chupa manga zine
número 10 ● abril 2018
na manga:
próximos lançamentos
ensaio:
pOR UMA cultura do olho no olho
xerocão:
a história do fonógrafo até o fim do século 19
e ainda:
quadrinhos e CIFRAS DE VIOLÃO
chupa manga zine
número 10 ● abril 2018
expediente editor-chefe Stêvz colaboram nesta edição Maíra Valério Caio Gomez
cbna
Stêvz é o nosso fantástico editor, e apesar de preferir não empregar superlativos, referir-se a si mesmo na primeira pessoa do plural ou na terceira do singular, é exatamente isso que está fazendo agora. Assina todos os textos deste zine, exceto onde indicado.
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Impresso, dobrado e grampeado em casa no outono de 2018
Chupa Manga Records Porto Alegre • Brasil
na capa: um dos dois Colossos de Memnon, estátuas do faraó Amenófis III, que ainda estão de pé na necrópolis de Tebas, Egito, em foto de 2002.
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Chegamos, com este número, à nossa décima edição! E como se pode perceber, levamos mesmo à sério o desafio de manter a periodicidade bimestral desta publicação, custe o que custar. Ainda asim, não deixamos de investir, tanto quanto possível, na composição e gravação de novas canções — o que é, afinal, o motivo principal da existência do selo. Quanto a este exemplar, nele você poderá saber em primeira mão quais serão os nossos próximos lançamentos, aprender duas músicas dos Rabanadas, ler uma história em quadrinhos exclusiva do famoso cartunista Gomez e um texto instigante da jornalista brasiliense Maíra Valério — criadora do blogue "Vulva Revolução". E se o leitor ou leitora achavam que, para tentar entender o presente e vislumbrar um pouquinho do futuro, não poderíamos ir mais longe no passado do que o carnaval de 1949, como na última edição, prepare-se para mais um extenso e esclarecedor artigo desenterrado do esquecido ano de 1900. Boa leitura!
ri
al
É comum que alguém nascido antes da popularização da internet eventualmente emita algum tipo de ressentimento ou desprezo pelas gerações que já a tomam como fato consumado e garantido, mas é sempre bom lembrar que invenções revolucionárias como o fonograma, a fotografia ou o cinema (primeiro como extensão dessa última e depois como a junção dos dois) nem sempre estiveram presentes e são, na verdade, relativamente recentes no cotidiano do cidadão médio. O fonógrafo de Edison só veio a existir há pouco mais de 140 anos, em 1877, e permitiu que se documentasse a história de uma forma como nunca havia sido possível. Também mudou para sempre a relação da humanidade com a música, uma das suas artes mais ancestrais, que passou a ser passível de reprodução mecânica, não mais exigindo a presença de músicos, instrumentos, ou mesmo de ouvintes, para esse efeito. Todas as pessoas vivas, hoje, vieram ao mundo já com a realidade inescapável do fonograma. Por isso, talvez precisemos, de vez em quando, lembrar de como essas coisas funcionam, de onde vieram, e quais as suas implicações para a cultura e mesmo para a sobrevivência da espécie humana, já que são puro fruto do nosso engenho e curiosidade. Ainda mais se levarmos em conta a velocidade com que essas inovações vêm tomando de assalto cada nova geração na era pós-atômica digital. Graças a uma dessas invenções, pudemos ter acesso ao texto a seguir, que conta um pouco da história do áudio como o conhecemos, e que possibilitou tudo o que viria depois nesse campo, do cilindro de estanho ao disco de vinil, da fita eletromagnética ao compact disc, do mp3 à atual era do streaming.
XEROCÃO
a história do fonógrafo Publicado originalmente na revista The Phonogram (O Fonograma), de maio a novembro de 1900. É importante notar que, embora tenha havido diversas publicações com este nome, esta foi a editada por Herbert A. Shattuck para a Edison’s National Phonograph Company entre 1900 e 1902. O texto reproduzia, à época, trechos do livro Hand Book of the Phonograph, da mesma companhia, e hoje encontra-se em domínio público, digitalizado pela National Recording Preservation Board e disponibilizado gratuitamente no archive.org
história antiga Desde o início dos tempos, a humanidade procurou reproduzir, através de meios mecânicos, os sons do mundo vivo. Existem muitas evidências da grande antiguidade dos instrumentos musicais, mas a primeira tentativa de simular a voz humana é, sem dúvida, a maravilhosa estátua de Memnon, em Tebas, que remonta à 18ª dinastia egípcia, em 1490 a.C.
