chupa manga zine
número 4 ● abril 2017
CHAPA MAMBA PREPARA DISCO NOVO
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ENTREVISTA COM STANO SNINSKÝ 2 STVZ LANÇA EP SOLO
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E MAIS: FIELD RECORDING COMUNISMO VIDEO GAME CIFRAS PARA VIOLÃO QUADRINHOS
chupa manga zine
número 4 ● abril 2017
EXPEDIENTE editor-chefe Stêvz colaboram nesta edição André Valente agradecimentos Stano Sninský
cbna
Stêvz é o nosso fantástico editor, e apesar de preferir não empregar superlativos, referir-se a si mesmo na primeira pessoa do plural ou na terceira do singular, é exatamente isso que está fazendo agora. Assina todos os textos deste zine, exceto onde indicado.
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Impresso, dobrado e grampeado em casa, no outono de 2017
Chupa Manga Records Porto Alegre • Brasil
na capa: Bruninho, o carismático baterista da Chapa Mamba, durante a primeira Feira Arame no Motim (RJ)
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Por incrível que pareça, chegamos à quarta edição deste zine em menos de três meses após a anterior, reafirmando o sério compromisso editorial que mantemos com nossos numerosos cinco leitores. Se neste ínterim foram publicados alguns bilhões de tweets, milhões de fotos no instagram, milhares de textões no facebook e centenas de álbums dos mais variados estilos imagináveis em todas as plataformas de streaming, mídias preciosistas como o vinil, saudosistas como o cassete ou obsoletas como o disquete, também mexemos os nossos pauzinhos para tentar terminar o que começamos. Enquanto escrevia, editava, revisava, diagramava, ilustrava, imprimia, dobrava, grampeava e refilava esta edição, continuei acrescentando instrumentos, cantarolando melodias, mixando faixas e criando capas para os vários projetos paralelos atualmente em andamento sob a chancela do selo, com o pretexto de manter um fluxo constante de lançamentos, se não para atingir massivamente o público interessado — possivelmente inexistente —, ao menos escoar a compulsão por simplesmente produzir alguma coisa relevante e, quem sabe, alcançar a notoriedade das posições finais em alguma lista de fim de ano por aí. Eu sei, é difícil não cair na óbvia conclusão — embora precipitada, espera-se — de quão inútil é, afinal, toda essa empreitada: as canções, gravações, discos, capas, lançamentos, releases, bandcamps, soundclouds, spotifys, twitters, tumblrs, facebooks e o diabo a quatro, quando eu poderia estar lendo um bom livro, lavando a louça suja ou até mesmo tentando ganhar dinheiro, em último caso. Mas aí lembro que gosto mesmo de fazer isso, e, se o faço, confesso: é antes por mim do que por vocês. Disponibilizar é a parte chata, mas aí está, mais um edição impressa, mais um lançamento digital, camisetas serigrafadas, uma discografia peculiar em construção em CD-Rs baratos, vocês sabem onde encontrar. No mais, inscrevam-se na nossa newsletter, curtam, comentem, compartilhem. Ou não.
ENTREVISTA
faça-você-mesmo no leste europeu
Prestes a lançar outro disco pela Chupa Manga Records, reproduzimos a seguir uma conversa que tivemos com o genial, prolífico e obscuro Stano Sninský em maio de 2016 — às vésperas da sua modesta estréia digital em terras brasileiras.
