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Sumário
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Prefácio Maria, Paulo Herkenhoff
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Introdução Uma lenta aproximação,uma provocação à arte
61 70 73 77 84 92 112 124 128
Capítulo II Personalidade esférica Sons selvagens Adepta do Zen-budismo Estados Unidos: ser escultora Professor Lipchitz Amazonia by Maria Novidades artísticas Marcel e o país do bronze verde Regresso à casa
133 140 143 150 156 158 174 264 274 284 286
Capítulo III Natureza de Eros Erotismo e violência Do feminil Étant donnés e Canto da noite: um paralelo Negar a fusão Contenção e transbordamento
Capítulo I A artista e a crítica A rebelde Filiação à Antropofagia
Versão para o inglês Relação de obras/ legendas Bibliografia Agradecimentos Créditos
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“Volto para casa amanhĂŁ e vou achar
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minha pele seca sobre as varas de aço.”
Marcel Duchamp em carta a Maria Martins sobre a construção de Étant donnés. Junho de 1949 “I’m going home tomorrow and I’m going to find my skin dried over the steel rods.” Marcel Duchamp in a letter to Maria Martins about the construction of ‘Étant donnés’. June 1949 miolo-livro-MM-finalizacao2.indd 9
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1. Maria, dĂŠcada de 1940, Nova Iorque
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Prefácio Maria O texto de Graça Ramos apresenta uma biografia de Maria Martins organizada com especial senso de detalhe. Em meio à complexa tarefa de levantamento de informações sobre a vida da artista, também propõe observações críticas que se entrecruzam com fatos objetivos. Deste modo, a autora busca se aproximar do modelo reconhecido por Giulio Carlo Argan de que não há história da arte sem crítica e vice-versa. O trabalho historiográfico apresentado é notável em sua busca de fontes em vários países. Além da contribuição representada pela própria pesquisa, este texto há de oferecer indicações e fundamentos para futuras interpretações da obra e trajetória da biografada. Aí está sua força dinâmica. Maria Martins – escultora dos trópicos vem agregar uma perspectiva singular ao escasso corpus bibliográfico brasileiro sobre Maria Martins, que nos últimos doze anos teve algumas contribuições, como o levantamento pioneiro de Jean Boghici. A avaliação crítica de Kátia Canton, curadora da exposição Maria Martins no Núcleo Histórico da XXIV Bienal de São Paulo (1998), incorpora a artista ao cânone acadêmico. A extensa visão de Ana Arruda Callado em Maria Martins – uma biografia situa a escultora em um círculo de mulheres que fizeram a diferença no Brasil. Por fim, Raúl Antelo produz seu “salto epistemológico” com Maria con Marcel: Duchamp en los tropicos, em texto ainda inédito no Brasil, que transforma a artista em problema da modernidade. Graça Ramos também explora a formação e as manifestações da “vontade material” – expressão do filósofo Gaston Bachelard em La Terre et les rêveries de la volonté – da escultora, sua afinidade com os materiais escultóricos como o bronze e a madeira talhada, os devaneios possibilitados por eles ou o sentido político do emprego de madeiras brasileiras. O texto comprova como Maria Martins foi o primeiro caso de artista moderno a se integrar de fato no ambiente internacional para além da relação de estudante brasileiro com professores ou colegas estrangeiros nas escolas livres da Europa e dos Estados Unidos. Ninguém, até Maria, teve relações tão próximas com protagonistas de proa da modernidade como ela. A autora demonstra, para além da questão biográfica, a natureza do convívio produtivo de Maria Martins com Marcel Duchamp, Jacques Lipchitz, André Breton, Piet Mondrian, Michel Tapié e muitos outros. Até aqui, tudo levava a crer que fora a imigração japonesa para o Brasil a partir de 1907 (Rio de Janeiro) e 1908 (São Paulo) que iniciara as relações da arte brasileira com a espiritualidade do zen-budismo. O texto demonstra outro pioneirismo da escultora. No Japão em 1934, onde seu marido era diplomata, Maria Martins mantém contatos com Daiset Teitaro Suzuki, embora talvez sua arte não explicite vestígios e referências àquele interesse. Em sua obra sobre a China, ela relembra as lições budistas daquele mestre. Maria Martins e Flávio de Carvalho são os dois artistas brasileiros que mais radicalmente se aproximaram da psicanálise. Ele buscou as fronteiras entre o consciente e o inconsciente (que denominava subconsciente) em experimentos como Experiência nº 2 (1932) e os desenhos da Série Trágica (1947, dito Minha mãe morrendo). No primeiro caso, deliberadamente, provocou com seu comportamento a abrupta passagem de um estado de piedade para o de fúria entre os fiéis de uma procissão com o indevido uso de chapéu. Nos desenhos, registrou a luta entre vida e morte na doente terminal, interrompendo o registro tão logo ela morre, isto é, com a perda absoluta da consciência vital. A escultura de Maria assume deliberadamente um caráter somático perturbador.