Duas estátuas colossais ainda estão na margem oeste do Nilo, perto da atual aldeia de Karnak, em meio às ruínas de cerca de outras dezoito. Houve um tempo em que a mais ao norte emitia sons ao nascer do sol — supostamente uma saudação matinal de Memnon à sua mãe Eos, a Deusa do Amanhecer. Que isso seja mais do que uma mera fábula parece ser atestado pelas várias inscrições cuneiformes inscritas por viajantes famosos na base da estátua, que foi danificada por um terremoto em 17 a.C.. Estrabão, um dos primeiros exploradores da história, visitou Memnon no ano 7 d.C., e escreve com bastante cautela sobre a “voz”, chamando-a apenas de um ruído. Outros escritores (dentre eles, Tácito, registrando a visita do general romano Germânico, 79 d.C.) referem-se ao som como distintamente musical, enquanto outros ainda mais entusiastas o elevam a uma canção. Entre os notáveis cujas visitas à estátua estão registradas, estão Titus Petronius Secundus, um prefeito romano de 82 d.C., e os imperadores Adriano (140 d.C.), e Septímio Severo (194 d.C.). Várias das inscrições (a mais antiga datando de 65 d.C.) expressam ou implicam a ideia de que Memnon, quando inteiro, poderia falar, mas desde sua mutilação a linguagem fora reduzida a sons inar-
ticulados. A melhor delas é creditada a certo Asklepiodotus, um procurador imperial: “Sabe, ó Thetis nascido no mar, que Memnon não pode morrer. Quando os raios quentes lançados por sua mãe [Eos] caem sobre ele, sua canção clara soa enquanto o Nilo se abre e separa a colina da Líbia das centenas de muros de Tebas”. A estátua foi restaurada no ano 196 d.C., por Septímio Severo, logo após sua visita, mas, que lástima! o dom maravilhoso da fala havia partido. história medieval Durante os dez séculos seguintes, há exemplos sem número de autômatos falantes que foram genuinamente construídos para realizar maravilhas mecânicas, mas as vozes foram produzidas por truques: ou uma pessoa falava através de tubos ou por eco, de uma posição oculta. O primeiro falador autêntico apareceu no século XIII, quando Frei Roger Bacon, um dos primeiros filósofos ingleses, construiu uma engenhosa cabeça falante. Gerber, um monge alemão de um período anterior a Bacon, supostamente havia construído uma maravilhosa cabeça de bronze que falava, como também Albertus Magnus, mas há tantas lendas
entremeadas aos registros que todos, exceto a cabeça de Bacon, podem ser considerados como fábulas. A máquina falante de Bacon foi, sem dúvida, inspirada pela Cabeça Falante de Orfeu, que era um enigma impressionante para os primeiros gregos — mas é mais do que provável que esta maravilha pudesse ser explicada com o mesmo princípio do poder vocal da colossal estátua do deus indiano Siva (o Destruidor), onde um assento era provido para um sacerdote sob o capacete da figura. No caso de Memnon, no entanto, é geralmente admitido que os sons se deviam a algum artifício [1] na construção ou peculiaridade do material usado, em vez do engano dos sacerdotes, estabelecendo-a assim como a primeira estátua falante. O mesmo pode ser dito da cabeça de Bacon. Sua veracidade é comprovada por testemunhos da época, estabelecendo-a sem dúvida como o primeiro autômato falante. história moderna De Bacon a Faber, da época atual, é um longo passo sem grandes conquistas para a crônica, com a exceção do famoso pato de Vaucanson, tantas vezes citado como uma das maravilhas mecânicas do século. Ele foi cons-
truído em 1740, e surpreendeu a todos os seus espectadores, não apenas por grasnar de maneira realista, mas também agitar as asas, eriçar as penas e comer grãos, chegando até mesmo a digerir e defecar a comida. O ponto culminante da engenhosidade mecânica foi alcançado por Herr Faber, um experimentador de Viena que, em 1860, construiu um homem falante muito elaborado, o que facilmente o coloca à frente de todas as máquinas falantes da classe dos autômatos. Uma breve descrição do homem falante de Faber pode ser de interesse: Tinha lábios flexíveis e uma língua de borracha, que engenhosamente controlavam vogais e consoantes. Havia um pequeno ventilador na garganta, pela qual a letra ‘R’ era enrolada. Uma palheta de marfim servia como cordas vocais. A boca era uma cavidade oval, cujo tamanho era regulado por seções deslizantes, operadas rapidamente a partir de um teclado. Um tubo era preso ao seu nariz quando falava francês. Tratava-se realmente de um mecanismo maravilhoso, embora cem vezes mais complicado do que o fonógrafo de Edison de 1877, ou o fonógrafo aperfeiçoado de hoje. Porém Faber e seus predecessores estavam no caminho errado ao tentar
resolver o problema da reprodução de som dessa maneira, do ponto de vista físico. Faber procurou uma causa, Edison viu um efeito e disse: “A coisa está lá, só precisa ser encontrada”. Faber partiu da fonte do som, e criou um mecanismo para reproduzir as causas das vibrações que faziam a fala articulada. Restou a Edison começar pelas vibrações, obter os efeitos mecânicos de tais vibrações, registrá-los em um material flexível e depois reproduzí -los. Faber copiou os movimentos dos órgãos vocais, Edison estudou um diafragma vibrante e reproduziu a ação do tímpano quando acionado pela vibração causada pelos órgãos vocais. profecias Vamos agora entrar no reino da literatura e observar o que foi escrito sobre o fonógrafo na linha da profecia. Se, de fato, tais vislumbres fantasiosos e visionários, como citaremos, podem ser justamente denominados proféticos. No entanto, é bom lembrar que todas as profecias são apenas previsões vagas. Hoje em dia estamos especulando sobre o vôo humano e o trânsito ultrarrápido no vácuo. Estamos adivinhando e experimentando com muitos problemas que podem se tor-
