Chupa Manga Zine nº 1

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chupa manga zine

número 1 / agosto 2015

EXCLUSIVO : CHAPA MAMBA CHEGA AO FIM ! E MAIS : BRIAN ENO VAPORWAVE JOHN CAGE JAGUARIBE CARNE QUADRINHOS ROCK AND ROLL AUTOTUNE JORGE ANTUNES FRANK ZAPPA BUMBA MEU BOI


chupa manga zine

número 1 / agosto 2015

EXPEDIENTE editor-chefe Stêvz colaboram nesta edição Biu Ramos, Diego Gerlach, Gabriel Guimarães

cbna

agradecimentos Bruno Azevêdo, Clara do Prado, Mário Arruda, Nina Puglia fale conosco chupamangarecords@gmail.com chupamanga.tumblr.com

Impresso na Ideograf (RS) durante o gélido inverno de 2015

Chupa Manga Records Porto Alegre - Brasil

na capa, a etnóloga Frances Densmore grava o chefe dos índios Blackfoot de Montana, em um fonógrafo de cilindro, para o Bureau of American Ethnology (1916)


(uma espécie de)

editorial

Caro leitor ou leitora, você tem em mãos um raríssimo e histórico exemplar da primeira edição do chupa manga zine, uma publicação dedicada a esmiuçar os segredos picantes desse selo peculiar de música independente brasileira e universal – além de outras divagações urgentes e diversas sobre o cenário cultural do planeta, desde os primórdios do batuque em osso de mamute às novíssimas inovações no campo da música eletrosináptica, ainda a ser implantadas como forma vigente de apreciação de massa. Tudo isso em 48 páginas recheadas de textos cuidadosos, imagens selecionadas a dedo e minúsculas notas de rodapé com curiosidades extravagantes. Música é mesmo um assunto inesgotável, vocês hão de convir. E tendo em conta a perturbadora conjuntura psíquica dos nossos tempos, nada melhor do que um "zine" para exorcisar de vez os demônios da misantropicália digital e integrar-nos em conexão tátil, mesmo que à distância, com a comunidade global nos circuitos artísticos, acadêmicos e com o público apreciador – sem esquecer da crítica especializada, naturalmente, que é para quem todos fazemos as nossas estripulias no fim das contas. Agarre-o (o zine, não o crítico) com unhas e dentes, ou depois não diga que não avisamos. Não foi fácil chegar até o fim desta edição, mas deverá a história, ao menos, "creditar-nos o mérito da perspicácia". See ya.


SESSÃO MARMELADA

exclusivo: chapa mamba chega ao fim A dupla de rock lo-fi que surpreendeu o país com seu aclamado e auto-intitulado álbum de estreia garante que os fãs mais afoitos não devem (ainda) cometer o suicídio, já que esse é um passo natural para sua carreira. Como qualquer banda de grande porte que se preze, após o lançamento de dois discos de estúdio (S/T, Banda Forra), um split em vinil (Ipsilone) e um punhado de singles (Le Lab de Lux Sessions, Desviando dos Selfies) em um período de menos de dois anos, o grupo já não dava conta da rotina incessante de turnês e shows em estádios lotados. A notícia, divulgada com exclusividade nesta renomada publicação, já corria à boca pequena nos corredores dos festivais internacionais e redações de blogues especializados, apesar – e possivelmente por causa – do sucesso evidente dessa galopante trajetória.

Procurado pela imprensa, o baterista Bruno "Bigode" Lima preferiu não comentar em maiores detalhes. O músico, que agora investe no mercado de bebidas alcoólicas e baixa gastronomia de São Conrado, mal vê a hora de acabar logo com isso. "Já era hora", opina ele.


Chapa Mamba: entretendo multid천es [continua]


O grupo, que nas últimas apresentações contava com o reforço do chapa João "Binho" Magalhães nos graves, vinha cumprindo uma rotina rigorosa e exaustiva de ensaios, em meio a pedais com mal-contato, amplificadores queimados e garrafas de cerveja vazias. O anúncio oficial, esperam, virá ainda no segundo semestre deste ano. Mas o guitarrista e frontman Estêvão "Stêvz" Vieira, que mudou-se para Porto Alegre no início de abril, já adianta o que todos suspeitavam: Sim, após um período conturbado, o Chapa Mamba chegou ao fim... de mais um disco! Não podemos afirmar ainda a data de lançamento, mas o título é (se preparem, lá vai) "O Campo Sutil".

Através da assessoria de imprensa da banda, tivemos acesso a alguns trechos do release (ainda em análise pelo nosso setor jurídico), que divulgamos a seguir, em primeira mão: Em O Campo Sutil, o grupo Chapa Mamba volta a explorar sonoridades familiares do rock de garagem e psicodelia tupiniquim, em canções fáceis e de forte apelo popular, com poucas letras e muita ação. Em alguns momentos, ainda, uma veia mais groove invade o tracklist, provando que os rapazes não se atém apenas a hits

grudentos (que fabricam com facilidade impressionante) ou a experimentalismos herméticos e proezas técnicas. Com rigorosa produção assinada pelo búlgaro Zanzi Frånvarande e distribuição internacional via correios e telégrafos, trata-se de uma obra prima do gênero, desde a faixa de abertura até o último acorde em fade out. "Gravamos tudo de primeira, o problema é decidir o que vai aonde depois", contam. Em mais uma produção de baixo orçamento (para os padrões de Hollywood), os arranjos econômicos e temas cotidianos apontam para a simplicidade. Mas seja no toque dos tambores africanos ou na cítara aborígene automática, desde a orquestra sinfônica contratada para a ocasião até os encantadores de elefantes, tudo leva a indicar que a gravadora não poupou esforços para que o álbum venha a figurar nas listas de melhores lançamentos gratuitos de rock independente cantado em português do segundo semestre de 2015 – garantindo assim o seu merecido lugar na posteridade. Apesar da ampla categoria, trata-se de um disco inclassificável. Longe de se ater a rótulos ou estereótipos, a banda arrisca até um cover em inglês do cult glam Twisted Sister. "Sempre gostamos de rock pauleira", afirmam eles.

Nada como manter os pés no chão. Em breve, nas melhores casas do ramo.


estratégias oblíquas Criado em 1975 por Brian Eno e Peter Schmidt, este é o título de um deck de cartas que pretende resolver (ou ao menos prover dilemas dignos de consideração, como o subtítulo sugere) qualquer bloqueio criativo. Através de centenas de interessantes aforismos, o leitor pode tentar a sorte "fora da caixa" com as frases, que vão de extremamente específicas e voltadas para a área musical, até conselhos genéricos de auto-ajuda, e certamente conseguem gerar alguma reflexão. Seja influenciando o pensamento lateral ou as livres associações, as Estratégias Oblíquas são uma forma de repensar o próprio ato criador, ao proporcionar questionamentos aleatórios que podem auxiliar qualquer trabalho tão incerto como o da composição de sonatas ou do artesanato de miçangas. Veja abaixo alguns deles:

canal esquerdo, canal direito, canal central apenas um elemento de cada tipo observe a ordem em que você faz as coisas não tenha medo de clichês junte alguns dos elementos em um grupo e trate o grupo descubra suas fórmulas e as abandone enfatize as falhas está terminado? confie no você de agora 5



ENTREVISTA

uma foda bem dada

Uma iniciativa “do barulho” vem chamando a atenção dos moradores de Brasília e das cidades do entorno – diria a chamada televisiva, em tom de juventude, na matéria hipotética que infelizmente nunca foi e provavelmente não será feita nem veiculada sobre a festa de ocupação dinâmica da área pública, um grupo colaborativo entre bandas, produtores e entusiastas do underground que se uniu em prol de ocupar espaços públicos do Distrito Federal com ações culturais. Com mais de 25 edições no currículo, a iniciativa tem salvado a capital federal do marasmo e da dependência de casas de show, mega-eventos e editais, levando apresentações musicais para espaços mal-utilizados da cidade. Conversamos com a geógrafa Nina Puglia, que, juntamente com o historiador Everaldo Maximus são dois dos maiores responsáveis pela organização da F.O.D.A. Pública, para entender como isso tem acontecido.