quantos anos você tem? Eu nasci em 25 de maio de 1988. Ainda dá tempo de me juntar ao clube dos 27 anos [na época da entrevista]. você grava todos os instrumentos nas suas canções? Sim, eu gravo tudo. Eu coleciono muitos instrumentos, e cada vez quero arrumar mais, sou ganancioso. como é o seu processo de gravação? Nunca tive problemas como esperar por inspiração... geralmente só pego a guitarra e vou. E caminho pela natureza praticamente todo dia, depois do trabalho, para casa. Acabo ouvindo melodias na minha cabeça, e gravo as ideias no celular, assoviando... então quando chego no estúdio gravo geralmente a guitarra primeiro, depois baixo e teclado, e finalmente bateria e vocais. Gravo tudo digital, no computador. Uso um microfone Shure SM57 em todos os instrumentos, mas na bateria tenho um jogo barato de microfones. Gostaria de gravar em analógico, mas pra isso preciso de mais dinheiro... tenho um pequeno estúdio no porão de casa. como e quando você começou a fazer música? Meu pai era um músico de casamen-
tos, e me comprou um pequeno teclado Casio quando eu tinha seis anos. Um ano depois, ele me deu um teclado de 5 oitavas e então eu comecei a gravar em fita cassete com o nome "GG". Minha mãe me levou ao psicólogo! Ela achava que eu era louco, haha. E eu sou! Hahaha. Então comecei a gravar contos de fada malucos como "Havko Piťko", talvez 6 ou 7 cassetes, quero digitalizar isso. Em 1999 comecei a gravar o próximo projeto chamado "Peacar", com meu irmão, só com teclados. Em 2011, meu pai me deu uma guitarra, e o "Peacar" ficou mais difícil. Em 2003 comecei a gravar no computador, e em 2009 eu e um amigo criamos uma banda de rock and roll chamada "The Waves". O próximo projeto se chamou "Bordove Parple", com dois amigos não-músicos, avant-garde estranho ou algo que eu nem sei o que era. Contei minhas canções até agora, tenho em torno de 500. como é ser um músico independente na eslováquia? você se apresenta ao vivo na sua cidade? existe uma cena? Eu moro no leste da Eslováquia, em um vilarejo chamado Jasenov, perto da cidade de Humenne. Não existe cena para esse tipo de música. Há muito hip hop, dubstep, pop, mainstream, metal,
punk? Hm, eu não sei. E ninguém me conhece na Eslováquia. Eu tenho talvez uns sete amigos que gostam da minha música. E algumas pessoas no Soundcloud. Eu só me apresentei ao vivo com o Waves, mas a banda não existe mais. o que você costuma escutar? Estou ouvindo muitos tipos de música... Rock and roll, psicodelia, garage, glam, progressivo, punk 77, moog music, space synth, minimalismo, avant garde, delta blues, easy listening, world music e muito mais coisa... mas eu prefiro música dos anos 60 e 70. alguma influência local? Eu quero ser a influência local, hehe. conhece algo da música brasileira? Sim, eu tenho discos de algumas bandas de garagem brasileiras dos anos 60. Também gosto de bossa nova clássica, João Gilberto... Mas o melhor que ouço do Brasil é você, cara! Mas não apenas do Brasil... eu não ouço muita música atual, talvez Ariel Pink, Mac deMarco, Dead Ghosts... talvez 15 bandas, eu não sei. você tem muito material gravado, Bežný Jedinec foi o seu primeiro álbum propriamente dito?
Eu devo ter talvez uns 60 álbums gravados, mas não com capa... Os primeiros 20 ou 30 estão terminados, mas a partir de 2012 não tenho álbums, apenas canções. Eu preciso classificá-las. Muitas das canções de 2012 a 2016 estão inacabadas, porque tenho novas ideias a cada segundo e sempre começo uma nova, então não tenho tempo suficiente para terminar todas. Por exemplo, a canção "Sme" é de 2014, mas se você não tivesse me pedido para gravar os vocais... ainda não estaria pronta. Então obrigado pelo interesse, isso me obriga a trabalhar! e no que você está trabalhando agora? Eu vou continuar gravando música enquanto puder... mas estou pensando também em algum projeto com crianças ou idosos, estou aberto a outros projetos.