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4. Don´t forget I come from the tropics, 1942
Ao amadurecer, a escultura de Maria Martins assume forte vínculo explícito com o desejo: Désir imaginant, L’Impossible, La femme a perdu son ombre e Le chemin, l’ombre, trop longs, trop étroits – os títulos enunciam que a mulher é sujeito do desejo. A obra Não te esqueças de que venho dos trópicos – que, para Graça Ramos, simboliza o élan vital de Maria Martins – seduz o olhar, enquanto em Apuiseiro o desejo flui em fluxos de viscosidade. Seu centro não tem massa, mas é lugar do vazio onde ocorre a pura circulação de energia erótica. A escultura de Maria expõe a falta (a “manque” lacaniana) relacionada ao desejo. Esculpir é tratar os volumes com energia libidinal. Maria molda volumes como se trabalhasse a plasticidade da libido, buscasse construir corpos vibráteis na definição de sua fantasmática. Nisso precede a Louise Bourgeois, também escultora do desejo. Nas obras de Maria, o desejo enreda e encaixa, prende, tem capilaridades e meandros, atua por teias e tramas, projeta rizomas. Certas esculturas configuram uma espécie de Lacoönte erótico, que na obra de Maria, como na de Bourgeois, aponta para um interesse na produção escultórica de Jacques Lipchitz. O enredamento dos volumes na peça Apuiseiro é a cópula em L’Impossible. A escultura Orpheus tece desejo e olhar. A escultura emaranha corpos, índices do desejo que movem a ação de Orfeu. Sob certo ponto, volumes avançam para frente: o espectador toma o lugar de Eurídice como alvo do desejo. Mário de Andrade defendeu o nu do casal de adolescentes da escultura Monumento à juventude, de Bruno Giorgi, nos jardins do prédio do Ministério da Educação em 1945. Um Mário moralista argumentava contra o jesuíta Leonel Franca que “corpos sexuados sim, mas cada vez mais idealmente sexuados. […] o sexo feminino rescende em sua pureza ideal. […] Como flor. Mas numa simbólica de flor, não na sua funcionalidade” (Revista Acadêmica, n. 66). O escritor propunha a sublimação da idealização sexual da mulher na flor (como de Rodolfo Amoedo). Seu olhar exalava transcendência e sublimação machista. Sua retórica não levantou argumento relevante que não fosse de teor simbólico e reitera o sentido moral que confere à escultura. A discussão entre o Modernismo e a Igreja indicava que a escultura, longe de se referir às investigações mais radicais da modernidade, não se aprofundou na pesquisa da subjetividade.
3. O impossível, 1945
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Uma lenta aproximação, uma provocação à arte
10. Maria, década de 1940
É verdade que os grandes pensadores e os grandes artistas são quase sempre desprezados e negados por sua geração. (Maria Martins, 1965)
A frase escrita pela escultora Maria Martins (1894–1973) no livro Deuses malditos I: Nietzsche tornou-se premonitória do que ocorreria com ela. Pouco estudada como artista, negligenciada como pensadora e vinculada negativamente à temática sexual-erótica, permaneceu à margem da história da arte brasileira. Aportou tanta tensão desestabilizadora no universo artístico que só conseguiu ser devidamente reconhecida por gerações seguintes. O processo de reavaliação de sua obra fez-se lento e enfrentou movimentos de refluxo. Em 1984, quando repórter de política da revista Veja, em Brasília, ouvi falar pela primeira vez da artista. O então deputado Bocayuva Cunha me contou ser sobrinho de escultora admirada pelos surrealistas, que havia tido relacionamento amoroso com Marcel Duchamp. Uma mulher, segundo ele, com vitalidade invejável e bastante livre para a época em que lhe coube viver. Descobri que a produção da artista se delineou no final da década de 1930, em madeira, com imagens figurativas, predominando, posteriormente, a utilização do bronze, com discreta tendência à abstração no final da carreira. Era pouco, mas bastante para que, após o impacto provocado pela imagem de Impossível, sua obra mais difundida, a artista passasse a habitar espaço em minha memória.