nar realidades a qualquer momento. A visão através do telefone já é quase possível, e a telegrafia sem fio é um fato. O desconhecido de hoje pode ser conhecido amanhã. O fato surge da imaginação do presente, como foi no passado e como será no futuro. Então ouça! John Wilkins, bispo de Chester, que morreu em Londres em 1672, era um teólogo, cientista, matemático e físico. Em seu trabalho sobre Magia Matemática (1651), ele diz: “Já se pensou ser possível preservar a voz, ou qualquer palavra falada, em um tronco ou tubo oco, para quando este tubo for aberto corretamente as palavras saírem dele na mesma ordem em que foram faladas”. Esta talvez seja uma antecipação bem grosseira do fonógrafo. Carregar um tubo com palavras como se carrega um canhão com pólvora, para atirá-las ou sacudi-las como as melodias congeladas por causa do frio no trompete do Barão Munchausen — era certamente uma teoria mais do que original. Novamente escute! Entre 1620-1655 viveu um poeta e filósofo francês, chamado Savinien Cryano de Bergerac, cuja fama foi recentemente remodelada pelo teatro e pelo Sr. Rostand. Em 1656, um ano depois
de sua morte, foi publicado o seu Histoire Comique en Voyage dans la Lune [2], um manuscrito de 1649 que descreve aventuras na lua e comenta as maneiras e costumes dos habitantes lunares. Bastam um foguete celeste oco e uma explosão, e o aventureiro se encontra na lua. A história combina a plausibilidade romântica de Júlio Verne com a gentil ironia e genial engenhosidade de Gulliver, de Dean Swift. Bergerac descobriu que os seres lunares tinham dois tipos de fala. As classes superiores usavam músicas sem palavras, e a população geral, a fala pelo movimento dos membros. Eles viviam de odores, usando dísticos e quadras como moeda, e seus legumes falavam (o solilóquio de um repolho sendo um dos mais estranhos conceitos já engendrados pelo pensamento humano). [3] Seus livros são descritos como livrosmáquina, do seguinte modo:
Espírito traduziu esses livros para a linguagem daquele mundo, mas como eu não tenho nenhum dos seus impressos, vou agora explicar-lhe a moda desses dois volumes: Quando abri a caixa, encontrei algo metálico quase como um dos nossos relógios, cheios de não sei que tipo de pequenas molas e motores imperceptíveis. Era um livro, é certo, mas um livro estranho e maravilhoso, que não tinha nem páginas nem letras. Em suma, era um livro feito inteiramente para os ouvidos e não para os olhos. De modo que quando alguém decide lê-lo, dá-se corda na máquina com um grande
Mal voltava as costas [ele fala de seu guia, a quem ele chama de seu “Espírito”], e eu passei a considerar atentamente meus livros e suas caixas, isto é, suas capas, que me pareceram maravilhosamente ricas. Uma fora cortada de um único diamante, incomparavelmente mais resplandecente do que os nossos; a segunda parecia uma grande pêra prodigiosa, dividida em dois. Meu
Quando enfim refleti sobre essa invenção milagrosa, já não me admirava que os jovens daquele país tivessem mais conhecimento aos dezesseis ou aos dezoito anos, do que os nossos anciãos; por saberem ler logo que falam, nunca ficam sem palestras, em suas salas, em seus passeios, na cidade ou em viagens; eles podem ter em seus bolsos, ou em seus cintos, trinta desses livros, onde
número de pequenas peças, apontase para o capítulo que se deseja ouvir, e imediatamente, como saídos da boca de um homem ou de um instrumento musical, emanam todos os distintos e diferentes sons que os Grandes Lunares utilizam para expressar seus pensamentos, em vez da linguagem.
precisam apenas dar a corda para ouvir um capítulo inteiro, ou até mais, se tiverem a intenção de ouvir o livro inteiro; vivos e mortos, que entretêm você com vozes vivas. Este presente me ocupou por cerca de uma hora, e depois de pendurá-los em meus ouvidos como um par de pingentes, eu fui caminhar.”
Este último parágrafo certamente nos lembra os fones de ouvido, e evoca as imagens de pessoas que já vimos escutando, com a expressão satisfeita, ao fonógrafo de hoje. Estes são os primeiros escritos a serem encontrados que são proféticos sobre o assunto. [4] Comparemos agora com outra profecia, escrita em 1878, depois que o fonógrafo de Edison já havia surpreendido o mundo. “Então, quanto aos livros, parece haver alguma chance de que a ocupação do impressor, se não a do editor, chegue ao fim, e que a atual forma desajeitada de comunicação entre um autor e seus leitores seja abolida. O que alguém não daria para ter a Canção de Natal engarrafada para sempre na própria voz de Dickens, para ser desfrutada ao seu bel -prazer. Os livros, como o Sr. Edison realmente diz, poderão ser ouvidos em vez de lidos, e as possibilidades do instrumento nessa direção podem ser apren-
didas com o fato de que um livro de 40.000 palavras pode ser gravado em quatro cilindros, de oito polegadas de comprimento e cinco de diâmetro.”
Voltando aos últimos tempos, encontramos no 1839 Comic Annual, de Tom Hood, o seguinte: “Neste século de invenções, quando um papel de desenho autônomo foi descoberto para copiar assuntos visíveis [referindo-se às melhorias de Daguerre na fotografia], quem sabe se um futuro descobridor não poderá encontrar algum tipo de papel para repetir o que ouve.”
Uma profecia literalmente cumprida pela folha riscada de estanho do primeiro fonógrafo. Então, novamente, em 1844, o capitão Matthew F. Maury (o famoso hidrógrafo, pai do Departamento de Meteorologia dos Estados Unidos de hoje) escreveu a um amigo: “É uma pena que M. Daguerre, em vez da fotografia, não tenha inventado um processo de escrever simplesmente falando através de uma trombeta para um pedaço de papel. Em vez de dizer ‘eu te escrevi uma carta’, a frase seria ‘eu falei para você em uma resma’”.
