O DENTE AUSENTE
Faça você mesmo(a): As imagens contidas neste volume — com exceção da capa — f icam disponíveis como um convite ao leitor ou leitora, para que preencha com suas próprias intervenções.
Mitologia do dente ausente
De todas as formas de intervenção gráfica urbana talvez nenhuma se equipare, em simplicidade e eficácia, ao bom
e velho dente preto. Da brincadeira
infantil ao détournement situacionis-
ta, a transfiguração do sorriso perfeito, branco, e sobretudo irreal, das revis-
tas de bordo, das famílias-modelo dos
bancos de imagem, subvertido enfim — para agonia ou lucro dos odontolo-
gistas — em uma caricatura desprovi-
da de poder de sedução1, pode ter mais
a dizer do que à primeira vista possa parecer, e justamente por chamar, por
meio do detalhe, a atenção para o quadro geral em exposição.
1. O sorriso satisfeito do modelo fotográfico é, antes de tudo, ameaçador. Impõe um desafio condescendente com o qual somos confrontados diariamente pelas ruas, nas revistas das salas de espera, nos pop -ups, banners e especialmente na televisão — aqui, deixa de ser estático para tornar-se ainda mais normalizado e protegido da intervenção banal, tendo que para isso ser retirado do contexto, manipulado de forma eletrônica.
Inoculado discretamente na arcada dentária sob medida, no clareamento
dental forçado da fotografia, o dente frontal ausente — ocasionalmente
o alface ou a casca de feijão, na vida
real — é, antes, a negação da adequa-
ção estética e social. O espaço vazio, então demarcado, permite e convida a
enxergar através da ilusória perfeição fabricada — tanto invejável quanto
inatingível — do anúncio publicitário. É a lacuna que revela sua verdadeira natureza fantasmagórica. Mas não
convém exagerar: bastarão um ou dois incisivos rasurados para transmitir o
conteúdo irônico quase imperceptível,
subliminar. Para além disso, o grotesco reconfigura de tal modo a imagem que a metamorfose é total, passando mais
ao efeito puramente destrutivo e rancoroso da violência do que à apropriação lúdico-didática do espaço privilegiado no imaginário do leitor (no caso
dos impressos) ou transeunte (nos out-
doors e totens luminosos). A modesta
anodontia contida supera, em muito, a
monocelha, os pelos faciais exagerados, os chifres, cornos, lágrimas, tapa-olhos ou acessórios de qualquer espécie2. Sua
simplicidade plástica incisiva e pontu-
al conquista, com o mínimo esforço, o máximo resultado sugestivo (além
de adquirir toda uma nova dimensão no campo da publicidade de dentifrícios — por razões óbvias), é tanto
mais subversiva quanto mais discreta e econômica.
2. No entanto, as possibilidades para a interferência especificamente odontológica têm se tornado cada vez mais raras. Por isso, convém aproveitar qualquer janela de oportunidade que apareça. É preciso estar preparado, trazendo sempre uma caneta no bolso.
A garatuja como ato político
Nem mesmo a imagem do mais simétrico dos galãs ou das protagonistas da
novela, do mais heróico dos filantro-
pos, do mais imaculado dos candidatos políticos, será capaz de resistir à sim-
ples rasura precisa de um dos caninos, com efeito diretamente proporcional à solenidade da efígie em questão. O rei está nu, é esse o recado. Os deuses também são humanos, imperfeitos e ridí-
culos como todos nós. E, pelo menos enquanto nos observarem impassíveis
do alto de sua superioridade enquadra-
da no olimpo publicitário, não poderão se defender das eventuais descorreções estéticas. O falso padrão despojado
de beleza física e moral a ser aspirado pelos pobres mortais está agora, também, além do alcance deles; e é por isso que a falta do dente representa, como
uma lâmpada apagada, a decadência inevitável do sistema, a morte de seus
ícones. A falha da máquina soberana que, ainda assim, depende do empregado encarregado pela sua manutenção
que troque o óleo de vez em quando.
De símbolo discriminatório que remete ao homem do campo, humilde e
sem recursos, o defeito, a deformação facial do rosto banguela enquan-
to questão social passa a sugerir um segundo olhar, mais atento, à mensagem do quadro3 exposto sob os dizeres
consumistas persuasivos — ou slogans de campanha — e tão exaustivamente
repetidos que tendem a ser absorvidos
em um nível inconscientemente nocivo pela população. Reconfigurada, a obra adquire novo significado.
3. A rasura odontológica é um ato político, mas sobretudo artístico.
A ausência do dente, sua peculiaridade
individualizadora, deve ser preenchida pelo observador — qual acontecimen-
to específico terá causado a perda do
nariz da esfinge, dos braços da vênus, afinal, e por quê? —, inicia uma possível indagação intelectual antes ador-
mecida. O sinal “repugnante” exposto
no rosto obriga o olhar a se desviar, fugir do sorriso enganador para reparar no contexto, perceber a mensagem
oculta por trás das imagens do simulacro agora evaporado. O modificador anônimo de anúncios, como quem
coloca os pingos nos is, expõe as entre-
linhas do sistema, a caneta convertida
em odontagogo, o alicate simbólico que extirpa a superioridade ora implícita pela moldura, pelas frases de efeito
e palavras de ordem e até pela iluminação sacralizada reservada para os anún-
cios no espaço urbano. O banguelismo gráfico erode, dente por dente, o culto
à auto-imagem, a cultura do selfie4, a
imposição midiática do conformismo e do consumo desenfreados.
4. Para tanto, surgem o recurso do duck-face, o famoso beicinho sedutor, ou o look blasée: todos à prova de dentes pretos.
Stêvz Chile — Brasil Maio de 2017