunes


editorial

Not dead yet! Por incrível que pareça, não sucumbimos diante da ansiedade criativa e das pressões de patrocinadores que geralmente permeiam a sequência de uma edição de estréia gloriosa e aclamada como a nossa. Estamos de volta, com o mesmo número de páginas e um material de primeira (apesar de segundo número), trazendo: um mini-diário-de-bordo da mini-tour que o chapa mamba enfrentou no fim de 2015; uma entrevista descontraída com o vereador do underground gaúcho Daniel Villaverde; dicas de páginas interessantíssimas e redutoras de produtividade; uma resenha aleatória relaxante assinada pelo jornalista e apresentador de tevê Guilherme Guedes; uma longa e polêmica confissão de Biu sobre os bastidores do nascimento da lombra records, a mais nova produtora de vinil por demanda dessas bandas; os quadrinhos obsessivos de Diego Gerlach com a continuação da saga dos lendários Guitarróide e os Parafílicos, e um poster headbanger do monstrinho Gabriel Góes, além de mais um ensaio extenso e pretensioso sobre os rumos da música e seus suportes no vaivem da pós-modernidade tecnológica pautada em marketing nostálgico. Enfim, não faltou assunto, como poderia se esperar de uma empreitada tão anacrônica e desnecessária como este "zine", à essa altura dos acontecimentos. A chupa manga records persiste, apesar dos algoritmos em voga.

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SESSÃO MARMELADA

exclusivo: chapa mamba cai na estrada

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Mesmo após um período de pouquíssima atividade, em parte devido à alta do dólar (o combustível aumentou), noutra por conta da distância geográfica entre seus membros (mais de mil quilômetros, segundo o Google, fora os três lances de escada), o Chapa Mamba ainda arrumou tempo no fim do ano para lançar seu último disco, O Campo Sutil, em uma mini turnê de ônibus por três estados, e gravar um novo compacto. Com uma breve parada no Bar do Amâncio, na Estrada da Canoa, para molhar a garganta, o trio seguiu para o Tradicional Baile dos Independentes no off-fiq em Belo Horizonte, daí para o Goiânia Noise, e daí para três apresentações em Brasília, sendo a última delas completamente surpresa e improvisada debaixo de uma árvore no centro acadêmico de engenharia florestal, na UnB. Foi mais ou menos assim:

sábado, 7 de novembro

Recebido por uma súbita tempestade tropical, Stvz chega ao Rio, vendo-se ilhado, tão logo põe os pés em São Conrado, debaixo do ponto de ônibus, com mais bagagem do que consegue carregar. domingo, 8 de novembro

Começando o dia cedo e devidamente debilitados, iniciamos a rigorosa rotina de 20 horas ininterruptas de ensaios por dia a que nos submeteremos pelos próximos três dias, em uma tentativa de recuperar o tempo perdido. Milagrosamente, o equipamento não falha nem uma vez. segunda, 9 de novembro

Mais ensaios. Enquanto tenta manter o ritmo, Bruninho coordena o abastecimento de bebidas do bar pelo telefone. Mesmo em dupla jornada, trata-se de um verdadeiro business man em pleno controle das negociações. Duas músicas novas começam a tomar forma. Os cães da vizinhança aprovam, em coro.


ch u p a m a n g a + l o m b r a r e c o r d s ap r e se n t a m

2 0 1

5

11 / belo horiz ont e 13 / goiânia 14 / 15 / brasíl i a

desenhos larice barbosa

* nov embro

pĂ´ster da turnĂŞ, com desenhos de 3 Larice Barbosa


terça, 10 de novembro

sábado, 14 de novembro

de devolver os equipamentos em Jacarepaguá e

de Biu, nosso manager honorário. Na hora do rush,

começar a turnê, que afinal já está com 12 confir-

partimos para o Fim da Linha enquanto nuvens

mados no evento do facebook. Binho compra cor-

negras se formam no horizonte. Tocamos depois

das novas e uma palheta, pra garantir. Os pedais

do Worsa e assistimos a Zefirina Bomba, com Die-

começam a pifar.

go do Valdez no baixo, fechando a noite.

quarta, 11 de novembro

domingo, 15 de novembro

e greve de táxis, chegamos na rodoviária a tem-

Ursa. Chove, mas temos um toldo digno do Rock

po de respirar aliviados, mas não muito fundo, já

in Rio, onde montamos tudo. O batera do Worsa,

que os assentos são perto do banheiro. Repassa-

que iria abrir, não poderá aparecer. Tocamos levan-

mos mentalmente o roteiro da turnê durante as 7

do choques do microfone, mas o público deduz

horas de viagem até Belo Horizonte, onde vamos

tratar-se de alguma nova coreografia.

A banda demonstra sinais de exaustão, mas é hora

Após um momento de pânico, engarrafamento

Pegamos carona até Brasília, onde ficamos na casa

Após a correria logística de praxe, vamos para o La

direto passar o som. Tocamos depois dos Fodastic Brenfers, cujo célebre Batista nos hospeda em sua mansão. Ganhamos uma meia garrafa de Pratia-

segunda, 16 de novembro

Decidimos tocar de última hora na universidade, a

na™ do chapa João Perdigão, e terminamos a noite

convite de alguns estudantes que estavam no dia

enxotados de um bar de espetinhos na Savassi.

anterior. Tudo tão secreto que nem sai na primeira página do jornal. Muitas ligações para montar uma

quinta, 12 de novembro

bateria com peças avulsas. Tarde da noite, fazemos

Passamos no FIQ na esperança de distribuir au-

um som e depois assistimos a Zefirina – que foi di-

tógrafos ou vender alguma camiseta, e gastamos

reto do estúdio –, felizes da vida. Stvz toca a última

tudo em três chopes ali mesmo. Marcamos um

música com eles. Biu chora de alegria.

ensaio antes de ir embora, para acertar detalhes pirotécnicos e questões do figurino subaquático. De lá, partimos direto para a rodoviária.

terça, 17 de novembro

Partimos para o estúdio, terminando uma das letras no caminho. Gravamos cinco músicas – duas

sexta, 13 de novembro

novas e duas da época do Jerônimo, mais um

A única parada das 13 horas de viagem dura 5 mi-

improviso em zó maior – para o compacto[1]. Se

nutos e mal dá tempo para engolir um sanduíche

você se esforçar dá pra ouvir o show do Pearl Jam

suspeito do posto mais ainda em que o motorista

no Mané Garrincha ao fundo.

pendura a conta. Corremos atrás do ônibus sem mastigar. No Martim Cererê, em Goiânia, conhecemos os caras do Worsa. O dia não está dos mais 4

cheios, mas fazemos um bom show (achamos).

[1] Lombra Society Vol.2, em vinil. Previsto para o segundo semestre de 2016, aguarde e confie.


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na página anterior: Chapa Mamba no estúdio e ao vivo, fotos de Anderson Paracelso e Joelma Antunes acima, flyers de shows

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na próxima página, da esquerda, em sentido horário: um setlist da tour, despachando a bagagem, Biu e Binho arriando a lombra


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ENTREVISTA

foto: Leonardo Hladczuk

underground way of life

Agitador cultural, produtor de shows, entusiasta do underground e um dos caras mais gente boa que você poderia conhecer, Daniel Villaverde está na ativa na cena alternativa gaúcha desde os anos 1990. Vocalista da banda Ornitorrincos e dono do selo Punch Drunk Discos, Villa é figura carimbada do rock Porto Alegrense e mantém viva a empolgação de sempre com novas bandas, parcerias e lançamentos em diversos formatos. Conversamos com ele para descobrir o que anda rolando por aí.