A profecia se torna mais exata à me-
dida em que o tempo para a invenção se aproxima. Mais uma vez, em 1855 (para citar esse feliz ensaísta, George Parsons Lathrop), em um livro obscuro chamado Helionde, ou Aventuras no Sol, foi impressa outra alusão a uma suposta invenção do mesmo tipo, para esse efeito: “Aleutedon, aqui, me informou que os autores não precisavam empregar trabalho manual em suas publicações, pois tinham apenas que repetir suas idéias em voz alta, e as vibrações do ar, diferindo de acordo com as palavras usadas, acionavam uma maquinaria muito delicada, que marcava indelevelmente a linguagem expressa. Depois as cópias poderiam ser feitas em qualquer número.”
É interessante notar que mesmo os termos usados para expressar essas previsões são próximos aos verdadeiros fatos da invenção. Mais uma vez encontramos, em 1875, um conto de fadas escrito por Jean Ingelow em que há um estranho instrumento chamado “Acoustigraph”, que registrava música de todos os tipos, e a reproduzia do modo mais maravilhosamente estranho. Estes casos podem ou não ser chamado de profecias, mas eles são incrivelmente semelhantes a um pre-
núncio sobrenatural do evento próximo, que estava para acontecer em breve. mais história moderna Enquanto isso, no mundo da Ciência Física, ocorreram certas experiências e descobertas mecânicas que podem ser denominadas profecias materiais, e todas elas apontavam para o nascimento da idéia. Houve Duhamel, no início dos anos 1700, com seu cilindro giratório escuro, no qual ele traçava curvas sonoras. Então, em 1747, o Rev. J. Creed propôs fazer uma máquina para registrar improvisos de voluntários no pianoforte e no órgão. Seguindo a mesma ideia, Hohlfeld, de Berlim, trabalhando com Euler, o matemático, construíram em 1752 um gravador rudimentar de música chamado “Melograph”. Mais ou menos na mesma época, outro mecânico alemão, J. F. Unger, também estava trabalhando em um instrumento similar, e ele finalmente provou a anterioridade da concepção, datando sua idéia de 1745, antes mesmo de Creed. Então, certo Pape, de Paris, atraiu considerável atenção em 1824, com outro gravador de música; seguido por Carreyre, em 1827, com seu “piano melográfico”,
no qual a música tocada era representada por certos sinais impressos em uma placa muito fina de chumbo. Em 1836, Eisenmanger, de Paris, tirou uma patente inglesa de um aparelho para gravar música de piano, usando uma agulha desnivelada e papel carbonizado. A seguir, vieram M. de Tressog, de Paris, em 1840, e Merzelo, um italiano, em 1856, cada um com aparelhos de natureza semelhante. Todas essas máquinas, você notará, tiveram como objeto apenas a gravação de música e, especialmente, de improvisações de piano ou órgão. O crescimento do piano aperfeiçoado do antigo clavier e clavicórdio, e o uso destes instrumentos pelos grandes compositores alemães (Bach e Handl no início dos anos 1700, Haydn, Mozart e Beethoven, no final do século, Spohr, Chopin, Mendelssohn, Meyerbeer e Liszt, nos anos 1800), toda essa atividade musical combinada, trouxe consigo o desejo de uma invenção para registrar permanentemente as improvisações desses grandes artistas e compositores. E assim, a arte alimenta a ciência. Após a nota fundamental atingida por Duhamel (as buscas incessantes e os esforços infrutíferos até agora sendo
apenas variações desta) a próxima nota na grande melodia do progresso foi soada por Leon Scott, trabalhando com Konig em 1856, com seu “Phonautograph” (fonoautógrafo); registrando os traços gráficos de vibrações em arranhões sinuosos sobre uma superfície fumê (inútil, você notará, particularmente para fins de reprodução de sons). Então veio Fenby com uma patente, em 1863, cada vez mais perto, mas ainda nada prático para uma gravação exata, e menos ainda para uma reprodução exata do som. Depois veio M. Charles Cros, em abril de 1877 (sete meses antes da data da patente de Edison, mas vários meses após o pedido da patente). Ele depositou na Academie des Sciences um pacote lacrado, que foi aberto na sua sessão de dezembro. Continha uma descrição geral de um dispositivo semelhante ao gramofone de hoje, a invenção reivindicada por Berliner — famoso pelo caso do telefone [5]—, em suas patentes de 1887-8. Em novembro de 1877, veio o anúncio do Sr. Edison de que o fonógrafo era uma REALIDADE. O ponto culminante de uma geração de esforços vagos fora alcançado. Os fantásticos prenúncios de cem anos haviam subitamente encontrado satisfação. As cordas prin-
cipais de séculos de pensamento convergiram para o cilindro coberto pela folha de estanho, que ecoava de volta no tempo, triunfalmente para Cros, zombeteiramente para Fenby e Scott, gentilmente para Duhamel, Creed e Unger, piedosamente a Faber, Vaucanson e Roger Bacon, respeitosamente a de Bergerac e os profetas, e agradecidamente a Amenófis III, o criador de Memnon. É maravilhoso, de fato, contemplar os eventos do século imediatamente anterior ao nascimento do fonógrafo. Eles indicam a estranha tendência da invenção humana: como ela apontava em certa direção durante determinado tempo, e como precisava ainda da presença do grande inventor para trazer a verdade sólida à tona. Mesmo em uma solução super-saturada, o cristal brilhante subitamente aparece, quando as condições exatas tiverem finalmente chegado. a história da invenção A história da invenção é melhor contada nas próprias palavras do Sr. Edison. Em um artigo sobre “o fonógrafo aperfeiçoado”, que ele escreveu para a North American Review em 1888, Edi-