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por que ocupar espaços públicos? Porque realmente acreditamos que é uma maneira de exercer nosso direito à cidade. Não aceitamos o discurso da violência generalizada, disseminado especialmente pela grande mídia. O DF, como um todo, tem muitos espaços públicos completamente abandonados porque as pessoas têm medo de sair de casa, por considerarem perigoso. Na verdade, acreditamos que a questão da ocupação é que gera a segurança, pois se os espaços não são ocupados pela própria comunidade com atividades saudáveis, outros irão ocupar para atividades questionáveis. Além disso, temos uma lei distrital que respalda as manifestações culturais em vias públicas. o que motivou a criação do evento? A ideia surgiu de uma inquietação que sentimos depois de uma viagem à Cidade do México em janeiro de 2014. Ao longo das nossas andanças por lá, percebemos que muitos lugares de uso comum, como praças, estações de metrô e feiras (em quase todas as esquinas) estão sempre cheios de gente. É claro que é uma cidade enorme, mas a questão é que os mexicanos não estão só passando, eles(as) conversam, se encontram, trocam ideias, comem, enfim, interagem entre si com e nos espa-

ços públicos da cidade. É diferente de São Paulo, por exemplo, que é também uma megalópole. Voltando a Brasília, nos deparamos com duas notícias que ilustravam uma situação completamente oposta ao que vimos durante a viagem: primeiro os moradores do Lago Norte estavam reivindicando o cercamento do calçadão da Asa Norte, com o argumento de que com os sucessivos eventos gratuitos acontecendo por lá, aparecia um público "indesejado", se é que você me entende. A outra foi que os moradores de uma quadra da Asa Sul estariam fazendo um abaixoassinado para impedir a construção de uma creche anunciada pelo GDF. Pensamos: o que diabos esse povo tem na cabeça? Então em fevereiro juntamos uma galera, fizemos uma vaquinha pra comprar um gerador portátil e saímos pelo DF afora fazendo shows e intervenções nas ruas. E esse é o nosso principal recado: a rua é de todos(as). como é escolhido o local de cada edição? qual o critério? Selecionamos áreas públicas que tinham alguma finalidade de atividade comunitária – como uma praça, uma pista de skate, um anfiteatro – mas, por algum motivo, estejam abandonadas, degradadas ou subutilizadas. Muitas vezes contamos com indicação de al-


guma banda local que vai participar da edição em questão. O evento já foi realizado em aproximadamente 18 cidades diferentes do DF. como anda a cena independente por aí, e como a foda se insere nela? Na minha opinião, a cena musical do DF está em um momento bastante peculiar. Por um lado, é notório que temos uma proliferação de bandas. Por outro, nunca tivemos um déficit tão grande de locais para tocar – esse também é um dos motivos pelos quais decidimos ocupar as ruas. Todos os equipamentos públicos para esta finalidade estão fechados ou em reforma e quase não há pubs ou casas de show e, em parte, isso se deve a uma onda de conservadorismo que estamos vivenciando. Muitos locais que apoiam a música ao vivo estão sendo duramente reprimidos pelos órgãos fiscalizadores, supostamente por conta de barulho denunciado por vizinhos. O que respalda isso é a chamada Lei do Silêncio, que diz que o volume de ruído não pode ultrapassar 50db – o que mesmo o barulho do trânsito já ultrapassa. O "curioso" é que, por acaso, a aplicação dessa lei tem sido feita somente em locais que oferecem música ao vivo, mas não nos cultos das igrejas, por exemplo. Por conta disso, há um grupo já mobilizado de músi-

cos e produtores que buscou apoio de alguns deputados para rever a Lei do Silêncio. Esse processo está rolando ainda. Uma outra causa para esse problema são os muitos anos de uma política pública para a cultura equivocada, que privilegiou a execução de grandes eventos gratuitos produzidos por meia dúzia de grandes produtores em detrimento da construção de uma cena local forte, com estratégias de formação de plateia, valorização dos artistas brasilienses, descentralização das ações, para que todas as cidades do DF tenham opções de eventos culturais. Como a cereja do bolo, temos um rombo nas contas públicas deixado pela legislatura anterior. Ou seja: o fomento público minguou. O lado bom disso tudo é que a cena cultural independente e underground, que sempre existiu e sempre resistiu, acabou virando inspiração pra novos movimentos e coletivos que vem surgindo. É isso é incrível, pois fez uma onda de efervescência cultural ressurgir das cinzas. existe algum intercâmbio com bandas de outros estados? e com a cena vizinha de goiânia, por exemplo? Nós já conseguimos fazer shows de algumas bandas de fora do DF, como Chapa Mamba e Lê Almeida do Rio, Zefirina Bomba da Paraíba, e Pedrada


e Machanics de Goiânia. Teve até show internacional! A banda Novonada, da Inglaterra, estava passando por aqui e puxamos eles pro evento. Sempre que surge uma oportunidade, a gente tenta encaixar uma banda de fora. Isso é muito importante, pois ajuda a fortalecer os circuitos independentes e, mais ainda, o espírito de colaboração entre bandas, eventos e cidades. Em relação a Goiânia, sempre houve um fluxo entre as duas cidades, embora de forma muito pulverizada. O que é uma coisa meio doida, porque as duas cidades são grandes, muito próximas, são cheias de bandas, mas faz tempo que esse intercâmbio não está muito bem organizado. Nós temos um diálogo muito bom com o pessoal da Monstro, então a ideia é estreitar os laços e fortalecer ainda mais esse circuito. há algum tipo de animosidade por parte da polícia ou de moradores com o evento? como lidar com isso? Nós temos uma lei que autoriza as manifestações culturais em espaços públicos. Qualquer cidadão pode fazer atividade cultural na rua, desde que comunique previamente a Administração Regional (que é equivalente a uma prefeitura) e que não tenha nenhum tipo de estrutura, não interrompa trânsito nem circulação de pedestres e respei-




te o horário da Lei do Silêncio, que é a partir das 22h. Cumpridos esses critérios, a realização é livre. Nós tivemos um único incidente com polícia, logo no início, na 2ª edição. Apresentamos o protocolo da Administração ao policial, mas ele insistia que teríamos que ter uma autorização ou alvará. Puro desconhecimento da Lei. Ele chamou o oficial, que quando chegou e viu do que se tratava, nem se deu ao trabalho de impedir o evento e mandou deixar rolar. Detalhe: era carnaval, milhares de blocos e pessoas na rua e o cara resolveu implicar com a gente. Vai entender... Fora isso, nunca tivemos problemas. Pelo contrário: em todos os lugares que passamos fomos acolhidos pela comunidade. existe um tipo de público cativo, ou isso varia de acordo com o local? Não existe um público alvo específico. O público é quem está ali na hora. Do cara que tá voltando do trabalho, da mulher que ouviu o som de casa e resolveu ver o que tava rolando, do morador de rua, dos adolescentes que saem pra beber Cantina da Serra na pracinha, do pai que saiu com o filho pra dar uma volta de bicicleta, do skatista, enfim, qualquer pessoa que brote por lá é bem vinda, a ideia é que seja totalmente espontâneo.

quais os planos para o futuro? Nossas metas agora são comprar um equipamento de som melhor e juntar o que temos de material gravado pra produzir um documentário. Acho que o principal fruto que temos colhido é estar servindo como inspiração para outras iniciativas. Muitas pessoas nos procuraram pedindo informações, e querendo saber como nós fazemos o evento. Depois de um tempo a gente fica sabendo que essas pessoas estão fazendo algo parecido. É muito massa mesmo ver a coisa se proliferando. por fim, o rock está morto? Como disse Everaldo: "morto não, mas respirando com a ajuda de aparelhos".