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Como e quando começou a Punch Drunk? É basicamente um selode-um-homem-só? A Punch Drunk começou em 2003, de uma vontade antiga que eu tinha de ter um selo. Desde 97 eu tinha uma distro de fitas demo e CDs independentes que montava nas barraquinhas de show e deixava em algumas lojas, então fazer um selo foi natural, seria só uma questão de tempo. O primeiro lançamento foi um CD-R split da Facão 3 Listras (banda que eu tinha nessa época – era grindcore com gaita ponto, eu tocava bateria) e da Garrancho em Lápide. O nome do selo veio de uma música do Hüsker Dü, lembro que eu peguei uns 10 nomes de músicas que eu gostava e acabei escolhendo esse. Eu acabo tocando o selo sozinho, mas sempre conto com alguns amigos, principalmente o Guilherme Gonçalves, que me ajuda com a página de Bandcamp e outras coisas. O que é preciso para se montar um selo independente? Tem que ter paciência, é meio trabalho de formiguinha... às vezes tu quer lançar as bandas que tu gosta, mas não dá para lançar tudo. Meio que um lançamento paga o outro, então tem que ir

devagar, para não falir financeiramente. Outra coisa que acaba acontecendo é que tu sempre acaba tirando uma grana do bolso, então é bom sempre guardar uma graninha para isso. Quais foram seus lançamentos preferidos até agora? E quanto aos formatos? Acho que um dos discos que mais gostei de lançar foi o CD do Velho de Câncer, uma banda daqui de POA que infelizmente acabou. Se vocês nunca ouviram, recomendo! Posso citar também o split LP Pluto/Ornitorrincos, que foi a realização de um antigo sonho de lançar algo em vinil. Hoje o CD praticamente não vende mais, tenho muitos encalhados aqui, que acabo dando de brinde para as pessoas que compram vinis e outras coisas. O vinil acaba vendendo bem, aliás sempre foi o item que vendeu melhor, mas isso não se deve pela "volta" ou "moda" do vinil, e sim porque o público do underground sempre teve preferência pelo formato. Em uma matéria recente de jornal você falou sobre os lançamentos em K7, que são prensados na Argentina. Você tem algum contato com a cena de lá, ou de outros países da América Latina?

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Sim, tenho muitos amigos e contatos em países como Uruguai, Chile, Argentina, Peru, etc. Sou grande fã de bandas desses países, tanto antigas como novas. O Brasil é um país que desconhece muito a cultura dos países vizinhos. Notei que, por exemplo, um uruguaio ou chileno conhecem muito mais da nossa música ou cinema do que a gente dos deles. Não sei se tal barreira existe por causa da língua ou não, mas é um pouco triste constatar que conhecemos, muitas vezes, mais bandas americanas ou europeias do que bandas daqui do nosso lado. Tem uma cena musical incrível nesses países que precisa ser conhecida. Eu tô praticamente viciado em bandas argentinas e uruguaias dos anos 60/70. Como lá a ditadura militar começou nos meados dos anos 70, a juventude era mais livre, as bandas mais pesadas, com temas e críticas sociais muito fortes. Posso citar Psiclo, Toten, El Kinto, Dias de Blues, Eduardo Mateo, Almendra, Manal, Vox Dei, Billy Bond y La Pesada Del Rock, Pappo Blues, Pescado Rabioso... muita coisa! Você tem um gosto eclético, o que mais tem ouvido ultimamente?

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Tenho escutado muito um cantor folk argentino dos anos 70 chamado Moris.

Também estão na minha lista dessa semana um LP de demos do Void, Pink Flag do Wire, Hate Your Friends do Lemonheads, Paêbirú de Lula Côrtes e Zé Ramalho, a discografia anos 70 do Marcos Valle e uma caixa com todas as músicas do Noel Rosa. De bandas novas escuto coisas do selo Deranged Records, como Arctic Flowers e Neon Piss. Outros selos que tento acompanhar são o Sacred Bones e o Mexican Summer. O Macedusss[1] contou que quando te conheceu você só escutava demos obscuras em K7, nada que tivesse sido lançado oficialmente ou que pudesse ser considerado mainstream. Como foi isso? Sim, na minha época de adolescente-jovem-fanzineiro meio que escutava, na maioria das vezes, somente fitas demos. Eu era bem radical, queria apoiar somente bandas independentes. Entrei de cabeça nesse universo de hardcore, grind, noise, crust, mas também escutava guitar bands (como se chamavam as bandas indie naquela época, hehehe) e bandas de garagem de um modo geral, se fossem independentes. Hoje escuto coisas que torceria o nariz naquela época. Nunca me imaginaria ouvindo jazz ou música


brasileira, por exemplo. O tempo faz bem aos seus ouvidos. [risos] Já viu o livro Quem Come Centopéias Gigantes, que saiu ano passado? [2] Tem uma entrevista foda com os Cramps, falando sobre a coleção de discos deles. Sim! Esse livro é demais, e essa parte com os Cramps é uma pérola. Andei buscando umas coisas que eles citam na entrevista, umas músicas muito doidas. Você está na ativa desde os anos 90. O que acha que mudou na cena gaúcha desde então, e como a vê hoje? Tem muita banda legal? Às vezes encontro um ou outro amigo da cena dessa época, que parou com banda, parou de ir em show... e o cara entra numas de saudosismo e só fica reclamando. "Naquela época era melhor, só tem banda ruim hoje." Isso é assinar o atestado de velhice e comodidade, que você ia tanto contra quando era mais jovem! Eu achava muito legais as coisas naquela época, também tenho saudades, mas viver de passado é para quem não tem futuro. Te digo: as coisas hoje são MUITO melhores. Nunca foi tão fácil gravar,

lançar, distribuir, viajar, organizar show. E bandas boas SEMPRE vão existir. Ficar escutando as mesmas coisas é muito fácil, é só ir procurar o novo que tu vai encontrar. Olhando para a cena gaúcha, uma coisa que mudou é o numero de bandas. Antes, tu pensava em organizar um show, em escolher as bandas para convidar, vinham várias na cabeça. Eu chutava uma árvore e caíam bandas como frutas maduras. Vejo que a molecada não monta mais banda como antes. Existe bandas novas, claro, mas em um número reduzido. Tem uma cena muito legal hoje em dia. Tem, por exemplo, a galera da música experimental, que tá bem forte e gira em torno da turma da Mansarda Records, com muitos shows e projetos. O Kowa Koala é um moleque que surgiu e tá agitando bastante shows e bandas com o seu selo Kowa Records, também tem o pessoal da Lezma que tão sempre organizando festas e shows, e lançam bandas como Siléste, EX, Supervão. No hardcore/ punk tem a Minor House sempre organizando show e eventos. O pessoal da Virus Korrosivus também apareceu e deu um gás nessa cena, lançando discos e organizando shows de bandas de fora. Mas o que acho mais legal aqui de POA é que essas cenas interagem entre si, diferente de cenas de cidades

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maiores, como São Paulo, que ficam em nichos e não se misturam. Você é de Santo Antônio da Patrulha, e começou organizando eventos por lá. Acha que existe alguma diferença no surgimento de cenas em cidades menores, do interior, e na capital? Me parece que às vezes, quando há menos opções culturais em uma cidade as pessoas precisam se movimentar mais para se divertir, inventar alguma coisa.