son chama a atenção para os efeitos bem conhecidos de certas notas musicais e acordes sobre a areia, quando polvilhada em uma caixa de ressonância. Em resposta às ondas sonoras, os grãos de areia se dispõem em várias curvas geométricas, diferindo de acordo com o tom e a intensidade. Ele também fala das finas linhas de areia que são deixadas em uma praia oceânica, à medida que cada onda gasta sua força em seu ponto mais alto, e depois recua. Ele desenha o seguinte paralelo: “Por mais conhecidos que esses fenômenos sejam, eles aparentemente nunca sugeriram, até há alguns anos, que as ondas sonoras estabelecidas por uma voz humana pudessem ser dirigidas de modo a traçar uma impressão sobre alguma substância sólida, com uma precisão equivalente à da maré registrando seu fluxo na areia da praia. (...) Minha própria descoberta de que isso poderia ser feito me ocorreu quase acidentalmente, enquanto eu estava ocupado com experimentos, tendo um objetivo diferente em vista. Eu estava envolvido com uma máquina destinada a repetir os caracteres do código Morse, que eram gravados no papel por recortes que transferiam a mensagem para outro circuito automaticamente, quando pas-
sados sob um ponto de rastreamento conectado a um aparato de fechamento de circuito. Ao manipular este papel, descobri que quando ele era girado com grande rapidez, emitia um zumbido das indentações, [6] um som rítmico musical parecido com o da fala humana ouvida indistintamente. Isso me levou a tentar encaixar um diafragma na máquina. Vi de imediato que o problema de registrar a fala humana para que ela pudesse ser repetida por meios mecânicos, tantas vezes quanto fosse desejado, havia sido resolvido.
o primeiro fonógrafo (Do New York Sun de 1º de março de 1899) O homem que fez o primeiro fonógrafo foi enterrado em Schenectady em 25 de fevereiro de 1899. Ele pertencia a um dos pequenos grupos de homens que trabalharam com Thomas A. Edison em Menlo Park, e através de cuja habilidade e assistência fiel foram desenvolvidas muitas das invenções que deram a Edison o apelido de “O Mago” (“The Wizard”, no original. — N. do T.). Naqueles dias, Edison costumava ficar completamente absorto no desenvolvimento de uma idéia, tra-
balhando nela sem descanso ou sono por dois ou três dias e noites, e mantendo todos à sua volta ocupados ao mesmo tempo. Ele chamava um tocador de realejo das ruas para manter seus homens acordados, ou recorria a algum outro dispositivo desse tipo, e quando a tensão finalmente acabava, fretava um barco e levava todas para a baía em uma excursão de pesca. Entre os mais incansáveis dos homens d”O Mago” na época, estava John Kruesi, o homem que fabricou o primeiro fonógrafo. A ideia surgiu para o Sr. Edison como uma inspiração alguns dias antes, enquanto ele estava experimentando com um disco de telefone. O disco não estava fechado e havia um alfinete pontudo na parte de trás. Quando o Sr. Edison falou contra a face do disco, as vibrações levaram o alfinete ao seu dedo. “Se o disco tem poder suficiente para picar meu dedo”, pensou “O Mago”, “ele tem poder suficiente para fazer uma gravação que pode ser reproduzida”. Poucos dias depois, ele chamou Kruesi e, colocando em suas mãos um esboço simples do fonógrafo, explicou o que a coisa deveria fazer e disse-lhe para construí-lo. Era uma máquina de rolo, coberto com papel alumínio para receber o registro. Kruesi fez a máquina e
a trouxe para o Sr. Edison, que a ligou e falou: “Mary had a little lamb, It’s fleece was white as snow; And everywhere that Mary went, The lamb was sure to go.” [7]
Então ele a tocou para repetir suas palavras, esperando, na melhor das hipóteses, um murmúrio rouco em resposta. Mas ficou impressionado quando as ouviu reproduzidas em tons claros pelo pequeno aparelho. Essa máquina encontra-se agora no Museu de Patentes em South Kensington, Londres, Inglaterra. [8] história pictórica e comercial Nos capítulos anteriores foram traçados, primeiro, o crescimento da idéia; depois, os eventos que levaram à invenção e, finalmente, a invenção em si. Seu desenvolvimento — do rolo bruto coberto pela folha de estanho e o aparato áspero de 1877, ao registro de sabão de chumbo de hoje (o popularmente denominado cilindro de “cera”) e o mecanismo delicado e positivo que distingue o fonógrafo moderno — pode ser melhor contado reproduzindo as suas primeiras ilustra-
ções. [9] Essas imagens, embora carentes de arte, contam tão claramente a história do progresso que poucas palavras explicativas são necessárias. Seguiu-se um período de quase dez anos em que o fonógrafo permaneceu inativo, cuja razão é dada na seguinte citação extraída do artigo de Edison na North American Review, de junho de 1888: “Dez anos atrás eu contribuí para o North American Review com um artigo sobre ‘O fonógrafo e seu futuro’, no qual eu esboçava a solução de certos problemas alcançada pela minha invenção, e previ alguns dos usos aos quais ela seria aplicada. Outros assuntos importantes envolveram muito do meu tempo e atenção depois que esse artigo foi publicado, mas o futuro do qual eu então falei chegou agora, e as previsões que fiz naquele momento são agora verificadas”.