ao lado, o fim de mais uma F.O.D.A., em foto te Marcos A. Gomes na página anterior, a banda Valdez ocupa a área pública no início da matéria, as preliminares de uma edição em foto de Maurício Kozak


musicando burocratas Você sabia que o compositor Jorge Antunes[1] propôs, em uma constituinte de 1988, a reformulação do hino nacional para algo mais popular e compreensível? "Muita gente acha que o hino foi escrito por Deus, e não pode ser mudado, mas tem apenas 66 anos", lembrava o maestro em uma entrevista da época. A seguir, os transeuntes demonstravam seu desconhecimento da letra e do significado (pra não falar da melodia) do hino. Segundo ele, era preciso realizar uma revolução com música, coisa que já havia proposto em 1984 com a brilhante Sinfonia das Diretas, uma obra que estetizava o comício no período da reabertura política. Centenas de voluntários tiveram seus carros classificados de acordo com o tom da buzina (dó, sol, si bemol), e dispostos em fileiras que foram regidas pelo maestro. Assim como as trombetas que derrubaram as muralhas de Jericó, as buzinas dos 322 automóveis e 8 bicicletas promoveram um protesto estridente e inusitado a favor das eleições diretas no país. Mas sua obra mais polêmica ainda estava por vir. Por anos, Antunes procurou o Banco do Brasil em busca de patrocínio para a ópera Olga e outros projetos, os quais foram repetidamente negados em uma série de cartas formais. Em 1996, o compositor carioca Guilherme Bauer apresentou, ao mesmo Banco do Brasil, o projeto de uma série de concertos que trariam obras inéditas de 34 compositores – dentre eles, o maestro. O projeto foi aprovado, e Antunes compôs a obra Seis Missivas BB, para barítono e piano. Nela, musicava trechos das cartas de rejeição do próprio banco. O texto, burocrático e hipócrita, ganha um valor irônico impagável[2], no contexto sério da música de câmara. Sua peça foi excluída do programa, e Antunes não foi pago pelo trabalho, o que sem dúvida deve ter rendido alguns processos judiciais.

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Reproduzimos, a seguir, alguns trechos do libreto:


Seis Missivas BB Jorge Antunes

I. CCBB, 1995 negando apoio às mini-óperas O rei de uma nota só… Prezado senhor, ao tempo que agradecemos o interesse de vossa senhoria, em realizar em nosso espaço o seu projeto, lamentamos informar que não foi possível, absorvê-lo em nossa programação de mil novecentos e noventa e cinco. O material apresentado, encontra-se a disposição de vossa senhoria, de terça a sexta-feira, das treze às dezoito horas. Na secretaria do Centro Cultural sexto andar, até o dia trinta do seis de noventa e cinco. II. FBB, 1996 negando apoio à ópera Olga Referimo-nos ao ‘’SIC’’, correspondência de vinte oito do cinco de noventa e seis, através da qual vossa senhoria solicita auxílio financeiro destinado ao patrocínio da opera Olga. Sobre o assunto, cabe-nos informar que lamentavelmente, estamos impossibilitados de atender, uma vez que o conselho curador da Fundação Banco do Brasil, estabeleceu como prioridade projetos ligados ao tema: “O Homem do Campo”. III. CCBB, 1996 negando apoio às mini-óperas Agradecemos seu interesse em participar da programação do Centro Cultural Banco do Brasil, para mil novecentos e noventa e seis. E informamos que em razão de sua proposta não ter sido selecionada, estamos devolvendo em anexo o projeto encaminhado por vossa senhoria. (Enfia a gravata na boca) Informamos ainda que a proposta pode ser reapresentada, (Tira a gravata da boca) Para apreciação futura… (Enfiando novamente a gravata na boca) Em modelo a ser fornecido pelo hum hum hum hum…

[1] Nascido e criado na rua Orestes, em frente à antiga fábrica da Bhering em Santo Cristo, no Rio de Janeiro, o maestro Jorge Antunes é um dos pioneiros da música eletroacústica no Brasil, mas sua obra engloba um catálogo instrumental vasto, que inclui obras sinfônicas, música de câmara e óperas. Desde 1973 é professor da Universidade de Brasília, onde dirige o Laboratório de Música Eletroacústica e ensina Composição e Acústica Musical. [2] Lembramos também da peça Welcome To The United States, de Frank Zappa, executada pela Ensemble Moderne no álbum The Yellow Shark, de 1992. A orquestra interpreta de forma onomatopéica o formulário de entrada da alfândega dos EUA, lido na voz afetada do alemão H. Kretzschmar. Está no Youtube, é só procurar.


DO DADA AO MEME um século de remixes, samples, paródias, mashups e apropriação na arte e na música


No fim de 1920, o dadaísta Tristan Tzara escreveu um manifesto que incluía a seção Como Fazer Um Poema Dadaísta. As instruções eram: Pegue um jornal. Pegue uma tesoura. Escolha um artigo do tamanho do poema que você quer fazer. Recorte o artigo. Em seguida, cuidadosamente recorte cada uma das palavras do artigo e as coloque em uma sacola. Balance-a gentilmente. Retire cada um dos recortes. Copie as palavras na ordem em que saem da sacola. O poema se parecerá com você: um autor infinitamente original e sensível, incompreendido pelo rebanho.

Quase 90 anos depois, o escritor Austin Kleon começou uma brincadeira em seu blog que rendeu o livro Newspaper Blackout. Ele cria poemas com as palavras do jornal, apagando o que não lhe interessa. Ao ser questionado sobre a originalidade da idéia, iniciou uma pesquisa que o levou a diversos autores que já haviam experimentado com a mesma idéia, desde o século 18 a nomes como Tom Phillips, William Burroughs e o próprio Tzara. Sob a égide do "nada se cria, tudo se copia", Kleon escreveu seu sucesso seguinte, o best-seller Steal Like an Artist. A apropriação de material existente para a criação de novas obras não é novidade,

nem exclusividade do campo literário. As histórias em quadrinhos[1] já presenciaram verdadeiras batalhas judiciais entre grandes editoras e detentores de direitos autorais contra autores que ousaram cutucar os clássicos. Um dos casos mais notórios certamente será o do livro Katz, que parodia o premiado Maus, de Art Spiegelman. No primeiro, todos os personagens têm as cabeças trocadas por gatos. Mas o que poderia ser apenas uma molecagem inocente na verdade traz questionamentos profundos, e critica a obra original ao modificar esse aspecto de aparente irrelevância. A transformação dos personagens como comentário social, em contraposição à ideia de distinção racial que o livro original parece perpetuar, eleva o discurso a um nível muito


além da simples paródia. Mas, apesar das apropriações e reutilizações de obras alheias que o próprio Spiegelman emprega em seu trabalho mais transgressor, não se opôs a que sua editora processasse os autores do remix, obrigando-os a destruir todas as cópias do trabalho – em uma clara demonstração de corporativismo hipócrita. Outros casos recentes, mas sem implicações jurídicas (por enquanto), incluem o cômico Tintim Pelado no Congo, em que o herói aparece despido ao longo de todo o enredo, como uma vingança tardia e adolescente contra o histórico racista do livro; tiras de Garfield sem Garfield, onde seu dono John é deixado só, em crises existenciais profundas e possíveis delírios mentais; além do piratão brasileiro Capitão América e Seus Amigos, que relê as clássicas tiras americanas de domingo. Em matéria de desestruturação do imaginário vigente, o videoartista austríaco Martin Arnold propõe, em seu trabalho, desenterrar narrativas ocultas em cenas mundanas de filmes esquecidos. É o caso de Pièce Touchée, de 1989, por exemplo. Nele, Arnold estende por 15 minutos um fragmento de 18 segundos do filme The Human Jungle (1954), criando um novo e ambíguo olhar sobre uma cena completamente banal:

Mulher sentada em uma poltrona. Homem entra no quarto. Homem e mulher se beijam. Homem sai. Arnold repete a mesma ação, frame a frame, indo e voltando centenas de vezes, e a cena se desenrola como uma dança vertiginosa em que ambos não conseguem se decidir quanto a que rumo tomar. A tensão é constante, enfatizada pelo áudio repetitivo e frio de sua "máquina neurótica". O já citado Burroughs, além de recortes e colagens literárias realizou diversos experimentos sônicos dessa natureza[2]. Um dos pioneiros da colagem sonora, Charles Ives já utilizava gravações encontradas em sua música no início do século 20, mas, assim como os ready mades de Duchamp, não havia ainda o risco real (ou legal) da apropriação como a pop art passou a empregar, anos mais tarde. [continua]

Na página ao lado, em sentido horário: Katz, a paródia-comentário sobre o clássico de Spiegelman; Jeremia(s), de Gabriel Góes, explora a questão racial na Turma da Mônica; Tintim Pelado no Congo; e Dennis, o Pimentinha, leva uma surra na coletânea Legal Action Comics Na página anterior, um dos Newspaper Blackouts de Austin Kleon



De qualquer modo, essas e outras formas de recontextualização de material alheio tornaram-se corriqueiras com o aperfeiçoamento constante das tecnologias de gravação, e se confundem com a própria história do som gravado. No caso da música pop, os problemas podem ser maiores, como o grupo Negativland sentiu na própria pele ao ser processado pelo gigante U2 após lançar um disco em que parodiava e sampleava suas canções. Os excelentes e experimentais The Residents tiveram mais sorte com o EP The Beatles Play The Residents and The Residents Play The Beatles, de 1977, em que desconstruíram dezenas de canções dos garotos de Liverpool. Nada mais justo, o histórico de samples usado pelo quarteto ao longo dos anos incluia até a Marseillaise. O próprio John Lennon teria se aproveitado de uma sequência da Sonata ao Luar de Beethoven para criar a linda harmonia de Because (em Abbey Road, 1969), ao inverter a ordem dos acordes – apesar disso se tratar mais de uma fonte de inspiração do que apropriação propriamente dita, o que comprova a tese marqueteira de Kleon, de roubar como um artista. Para Stravinsky, “um bom compositor não imita, ele rouba”. Apesar de tratar-se de frase de efeito, revela a dessacralização e pragmatismo de um dos músicos mais inovadores

dos século 20 com relação a sua arte. Na forma de citações e referência escancaradas, a canção Ryhmin’ Man (de Frank Zappa, admirador confesso do compositor russo, em Broadway The Hard Way, de 1988) serve como um bom exemplo. Com ecos de Spike Jones, a cada dois compassos um tema familiar é intercalado com os versos, enfatizando aspectos cômicos da letra. Em outros casos, Zappa sampleia a si mesmo, como Lennon o fez em Glass Onion e Ives o fazia décadas antes, em seus cenários sonoros. Frank cunhou o termo “xenocronia” para a técnica em que utilizava duas ou mais gravações distintas em fórmulas de compasso diferentes sobrepostas, criando o efeito de uma performance impossível e de efeito quase aleatório – como na faixa Rubber Shirt (Sheik Yerbouti, 1979), em que uma bateria em 11/4 e um baixo em 4/4 conversam de forma inusitada, estabelecendo relações rítmicas complexas, e de dezenas de outras em que solos de guitarra de apresentações ao vivo são inseridos a posteriori em gavações de estúdio. A colagem, de modo geral, está presente em sua discografia desde os primórdios, como no clássico Lumpy Gravy, de 1967, em que camadas e camadas de elementos sobrepostos, picotados, acelerados e revertidos, criam uma trilha sonora imaginária que


inclui trechos que seriam reutilizados em outros de seus álbuns mais de vinte anos depois. O próprio Zappa seria sampleado nos experimentos sônicos do jovem Kurt Cobain[3], na famosa faixa Montage of Heck, da qual, dentre outros, certamente também serviu de inspiração. Porém, se a técnica da colagem já era utilizada há muito tempo, um dos casos mais interessantes de apropriação, remix e desmembramento de canções no mundo da música pop veio em 1985, com o manifesto Plunderphonics (algo como pilhagem sonora), do canadense John Oswald. Inspirado pelos cut-ups de Burroughs, ele descreveu o conceito assim: Um planderfone é uma citação sonora reconhecível, usando o som real de algo familiar que já foi gravado. Assobiar um compasso de Density 21.5 é uma citação musical tradicional. Pegar Madonna cantando Like a Virgin e regravá-la de trás pra frente ou mais lento é planderfonia, contanto que você possa reconhecer razoavelmente a fonte. A pilhagem tem de ser evidente.

Ou seja, o que torna o método interessante é a adaptação e a criação de um novo contexto para o som, com a

origem ainda reconhecível. É o mesmo princípio que os situacionistas franceses, anos antes, empregavam em seus détournements[4] (ou desvios) – embora no caso de Oswald os objetivos sejam menos revolucionários do que puramente musicais e estéticos. Em um guia de 1956, eles orientavam: "As distorções introduzidas nos elementos desviados devem ser de ordem mais simplificada possível, já que o principal impacto do desvio é diretamente relacionado à lembrança consciente ou semiconsciente do contexto original dos elementos". Para os situacionistas, o desvio é o oposto da citação. John Oswald também teve problemas com direitos autorais, apesar de deixar claro a natureza experimental e sem fim lucrativos de seu trabalho. Em 1990 foi processado pelo uso indevido da música Bad, de Michael Jackson, que retalhou de forma brilhante no álbum Plunderphonic, e teve de destruir todas as cópias do disco. Mas seria apenas natural que, a medida que os equipamentos de áudio se tornassem cada vez mais banais, e o corporativismo mais impregnado e predominante, esse tipo de recurso voltasse à tona com força total. O ouvinte passou a ser convidado para o território criativo, e a interagir diretamente sobre a estrutura das canções. Em um trecho do livro


abaixo, a capa do polêmico disco Plunderphonic, de John Oswald, e detalhe do encarte

How Music Works, David Byrne analiza o fenômeno das mixtapes – uma forma muito mais inocente de apropriação[5] –, advindas com a popularização da fita cassete: "As músicas de outras pessoas, coletadas e ordenadas de formas infinitamente imaginativas, se tornaram uma nova forma de expressão". Todo um gênero se desenvolveu, no começo do século, em cima desses dois conceitos: a recontextualização como forma expressiva e o ruído enquanto crítica. Herdeiro da planderfonia, mas criado exclusivamente no domínio digital, o vaporwave[6] clama para si o direito de interferir no rumo da canção com as próprias mãos (ou cursores), picotando e dando novos sentidos para qualquer tipo de gravação e arquivo alheio. Assim como no caso de Katz, pode servir como um comentário irônico sobre ela. Pelo menos no início, havia uma ideologia política por trás disso: uma proposta de sublimação musical do capitalismo/consumismo em uma tentativa de revelar seus próprios podres através do ridículo, do kitsch e da distorção. Ainda segundo Oswald, um de seus precursores, “toda música popular, essencialmente, senão legalmente, é de domínio público. Ouvir música pop não é uma questão de escolha”. O vaporwave, se utiliza des-