9. O impossível, década de 1940
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11. Impossible, 1946
Livros dedicados a sua escultura ou que falassem de sua vida não foram localizados logo que soube da existência da artista. Havia pouca referência sobre ela nos arquivos de jornais. Estudos de arte que a incluíssem eram rarefeitos e econômicos, embora tenha recebido o Prêmio Melhor Escultor da III Bienal de São Paulo, realizada em 1955. Por circunstâncias profissionais, durante anos, perdi os rastros da escultora. Em 1997, dedicada ao jornalismo cultural, fui aceita para cursar o doutorado em História da Arte na Universidade de Barcelona. Propus-me a estudar a obra de Maria Martins e suas vinculações com o Surrealismo. A notícia de uma exposição retrospectiva, na Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, em São Paulo, reacendera meu interesse pela trajetória de Maria, nome com o qual preferiu assinar a maior parte de sua produção artística e como será identificada, na maioria das vezes, nas próximas páginas. A leitura do catálogo da exposição, organizado por Jean Boghici, hoje seu maior colecionador, com reprodução de textos de André Breton, Michel Tapié, Amédée Ozenfant, Christian Zervos e Benjamin Péret sobre a escultura da artista, suscitou questões a respeito do lugar de Maria na história da arte brasileira. E uma tarde, em companhia da dourada escultura Canto da noite, instalada no Palácio do Itamaraty, em Brasília, reforçou em mim a necessidade de investigar associações daqueles seres escultóricos com as formas da natureza. Da cabeça daquele bronze saíam ramificações que se mimetizavam com as árvores do jardim projetado por Burle Marx. Questionamentos foram aguçados pela leitura do texto do historiador de arte norte-americano Francis Naumann, elaborado para a exposição em Nova Iorque, realizada na galeria Andre Emmerich, entre março e abril de 1998, intitulada The surrealist sculpture of Maria Martins. Outro momento de inflexão foi assistir ao filme The secret of Marcel Duchamp, produzido em Londres pela
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12. Sem título
televisão BBC, revelação de que o segredo de Duchamp, metaforizado em Étant donnés, era seu amor por Maria. Comecei a indagar sobre o grau de influência da artista brasileira no que foi chamado de retorno de Duchamp à arte. Ler Calvin Tomkins, em Duchamp, a biography, com dois capítulos dedicados à relação amorosa mantida pelos dois, reforçou o encaminhamento da pesquisa. Na década de 1940, nos Estados Unidos, a artista formou parte do movimento surrealista, tendo sido incluída por André Breton no livro Surrealism et la peinture, e considerada por Michel Seuphor, em La sculpture de ce siècle, “o grande escultor”1 do Surrealismo. Assim como outros autores estrangeiros, eles a vincularam ao erotismo e ao exotismo tropical. Visão preconcebida dos europeus sobre uma artista sul-americana ou decisão da artista de apropriar-se dessa alteridade “tropical” para construir obras que extrapolam o estereótipo e denunciar que somos todos bárbaros e sensuais? Acredito ter sido essa segunda alternativa o caminho trilhado por Maria. Simultaneamente ao descobrimento de textos de época, em vastas pesquisas aos arquivos dos jornais e revistas brasileiros e norte-americanos, ganhei um presente que avalio como parte do inusitado fenômeno que é a recepção de Maria no cânone da arte brasileira: criticada pelo teor sexual de suas obras, o primeiro livro dedicado à artista pertence a uma coleção infantil e é publicado por uma editora religiosa. Trata-se de Maria Martins – mistério das formas, de Katia Canton e Maria Tereza Louro, editado em 1977. 1 Quando o livro do crítico, que elogiava Maria, foi divulgado no Brasil, chamando-a de brasileira ardente e dizendo ser ela “o grande escultor do Surrealismo”, parte da imprensa especializada reagiu negativamente, acusando-o de estar mal informado e de ser parcial. Ver: LEITE, José Roberto Teixeira. Seuphor e a escultura brasileira contemporânea. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 29 mai. 1960. Chamo a atenção para a questão de gênero implícita na opção de Seuphor pelo uso do substantivo masculino.