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Exato. Talvez, se eu nascesse numa cidade grande, eu somente iria nos shows e me conformaria com isso, já que as coisas já estariam acontecendo e eu poderia somente frequentar e nada mais do que isso. O tédio gigante que sentíamos lá nos levou a montar bandas, fazer zines, organizar shows. Eu e o Insekto, meu amigo de infância e grande parceiro de zine e bandas até hoje, tentávamos movimentar a cidade. De 95 a 2008 a gente fez muita coisa lá. Shows quase mensais, com bandas de muitos lugares, mostras de filmes trash, eventos de quadrinhos e zines... o triste é que quando paramos de organizar, não ficou ninguém para continuar. Eu acabei indo morar em Porto Alegre, por questão de falta de emprego e melhores oportunidades.

Sinto falta dos shows que fazíamos lá e dessa época, mas não voltaria a organizar nada lá novamente, foi o fim de um ciclo e é melhor ficar na lembrança. Há pouco tempo você ajudou a reativar a banda 3D, uma das primeiras (se não a primeira) bandas punk femininas de Porto Alegre, dos anos 1980. Como foi isso? Vai mesmo sair um disco com gravações da época pelo selo? Eu tinha conhecimento de que nos anos 80 existia aqui a Vortex, um misto de bar, estúdio, local de show, que era do pessoal do Replicantes. Ele tinham também um selo que lançava fitas de bandas como Cascavelettes, Graforréia Xilarmônica, e bandas mais obscuras como Kadaffi, Atraque, A Vingança de Montezuma, Obsoletos, ORTN, Cobaias, 3 Almas Penadas, etc. Eu praticamente só ouvia falar, e ficava muito curioso em escutar essas bandas. Logo alguém digitalizou essas fitas e postou em algumas comunidades do Orkut.[3] Dentre essas fitas da Vortex estava a da 3D, que depois, perguntando para amigos mais velhos, descobri que era uma banda formada só por mulheres. Eu gostei muito do som cru e urgente que elas faziam, e fiquei fascinado pela banda. Nisso o Mateus Mondini,


do selo paulista Nada Nada, tava com a ideia de lançar uma gravação delas dessa época em um EP 7" e me convidou para dividir o lançamento. Encontrei a Polaca (vocalista da formação original) por acaso em uma abertura de exposição e troquei uma ideia com ela sobre isso. Ela ficou muito empolgada, nos mandou fotos e as gravações da época. Uns meses depois a banda voltou, somente com ela da formação original, e com meninas da atual cena. Vi o primeiro show e fiquei muito emocionado de a banda voltar depois de quase 30 anos! Acho que no segundo semestre de 2016 o disco ta na mão.

americanos e europeus. Então primeiramente eu ajudei a lançar, pela Punch Drunk, duas bandas argentinas, Los Caídos e Valientes, que inclusive tocaram em uns shows aqui em Porto Alegre em 2011. O vocalista dos Caídos, Joaquin, tem um selo chamado Ideas Venenosas e lançou nosso EP 7", de 2013, por lá. O mesmo EP saiu na europa pelo selo francês Crapoulet Records, eles também lançaram o nosso split 7" com os franceses do La Flinge. Por fim, acabamos de gravar 4 sons para um split LP com o Montana, uma banda de Feno, Itália, que sairá pela Crapoulet e por outros dois selos italianos.

E quanto aos Ornitorrincos, já estão na ativa há quanto tempo?

Quais são os próximos projetos de Daniel Villaverde?

Tocamos desde 2002, mas entre 2004 e 2006 a banda ficou parada. Retomamos ela em 2007 e paramos novamente entre 2010 e 2011. Voltamos a tocar em 2012 e não paramos mais.

Basicamente, o mesmo de sempre: organizar shows de bandas que vêm de fora tocar aqui, e lançar mais material pela Punch Drunk. Tentar montar uma banda nova esse ano, quem sabe fazer uma tour pelo Brasil com o Ornitorrincos. Enfim, me divertir!

Vimos que está pra sair um split com a banda italiana Montana. Você também já lançou material de bandas de outros países pelo selo, como começou isso? Como falei, já tínhamos uns contatos com algumas bandas e selos sul

[1] Da mítica não-banda Macedusss e as Desajustados Bando, de São Leopoldo (RS). [2] Edições Ideal, 2015. Entrevista originalmente publicada no livro Incredibly Strange Music, de 1993, pela editora americana RE/Search. [3] O avô do Facebook.

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plunderfonia à brasileira Por incrível que pareça, alguém louco o bastante (e com tempo de sobra) de fato encarou a proeza de picotar e remixar os clássicos do cancioneiro nacional em experimento semelhante aos plunderphonics de John Oswald, como sugerimos – ou melhor, indagamos – na conclusão do artigo DO DADA AO MEME, já no primeiro número desta publicação. O projeto, excentricamente batizado TROPICACOFONÓIA, em seu primeiro volume disseca de Carlos Gomes a Gilberto Gil, passando por Dick Farney, Gal Costa, Caetano Veloso, João Gilberto e até Roberto Carlos, em um esforço considerável para criar o que supomos ser um verdadeiro vaporwave tupiniquim sem precedentes. Listamos alguns dos destaques a seguir.

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abaixo, a capa do รกlbum: remixando imagens dos discos Tropicรกlia e Gilberto Gil (na pรกgina anterior), ambos de 1968

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p Logo na primeira faixa, a introdução da ópera O Guarani é apresenta-

da em três velocidades diferentes, simultaneamente, criando dissonâncias assustadoras. A citação, é claro, remete ao radiofônico A Voz do Brasil, e não deixa de trazer sugestões perturbadoras quanto à narrativa oficial do país – apesar da abertura atual do programa trazer cavacos, cuícas e tamborins, abrasileirando à força a obra italianizada de Carlos Gomes.

p Em bim, um trecho da composição de João Gilberto (Bim-Bom) é re-

petido à exaustão, com leves alterações no compasso. Tratar-se-á de um estudo obsessivo da célebre batida do pai da bossa? Diferente das outras faixas, esta traz alguma informação mais relevante quanto à sua elaboração, com um trecho de análise musical em contraponto à breve descrição: a fórmula mágica de joão sob microscópio entenda se puder: "A base de João é uma célula de compasso binário. Suas variações também se dão em células rítmicas binárias. A organização da batida mantém a base, via de regra, como a segunda célula do padrão quaternário, colocando, na primeira parte, uma variação com acorde antecipado em relação a seu baixo. Essas antecipações aparecem em seis das dez células alteradas, havendo ainda um sétimo caso em que um ataque abafado se antecede ao primeiro ataque de baixo e acorde da base, o qual permanece na cabeça do compasso. Dentre todas essas figuras, três são as variações principais, aquelas que mais se alternam na primeira

parte do padrão tendo, a seguir, a base como complemento. Em certas partes, duas bases compõem o desenho, e vezes há em que ela não aparece no padrão, mas são poucas." GARCIA, Walter in: BIM BOM, A contradição sem conflitos de João Gilberto. Paz e Terra, 1999. 16

(Também não entendemos.)


p Em eai, o breve falso-começo de Não Vá Se Perder Por Aí, dos jovens

Mutantes, é extendido com a inclusão de outras vozes em coro, não passando nunca da expectativa de início da canção. É curioso notar como, desde o advento do fonograma, um erro ou outtake pode tornar-se célebre e parte integrante de uma composição[1]. Partiremos desse tema no artigo a seguir, se prepare.

p Em merica, uma versão dub de Soy Loco Por Ti América, de Caetano

Veloso, roda em baixa velocidade. Tendo como foco o groove, a batida e a instrumentação, em vários momentos (vide grande, super, tropi, e coisa) esse é o maior mérito de TROPICACOFONÓIA: iluminar detalhes despercebidos das gravações, evidenciar trechos dos arranjos e texturas e propor desdobramentos diversos dos originais – embora nem sempre chegando a grandes revelações, talvez por abandonar o experimento cedo demais.

p Em euvou, o clássico de Caymmi é transfigurado em uma tremenda

alucinação rítmica, por meio de delays e ecos sobrepostos. Maracangalha passa a aludir praticamente a um estado mental alterado, se já não o fosse.

p O destaque, na nossa opinião, fica para a faixa de encerramento. Nela, a canção Back in Bahia, de Gilberto Gil, tem sua velocidade reduzida até o ponto de tornar-se tão irreconhecível quanto deslumbrante. A voz de Gil soa, aqui, quase sobrenatural, como um monge misterioso em algum ritual místico, nos guiando até os limites da definição de sampling. Na faixa mais longa do álbum, um breve momento – início e fim da canção – é extendido por mais de quatro minutos, numa prova de que é possível ouvir mesmo clássicos com um novo ouvido. Um excelente desfecho para o curioso projeto, do qual esperamos que venham outros volumes.