Dentre os próximos lançamentos do selo, traremos um disco de Stano composto de seis instrumentais introspectivos. A seguir, para quem não entende nada de eslovaco, ele fala um pouco sobre as canções de Bežný Jedinec (CHUPA.009), seu álbum de estreia: TOUR DE TOUR: Uma canção sobre viajar na natureza ou algo assim. ŽIŤ A BYŤ ŽITÝ: Uma canção difícil de explicar... sobre a vida, física quântica, finitude. MOONSHINE: Estou apaixonado, na lua, hmmm. NEVER STOP THE RAIN: Amor pela natureza, solidão mas não tristeza. GAZDORAŇ: Gazdoran é o nome de uma colina na reserva natural de Poloniny. POPLAŠENÁ: Uma canção sobre o avanço da idade. KOMPRESIA DEKOMPRESIA: Uma canção sobre a dualidade do pensamento, hesitação e demora, muitas questões e depois nada. SME: Canção sobre a raça humana... sobre o erro da humanidade em achar que é a melhor espécie do planeta. DA I NE: Canção sobre o sentimento estranho de que você está sozinho no mundo, mas você não liga. DUDROŠ: Canção sobre um homem que está sempre resmungando. PRIAMOČIAR NA NEROVNEJ CESTE: Canção sobre o lado sombrio da mente, mas tudo bem. LYNX LAMENT: Essa é só uma canção engraçada e idiota, o grito é de um lince. OUÇA chupamanga.bandcamp.com/ album/be-n-jedinec
RESENHAS ALEATÓRIAS
o disco vermelho Por volta de 2007, encontrei um LP esquecido em um pequeno sebo no Conic. A primeira coisa a me chamar a atenção foi a capa em vermelho vivo, depois o título em letras garrafais: baladas dos cossacos – os cantores romanoff. Aquilo me pareceu, talvez, tão improvável quanto um dinossauro russo chamado Dimitri em um baile funk nos arredores do Kremlin. Devo ter pago em torno de dois reais por ele. Logo na primeira audição, aquilo me bateu como o próprio martelo do símbolo comunista. Senti, se não uma revelação mística, uma percepção aguçada da minha própria relação ancestral com a humanidade. Aquelas canções folclóricas provavelmente fizeram parte da infância de Tchaikovsky e Stravinsky, refletindo-se em suas obras, influenciado-os em um nível sanguíneo. Ainda que em
arranjos modernos e orquestrados, as chamadas «extravaganzas» folclóricas de Ivan Romanoff ainda conseguem me transportar para um outro mundo do qual eu nem sabia que fazia parte. Um mundo de canções ciganas com pandeirolas e bandolins em volta do fogo, serenatas de amantes impossíveis no vento gélido do inverno siberiano, hinos de trabalhadores e exóticas danças festivas. Na contracapa, cada faixa recebe algumas linhas explicativas. Irei me ater à segunda do lado 2: a Canção dos Barqueiros do Volga. De alguma forma eu já conhecia a melodia dórica, todos conhecem, provavelmente de algum desenho do Pateta — educação musical erudita subliminar da infância. As imagens monocromáticas de Eisenstein e Vertov sempre pulam à minha mente, junto à harmonia modal de tempos imemoriais, e tudo o
texto originalmente publicado no zine A ZICA #4 - Funk, dinossauros e Rússia (Urubois, Belo Horizonte, 2015)
que se descreve confirma o sofrimento inerente nesse tema grave: “Antes da era da máquina a vapor, as barcas no Volga eram rebocadas por homens rio acima — trabalhadores, viajantes, velho e moços. Eles eram arrastados para dentro metidos em couraças de couro presas por cordas ao cabo principal, e faziam-nos opor a sua força à enorme força do rio, as cordas queimando-lhes a carne e o capataz impiedosamente empurrando-os. Deste trabalho pesado e deste sofrimento nasceram muitos
curso da raça humana não se restringe a fronteiras, barreiras linguísticas ou convenções estéticas. Por mais que certas instituições prossigam na tentativa criminosa de restringir o acesso às mais fundamentais obras de arte e conhecimento, de baixa ou alta consideração por parte da crítica, as expressões sinceras do espírito humano superam a regulação arbitrária e ultrapassam o próprio tempo. Pelo menos é o que afirma a nota de rodapé:
cantos de trabalho, dos quais este é o mais famoso. É baseado no ritmo das imprecações
ESTA GRAVAÇÃO CBS DE ALTA FIDELIDADE
— imprecações que reforçavam o arrastar da
foi cientificamente planejada de modo a
corda... Mas em sua essência ouvimos o pro-
apresentar a mais alta qualidade de repro-
fundo apelo de homens em revolta contra o
dução, qualquer que seja o fonógrafo usado,
mundo.”