O fonógrafo de 1887 usava o cilindro de cera, motores elétricos, e diafragmas de gravação e reprodução dispostos sobre um suporte giratório, para troca instantânea. Este é o modelo “Espetáculo”, assim chamado pela semelhança dos diafragmas com um par de óculos. [10] Por volta dessa
época, a North American Phonograph Co. começou a fabricar e comercializar o fonógrafo, oferecendo-o apenas como uma conveniência de escritório; isto é, como um amanuense, no lugar de um estenógrafo. Por conta do seu alto preço, não se pensou nas enormes possibilidades latentes do fonógrafo como um criador de diversão ou entretenimento doméstico. [11] Em 1895, a National Phonograph Co. assumiu a venda de fonógrafos e descartou os modelos “Treadle” e “Water Motor”. Sob sua gestão, o motor elétrico apareceu e um novo modelo foi adicionado, que foi chamado “The Edison Spring Motor Phonograph”. O fonógrafo estava crescendo em popularidade como um meio de diversão para o público em geral; e em resposta a uma ampla demanda por um instrumento mais barato, foi introduzido outro modelo, também do tipo relógio, chamado de “Edison Home Phonograph”. Em 1897, para acompanhar o crescimento da demanda popular, um fonógrafo ainda mais barato, chamado “The Standard”, foi colocado no mercado. No início de 1899, uma máquina ainda mais econômica, conhecida como “The Gem”, foi apresentada ao público. Esta máquina veio como uma
revelação para o mundo do fonógrafo, como um exemplo do que poderia ser realizado em pequena escala e por um preço reduzido. Seguindo “A Jóia”, veio o anúncio de que Edison havia aperfeiçoado o fonógrafo e produzido a “Concerto”, uma máquina que tocava um disco de cinco polegadas de diâmetro (um retorno ao tamanho original do disco coberto pela folha de estanho). Tão perfeito é o seu trabalho, que vê-lo dissipa uma ilusão. Depois de ouví-lo só pode haver uma conclusão: Thomas A. Edison é o Alfa e o Ômega do Fonógrafo. [12] — Isso conclui a primeira parte do Livro de Mão do Fonógrafo, sendo a extensão da licença para reimpressão, conforme concedida à Phonogram pelos editores do referido livro.
NOTAS DO TRADUTOR [1] Nosso palpite inicial era que se tratasse de algum mecanismo de sopro ativado pelo vento, mas, segundo a Wikipedia, possivelmente o som era causado pela evaporação do orvalho dentro da pedra porosa da estátua. [2] Uma provável fonte de inspiração para o filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, embora sejam mais citados os livros Da Terra à Lua e Os Primeiros Homens da Lua, de Júlio Verne e H. G. Wells, respectivamente. [3] Um conceito novamente imortalizado na canção "Call Any Vegetable" (Absolutely Free, 1967) dos Mothers of Invention. [4] Mal o sabiam quanto! [5] Seu transmissor de telefone melhorado, um dos primeiros tipos de microfone, foi adquirido pela companhia de Alexander Graham Bell, o que rendeu diversas batalhas judiciais pela invenção. Estas tornaram-se conhecidas como “The Telephone Cases”. Leia mais em: en.wikipedia.org/wiki/The_Telephone_Cases [6] Este mesmo princípio foi, depois, explorado em experimentos embriônicos para a criação dos primeiros sintetizadores e outros instrumentos eletrônicos. Leia mais em dangerousminds.net/ comments/listen_to_early_soviet_synthesizer_ music_hand_drawn_on_film_and_made_from_c e boingboing.net/2012/06/27/synth.html [7] “Maria tinha um carneirinho / Sua lã era branca como a neve / E onde quer que Maria fosse / O carneirinho também ia”. É possível ouvir uma suposta digitalização desse registro histórico em soundcloud.com/kpcc/mary-filter?in=kpcc/ sets/edison-1878-tin-foil, embora a maioria das
versões disponíveis trate-se, aparentemente, de Edison recitando o poema no rádio nos anos 1920, em comemoração à sua primeira e mais famosa gravação. [8] Um texto mais recente indica que a máquina encontra-se, hoje, no centro de visitantes do Edison National Historic Site, em West Orange, New Jersey. [9] "As doze gravuras que ilustram este capítulo no trabalho original (do qual esses artigos d'O Fonograma' são reimpressões) não estão disponíveis para reprodução nesta revista, em razão de seu tamanho. Fato a ser lamentado, pois, como diz o autor, 'eles contam a história do progresso'. O livro é anunciado em outro lugar nessas colunas, e traz um custo moderado. Sua compra é recomendada a todos que estiverem interessados em fonógrafos." (Nota da edição de 1900 da Phonogram. Infelizmente, não pudemos encontrar o livro ao qual o editor se refere.) [10] “Spectacle”, no original em inglês, semelhante à palavra para óculos, “spectacles”. [11] Um catálogo de 1893 deixa claro o foco do marketing na época: todos os possíveis usos citados são relativos a trabalho de escritório, coroados pelo slogan "O fonógrafo irá lhe salvar tempo e dinheiro". [12] É engraçado como não há, fundamentalmente, diferença entre listar tipos de fonógrafos do século 19 ou modelos de iPhone hoje em dia. Embora tenham alcançado uma forma mais ou menos definitiva, ambos mantém o status de objeto de desejo implementando minúsculas ou insignificantes atualizações a cada ano (ou semestre!), apenas para manter o interesse do público consumidor ativo. Não seria exagero comparar Thomas Edison com Steve Jobs, mesmo que decididamente prefiramos o primeiro.