OUÇA tropicacofonoia.bandcamp.com [1] outros exemplos: a tosse de Sweet Leaf (Black Sabbath), o riso de Bob Dylan's 115th Dream.

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ENSAIO

DISCO É FRESCURA? o papel da reprodução e do suporte na era do acesso instantâneo à informação

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(mais um texto longo com subtítulo pomposo, cheio de citações e notas de rodapé, que consegue partir do nada e chegar em lugar nenhum — mas o que importa é a viagem)


Ainda nesse tema, o pianista e crítico Charles Rosen refletia, em seu livro The Future of Music, de 2001: em nossa época, a música popular inverte a relação clássica entre composição e execução: a execução se tornou tudo. (...) Nos grandes exemplos de música popular de nosso século – aqueles que já chegaram a um status de clássicos, como as grandes improvisações de jazz de músicos como Art Tatum ou Miles Davis –, a composição original passa a ser identificada à performance. (...) Tatum não realiza a composição de Porter, ele compõe uma obra inteiramente nova na qual a composição de base serve como um componente estrutural. No começo do século 20, as formas mais avançadas de música popular eram eventos essencialmente improvisados, sendo cada um único e efêmero: eram preservados não por uma partitura, mas ocasionalmente por uma gravação, e eram basicamente irrepetíveis. [1]

Acrescentando, ainda, quanto ao papel cada vez mais reduzido da improvisação no campo do rock: nele, a gravação tomou conta. Uma apresentação pública de rock raramente é uma obra improvisada ou uma nova execução de uma partitura, mas simples-

mente a reprodução de uma gravação. A maioria do público já conhece a música a partir de um disco e vai assistir para ter uma experiência comunal, em massa (no rock, o papel criativo do processo de gravação também deve ser levado em conta).

O fato é que há um bom tempo a efemeridade da performance tornou-se passível de conservação, sem prazo de validade. Não deixa de haver uma certa magia nisso. Mas concordamos com Rosen em relação à "reprodução da gravação" que parece ser a regra nos concertos de música rock e pop hoje em dia, notadamente. Ele chega a citar, também, a música eletrônica, e define uma das vantagens da performance ao vivo em detrimento de gravações (mas parece esquecer do vídeo como uma alternativa): Ao ouvir um disco, não se sente a dificuldade física da execução do texto musical, nem se testemunha, como num concerto, o espetáculo emocionante dos tormentos do intérprete.

Como a anedota em que ao ouvir um solo gravado de Miles Davis não podemos perceber o desgaste necessário para tocar cada nota. Esse tipo de observação implica, antes de mais nada,

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o reconhecimento de um outro campo, visível, na percepção musical que, para além da apreciação puramente técnica[2] – os bastidores da execução, ou como ela é feita – implica o lado subjetivo de reconhecer o esforço do intérprete, torná-lo humano ou distanciá-lo em igual medida, enquanto ser superior. Desde a invenção da litografia, a figura do artista passou a ser tão importante quanto sua obra[3], e, em alguns casos, é possível argumentar que desde a era da televisão a imagem é tudo o que realmente importa. De qualquer forma, as percepções musicais do autor e do público serão sempre distintas, não importa o quão escolado ou descolado seja esse último. O ouvinte ideal, segundo Aaron Copland, está ao mesmo tempo dentro e fora da música, julgando-a e desfrutando dela, desejando que ela fosse para um lado e observando como ela vai para o outro – quase como o compositor no momento

em que compõe, porque para escrever a sua música, o compositor deve estar dentro e fora dela, levado por ela e ao mesmo tempo friamente consciente do que está ocorrendo. [4]

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Além disso, a percepção de cada indivíduo será sempre distinta da dos de-

mais – e dele próprio, dependendo da situação. Cortázar já havia cantado a pedra, no primeiro tomo de sua Volta ao Dia em 80 Mundos [5]: Agora uns amigos me deixaram uma vitrola e uns discos de Gardel. Entendase logo que Gardel deve ser ouvido na vitrola, com toda a distorção e a perda imagináveis; sua voz sai dali como foi ouvida pelo povo que não podia ouvi-lo em pessoa, como saía de vestíbulos e de salas em mil novecentos e vinte e quatro ou vinte e cinco. (...) Não são apenas as artes maiores que refletem o processo de uma sociedade.

Isso não impede que, em comentários no YouTube, alguns críticos afirmem que Gardel canta melhor a cada dia. Trata-se, porém, para lembrar Walter Benjamin, do perfeito exemplo de como alguma nova reprodutibilidade técnica acaba por revestir de uma nova aura de autenticidade o objeto (disco, no caso) original – na medida em que legitima o anterior como "a forma em que deve ser ouvido" e este adquire valor nostálgico de culto, embora também seja uma reprodução. No ritual do ouvinte de discos de vinil é clara, e frequentemente mencionada, a recepção tátil e ótica do objeto como fator fundamental da experiência.


acima, o músico Rosendo Uruchurtu grava em um fonógrafo de cilindro, para o acervo de preservação do folclore mexicano e indígena de Charles Lummis, 1904.

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O disco eventualmente democratizou o acesso à música, como a tecnologia continua a fazer cada vez mais e além: do simples acesso à reprodução para o controle completo da cadeia de produção, gravação, edição e distribuição de áudio que temos hoje. A cada avanço, vêm as tentativas da indústria vigente de reprimi-lo. Foi o caso do gramofone contra o rádio, do rádio contra a televisão, do vinil contra o cassete e do CD contra o download, até chegarmos ao streaming. No fim, tudo acaba sendo absorvido, domesticado e comercializado para nos dizer o que e como devemos consumir. Em 1998, essas eram as preocupações da indústria fonográfica: Em um prospecto de acordo da venda da PolyGram para a Seagram – uma companhia de bebidas e refrigerantes –, por 10 bilhões de dólares, resgataram uma análise econômica de riscos da década anterior que "culpava a pirataria em fitas cassete pela queda dos lucros (...) e concluiu que o único modo de reverter a queda nas vendas era uma campanha agressiva para que se cumprisse a lei contra os piratas." Em outras palavras, o sucesso do capitalismo dependia de uma intervenção vigorosa do Estado, como nos conta Stephen Witt no ótimo Como A Música Ficou Grátis (ou LIVRE, no duplo sentido perdido pela tradução – Intrínseca, 2015).

A pirataria era algo que todo executivo da música levava muito a sério, e, em consequência da pirataria física dos CDs, a PolyGram já havia sido forçada a deixar completamente alguns mercados da Ásia e da América Latina. A pirataria nesses países era mais um produto do crime organizado do que de indivíduos, mas, com a popularização do gravador de CD doméstico, havia o risco de o problema se espalhar para a Europa e os Estados Unidos. Algo semelhante já acontecera no início da década de 1980 com o lançamento do gravador de fita cassete para uso pessoal. Os consultores de investimentos consideravam esse um relevante estudo de caso.