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da orientadora de meu trabalho de tese, Lourdes Cirlot, catedrática de História da Arte. Aqui, Maria foi renegada pelo desconforto provocado pela exibição sexual dos monstros inquietantes2 que criava, alvo de preconceitos artísticos, de classe e de gênero. Muitos não desejaram avaliar em profundidade o fenômeno antiacadêmico que significou sua escultura para a história da tridimensionalidade brasileira. O regresso ao Brasil, depois de 25 anos de vida no exterior, também a isolou dos movimentos que continuaram a ser realizados por seus amigos artistas no exterior. Sua sina foi permanecer nas bordas do cânone de arte nacional e internacional. Formado por um conjunto de obras perenes e exemplares, o cânone implica princípios de seleção e de exclusão e está vinculado à questão de poder. Inúmeras relações e jogos de força formam-se no contexto em que se insere uma obra de arte. Este livro que agora ofereço aos leitores se inscreve em um processo de revisitação da historiografia da arte nacional e internacional, para reavaliar o discurso construído por essa que é uma das raras expressões do Surrealismo no Brasil. Maria Martins – escultora dos trópicos3 é versão editada e traduzida da tese Maria Martins – vida y obra (1894–1973), aprovada na Universidade de Barcelona em julho de 2003. É minha contribuição para a formação, tardia, vale ressaltar, da fortuna crítica4 dessa artista devotada ao corpo, aos subterrâneos da sexualidade. Revisito a tradição artística, lanço olhos para o contexto histórico, familiar, social e amoroso em que Maria estava inserida, para propor desafios. Indico razões do seu não-lugar na arte brasileira e demonstro que ela foi parceira artística de Duchamp, na medida em que discutiram andamentos de obras, trocaram indicações de materiais, falaram sobre vida e morte, deixaram-se influenciar mutuamente para confeccionar obras de arte que são verdadeiros enigmas. Em uma provocação maior, defendo ter sido Étant donnés trabalho construído em diálogo com Maria.
2 O programa de doutorado foi dedicado ao tema “Arte, natureza e sociedade”. Nele fui influenciada pelas leituras da disciplina “O natural, o monstruoso e o inquietante”, ministrada pelo professor doutor Josep Casals, a quem agradeço a atenção sempre lúcida ao meu objeto de estudo e a sugestão de publicação do artigo “Erotismo amazónico en la obra de Maria Martins”, em Materia – Revista d’Arte, número especial intitulado Natureleses, publicada pelo Departamento de História da Arte da Universidade de Barcelona, em 2002. 3 Nesta edição, para dar fluidez à leitura, optou-se por colocar no corpo do texto as referências bibliográficas apenas com o autor e o título, pois as obras, devidamente citadas na tese, estão relacionadas na bibliografia apresentada no final do presente livro. 4 Após a leitura da tese, foram lançadas duas obras que também abordam a vida e a obra da escultora: em novembro de 2004, Maria Martins – uma biografia, de Ana Arruda Callado, e, em 2006, Maria con Marcel – Duchamp en los trópicos, de Raúl Antelo. Anteriormente, em julho de 2004, veio a público, na França, Étant donnés: 1° Maria Martins, 2° Marcel Duchamp, texto de Francis Naumann, originalmente publicado, em 2001, na revista Art in America, sob o título “Marcel & Maria”, único a que tive acesso durante a feitura da tese. Na Universidade de São Paulo (USP), em 2006, Roberto Mitsuaki Kumagai apresentou a dissertação de Mestrado Maria Martins: uma trajetória artística.
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afirmasse que o conteúdo de sua obra era “sujo”, como fez Pedro Manuel, no texto citado, ao traçar paralelismo entre o texto do poeta Murilo Mendes, que apresentou a maior exposição realizada pela artista no Brasil (1956), e as obras de Maria: “Tudo quanto é espiritual e elevado em Murilo se transforma em obsceno lascivo em Maria. O mistério da fecundação é repetidas vezes representado com satânicas alegorias infra-reais. O conteúdo da mensagem é sujo”. Eis uma pista para entender ao menos um dos motivos que a levaram a ser praticamente desconhecida em sua terra. Maria fez do erotismo um dos temas centrais de sua criação e assustou críticos e público ao gravar metonímias da fúria do sexo, da carnalidade das relações humanas em bronze, madeira ou gesso. Segundo Murilo Mendes, era a atmosfera surrealista que interessava a Maria fixar. Ele explicou: [...] parece-me manifesta a implicação do sexo com seus instrumentos de tortura e seus poderes exibicionistas; daí a necessidade do confronto de formas ovaladas com formas retas, essa incessante abertura de brechas nos planos mais estáveis, que, apesar de tudo, se entrosam nas suas dissonâncias; e essa busca da porosidade, em geral não consentida pela matéria da escultura. Tais operações do domínio de infra-estruturas exigem uma técnica viril, e o encontro da violência de base com linhas repousantes que superem o espaço psíquico..