novo ou velho. Se V. S. possui um aparelho
No lindo e triste spiritual dos trabalhadores russos, tocando na minha vitrola em pleno século XXI, do outro lado do mundo, é evidente que o
de som estereofônico, também este disco apresentará um som de alta fidelidade perfeita. Em resumo, V. S. pode comprar este disco sem o mais leve receio de que ele venha a tornar-se obsoleto no futuro.
nesta página e na seguinte, alguns registros da vida doméstica e das gravações do próximo disco da Chapa Mamba, durante a última "turnê" no Rio de Janeiro — diretamente do fotolog da banda.
SESSÃO MARMELADA
não é nada disso que você está pensando, acredite
Aproveitando ao máximo o curto tempo disponível, a banda conseguiu adiantar algumas dezenas de composições para futuros lançamentos, não sem antes por à prova as propriedades terapêuticas do patrocinador involuntário das sessões, o centenário Brasilberg™, extrato aromático a base de ervas amazônicas. Para o próximo disco, pode-se esperar o mesmo de sempre: canções inacabadas, instrumentos e vocais desafinados, gravações toscas e nomezinhos engraçados para disfarçar a completa falta de estilo definido ou apadrinhamento cultural por parte dos formadores de opinião. De resto, deixam registrado o agradecimento ao Rubinei e ao Rui pelos microfones, mesa de som e equipamentos periféricos, além da vizinhança pela compreensão e intensiva audição seletiva empregados durante o curso desses dias. Ainda sem título, o trabalho está previsto para sair esse ano, caso o mundo, ou o Brasil, não tenham finalmente acabado.
último lançamento
EP: estragando pizzas CHUPA.015 Stvz - Pequenas Tragédias Até o fechamento desta edição, nosso último lançamento havia sido esse EP solo do Stvz. São 8 faixas em 18 minutos, pra ouvir entre uma crise, um meme e outro. Inclui um cover maroto do mestre R. Stevie Moore, classificado pelo próprio como "fenomenal, a smash grunge hit". Freeeee download no nosso bandcamp e finalmente disponível nas principais plataformas mundiais de streaming — após uma série de burocracias inesperadas, como contamos no artigo Quem Recolhe os Royalties da Harmonia das Esferas? logo mais.
TRACKLIST 1. mad lex sed lex - 03:01 2. tentativa e erro, mas sobretudo erro - 02:37 3. consulte seu gerente - 01:36 4. a banalização da misantropia - 02:24 5. o esforço de parecer despretensioso - 02:35 6. a resposta perfeita mas tarde demais - 02:03 7. there is no god in america - 03:47 8. uma torneira pingando - 00:43
chupa manga sing along
Chapa Mamba A Soma do Quadrado dos Caretas Banda Forra (2015) CHUPA.002
G7 F7 C7 a soma do quadrado dos caretas felizes E G A7 C7 E G A#dim C7 G7 F7 C7 podicrê noves fora nada está na cara você não vê que a soma do quadrado dos caretas satisfeitos é a raiz quadrada dos pijamas quadriculados (dos diplomas certificados) G7 C#7 (3x) C7 B7 A#7 G7 F7 F#7 (3x) G7
(solo) G7 F#7 F7 F#7 (4x) E G A7 C7 E G A#dim C7 (refrão)
ENSAIO
quem recolhe os royalties da harmonia das esferas? da gravação de campo documental à arte sonora digital
1. EXPRESSAMENTE PROIBIDO Alguns contratempos burocráticos atrasaram a disponibilização do meu disco “pequenas tragédias” nos serviços de streaming, mas reacenderam certas questões importantes sobre o conceito de fonograma e do que é ou não considerado música. Seu álbum não foi aprovado ainda. Favor retirar a referência “EP” da arte da capa, pois o álbum não se trata de um EP.