Witt prossegue demonstrando claramente as arbitrariedades econômicas e políticas que ditam o padrão de formatos e aparelhos para consumo de música nos últimos 20 anos. Ou até antes disso. Ele lembra que "a pirataria assola as indústrias artísticas desde a invenção dos tipos móveis, e, no contexto da violação de direitos autorais, o termo 'pirata' tinha mais de trezentos anos". Mas isso não impediu a indústria fonográfica de demonstrar resistência a todos os novos formatos de reprodução introduzidos desde o fonógrafo – ou da TV a cabo, serviços de táxi, hotelaria, e telefonia repelirem


respectivamente o Netflix, Uber, AirBnB e Whatsapp, embora esses sejam exemplos de um outro tipo de disputa. É certo que ninguém previu a revolução digital e o novo acesso instantâneo a praticamente todo o conteúdo cultural do planeta (exceto, talvez, pelo químico inglês Pumpernikle[6] com seu invento do Gás Musical em 1837, ou Frank Zappa nos capítulos finais de sua autobiografia de 1989: A Proposal for a System to Replace Phonograph Record Merchandising; além de possivelmente uma dezena de outros visionários ao longo dos séculos, mas vai saber), tampouco a indústria fonográfica. Ela também lutou ferozmente contra esse avanço, sob o pretexto de combater a pirataria, em uma batalha que parecia perdida, processando usuários e criando bodes expiatórios como Jammie Thomas[7] para servir de exemplo – em um modus operandi que lembra o proibicionismo e a guerra às drogas ainda vigente em boa parte do mundo. Mas "para que o capitalismo prosperasse na era digital, o compartilhamento precisava ser penalizado", e o inexplorado e promissor ciberespaço deslumbrante dos anos 1990 deu lugar a uma nova relação da sociedade para com a rede. Em parte por uma maior regulação desses espaços, hoje compreendidos como

uma extensão da vida social – e não terrenos mágicos onde "vale tudo" –, em parte por puro lobby das corporações e tentativa de controle sobre as informações dos usuários. O fato é que a internet livre como há pouco a conhecíamos vem se tornando cada vez mais regulada, um cenário de disputa entre interesses econômicos e políticos fortíssimos, combatidos por um insurgente ciberativismo a favor da neutralidade na rede – o que já rendeu prisões, exílios e suicídios nos últimos anos. Acesso à informação é poder. Seja como for, o suporte determina uma série de fatores na produção e no consumo da música, por vezes retomando costumes antigos – ou fechando um ciclo, por assim dizer. Com a chegada do iTunes e seu serviço de downloads pagos, por exemplo, ninguém mais precisava comprar um álbum inteiro por causa de uma música[8]. Em termos econômicos, as vendas dos álbuns eram um exemplo clássico da venda casada, e, segundo Witt "o rock feito para álbuns morrera na década de 1980, vítima da MTV e do walkman, e nos últimos anos a música fora um negócio voltado para hits". Um modelo que remetia aos singles em compactos de sete polegadas da primeira metade do século vinte.

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Felizmente, para todo segmento que se vê dominado por multinacionais e megaconglomerados bilionários, existe uma reação contrária por parte do público mais inconformado. Um retorno às raízes, digamos, que valoriza métodos artesanais e locais de produção contra o corporativismo frio e sem rosto (embora maquiado) e suas ilusões de liberdade de escolha. Tem sido assim com o setor alimentício, editorial, musical e muitos outros. A política do "faça você mesmo" retorna junto com a nostalgia fabricada pela própria indústria, gerando um contraponto interessante e necessário. Tem sido assim com o retorno dos discos de vinil enquanto opção de suporte para o consumo de música. Mesmo após ter sido descartado como obsoleto, com o advento do CD, e ter tido seus meios de produção sucateados, algumas fábricas se mantiveram na ativa graças ao interesse de puristas e colecionadores que ainda viam no formato alguma coisa superior da qual não conseguiam se desfazer. DJs e produtores de música eletrônica continuaram encomendando dubplates e o ofício pôde se manter vivo. Agora, com o retorno de um interesse, ainda de nicho, por parte de bandas independentes e público alternativo, fábricas começam a reabrir e as que ainda estavam de pé

têm agenda cheia, com uma fila de espera para produção que pode chegar a meses. Mas o que mantém as prensas funcionando a todo vapor? Relançamentos de clássicos das grandes gravadoras, que souberam se aproveitar rapidamente do interesse em ascenção pelo velho formato. Pheeew. Seja na gigante GZ Media da República Tcheca, na americana United Pressing (famosa por rodar as extravagâncias fetichistas de Jack White, outro milionário com menos gosto real pela experimentação do que talentos marqueteiros), na alternativa Pirates Press ou na brasileira Polysom, a fila é longa e os preços não muito convidativos. Sem falar nos impostos envolvidos em importação (disco ERA cultura, veja bem), caso se decida prensar fora do país, mesmo em fábricas menores – mas isso é assunto para outro texto, como veremos mais adiante. Daí a movimentação crescente em torno do artesanalismo e na busca por alternativas, como o disco por demanda, riscado um a um, caso dos lathecuts prometidos pela novíssima Lombra Records ou da mais antiga Vinyl Lab, por exemplo, uma real possibilidade graças a engenheiros alemães focados em produção de pequena escala. De qualquer forma, é uma pena que ainda tenhamos que importar o maquinário e a matéria prima, quando


temos a tecnologia disponível no quintal de casa, esperando por ser descoberta e incentivada. É o caso de um senhor de Sobradinho (DF), que criou sua própria máquina caseira[9], sem projeto e com peças improvisadas, que risca discos de baixa fidelidade em cera de carnaúba. Uma verdadeira resistência auto-suficiente made in brazil, embora ao que pareça o interesse do seu criador seja menos revolucionar qualquer mercado ou lançar material alternativo do que simplesmente divertir-se com a mecânica da coisa em si. De qualquer forma, o vinil está de volta, é a nova corrida do ouro e uma bela forma de registrar material sonoro. Modas e audiofilias à parte, é possível pensar no disco como um backup confiável, enquanto o futuro de plataformas como Bandcamp ou Soundcloud é incerto e possivelmente nebuloso – basta lembrar do moribundo Myspace. [1] Tradução de Adriano Scandolara, na revista Serrote #13 (Istituto Moreira Salles, 2013). [2] Vale lembrar a história de Robert Johnson, por exemplo, do qual se dizia tocar de costas para o público, para não revelar sua técnica. Além das lendas envolvendo pactos com o diabo e toda a mitologia do blues, os relatos na época eram de que seu violão soava como duas pessoas tocando ao mesmo tempo. Por outro lado, é notório o aspecto exibicionista da maioria dos intérpretes solistas, de Liszt e Paganini aos guitar heroes modernos, por muitas vezes dramatizando – e sensu-