ses signos impostos e onipresentes da cultura de massa (especialmente do início deslumbrado e ingênuo da internet, nos anos 90) para ridicularizar a própria idéia de modernidade e liberdade representada por eles. Porém, vive dentro da ambiguidade de, por um lado expor a falência e as idiossincrasias do consumismo e das instituições através do ruído, e por outro acabar por glorificar essas mesmas instituições pela simples repetição. O filósofo esloveno Slavoj Žižek argumenta sobre o détournement que, ao atacar e se distanciar dos signos do capital, o sujeito cria uma fantasia de transgressão que mascara sua verdadeira cumplicidade com o capitalismo como sistema de influência abrangente. É apenas uma questão de tempo até que qualquer sub/contracultura seja englobada pelo establishment e se torne um pastiche dela mesma. Nesse caso, a cópia da cópia da cópia. Embora o vaporwave tenha surgido como tentativa de crítica ao capitalismo e à sociedade de consumo, não pode existir fora deles. Superada a ideologia, sobrevive a estética visual (criada sobre design ruim dos anos 90, degradês e malhas tridimensionais, pixels aparentes e glitchs distorcidos) e sonora (criada sobre timbres sintéticos de baixa fidelidade, new wave e easy listening barato, além da

despreocupação com direitos autorais). No Brasil, há nomes que se apropriam da estética vaporwave, como os mineiros do The Innernettes e os gaúchos do Supervão[7]. Em termo musicais, todo esse papo pode ser percebido como a velha batalha entre o neo e o pós-estilo, ou de nostalgia versus inovação, mas sua influência pode ser notada além da música, na forma como o farto material disponível na internet – em matéria de texto, áudio e imagem – esteja constantemente passível de tornar-se objeto humorístico, sem qualquer distinção. Para os situacionistas, quaisquer elementos, não importa de onde forem tirados, podem ser usados para fazer novas combinações. Quando dois objetos são postos juntos, não importa o quão longe de seus contextos originais, uma relação é sempre formada. É o caso, no cinema, de um dos princípios da montagem. O "Efeito Kuleshov"[8], ao alternar planos de elementos distintos, cria uma relação de novos significados implícitos para o espectador. A cultura do mashup, por exemplo, faz uso tanto dos elementos da colagem sonora como de recontextualização de material alheio, através do macro-sample, para criar uma nova música: uma terceira obra sonora através da junção de outras duas. Diferente da xenocronia de Zappa, geralmente o


critério estético para essa junção é justamente a coincidência de andamento e elementos harmônicos entre as duas (ou mais) peças escolhidas. Também já completamente assimilada pela cultura de massa, essa modalidade hoje conta com aplicativos e sites que permitem criar o mashup para o usuário. Ao entrarmos no novo milênio, a questão da propriedade intelectual dentro do universo digital está longe de ser resolvida. Licenças como o Creative Commons e noções de fair use podem ser distorcidas para driblar vídeos do Youtube e compartilhamento de arquivos, mas embora as grandes corporações ainda se agarrem com unhas e dentes ao copyright e a seus advogados, nada é sagrado e, como sabemos, "a zoeira nunca termina". Os últimos anos viram o surgimento de mais uma modalidade de comentário através do absurdo e do desvio: o autotune. Talvez indissociável do conteúdo visual, essa nova forma de divertimento por vezes gera objetos de inquestionável valor musical, como os já clássicos Jeremias Muito Doido, Nada de nada de Seu Madruga, Hide Your Kids Hide Your Wife (Bed Intruder Song), dentre muitos outros, que proliferam em velocidade estonteante. Mas, por mais datado que o contexto dos memes possa se tornar, em períodos

cada vez mais curtos de tempo, seus signos influenciam o comportamento e a linguagem contemporâneas de forma incontrolável (e incontestável). Embora na maioria das vezes desprovida de objetivo crítico ou político – o meme como fim em si mesmo, a zoeira cínica e niilista do nonsense – essa nova e volátil linguagem tem o poder de se tornar senso comum. A viralização de conteúdo e trejeitos linguísticos tende a se tornar mais previsível e passível de fabricação, pelos detentores das informações e análises comportamentais de cada público-alvo. O uso do recurso memético como propaganda não é muito diferente da domesticação da arte urbana ou do movimento punk, e não menos previsível. Para onde iremos a partir daqui? Poderá o meme se transmutar em uma forma de arte válida ou relevante? É difícil dizer, mas o acesso às ferramentas de desconstrução certamente caminha mais velozmente do que a restrição ao conteúdo – seguido de perto, é claro, pela iminente domesticação. De qualquer forma, não há com o que se preocupar: a música ficará bem. Afinal, como escreveu Thomas Mann, "essa estranha arte tem por índole a capacidade de reiniciar a cada instante sua jornada a partir da estaca zero".


[1] Mais sobre o tema no artigo Comix Remix, de Marcos Farrajota, em chilicomcarne.blogspot.pt /2013/02/comix-remix-parte-i.html [2] Alguns dos seus experimentos de colagem sonora podem ser ouvidos em ubuweb.com/sound – além de centenas de outros arquivos fabulosos e históricos de uma infinidade de autores. [3] Cobain também colaborou com Burroughs, musicando ruidosamente a leitura de The "Priest" They Called Him, em 1993. [4] Détournement, ou desvio, é uma técnica de subversão percepcional pela alteração do contexto, com forte viés político. Utilizada pelos franceses da Internacional Situacionista na década de 50, movimento que influenciou desde os levantes estudantis de 1968 à estética do punk, procura "tornar expressões do sistema capitalista e sua cultura de massa contra si mesmas". A intervenção urbana – em especial a voltada contra a propaganda (os chamados subvertisements), ou a substituição de sinalização pública, por exemplo – é uma aplicação desse conceito, uma forma de vandalismo criativo e crítico, que tenta valer-se dos mesmos métodos sutis da publicidade e do sistema para corromper o seu sentido. [5] Embora a indústria da música não a visse assim. Vale lembrar a brilhante paródia da campanha home taping is killing music, nas fitas dos Dead Kennedys: home taping is killing record industry profits, we left this side blank so you can help. (as gravações caseiras estão acabando com a música / as gravações caseiras estão acabando com o lucro das gravadoras, deixamos esse lado em branco para que você possa ajudar) [6] Floral Shoppe, da americana Ramona Xavier, sob a alcunha Macintosh Plus, é um bom exemplo. [7] Qual será o primeiro disco brasileiro de planderfonia com sucessos intocáveis do cancioneiro nacional? [8] O "Efeito Kuleshov" diz respeito a como o público interpreta um jogo de ação e reação entre imagens distintas. No experimento original do cineasta russo Lev Kuleshov, a mesma reação de um ator era interpretada de formas diferentes, de acordo com a imagem que a precedia.

leia mais plunderphonics.com/xhtml/xplunder.html Planderfonia, ou Áudio-Pirataria como uma Prerrogativa Composicional – como apresentado por John Oswald na Conferência Eletroacústica da Wired Society em Toronto, 1985. (em inglês) bopsecrets.org/SI/detourn.htm Manual de Instruções do Desvio, de Guy Debord e Gil J. Wolman, 1956. (em inglês) whosampled.com knowyourmeme.com

bônus Alguns dos exemplos citados, no Youtube: bit.ly/1G5fWlQ



partituras impossíveis

na página anterior, uma das exóticas obras de John Stump

O americano John Stump, falecido em 2006, criou algumas obras que rompem o limite da notação musical para um reino puramente visual, de alta "densidade estatística"[1]. Sejam meros pastiches técnicos ou uma crítica mais específica a certas imposições do sistema tonal, o fato é que suas partituras não foram feitas para ser tocadas, mas apenas lidas. Dono de um senso de humor peculiar, o copista, que cresceu obcecado pelos Beatles, conhecia tão bem cada detalhe de suas canções que chegou a enviar correções para a editora dos songbooks oficiais da banda. Mas a única composição de sua autoria a ser apresentada publicamente foi um coral baseado no poema "And Death Shall Have No Dominion", de Dylan Thomas. No entanto, suas obras mais conhecidas são as teoricamente "imperformáveis"[2] partituras de Faerie’s Aire And Death Waltz (de "Um Tributo a Zdenko G. Fibich"), Prelude And The Last Hope In C And C# Minor (da ópera "Marcha dos Patos"), e a propositalmente redundante String Quartet Nº 556(b) For Strings. Em suas composições, não existe uma linha ou compasso sem algum tipo de piada interna ou indicações absurdas como "respire agora", "mantenha os dois pés juntos", "acenda os explosivos", "solte os pinguins" e centenas de outras pérolas. Até mesmo o verso do quarteto de cordas tem uma área reservada para desenhos dos violistas. É permitido o uso de giz de cera, tranquiliza Stump.