Com esse parecer técnico — e ligeiramente arbitrário — , o site de distribuição me obrigou a MUDAR A ARTE DA CAPA do disco para poder publicá-lo, coisa que fiz em menos de dez minutos de forçada resignação, afinal o “EP” está no próprio título, faz parte do conceito da obra, além de me parecer perfeitamente aplicável. Segundo a Wikipedia, “EP” (extended play) pode ser vagamente definido como “uma gravação em disco de vinil ou CD que é longa demais para ser considerada um single e muito curta para ser classificada como álbum”, então vejamos: usando o parâmetro
do vinil, um single geralmente ocupa um compacto de 7 polegadas, com tempo máximo de 5 minutos por lado (10 no total, em média); um álbum completo ocupa um LP (long play) de 12 polegadas, com tempo máximo de 18 minutos por lado (36 no total, em média); e um EP (extended play) é justamente o meio termo, com 10 minutos por lado de um disco de 10 polegadas (20 minutos, no total, em média). Ora, o “pequenas tragédias” tem exatamente 18:36 de duração, como não pode ser considerado um EP? Pelo número de faixas, talvez? Oito é demais? Bom, é claro que estou exagerando, afinal o sistema de distribuição digital deve ter os seus próprios critérios, e se você quer entrar no jogo tem que aceitar as regras (mesmo que elas não sejam expostas claramente). Eu poderia argumentar que se trata de abreviação para “extremamente porreta”, “estereofônico primitivo” ou “escusa poética”, mas melhor não criar caso, até porque tudo vai ficar do tamanho de uma unha na tela do celular das pessoas no fim das contas. Após modificar a imagem da capa e enviar novamente o disco, recebi uma segunda notificação. 2. UMA TORNEIRA PINGANDO NÃO VAI FAZER NINGUÉM DANÇAR Seu álbum não foi aprovado ainda. Não pode conter faixas com sons genéricos sem nenhuma nota como consta na faixa nº8 — “Uma torneira pingando”, favor verificar.
Aí precisamos conversar. O serviço de distribuição definir o que pode ou não pode entrar no conteúdo de um disco já não é tão aceitável, principalmente com esses argumentos. Até entenderia a recusa caso houvesse letra ou imagem ofensivas, ou algo do tipo (e aí já entraríamos em outra questão), mas SONS GENÉRICOS? NENHUMA NOTA? Em primeiro lugar, trata-se de um som bem específico: as gotas da torneira mal-fechada da pia da minha cozinha, caindo lentamente sobre a louça suja. Poderia especificar detalhadamente os utensílios, recipientes, e mesmo a natureza dos resíduos alimentícios do cardápio, caso tivesse tomado notas na ocasião. Mas posso afirmar que o fenômeno foi deliberada e cuidadosamente registrado em áudio, a uma certa distância adequada e em um momento
específico, escolhidos justamente pelas CONDIÇÕES SONORAS que estavam ocorrendo naquele ambiente controlado, e tendo como parâmetro minha própria audição: o intervalo ideal entre as gotas, o nível de água nos pratos e panelas, a quantidade certa de louça na cuba, para gerar a reverberação adequada… Todas essas características nos levam ao segundo item: a água caindo sobre outra superfície, em intervalos regulares, não formam um RITMO e as diferentes alturas sonoras, com seu timbre único e específico, uma MELODIA? A música está nos ouvidos de quem ouve, meu amigo. A bem da verdade, minha intenção inicial ao registrar esse pequeno acontecimento hidráulico era harmonizar a melodia da torneira e sobrepor outros instrumentos, mas fiquei tão satisfeito com o material cru que decidi expô-lo em sua forma natural— não sem antes escolher o momento de corte início-fim, colocando-o na moldura, e equalizar o áudio. Gostei tanto do resultado que foi o primeiro single do projeto (sem deixar de enfatizar o aspecto cômico disso, é claro).