O famoso poeta, uma das raras vozes surrealistas no Brasil, realizou análise lírica e equilibrada do trabalho da artista, incorporando-a à tradição do movimento criado por André Breton (18961966). As reações ante as novidades trazidas pela escultora, porém, serão negativas por muitos anos. No momento de sua morte, em 1973, o comportamento preconceituoso da crítica foi destacado e reconhecido por intelectuais como Geraldo Ferraz. Em “Maria apenas uma escultora”, ele garante que, durante sua vida, a artista foi incompreendida e combatida no solo brasileiro. Prossegue: “para os que não quiseram ver – e eu fui um deles –, a escultura de Maria Martins deve ser considerada a ilustração última de um movimento que Tarsila timidamente colocou na sua pintura antropofágica”. Entretanto, para muitos analistas, as esculturas de Maria representam um pesadelo. Segundo comentário anônimo, publicado em “Notas de arte”, Jornal do Comércio, em maio de 1956, sob o título “Exposição Maria”, em suas esculturas “os vícios propositados que as adornam derivam não do seu sentimento, mas de propósitos meramente intelectuais”. E continua: “assim, procura no disforme, no torto, no árido, no seco, vislumbres que traduzam alguma coisa que ocultava na memória não sabendo o que seja, na luta entre o que concebe e que executa”. Suas imagens de monstros terminaram por ser rejeitadas pela crítica existente, pouco acostumada a ver aquelas figuras amputadas e transformadas no espaço tridimensional. A reação à obra da escultora era previsível dentro desse contexto problemático da arte brasileira. Afinal, segundo explica Harold Osborne no Guía del arte del siglo XX, ela renegou a tradição greco-romana e optou pela plasmação mais livre de imagens que recordam a exuberância da floresta tropical brasileira, e também incorporou figuras procedentes das fantasias eróticas e surrealistas. Maria terminou por instalar uma morfologia convulsionada, profundamente imersa no inconsciente, “tomada de visões feéricas e eróticas”, na escultura do país, como resumiu Walter Zanini em Tendências da escultura moderna, publicado em 1971. Zanini voltaria a se debruçar sobre as representações criadas por ela quando da organização de seu livro mais conhecido, História geral da arte no Brasil. Dedicou-lhe pouco mais de vinte linhas, mas vinculou a arte de Maria à violência,
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26. As 3 Graças, 1945
O Brasil deseja modernizar-se rapidamente. Move-se guiado pelo desejo de criar uma utopia, a nova capital, símbolo de uma esperada era de desenvolvimento econômico e social. Verifica-se forte efervescência cultural, que desemboca na Bossa Nova, no Cinema Novo e em uma nova configuração no universo das artes plásticas. Na época, o principal defensor de uma mudança de paradigmas no cenário artístico do país, e defensor do movimento abstrato-geométrico na arte brasileira, era Mário Pedrosa. A I Bienal de Arte de São Paulo, celebrada em 1951, incrementou o interesse por arte abstrata, em decorrência da exposição de obras do suíço Max Bill (1908–1994). A II Bienal, realizada em 1953, só reforçou o processo. Importa destacar que Maria contribuiu em grande medida, com seus contatos internacionais, para a realização dessa edição, conforme atesta correspondência trocada entre ela e Francisco Matarazzo Sobrinho, arquivada no Arquivo Histórico da Bienal, em São Paulo. A artista viajou por diversos países em busca de artistas e obras para a Bienal, convencendo Pablo Picasso (1881-1973) e outros artistas a enviar trabalhos. Segundo explica Gullar, em texto publicado no Jornal do Brasil, em junho de 1960 e republicado no livro de Aracy Amaral, foi após a realização das duas bienais que os jovens artistas se dedicaram com mais ênfase às experiências no campo da linguagem geométrica. Quando Pedrosa começou, como voz isolada, em 1949/1950, sua pregação em busca desse novo dicionário visual, costumava dizer que a arte brasileira estava praticamente oficializada. Com toda razão. Desde a turbulência do Modernismo, e de seus filhos, a Antropofagia e o Pau-Brasil, escasseavam as experimentações e a capacidade de surpreender dos artistas do país. Se, nos Estados Unidos, as experiências escultóricas de muitos artistas já se direcionavam para a conquista do espaço, aqui a escultura seguia preocupada com a expressividade do volume, mantendo-se próxima às concepções tradicionais. O abalo das formas, o inacabado da obra, a deformação dos corpos e o erotismo vinculado à violência distanciavam a obra de Maria dos paradigmas tradicionais, pouco afeitos ao incompleto e ao brutal, assim como da linguagem dos artistas concretistas que, em meados da década de 1950, já exploravam com ênfase novos limites para a arte do país. A história da arte comprova que