NA MANGA
próximos lançamentos
ao lado, a capa de "Impostor", novo álbum de Stvz. Disponível em breve na plataforma de streaming mais perto de você.
Até o fechamento desta edição, não havíamos ainda terminado, infelizmente, de preparar nenhum dos muitos lançamentos em que viemos trabalhando nos últimos meses. Mas isso não é motivo para deixar de cantar a pedra, botar a boca no trombone, dar com a língua nos dentes, queimar a largada, colocar o carro na frente dos bois, dar bandeira ou esparrar geral, adiantando logo quais serão as próximas imperdíveis pérolas musicais a figurar no nosso duvidoso mas curioso catálogo. Aí vão, então, os próximos lançamentos do selo, para você já ir se imaginando com os fones de ouvido ou as caixas de som no máximo, assoviando os refrões e ensaiando passos de dança na sala.
stvz - impostor é o próximo disco do nosso estimado editor-chefe, desta vez com certo potencial pop inesperado e mais de 40 minutos de duração. Deve sair muito em breve, e já divulgamos um single chamado "Uma Música Bem Boba", que você pode escutar em soundcloud.com/chupamanga/stvz-uma-musica-bem-boba chapa mamba - correria bicho (título provisório) gravado ao vivo e na raça na Estrada da Canoa, em 3 dias de março, traz uma dúzia de canções inéditas numa onda bem crua, apostando de novo na roqueiragem e com menos firulas. Falta fazer as letras e gravar os vocais, mais alguns overdubs. bagdá mirim - tá tudo uma merda (título provisório) mais um EPzinho de 5 minutos, gravado nos intervalos das sessões de "Presente", da Chapa Mamba, em 2017. Falta apenas fazer as letras. Pode virar um split. próximo ep dos rabanadas com novas composições em andamento, é apenas questão de tempo até que a dupla entre em estúdio para gravar o sucessor do seu aclamado trabalho de estreia. Umas das faixas já pode ser ouvida, em fase de testes, no encerramento das suas recentes apresentações. stvz - the return of the son of computer music e canções que eu gostaria de terminar um dia sem previsão.
sessão marmelada
Talvez você ainda não tenha ouvido esse cover punk de Ednaldo Pereira gravado por Stvz: originalmente programada para fazer parte do próximo EP da Bagdá Mirim, a canção acabou sendo lançada como single para os assinantes da nossa newsletter, por motivos jurídicos. Ouça em chupamanga.bandcamp.com/track/ what-is-the-brother e inscreva-se em chupamanga.tumblr.com/join
Aproveitando o embalo do seu primeiro EP, os Rabanadas acabaram fazendo praticamente uma turnê involuntária e espaçada por três estados, tocando pela primeira vez na vida em Brasília, depois no Rio de Janeiro e enfim em Porto Alegre (foto de Fábio Alt). Agora o céu é o limite. Para quem gostou do disquinho, você pode aprender as duas primeiras canções em versões simplificadas ao lado, para animar aquele luau ou festinha com os amigos antenados.
chupa manga sing along eu não preciso de vocês AGAG AGEG glutamato dentro do meu prato ciclamato de nitrosamina expessante, emulsificante sorbitol, xilitol, sacarina DC INS 223 AGAG AGEG corante, fenilalanina acidulante e eu nem sei mais o quê até aspartame, aromatizante conservador pra durar na estante DC eu não preciso de vocês AEG © Stêvz, Clara do Prado Rabanadas - EP (CHUPA.024, 2017)
cozinhar é um ato revolucionário (e lavar a louça também) Bb(6) C(6) Bb(6) C(6) G(6) agora eu vou cozinhar a minha própria comida F Dm C descasca, corta e tempera refoga e não deixa queimar esquenta a água pra regar mistura e lembrar de provar Bb(6) C(6) Bb(6) C(6) G(6) é bem melhor do que pagar ou só ter que descongelar F Dm C aquece o forno para assar depois assopra pra esfriar e no final só vai sobrar toda essa louça pra lavar
ENSAIO
por uma cultura do olho no olho Entre a vigilância do poder vigente e dos fiscais de cool, eu só quero me divertir Ali na primeira metade dos anos 2000 foi quando saí de casa pela primeira vez para ir a um show sem meus pais ou qualquer outro tipo de adulto responsável. O evento em questão era, na verdade, um pequeno festival organizado em uma escola por pessoas um pouco mais velhas do que eu, que era apenas uma jovem cheia de sonhos entrando no início da adolescência. Não sei bem porquê, mas esse dia foi muito marcante. Consigo lembrar detalhes específicos: minha roupa preta, a companhia de uma colega de classe, um cover de I will survive feito por uma banda de rock de meninas e a aproximação de um rapaz que se apaixonou por mim mas foi parar no posto de melhor amigo, algo que os novinhos de hoje chamariam de friendzone (termo que considero horrível, objetificador e que não abarca a sinceridade que deveria existir em amizades verdadeiras). Passei uma grande parte da minha juventude frequentando shows, principalmente de punk e hardcore. Quando cansei de todo o machismo extremo que era reproduzido por muitas pessoas desses meios, em uma época em que cristianismo se mesclava ao straight edge e gerava uma maquininha de robôs que consumiam uma estética agressiva e contracultural que ficava só nas tatuagens mesmo, migrei para festas gays e – ou – alternativas. Foi aí que, finalmente, comecei a conhecer gente que dialogava um pouco mais com os meus desejos. Me diverti, dancei e conheci figuras um pouco mais abertas para as diferenças da vida. Contudo, não é que exista um antagonismo maniqueísta entre os tipos de eventos aqui relatados. Foram nos
por maíra valério