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Ao empregar o excesso (com arranjo por acidente, como os créditos informam), seu trabalho poderia ser compreendido como o oposto ao de John Cage em 4’33’’, por exemplo. Mas consegue ser justamente complementar: envolve a participação do ouvinte (no caso, do leitor) na criação da obra. Discute o próprio significado do que é a obra musical e de como essa definição pode ser compreendida de formas menos óbvias e mais abrangentes. O próprio Cage herdou de seu mentor espiritual, o francês Erik Satie, uma partitura esquecida com indicações igualmente desconcertantes. Em Vexations, de 1893, Satie adverte em uma nota inicial: Para poder executar o tema 840 vezes em sucessão, é recomendável preparar-se antecipadamente, e no mais profundo silêncio, em séria imobilidade.

Em setembro de 1963, Cage organizou a primeira apresentação completa da obra, em que a curta peça foi repetida oitocentas e quarenta vezes. A performance durou 18 horas e 40 minutos e exigiu o revezamento de um time de pianistas – dentre eles o jovem John Cale, antes de juntar-se a Lou Reed no que viria a se tornar o Velvet Underground. Para Cage, executar a obra era não apenas possível, mas essencial. Outros seguiram seu caminho, tentando completar a maratona sem ajudantes, e perdendo o timing da piada. Em um trecho de 10 horas de uma performance solo de Vexations, disponível no Youtube, é possível ver as folhas se acumulando no chão, à medida que o pianista avança rumo ao fim das repetições. Nesse caso, o recurso visual acrescenta uma outra dimensão à loucura obsessiva que sua performance se tornou ao longo dos anos. Segundo um artigo da revista New Yorker, de 2013, tanto as testemunhas quanto os músicos garantem que a peça tem efeitos místicos. Pianistas apontam algo na notação de Satie que torna a breve linha impossível de ser memorizada. Espectadores relatam efeito semelhante: mesmo após serem submetidos por horas e horas à desconcertante melodia, ainda se achavam incapazes de assoviá-la.

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Satie talvez tenha conseguido criar o efeito contrário dos hits grudentos da música pop, mas provavelmente não esperava ser levado tão a sério.


ao lado, programa original da primeira apresentação pública de Vexations, liderada por John Cage

[1] Baseada no mesmo conceito de notação excessiva, mas com efeitos mais audíveis, The Black Page é uma peça não muito popular, mas certamente marcante, do compositor americano Frank Zappa. Inicialmente composta para o kit de bateria, a obra, após ganhar melodia e acompanhamento, era frequentemente usada nos shows como parte de um concurso de dança entre a platéia. Obviamente "indançável" sob qualquer parâmetro convencional, recebeu ainda uma roupagem disco – com a batida 4/4 acentuada, como que para situar o ouvinte dentro de seus poliritmos insanos –, subtitulada The Easy Teenage New York Version, e uma versão dub executada ao longo dos anos 80. O termo "densidade estatística" vem da descrição do próprio Zappa para a canção no disco Zappa in New York. [2] Tem-se notícia de pelo menos uma tentativa de execução pública da obra Faerie’s Aire And Death Waltz, por parte da Associação dos Professores de Música do Estado do Colorado, em um conferência de 2009. Não foi à toa que o estado legalizou o consumo recreativo de cannabis após isso.

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entregando o ouro

ao lado, um dos achados do site:

Cansado do mesmo sertanejo universitário e temas de novela de sempre do rádio? Já chegou ao limite do catálogo de surf-music, boleros e grindcore da sua irmã? Não suporta mais a música clássica do vizinho no último volume? O blog music for maniacs[1] ainda pode te surpreender com coletâneas tão inusitadas como Elvis Speaks, com os melhores momentos de pausa entre as canções nos concertos do rei; bandas covers e instrumentos bizarros ao redor do mundo, jungle beats e exótica burlesca, passando pelo auto-explicativo The Worst Of Frank Sinatra, one-man-bands holandeses acordeonistas, grupos de death metal acapella e centenas de outras pérolas garimpadas das mais obscuras e inusitadas fontes e recônditos digitais. Através da impecável curadoria de Mr. Fab, o leitor poderá ter contato com raridades e esquisitices para suprir as necessidades de qualquer audiófilo com gosto pelo incomum. Um dos projetos divulgados no blog foi o obsessivo We Buy White Albums, do artista Rutherford Chang, cuja coleção atualmente conta com 1215 cópias do disco dos Beatles, em diversos estados de conservação e catalogados por número de série. A gravação de 100 desses exemplares tocando ao mesmo tempo, lentamente saindo de sincronia, pode ser ouvida no site.

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Veja a seguir alguns exemplos que selecionamos para os incrédulos, com os comentários originais de Mr. Fab:


sons dos restaurantes americanos de fast food: 17 minutos de áudio quase indecifrável gravado in loco nas redes KFC, McDonalds, Jack in the Box e outros. A narração incisiva e hilária de Turkington é, novamente, a estrela do show. o holandês voador e seu show de um homem só, ao vivo: tudo que não soa como uma polca (inclusive o cover de Elvis) é entregue em canções beberronas em tempo de valsa, para balançar o caneco. cante junto com jfk: um álbum que apresenta manipulações de fita, em uma era pré-sample, remixando a voz de John F. Kennedy com música original e coros vocais. Já ouviu falar de musique concrete? Isso é musique ridicule. [1] musicformaniacs.blogspot.com (em inglês)

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Music For Maniacs: sucessos esquecidos e descobertas curiosas


resenhas aleatórias: jaguaribe carne Eu não sei o que se passa na cabeça de Pedro Osmar, e deus me livre de saber – já tenho problemas demais com o verme que rói meus próprios miolos –, mas o resultado, quando ele se junta ao irmão Paulo Ró, é um peculiaríssimo universo in vitro que ressoa white noises e que atende pelo nome Jaguaribe Carne. Não uma banda, um bando: um aglomerado de marginais, na real acepção da palavra, indivíduos de altíssima periculosidade social – além de pacifistas radicais. Os caras fazem antimúsica. Há 40 anos! Na Paraíba. Em João Pessoa, quando eu era adolescente, nas festas nas casas da galera (olhando pra trás agora me parece que a galera era criada por lobos, onde estavam os pais desses delinquentes que não viam suas casas tomadas por hordas junkies?) sempre rolava uma hora onde uma parte da festa arriava

por biu ramos

a lombra fazendo som com o que aparecesse, geralmente na cozinha. Essas sessions deviam ser horríveis pros vizinhos, mas eram divertidas pra caralho pros doidões. Eu não sabia, mas nessas ocasiões estávamos abduzidos pelo Jaguaribe Carne way of life, porque, como disse antes, os caras extrapolaram o formato banda já de saída, lá por 74, e viraram um zeitgeist freestyle da vanguarda popular. O disco que eu tenho deles é um dos mil vinis de um registro ao vivo em 93. Cada capa é única, ao que parece eles distribuíram as capas em branco pros moradores do bairro. Comprei numa feira, o preço foi barato[1], o valor é imensurável.