3. O BARULHO DO MUNDO A ideia não é tão vanguardista ou contestadora assim hoje em dia, como John Cage, toda a história da música concreta ou das gravações de campo poderiam atestar. Com o advento da fonografia, iniciou-se, naturalmente, um processo de documentação e preservação cultural focado, de início, em depoimentos, declamações e demonstrações folclóricas — já com Edison e posteriormente estendendo-se desde a pesquisa dos etnomusicólogos Alan Lomax, que notoriamente registrou o blues e folk norte-americanos, e Mário de Andrade, com seu trabalho de catalogação da música popular brasileira, a iniciativas históricas fundamentais como o acervo de depoimentos para a posteridade do Museu da Imagem e do Som. Mas o aspecto puramente naturalista, como forma de documentar uma paisagem sonora por si só, ou de fato CRIATIVO não foi imediatamente levado em consideração. Acreditava-se na gravação como um mecanismo para transmitir objetivamente “a verdade”. A mensa-
gem importava mais do que o meio, ou, — para citar McLuhan — tentouse, em vão, transformar uma mídia quente, como o fonograma, em fria, como a partitura ou a transcrição. Até alguém parar para, de fato, ouvir os passarinhos. Se me ocorreu alguma apreciação estética pelo puro som gravado, ainda mais no contexto do álbum, como isso NÃO É MÚSICA? Mas vamos além: será realmente o papel da distribuidora, ou mesmo dos próprios serviços de streaming, decidir o que pode ou não pode entrar em um disco, baseado em critérios estéticos — pois já vimos que tecnicamente, sim, é música, mesmo que anedótica, e ainda que não fosse — ? Uma coisa seria usar o artifício do conteúdo “extra-musical” (segundo eles) para pregar uma peça na plataforma, como no famoso caso do álbum silencioso Sleepify (depois tirado do ar). Algo que já havia sido feito décadas antes, aliás, mas com motivos humorísticos, em um disco conceitual do mímico Marcel Marceao, por exemplo. Outra é querer definir
o que deve entrar ou não no repertório. Pois bem, tomei a notificação como oportunidade para fazer uma segunda versão da faixa, voltando ao propósito inicial e acrescentando em alguns minutos, como solicitado, “alguma nota”. O resultado você pode ouvir, finalmente, com o disco todo no Spotify, Deezer, GooglePlay, etc. 4. GRAVANDO O SILÊNCIO Além da experimentação com paisagem sonora dentro da própria música concreta e experimental, ou mesmo da música pop — o produtor David Hassinger famosamente abandonou as gravações de Anthem of The Sun, do Grateful Dead, após o pedido de Bob Weir para acrescentar um som de “ar denso” (mixado a partir de vários silêncios captados em locações diferentes) na canção Born Cross-Eyed, para citar um exemplo pitoresco — existe todo um mercado de gravações de campo para trilhas de relaxamento, sonorização audiovisual e ambientação em lojas e instalações. O mais curioso, na minha opinião, é
o primeiro caso — que pode, inclusive, reapropriar material dos outros, como veremos — , embora a intenção não seja exatamente a audição cuidadosa, mas o deixar-se envolver. Mesmo no campo do cinema, seja em forma de entretenimento ou especialmente de arte, o recurso do field recording audiovisual pode ser aplicado tanto por puro prazer estético e conceitual, desde os experimentos de Andy Warhol comendo um hambúrguer ou filmando o poeta John Giorno dormindo por cinco horas, por exemplo, quanto à trolada — lembra do Sleepify? — de Charlie Lyne na British Board of Film Classification, com um filme de dez horas de tinta secando em uma parede para ser avaliado pelo comitê. No Brasil, vale lembrar o projeto Rio Oir de Cildo Meireles, que documentou em vinil diversos rios do país — além de outras fontes hídricas, embora uma pia cheia de louça suja provavelmente não estivesse entre elas — , também transformado em filme durante o processo. Ou a grandiosa obra Sonic Pavillion, de Doug