alizando – o virtuosismo, como forma de garantir alguma, ãhn, satisfação pós-concerto (ou simplesmente vender mais ingressos). [3] Mais sobre o tema em O Triunfo da Música, de Tim Blanning (Cia. das Letras, 2011). [4] No livro Como Ouvir e Entender Música (Artenova, 1974). [5] Civilização Brasileira, 2008. [6] Em artigo humorístico publicado no periódico francês Le Menestrel, décadas antes do surgimento do fonógrafo ou do rádio. Um verdadeiro exemplo de steampunk. Nele, Pumpernikle informava a descoberta de um sistema de transmissão musical através das redes de iluminação a gás recém implantadas em Paris. "De lá podia ser canalizado para assinantes, que só precisariam abrir uma torneira em hora marcada para ouvir um concerto. No futuro, ao voltar para casa à noite, os parisienses poderiam ouvir notas estranhas, gemidos melódicos ou até irrupções de harmonia escapando da rede de tubos sob as ruas", como citado por Tim Blanning. O artigo também aparece no site imaginaryinstruments.org [7] Considerada culpada em um processo de 222 mil dólares (Virgin Records America Inc. versus Thomas-Rasset, 2007), por violação de direitos autorais de 24 músicas baixadas no Kazaa. [8] Um processo que, segundo o lendário produtor André Midani, vinha de antes. Ao priorizar a divulgação de músicas isoladas em vez do artista em si – lucros instantâneos versus investimento a médio prazo na carreira do intérprete –, a indústria se defrontou com a necessidade de estourar uma quantidade maior de hits no rádio para garantir as vendas de CDs. "A canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se transformar num 'jingle da vida' durante os três minutos de sua existência... Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música, 'a música de trabalho', e o preço do jabá foi à estratosfera". André Midani: Música, Ídolos e Poder - Do Vinil ao Download (edição web, 2013) [9] youtu.be/DoWBVZZWe8Y

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entregando o ouro (em dobro)

De curiosidades culturais – versões à capella e instrumentos isolados de faixas clássicas, coleções de film noir, lista de livros favoritos e conselhos de escritores renomados – a centenas de cursos, trechos de palestras e livros gratuitos, o excelente open culture disponibiliza, diariamente, doses de material educativo (em todos os sentidos) com curadoria cuidadosa. A variedade de assuntos inclui categorias como animação, arquitetura, astronomia, biologia, negócios, comédia, design, economia, cinema, jogos, saúde, história, jazz, direito, literatura, matemática, neurociência, ópera, fotografia, filosofia, política, psicologia, poesia, rádio, religião e ficção científica, dentre muitos outros. Segundo o próprio site, seu objetivo é: agrupar conteúdo cultural e educacional de alta qualidade da comunidade mundial. A Web 2.0 nos trouxe grandes quantidades de áudio e vídeo inteligentes. É tudo gratuito. É tudo enriquecedor. Mas também está tudo espalhado através da rede, e difícil de encontrar. Nossa missão é centralizar esse conteúdo, curá-lo e disponibilizar o acesso para quando e onde você quiser.

de blogs desconhecidos a contas desativadas de twitter, passando por fóruns obscuros e iniciativas independentes, a internet está cheia de tesouros que precisam ser divulgados para o grande público. Fazemos a nossa parte com esta seção, compartilhando nossos favoritos com você

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Criado por um dos diretores da Universidade de Stanford e com um time de colaboradores de peso, os artigos sobre música estão sempre presentes e, graças ao bom e velho hyperlink, é possível se perder por horas a fio, de assunto em assunto, seja em matérias relacionadas ou em fontes citadas nos textos. Uma visita necessária, sem dúvida.

openculture.com


Para muitas pessoas, o YouTube é hoje o principal meio para se ouvir música, apesar dos anúncios constantes (viva o AdBlock Plus) e da qualidade de áudio nem sempre satisfatória. Curiosamente, o site de vídeos tornou-se uma das maiores bibliotecas musicais do mundo, com milhões de full albums, bootlegs e raridades disponíveis ao toque de um botão, e é destino certo para se buscar qualquer música ou performance imaginável da história cultural recente da humanidade. Por conta disso, é realmente louvável o trabalho dos uploaders anônimos, que disponibilizam seus acervos pessoais – por vezes sob ameaça de processos legais. É o caso do maravilhoso canal conhecido como jimmy. Criado em 2013, ele tem nos chamado a atenção com vídeos quase diários de demos e raridades do underground norte-americano, previamente disponíveis apenas em K7 e vinil para um público extremamente restrito. O material é recente, mas a maioria das bandas e selos atua de maneira offline, sem tentar criar modinha nem tirar onda nas redes sociais. Além de álbums e EPs completos, Jimmy fornece compilações mensais com o que anda escutando e, rapaz, como tem coisa boa! Basta dizer que a discografia completa dos Coneheads está lá, com as capas originais das fitinhas e link para download. Fora uma porrada de outras pérolas do punk subterrâneo atual, feito por moleques de quinze anos (ainda há esperança!) – como o próprio Jimmy talvez seja. Vale mesmo a inscrição.

goo.gl/OyXRzD

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resenhas aleatórias por guilherme guedes

São 10h26. 19 minutos atrás comecei a ouvir Sleep, o mastodônico álbum de Max Richter, composto em parceria com o neurologista David Eagleman para acompanhar as oito horas de um sono perfeito. São oito horas ininterruptas de música instrumental flutuante entre a produção erudita contemporânea e a ambient music, supostamente ideais para embalar o sono e os ciclos do subconsciente notívago.

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Não é meu primeiro contato com o disco. Ouvi algumas vezes a versão resumida do álbum, From Sleep, que tem apenas uma hora de duração. Tentei ouvir a obra completa outras vezes, mas dormi em todas. Todas. Esta é a

primeira vez que ouço a obra completa, do raiar do meu dia ao início da noite. A experiência, mal sabia eu, seria minimamente traumática. O primeiro reflexo, talvez desperto pelas experiências anteriores, é bocejar repetidamente. A essa altura o cérebro entende a melodia de "Dream 1 (Before the Wind Blows It All Away)" como deixa para mergulhar em sono profundo, dadas as tentativas anteriores. Passada essa fase, o que resta é uma meditação subliminar constante, efeito da estrutura hipnótica das composições, claramente inspiradas pelos inventos de Brian Eno – cuja clássica parceria com Harold Budd, Ambient 2: The Plateaux


of Mirror, escolha frequente em minhas noites insones, é uma referência nítida. Os mantras são evocados em temas: o leitmotif surge em "Dream", recorrente ao longo do álbum em alternância a "Path", "Patterns", "Return", "Space" e "Aria", temas intercalados por outras faixas que permitem o diálogo entre os temas. As primeiras horas do álbum são intensas, um fluxo ininterrupto de melodias lindíssimas, mas muitas vezes angustiantes. Sleep não é um indutor de sonhos leves estruturado em acordes maiores, e foge dos vícios da new age com passeios frequentes pelas sombras da consciência e da inconsciência ao alternar momentos de foco e tranquilidade com trechos vigorosos e densos, como "Return 2 (Song)", peça de quase meia hora que por si só dificilmente induziria alguém ao sono. Dentro do processo, no entanto, faixas como essa correspondem ao padrões mais agitados e ativos do sono, e ilustram as idas e vindas de mente incauta. Ignorada a pretensão do álbum, Sleep é musicalmente primoroso, e dá gosto ouví-lo a qualquer hora do dia, com qualquer intenção. Mas é um exercício complicado. O disco relaxa insistentemente, e precisei de algumas xícaras

de café para me manter desperto mesmo ao exercer funções simples como responder e-mails, cozinhar – pesquei descascando uma abóbora – ou cumprir ações simples de trabalho, dada a impossibilidade de dedicar um dia útil exclusivamente ao transe provocado pelo álbum. A languidez entre "MothLike Stars" e a forte "Non-Eternal", em um intervalo de mais de três horas, chega a ser desesperadora, e precisei dar uma volta na rua para recobrar o foco. O problema aí foi outro: a interferência externa passou a atrapalhar a absorção do álbum, com ênfase na resistência à interação social. Hibernei novamente, e dediquei o resto da tarde à convivência com Sleep. Passava das 18h quando "Dream 0 (Till Break of Day)" acabou, e o silêncio causou estranheza. Deu até uma onda, para falar a verdade. Depois de tanto tempo ouvindo música, mesmo que suave, meu cérebro estava esgotado, e insistia em reproduzir o tema de "Dream" que não parava nem por baixo do single de Justin Bieber que um anúncio no YouTube insistia em reproduzir. Até tentei Individual Thought Patterns, do Death, para quebrar a pasmaceira instalada, mas eu não conseguia ouvir mais nada. Desisti e fui tirar um cochilo.