[1] Nota do Editor: Hoje, no Mercado Livre, uma cópia do disco Instrumental chega a custar R$ 150.


JĂşlio Nascimento pelas ruas de SĂŁo Paulo, na capa do disco Em Ritmo de Seresta (1995)


never mind the bolero Em Ritmo de Seresta (Pitomba/EDUFMA, 2014), o novo livro do antropólogo Bruno Azevêdo, traça um panorama da música brega no Maranhão. Em especial, como o advento do teclado eletrônico pôs fim às bandas de baile e criou um novo estilo, conhecido como seresta, que mantém viva a chama do bolero. O estilo – e seus desdobramentos –, apesar de extremamente popular, permanece estigmatizado e lhe é negado o reconhecimento como importante fator cultural do estado que o bumba meu boi, a dita Música Popular Maranhense e até mesmo o reggae parecem ostentar. Azevêdo mapeia a história musical recente, que, na figura dos seresteiros viu nascer uma nova forma de apresentação dançante no Maranhão, relevante não apenas enquanto manifestação social mas como fenômeno estético. Segundo ele: O ritmo da seresta, nos anos 1980, era o mesmo em todas as casas, bares e fitas que se encontrasse, aquele pré-definido como beguine nos bancos de ritmo nos teclados e reinterpretado como bolero pelos usuários locais, que alteravam somente o bpm das músicas.

O disco que deu nome ao livro é um caso emblemático não apenas da capacidade mercadológica do estilo, como da própria estratégia calcada no faça você mesmo, capaz de surgir em cenas marginalizadas. Ludibriado pelo produtor, o cantor Júlio Nascimento gravou o disco sem saber, achando que se tratava apenas de um ensaio. Foi um tremendo sucesso. Deu-se assim:

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Nascimento, em uma conversa telefônica não gravada em 2008, disse não saber da gravação do disco. Fez um ensaio com Geraldo [Proença, o produtor] que depois o levou para passear e fez umas fotos no centro de São Paulo. Algumas semanas depois, recebeu o álbum prensado em casa e pensou: "agora é o fim da minha carreira". Geraldo exibia ao cantor placas nas quais pedia que fosse mandado um alô para fulano de tal, feito o anúncio X ou Y e o comentário A ou B, com a intenção de criar o clima de uma apresentação ao vivo, em choperia. Essas chamadas aparecem no disco, que também dá a impressão de que o cantor está alcoolizado, "bebendo aquele uísque", como ele mesmo anuncia em algumas faixas. A voz de Nascimento foi gravada com um reverb fortíssimo, que preenche ainda mais o espaço e ressalta a ideia de "palco", há maneirismos vocais como consoantes puxadas, gemidos eróticos e estrofes em inglês macarrônico, os ataques do teclado entram diversas vezes fora do andamento ou em notas "erradas". A transição entre as faixas é feita pela leve mudança no andamento da batida do teclado ou pela introdução de uma nova harmonia; o teclado não para, salvo por um fade out entre as faixas 07 e 08 (metade do disco), como se pensado para a lógica lado A lado B dos discos de vinil. O repertório é construído por narrativas "de corno" e pela recorrência de personagens já famosas de Nascimento como Leidiane (Leidiane, A volta da Leidiane e A mãe da Leidiane), Dalziza, Dinalva, Luana e Sandra (em canções homônimas), além da referência ao garimpo (Chegada do garimpo e Lembranças do Garimpo), inseridas entre as leidianianas.

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Júlio Nascimento explora o nicho do brega conhecido como "música de corno", aquela cuja letra narra a desventura de um homem enganado pela mulher, que, por conta disso, bebe, sofre e chora. Leidiane narra a história de um homem que vai ao garimpo a trabalho e manda o dinheiro arrecadado para a mulher, que o gasta "com os homens lá no cabaré". Mas Júlio nunca foi garimpeiro, antes de gravar o primeiro disco nunca tinha pisado num palco que não fosse o da Assembléia de Deus. Inventou a própria biografia para fins líricos, e assim como o jovem Bob Dylan encarnava um andarilho órfão e beatnik, Nascimento forja sua figura experiente e calejada de garimpeiro corno. O disco – conceitual, na acepção mais pura do termo – soa como um registro diabólico paralelo ao dos primeiros bluesmen americanos, regados a uísque barato em quartos de pensão.


Pioneira na gravação de artistas que usavam o teclado de eletrorritmo, a Gema, de Geraldo Proença, foi nos anos 1990 o maior selo de bregas do Brasil em número de discos vendidos e em visibilidade relacionada ao gênero. A figura do produtor aparece, aqui, como alguém que pode perceber e deflagrar um movimento. No caso da música brega/seresta maranhense, além das rádios am e choperias, o investimento do selo foi fundamental para perceber que aquilo que os músicos entendiam como arranjo temporário já era um produto, com demanda de mercado. O produtor se torna também a figura capaz de afirmar o que é bom e o que é ruim para esse mercado, e mesmo de manipular gostos e necessidades em nome do resultado de seu trabalho. Os primeiros seresteiros gravavam suas apresentações em fitas cassete, que eram usadas como fitas demo ou vendidas nas bancas de pirataria, com baixas tiragens. Punha-se no disco o som com, "a mesma exuberância de um som ao vivo". A festa popular transposta para o produto fonográfico – mas ainda com a tentativa de fazer soar como um disco de banda, sem a declaração clara de que se tratava de um disco feito com o teclado –, gerou expedientes curiosos. Como nos primeiros discos de Júlio Nascimento, que mostram o mesmo nome nos créditos para baixo, bateria e teclado. Trata-se da figura que opera o teclado emulando baixo e a bateria. O autor continua: Se o teclado para os seresteiros egressos das bandas de baile era uma forma de se manter no mercado de shows, para esta nova geração era a maneira de fazer música dentro da qual foram formados e para a qual compunham e cujo mercado exploravam. O teclado começa a ser associado não mais somente à seresta, mas à música brega de cantores surgidos nos anos 1990, nordestinos, que despontavam nas rádios am, casas de festas populares e no mercado fonográfico, daí a ideia de um movimento de música eletrônica. Os artistas tinham uma mídia (o teclado), um tema (o amor), uma posição social semelhante (a do interior, periférico), e uma instância de legitimação (a Gema).

Se para os punks bastavam três acordes de guitarra, para o cantor da seresta bastam dois dedos e o acompanhamento do teclado eletrônico.

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QUADRINHOS

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por diego gerlach


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rock and roll é outra coisa por gabriel guimarães

[1] Nota do Editor: apelido do Instituto Central de Ciências, prédio principal da UnB.

Rock and roll é muito mais do que música, é outra coisa. Quando entendi isso, estava vendo pela primeira vez a apresentação de uma banda cujos integrantes mal conseguiam tocar dois acordes e tinham como objetivo apenas ofender o público presente. Eu tinha mais ou menos 15 anos. Depois dessa noite, trombei algumas vezes na rua com o vocalista daquela banda, um tipo de Sid Vicious louro que parecia ter saído da pré-história do rock de Brasília direto para o século 21. Algum tempo depois, me aproximei desse cara, o Sid Vicious louro, mas que reconheci ser, na verdade, uma espécie de Rei Midas ao contrário, porque tudo em que tocava virava merda. Depois de termos virado amigos, porque ele precisava de um baterista para sua nova banda, tentamos marcar alguns shows. Não lembro se a história que estou contando ocorreu no primeiro ou no segundo show, mas foi logo no início da nossa meteórica carreira. O nome do evento tinha a ver com 1984 e totalitarismo, porque, além de Rei Midas ao contrário, o punk também era fascista. Lembro que fomos buscar os cartazes do show com um cara, amigo dele também, que morava numa kitinete imunda nas 400 da Asa Norte. O cara abriu a porta, vestindo apenas uma calça de moletom pelo menos quatro vezes maior do que ele,