shows que entrei em contato com zines incríveis e conheci mulheres feministas ao vivo – antes, feminismo era algo distante, que só aparecia em músicas ou revistas. E nas festas também existia a reprodução de preconceitos e conflitos diversos. Nada é perfeito. De qualquer modo, para além de todas as especificidades das minhas experiências em espaços distintos, guardo uma memória carinhosa desses anos. Lembranças afogadas em meio a rancores e dissabores, claro, pois crescer é acumular amor e ódio, já diria o velho ditado (que acabei de inventar). Não sei se minha visão está embotada pelo tempo, embalada naquela espécie de nostalgia que faz o passado parecer mais interessante do que realmente foi, ou se existia algo de diferente mesmo. Não me entendam mal: não sou o tipo de pessoa que acha que o mundo era melhor antigamente. Hoje, quando visito escolas para realizar atividades com adolescentes, me alegra muito ver pessoas que parecem muito mais libertas do que a minha geração. Cabelos crespos soltos, LGBTs assumidos, jovens integrados em muitas das discussões políticas que acontecem atualmente, tudo isso enche o meu peito de esperança. Contudo, quando penso nos lugares que frequentei anos atrás, às vezes sinto que o espírito industrializado que assola a nossa época tomou conta de tudo. Festas em quintais ou casas de conhecidos, shows em espaços abandonados no parque do centro da cidade, eventos em lugares estranhos, como uma serralheria ou um galpão: cadê? Envelheci tanto assim ou, realmente, a diversão coletiva
e o compartilhamento de ideias por meio da cultura estão cada vez mais cerceados e limitados na cidade em que vivo? Nos acostumamos a engolir farsas seja pela praticidade, falta de conhecimento ou, principalmente, de dinheiro mesmo. Vivemos na era do ultraprocessamento e isso, de certo modo, arranca um pouco a nossa conexão com a historicidade de costumes, sabores e tradições. Conservantes, açúcares, grandes quantidades de sal, emulsificantes, aromatizantes e tantas outras substâncias colaboram com a uniformização do sabor e da aparência de alimentos – e com uma maior durabilidade deles nas prateleiras dos supermercados. Produto alimentício virou sinônimo de comida. Porém, pão e sorvete industrializados, por exemplo, são meras simulações do que eles realmente deveriam ser. Quando pensamos em música, o mesmo acontece: personas pop que não deixam de simbolizar procedimentos de refinamento e massificação são alçadas ao posto de salvadoras da pátria. Percebo que mais do que a divisão entre coxinhas e mortadelas, um fator fundamental separa as pessoas que conheci: quem acha que o independente ou alternativo era só uma fase e quem entende esse meio como um fazer que abrange um estilo de vida que busca, por que não?, uma nova forma de organização social. Sinto falta de me conectar com ideias, crenças, conceitos e não simplesmente com uma mera estética que se enquadra na minha proposta virtual de autonarrativa. Estamos todos imersos em uma efervescência de projetos autorais incríveis, facilitados pelas novas tecnologias. Gravar, distribuir, divulgar: tudo se tornou mais acessível. E mesmo o cenário mainstream está mais diverso, colorido e amplo, felizmente. Porém, sinto falta de um olho no olho, sabe? De lazer barato, de cerveja na calçada, de mais gente empolgada por assistir a um show daquela pessoa ali, gente como a gente, colocando a cara a tapa e entregando o próprio coração para o público.
Sinto falta de festas pequenas, íntimas, em que as pessoas coloquem sons que realmente gostem e não estejam necessariamente pensando em bombar – e não sei se, para isso voltar a se concretizar, preciso fazer amigos mais jovens ou mais velhos. Só sei que, nas últimas vezes em que fui a um show independente, a polícia parou na porta e fotografou o rosto de todo mundo que estava presente. Ou mandou interromper a programação, oito horas da noite, simplesmente porque sim. Enquanto isso, colegas da área que poderiam ter alguma voz dentro dessa disputa decidiram transformar os próprios eventos em esquemas ultraprocessados. Vende mais, é mais popular, sabe como é. E, vejam bem: estou falando do centro da cidade. Em outros locais do Distrito Federal, o esquema “branco sai, preto fica” ainda acontece fortemente, não é apenas uma longínqua inspiração para filme. Interrupção de festas, criminalização de estilos, tudo isso é uma realidade viva, pulsante, latente. E amedrontadora. Portanto, existem vitórias a serem celebradas quando se pensa em um contexto cultural, principalmente quando se observa o macro. Mas o cotidiano de quem não é visto pelas lentes embelezadoras da fama ainda é cheio de obstáculos. Viver, de um modo geral, não é fácil. Existir me parece sempre um fardo insuportável cujo peso a gente expia por meio de expressões artísticas visuais, sonoras e afins. A tentativa de bloqueio desse compartilhamento como forma de controle social, o abandono dessa ânsia por parte de quem poderia somar forças e a constante batalha dos que se recusam a desistir me causam um misto de angústia, tristeza e felicidade. Embalo esses sentimentos com músicas que tocam nos meus fones de ouvido enquanto a solidão da minha própria companhia causa uma sensação agridoce de paz e isolamento. Sair de casa buscando evitar o excesso de mediação, autorização e a necessidade de legitimação por parte dos poderes vigentes ou dos fiscais de cool não é um mero entretenimento: é necessidade.
por gomez QUADRINHOS