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a guerra do vinil (em um passado nem tão distante — e nem tão distinto)

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p.34 O mercado de discos estava mesmo fadado a ser dominado pelo disco preto de goma-laca, com corte de agulha e 10 ou 12 polegadas de diâmetro, gravado dos dois lados. A Gramophone Company apresentou um disco de 10 polegadas em 1901 e um de 12 polegadas em 1903, e o primeiro disco a ser gravado em ambos os lados foi o Odeon, importado da Alemanha em 1904. Mas ainda haveria muita experimentação nas cores, materiais, tipo de corte e tamanho antes da padronização ser efetuada. Assim, o "inquebrável" disco vermelho Nicole, introduzido em 1903, foi um fracasso comercial, como também o foi o disco branco com corte fonográfico da Neophone, que trazia uma camada de celulóide sobre a base de papel comprimido, e sobreviveu, com a reorganização periódica da empresa fabricante, de 1904 a 1908. A firma Pathé, quando abandonou o cilindro pelo disco em 1906, também usava o corte fono; a gravação começava no meio em vez de na borda do disco, e era tocada com uma agulha de safira em vez de aço. Nas mãos da Pathé o corte fono foi tecnicamente bemsucedido e a firma não introduziu um disco com corte de agulha até 1921. Ao primeiro disco importado da Alemanha, o Odeon, seguiram o Beka, Favorite, Homophone, Lyraphone e outros. A competição entre eles forçou a queda do preço de um disco de 10 polegadas com dois lados de 4 shillings para 2 shillings e 6 pence em 1909, quando a Columbia entrou na batalha tomando o controle da Rena Company e lançando discos de dois lados


do livro TALKING MACHINES - Some aspects of the early history of the gramophone, de V. K. CHEW (Londres, 1967)

a esse preço. A Gramophone Company parecia estar à parte da competição; seus preços permaneceram altos e ela não lançou discos de dupla face até 1912, mas sua subsidiária British Zonophone Company, tendo se fundido com a Twin Records em 1911, adentrou e eventualmente dominou a guerra de preços, o que produziu uma crise no setor de 1911 a 1914, enquanto uma enxurrada de novos discos alemães inundava o mercado e o preço do disco de 10 polegadas despencava até 10,5 pence. A indústria das "máquinas falantes" estava bem servida na época, como sua contraparte hoje, pela imprensa especializada. As publicações Talking Machine News (de 1903), Phonotrader and Recorder (1906) e Sound Wave (1907) formavam laços valiosos entre fabricantes, comerciantes e o grande público. Nelas, a integridade editorial era teimosamente mantida, por vezes contra forte pressão de anunciantes gananciosos. Uma crítica musical séria focada em discos de gramofone apareceu regularmente pela primeira vez em 1906 na alemã Phonographische Zeitschrift; na Inglaterra não atingiu o alto nível acadêmico e de estilo que agora tomamos por certo em publicações sérias sobre o gramofone até a criação de The Gramophone em 1923. Críticas técnicas, hoje exercidas por engenheiros habilidosos e com o dom da popularização, apareciam largamente em colunas de correspondência e a única qualificação necessária para participar delas parece ter sido o entusiasmo.

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"Hermes de Trismegisto escreveu com uma ponta de diamante em uma lâmina de esmeralda..." Eu não tenho uma celeste tábua de esmeraldas. Mas tenho a agulha de diamante, e os dubplates. E vou começar a escrever nossas histórias neles, fellas, podem crer. Deu um trabalho do caralho. Tomei no cu várias vezes, de várias formas. Mas o caso é que minha família é foda, e a história quer ser contada. E eu sou um escritor. Sacou? Hermes é, pois, meu deus. E digo mais: "... o que está no alto é como o que está embaixo..." Como um vinil num toca-discos, o mundo dá voltas. Então, preparem-se: Os alquimistas estão chegando, e a temporada de caça às pedras filosofais de 7" vai começar.

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lombrare humanum est parte um

por biu ramos

Eu passei boa parte de 2014 surtado. Sei disso hoje e já sabia então – a consciência nunca, nunca me abandona, mesmo quando me abandona. E foi perfeitamente consciente que decidi largar de vez minha profissão como farmacêutico e declarar meu óbito. Com isso pretendia melhorar o futuro: meu filho acabara de nascer, era a coisa certa a fazer. E, creiam, preferia que fosse outro, quem me conhece sabe que me sinto muito bem só em ver a vida passar, mas um homem tem de fazer o que um homem tem de fazer, e, assim, lá fui eu, até aqui, 2016, Lombra Records, um vinyl recorder fabricado por Mister Ulrich, um alemão genial, odiado por uns, admirado por outros, respeitado por todos. E muita conta pra pagar. Adquirir essa máquina foi uma saga. Amizades, sociedades acabaram, minha saúde foi pro espaço – fazer companhia ao meu discernimento –, muita correria, confusão, paranóia, insônia, pernada, tramóia, muito tudo, e isso foi só o começo.

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a idéia

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Todos precisam de um Emplastro Brás Cubas pra dar sentido à vida, ou levá-la à ruína. A minha monomania nesse caso veio em estéreo, sob a forma de um selo, a Lombra Records, e um vinyl recorder, que viabilizaria o selo. Eu era então sócio em um estúdio, era algo a se fazer enquanto eu tentava pular o balcão da drogaria onde trabalhava num horário concebido para tapear a fiscalização e correr pra longe das farmácias e seus sistemas mortais de cotas e metas. Eu estava saindo do forno pra entrar na frigideira, por assim dizer. E eu fritei até carbonizar. Era pra ser um estúdio de gravação, coisa mais obsoleta que os CDs que estão mofando numa gaveta de tralhas que fica embaixo de minha cama. Era, porque nunca chegou a de fato ser, apesar de todo equipado e num puta espaço maneiro. A falência era iminente e eu atenuava o desespero bebendo mais. A coisa virou uma bola de neve que me apanhou num contrapasso infeliz e foi rolando, rolando, até que em uma bela madrugada, diante da garrafa, destilando um jeito de sair daquela, lembrei dessa máquina e perguntei dela pro meu camarada de copo, que há uns cinco anos atrás havia me falado que existia tal milagre da analogia metafísica moderna pela ocasião de uma visita a uma feira de música gringa. E fomos procurar na internet, e ela ainda existia, agora numa versão melhorada, até. Todos os releases pagavam pau de joelhos pra ela. Seria a salvação da lavoura, estaríamos com a faca e o queijo na mão, seríamos ricos, famosos, os patronos das artes candangas (e, por que não, mundiais?), os heróis do underground, etc, etc, etc. Todas aquelas idéias tão megalomaníacas quanto estúpidas que só a cocaína é capaz de te dar. Mas dessa vez havia algum sentido, era uma possibilidade real. O vinil tá na moda, pleibas e punks curtem, talvez seja um motivo pras pessoas pararem de punheta e passarem a ouvir música novamente. Som. O verdadeiro verbo. Ao vivo, analógico, como tem de ser. A revolução voltou a ser viável. Aí mandamos um e-mail pro alemão. Quanta inocência.


acima, a Vinyl Recorder T-560. Dentre as muitas especificações, a capacidade de gravação multi-RPM (33, 45 e 78), multi-formato (5, 7, 10 e 12 polegadas) e a possibilidade de escutar uma faixa enquanto ela é gravada.