Aitken, aberta à visitação no Instituto Inhotim, que troca a gravação pela amplificação em tempo real do interior de um tubo perfurado 200 metros dentro do solo, revelando o som da própria Terra. O efeito é inegável. 5. A PAISAGEM SONORA NO SÉCULO 21 Em uma tendência que vem ganhando força com o conceito de “slow TV” (o equivalente moderno a assistir a grama crescer, sem o incômodo de precisar sair de casa), a gravação de eventos mundanos e demorados em tempo real também pode fornecer os elementos auditivos para uma bela noite de sono durante a chuva, um piquenique em uma barraca na sala de casa ou o manjado mergulho com baleias comunicativas — caso ainda não exista, sugiro também os sons de uma ilha deserta para o sono solitário dos náufragos. Enquanto algumas produtoras se empenham em captar os eventos com a maior fidelidade (ou veracidade, mas aí entraríamos em outra enorme discussão,
fica para a próxima) possível, utilizando equipamento especializado e muitas vezes através de gravações binaurais — e falando em binaural, o YouTube facilitou o advento de certos fetiches sonoros muito específicos, como o fenômeno do ASMR (Autonomous Sensory Meridian Response) — , outras mais preguiçosas apelam para o truque do loop eterno, como a infame lareira de natal do Netflix (spoiler alert). Porém, em plena era digital, o ouvinte obstinado de sons relaxantes não se contenta com a natureza ou mesmo os sussurros de alguma youtuber de fala macia qualquer: é preciso ir além, explorar os próprios ambientes virtuais em busca da paisagem sonora ideal, em universos alternativos, para algumas horas de sono ainda ligadas ao mundo eletrônico. Não estou bem certo do nome que isso recebe — certamente há um — , mas existem filmes de relaxamento com horas de sons ambiente captados dentro de jogos de vídeo game, reapropriando o trabalho da equipe de sonorização de uma forma no mínimo inesperada.
Deixando o personagem parado em um canto seguro do cenário por cinco horas ou mais, você pode dormir em um vilarejo medieval, numa nave espacial ou em um navio pirata no caribe, para citar algumas possibilidades. Até mesmo o violento Grand Theft Auto conseguiu ser pervertido em um ambiente de contemplação e relaxamento, focando nos lindos cenários e no trabalho de som e mixagem do jogo, em uma apropriação para outros fins muito interessante. De forma semelhante, mas no campo visual, esse e outros títulos já haviam influenciado fotógrafos exploradores a retratar os seus exuberantes cenários, lembrando os projetos de fotografia dentro do Google Street View como 9-eyes e Agoraphobic Traveller, mas extrapolando ainda mais os limites entre virtual e real. Quando criança, eu adorava os jogos que permitiam quebrar as suas próprias regras, como destruir objetos aleatórios do cenário ou sair do caminho padrão para explorar outras possibilidades de simplesmente existir naquele universo, sem nenhuma
missão ou objetivo direto. No lendário International Superstar Soccer (acho), por exemplo, ao cometer uma falta perigosa, você podia fugir do juiz pelo campo e o cartão punitivo só era aplicado quando (e se) ele te alcançasse. Em certo título de hockey, não me lembro qual, era possível começar uma briga com outro jogador; ambos tiravam as luvas e passavam a trocar socos, deixando a partida de lado. Em Road Rash, para Mega Drive, quando nos cansávamos de correr pelas mesmas pistas e cometer o máximo de infrações homicidas de trânsito possíveis, costumávamos bater a motocicleta em algum obstáculo, fazendo com que o personagem fosse arremessado para longe e então passávamos a competir sobre quem terminaria a corrida a pé primeiro. A busca do relaxamento ou da contemplação justamente no ambiente virtual que deveria servir de escape e liberação da violência (como no caso de GTA) pode ter muito a dizer sobre os tempos em que vivemos, mas, na verdade não é difícil entender como algo assim pode surgir pelo simples prazer de se desviar o propósito estabelecido de alguma coisa. Afinal, é nisso que reside a arte.
na página ao lado: uma bela tarde de outono em GTA V e atletismo com capacete em Road Rash, por que não?