o que possibilitou o espetáculo de vermos a sua bunda toda vez que ele se levantava para buscar cerveja na geladeira ou passar o beque. O cartaz era tão tosco quanto a cena: uma simples folha A4 com um desenho do Grande Irmão, as bandas, data, horário e local – por volta de novembro de 2004, no Ocupe-se, uma estrutura de vidro, onde antes funcionava uma livraria, na UnB. Corremos, então, até a universidade. A ideia não era apenas colar os cartazes, mas avacalhar da melhor maneira possível o mural de recados, que ia duma ponta à outra do Minhocão[1]. Era algo de mais de um quilômetro de mural, e iniciamos, então, a saga de não só espalhar os cartazes de meio metro em meio metro, mas também de colar em cima de todos os outros já existentes. Foi uma merda, perdemos uma tarde e uma noite inteira para fazer essa pirraça. Mas rock and roll é isso aí, não é música, é outra coisa. Três ou quatro dias depois, aconteceria o show. Sabíamos que teríamos de levar todo o equipamento para o local, já que lá não era bem um lugar para eventos, especialmente de rock and roll – o pessoal da universidade também já sabia o que era rock and roll, na verdade. Atrasamos para montar tudo, e não sei em que momento alguém percebeu

que não tinha bar, ambulante, nem nada vendendo bebida. O que seria do rock and roll sem bebida, já que música ele não é? Um grupo de amigos se juntou, em cima da hora, para montar o bar – com muita cerveja quente e uma pinga barata. Por sorte, os ambulantes já estavam ligados no esquema do Ocupe-se, e eles não tardaram (muito mais) a chegar. Graças a eles, não faltou bebida na noite. Graças a ele, o show foi demais. O Sid Vicious louro, que na verdade era uma espécie de Rei Midas ao contrário, ficou muito contente com a presença dos ambulantes, já que sem eles não há rock and roll. Comemorou com vontade a presença deles e o sucesso que garantiriam para a festa. A esse tempo, já estavam tocando as duas ou três bandas que "abririam" pra gente. Para variar, na frente do palco, assistindo aos shows, não havia quase ninguém. Já o lado de fora estava complemente cheio e animado, já que rock and roll não é música, é outra coisa. Quando subimos ao palco, eu nem lembro se era tarde ou cedo, mas sabia que seria uma apresentação memorável. O Sid Vicious louro, que na verdade era uma espécie de Rei Midas ao contrário, já estava trilouco, castigando o baixo (instrumento que ele não tocava) e me perguntando a toda hora "qual é a música que estamos tocando mes-


mo?". Nesse estado das coisas, acho que o que restou do show fomos eu e o guitarrista alucinando as músicas enquanto o cara alucinava a plateia. Os inimigos do punk armaram um bunker na frente do palco, onde sobravam dedos do meio levantados, cuspes e xingamentos, "cadê o sangue no olho?". Mas ele não deixou barato não, devolvia com frases que viraram bordão, "volta pro esgoto, seu rato". Afinal, rock and roll não é música, é outra coisa. O que me lembro de depois do show foi ver uns amigos também tresloucados dizendo que tinha sido a coisa mais rock and roll que já tinham visto, e a noite terminou comigo e mais um outro amigo que não tinha nada a ver com a história recolhendo o equipamento, que pegamos emprestado com um cara que disse que ia ficar até o final para pegar tudo de volta, mas vazou cedo demais. Ele, claramente, não havia entendido o que é rock and roll. Voltamos uns três dias depois pra fazer a faxina no lugar, o que estava combinado quando pegamos o espaço. Demos com a cara na porta, lacrada, e um bilhete dizendo que o espaço estava fechado, que aquilo deveria ser um espaço acadêmico e não de bagunça. Rock and roll é isso aí.


vamos todos ser compositores! O QUE É MÚSICA? Qualquer coisa pode ser música, mas não se torna música até que alguém deseje que ela seja música, e o ouvinte decida percebê-la como MÚSICA. A maioria das pessoas não consegue lidar com essa abstração – ou não quer. Elas dizem: "Me dê a canção. Será que eu gosto dessa canção? Ela soa como alguma outra canção que eu gosto? Quanto mais familiar ela for, mais eu gostarei dela. Está ouvindo estas três notas aqui? Essas são as notas que eu consigo cantar junto. Eu gosto muito, muito mesmo dessas notas. Me dê a batida. Nada chique demais. Me dê uma boa batida – algo pra que eu possa dançar. Tem que ser boom-bap, boom-boom-bap. E se não for eu vou detestar muito, muito mesmo. Me dê isso tudo neste instante – depois, me escreva outras canções como essa – de novo, de novo e de novo, porque eu ME AMARRO MESMO em música".

Um compositor é um cara que anda por aí forçando sua vontade em inocentes moléculas de ar, geralmente com a ajuda de inocentes instrumentistas. Quer ser um compositor? Você nem precisa saber botar no papel. As coisas que são postas no papel são apenas uma receita, lembra? É só um bocado de moléculas de ar, quem vai checar?

O leitor mais perspicaz terá notado que o tio Zappa é citado ao longo desta publicação, a torto e a direito, em diversos contextos. Não é à toa, foi de propósito. Reproduzimos, a seguir, alguns conselhos[1] do velho bigode para todos os entusiastas e melômanos por aí que queiram pegar uma guitarra e montar sua própria banda. [1] do livro The Real Frank Zappa Book, 1989

APENAS SIGA ESSAS SIMPLES INSTRUÇÕES: 1. Declare sua intenção de criar uma "composição". 2. Comece uma peça em algum momento. 3. Crie algo para acontecer durante um período de tempo (não importa o que acontece durante sua "janela de tempo" – nós temos críticos para nos dizer se algo presta ou não, então não vamos nos preocupar com essa parte). 4. Termine a peça em algum momento (ou continue indo, diga para o púlbico que é um "trabalho em progresso"). 5. Arrume um emprego de meio expediente para que você possa continuar a fazer coisas desse tipo.


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HORIZONTAIS 1 Diz-se do material não autorizado. 2 "___ Parra", cantora folk chilena. 3 "The ___ They Called Him", colaboração de William Burroughs e Kurt Cobain. 4 Sintetizador célebre. 5 "___ Carne", grupo paraibano. 6 O pai do rock. 7 Selo de música brega do Maranhão. 8 "Tristan ___", poeta dadaísta. 9 Segundo disco da banda carioca Chapa Mamba. 10 "Esculpindo ___", álbum de estréia do grupo Quadrúpede Orquestra. 11 "John ___", saxofonista experimental americano.

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12 "Bitches ___", de Miles Davis. 13 A língua que meu cavalo falava quando eu era o herói. 14 Técnica incomum de gravação utilizada por Frank Zappa. 15 Faixa do disco Plunderphonic, que rendeu problemas legais. 16 Sucesso do cantor Júlio Nascimento. VERTICAIS 17 Disco colecionado pelo artista Rutherford Chang. 18 "Se eu pudesse eu ___ mil", do meme Jeremias Muito Doido. 12 Composição de João Gilberto. 20 Ópera do maestro Jorge Antunes.

21 Estética de deturpação de ícones noventistas, calcada no kitsch. 22 A maior parte da música ocidental. 23 Interface Digital para Instrumentos Musicais. 24 "Martin ___", videoartista austríaco. 25 Efeito como o Big Muff. 26 Tema da "Passeata Contra a ___ Elétrica". 27 Título nobre atribuído tanto a Roberto Carlos quanto a Elvis Presley. 28 Ritmo do teclado apropriado pelos cantores de seresta. 29 "Doutor ___" Romance de Thomas Mann. 30 Obra polêmica de Erik Satie. 31 "___ Commons", licença de uso adaptável.


STAY CLEAN


chupamanga.bandcamp.com


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