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o simpático senhor Ulrich Sourisseau e sua máquina milagrosa

a compra O valor era viável. O real tava tranquilo e o dólar favorável. Mas tinha de ir lá. O alemão fabrica a máquina sob demanda e só vende mediante um curso, e tem de ir com a tua cara antes. Você já viu minha cara, caro leitor? Sorte sua. Também não foi com a cara de meu amigo nem do amigo dele. Depois soube que ele não vai com a cara é de ninguém, apesar de a princípio responder a um ou outro, de modo que quando já estávamos pra comprar as passagens, recebemos um e-mail dizendo para esperarmos. Esperarmos quanto? DON´T RUSH ME.

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Foi a resposta dele. Assim, em caixa alta, altíssima, na verdade. E sumiu de vez. E lá se foram seis meses de planos pelo ralo. Caí num vácuo de autocomiseração, infortúnio, angústia, mágoa e álcool, naturalmente, até porque paralelo a isso me meti numa roubada homérica que me dói no bolso e na alma até hoje, um dos motivos pelos quais algum tempo depois mandei meu então sócio à merda, onde é o lugar dele. Aí lembrei do Fredy, o cara


mais diplomático do mundo. Se alguém conseguisse dobrar o alemão seria ele. E começamos tudo de novo, do início, mais seis meses de negociações. Antes tivemos de apagar qualquer indício de nossa amizade na internet. Talvez você possa pensar que estávamos exagerando. Mas se você pensou isso é porque certamente não conhece o alemão. E lá se foi o Fredy pra os cafundós da Alemanha, onde nem inglês se fala, encarar a solidão e ataques psíquicos enquanto exercia toda sua diplomacia com Mister Ulrich, esse velho doido de pedra por quem tenho total respeito, afinal ele, como eu, não está nessa pela grana, mas quando o assunto é dinheiro ai de quem o tenta tapear. Fredy cumpriu a missão. E aí começou uma nova via crucis pra mim. Importar a máquina e lidar com os impostos e a burocracia tupiniquim dessa vez foram o meu calvário. Até o aval do Ministério do Meio Ambiente foi requisitado, afinal a caixa em que a máquina vinha é de madeira. O dólar quadruplicar também não ajudou. Mais uns quatro meses nisso. Mais dívidas, também. A Monstro Discos tornou-se parceira a essa altura, em Brasília todos são muito blasés quando não simplesmente oportunistas mesmo, quando o assunto é a revolução, se é que me entendem. E se não, faço questão de esclarecer: Pau no cu do FAC.

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na página ao lado: Lombra Society Discos, compactos por assinatura, o carro-chefe do selo

o clang A Lombra Records é uma ideia. E o que não é? Tudo que ora é provado foi antes só imaginado, nos lembra Blake. Idéias são tão reais quanto eu e você. Até mais. Neste último capítulo dessa mini epopéia in progress quero lhes lembrar que ao seu início eu declarei meu óbito. É verdade: eu, conscientemente e no gozo do meu juízo perfeito, resolvi assumir de uma vez por todas que minha vida só serve para atestar minha fé na raça humana, e passei a agir de acordo com os acordes que me tocam. Só e somente sol. No tempo, não no espaço, fellas, é onde o pharmakon é riscado, porque linguagem, podem pesquisar. Nada é por acaso. Ninguém está na vida à toa, nem mesmo Iggy Pop, the world´s forgotten boy, cuja biografia nos conta que o tal Clang é um ruído fisicamente tão brutal e ressonante que põe de joelhos quem o ouve. Pois bem, eu o ouço e é como estou, de joelhos ante o altar do rock 'n' roll, que cedo entrou em minha vida, e a quem devo ser o que eu sou, ruído branco, o som de todas as frequências, a caixa de ressonância da música das esferas. Ou só alguém que tomou drogas demais. Tanto faz. Eu não me importo com o que pensam de mim. Mas não sou o único que pensa assim. Perceba: eu não sei, nem consigo, fazer nada sozinho. E no entanto, e apesar de apenas uma ideia banal, eu, enquanto lombra, sou real, muito real, e você, que me ouve agora, se também sabe o que eu sei, erga-se, vá à rua, viver, e me toque o que te tocar. Vamos riscar juntos nossa história. A Lombra Records canta com você.

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QUADRINHOS

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por diego gerlach


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aula de piano

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Quando menos se esperava, lá vinham madame Só-Só e a filha dobrando uma esquina: os passos muito cadenciados, os da filha sobretudo, davam-lhe a corda cada manhã até a noite – valendo um sorriso permanente. E às quartas-feiras havia a aula de música. Andréa sentada ao piano, eu ficava em frente àquela Coisa, nem era uma moça nem deixava de ser, sempre de branco, a combinação em branco, a calça de rendas brancas – madame Só-Só muito positiva repetindo o solfejo, a vareta na mão, si-lá-sol, também ela toda de branco, branca a sala, e as cortinas e até o piano: o gato sobre o tapete – tinha-se a idéia de um pesadelo, era o que era. A filha não tinha um nome, era como uma boneca com a sua corda, agora imóvel no sofá, as coxas belíssimas: a clave de fá e a clave de sol: eu em frente mudo e fazendo de conta, durava uma hora a lição e eu era quem aprendia maravilhas, pouco me importava que fosse imbecil e que sorrisse o sorriso de sempre. Às vezes levava um caderno para disfarçar, mas nem era preciso – as mínimas e as semínimas, colcheias e semicolcheias, Für Elise –: a um menino é permitido ver coisas que não se permitem a um adulto, eu ou o gato era a mesma coisa, o relógio branco na parede pulsando os segundos, os minutos, coxas como aquelas eu nunca tinha visto, jamais veria, o começo


do livro A Chuva Imóvel (1963), de Walter Campos de Carvalho

do sexo dando-me um comichão entre as pernas, as minhas, subitamente minhas. Quando caía a chuva os acordes se prolongavam, de novo vinha a Für Elise, a vareta branca batendo o compasso, o gato espiando-me cúmplice, as pernas no sofá cruzando-se e descruzando-se, e o sorriso de sempre, eu rilhando os dentes para que a chuva não passasse, sorria também o meu sorriso para a idiota e para o gato: uma cumplicidade completa. Às vezes, com tanta chuva, vinha um cafezinho, não sei se branco, com biscoitos ou sem biscoitos, Andréa se aproveitava para voltar à infância, UFF!, madame Só-Só indo e vindo, a filha acompanhando-a com os olhos, o gato à espreita: Andréa chegava-se a mim e apontava com os olhos o mistério daquelas coxas: eu me mostrava surpreso, ensaiava um assobio para dentro. Assim descobri o sexo ao som de escalas e mais escalas, Beethoven e suas jubas protegendo-me de olhares indiscretos, também ele cúmplice como a chuva e o resto, sou-lhe eternamente grato por isso, a ponto de Für Elise despertar-me, esteja onde esteja, uma ereção repentina como dizem ocorrer à rã decapitada quando lhe tocam com um fio elétrico, ou se não é bem isso fica sendo isso.

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EXPERIMENTE TAMBÉM fb.com/lombrarecords fb.com/vibetronxacomix tmd.qa/faixatitulo punchdrunk.bandcamp.com mafialiquida.tumblr.com

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chupamanga.bandcamp.com 50

* Também disponível via Soundcloud, Deezer, Spotify e Gás Musical


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