OUTRAS LEITURAS (EM INGLÊS): FactMag — A Beginner’s Guide to Field Recording factmag.com/2014/11/18/a-beginners-guideto-field-recording/ Piero Scaruffi’s History of Avantgarde Music scaruffi.com/avant/cpt13.html
por andrĂŠ valente
QUADRINHOS
XEROCÃO
breve história de um sonho: a gravação Desde a antiguidade que a conservação dos sons é um sonho da humanidade... como o fabrico do ouro e a imitação do voo dos pássaros. Em várias civilizações existem lendas sobre a máquina de conservar os sons. No Quarto Livro de Pantagruel, os heróis de Rabelais descobrem, num mar glacial, palavras geladas que se derretem quando eles as aquecem entre as mãos; este texto verdadeiramente surrealista é, aliás, magnífico. Um navegador holandês do século XVII afirma que as tribos índias da Terra do Fogo falavam diante duma esponja que mais tarde se espremia para reproduzir os sons «registrados». Na mesma época Cyrano de Bergerac, genial autor de ficção científica, descreve os livros dos habitantes da Lua, «onde, para aprender, os olhos são inúteis; só há necessidade de ouvidos». Prepara-se a máquina, depois faz-se girar uma agulha sobre o capítulo escolhido «e saem dele, como da boca de um homem ou de um instrumento de música, toda a variedade de sons, que, entre os grandes habitantes da Lua, servem para a expressão da linguagem!» O sonho tornou-se realidade a partir de 1877: é o acontecimento mais importante desde a Antiguidade, sob o ponto de vista da sociologia da música. (...) FFRR - full frequency range recording A corrida à alta-fidelidade continua. Inventam-se inúmeros artifícios, apuram-se técnicas de gravação muito sofisticadas... mas para ser fiel a quê? A fidelidade é a transparência da longa cadeia electroacústica de gravação e de reprodução, é a música intacta, verdadeira, como se não houvesse técnica. Mas como avaliar a fidelidade de uma cópia se não se conhece o original? A maior parte dos ouvintes de discos (87%, segundo
do livro O CONVITE À MÚSICA Roland de Candé (Livraria Martins Fontes, 1982)
uma sondagem de 1979) já não sabe como soa, em directo, um quarteto de cordas, um piano, uma orquestra sinfónica. Quanto à música de variedades ou à música pop, essa é logo produzida sob uma forma electroacústica. A que se pretende ser fiel? Já ninguém ouve, em directo, a voz de cantores que nos são apresentados, como as guitarras eléctricas, com microfone incorporado. Para que o sortilégio da hi-fi não nos engane ou nos faça tomar a nuvem por Juno, é absolutamente necessário conservar o contacto com a música viva, com os sons naturais, que não foram filtrados, laminados, amplificados por um microfone, um amplificador e um alto-falante. * * * O fascínio que exerce a «cadeia hi-fi» torna-se grotesco. O que se lhe pede é que seja «transparente», que se faça esquecer! A sua função verdadeira é de tornar a audição confortável e atenta... Como a função de um automóvel é a de nos transportar em condições favoráveis ao termo da nossa viagem. Mas ambos (a aparelhagem e o automóvel) são muitas vezes apreciados da mesma maneira como se apreciava outrora o piano, como um símbolo de êxito social. Exibe-se orgulhosamente a aparelhagem aos amigos... e ouve-se durante todo o dia a rádio num medonho aparelho portátil transistorizado. E este vocabulário!... «Hi-fi» é grotesco e não quer dizer nada, uma vez que nunca se definiu a mínima condição para se obter a etiqueta «hi-fi». Quanto à palavra «cadeia» o mais modesto aparelho que inclua um leitor («cabeça» ou «pick-up»), um amplificador e um alto-falante é uma cadeia de elementos que se completam, melhor ou pior, para reproduzir o que está gravado no disco.
chapa mamba responde

OUÇ A soun : dc chap loud.com amam / vinte b -mil- a/ egua s
F. A. Q.
* datas a confirmar