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subjetivo ao objetivo, o privado ao público. A busca dessa síntese lhe permitiu descobrir seu ponto de aceitação. Embora não conscientemente, ela negociou com o patriarcado: na esfera privada, manteve uma atuação em que o papel de estrela foi ocupado pelo marido, Oswald de Andrade, que, por sua vez, autorizava e confirmava intelectualmente o discurso pictórico dela, com artigos e manifestos. No âmbito público, sua obra não transpareceu jamais uma temática considerada agressiva, mas incorporou à audácia construtivista alta dose de ternura, aspecto associado ao que se esperava tradicionalmente do universo feminino. Seus trabalhos sintetizam visão conciliadora entre o moderno e o primitivo; daí sua obra não provocar horror; ao contrário, gera adesão quase automática por parte daquele que a usufrui. Vários autores observaram terem as mulheres papel muito mais importante na história da arte latino-americana do século XX do que na modernidade européia ou norte-americana. Paradoxalmente, isto se deve ao machismo do homem latino-americano, que considera a arte como pertencente à esfera feminina, garante Edward Lucie-Smith em Arte latinoamericano del siglo XX. O Modernismo foi o momento que propiciou às mulheres desenvolver um discurso estético autônomo e registrar de forma própria o mundo real e imaginário a que estavam vinculadas. Pode-se dizer que a modernidade instaura a feminização da cultura. Se é verdade que sempre existiram mulheres artistas, é na passagem do século XIX para o XX que se constata o aumento da produção feminina no âmbito das transformações provocadas pela industrialização. As mulheres abandonaram o espaço privado, no qual o fazer artístico tinha apenas o caráter de entretenimento, e adotaram o papel de criadoras artísticas. Desafiaram, assim, o poder masculino, ao não se contentarem com os gêneros mais comuns e desprestigiados das artes, como a pintura de flores e animais. A reação do patriarcado foi, de uma parte, considerar que as qualidades artísticas e estéticas das mulheres eram inferiores às dos homens e, de outra, associar os estereótipos femininos na teorização da cultura de massa, pensamento que esteve em moda ao final do século XIX, mas que se manteve vivo até pouco tempo, segundo Andreas Huyssen, em Memórias do Modernismo.
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30. Sur-doute, 1947
Os questionamentos radicais das mulheres, no que diz respeito às estruturas patriarcais no âmbito dos discursos sobre arte, também se produziram no Brasil, estabelecendo uma batalha de gênero. O caso brasileiro, como vimos, com suas diferentes artistas, ilustra bem essa batalha, deflagrada quando as mulheres questionaram o cânone e desobedeceram ao olhar controlador masculino, forçando uma nova relação com o conhecimento e com o poder no cenário das artes plásticas. Após as experiências de Anita e Tarsila, coube a Maria provocar novas orientações na arte. A artista regressou ao Brasil em 1949, após 25 anos de ausência. Casada com o diplomata Carlos Martins (1884–1965), viveu em vários países. Aprendeu a arte da escultura com Oscar Jespers (1887–1970) em Bruxelas e aprimorou-a com Jacques Lipchitz (1891–1973) em Nova Iorque. Sua arte era admirada por André Breton, Benjamin Péret (1899–1959), Piet Mondrian (1872–1944), Amédée Ozenfant (1886–1966) e artistas surrealistas, exilados nos Estados Unidos, com os quais conviveu durante a Segunda Guerra Mundial. Em Nova Iorque, suas exposições foram aplaudidas pela crítica. A exposição individual em Paris foi elogiada por Michel Tapié (1909–1987), autor de um dos textos de apresentação do catálogo. No Brasil, organizou exposição sobre a qual só foi possível obter o registro da resenha publicada por Willy Lewin no Jornal das Letras, patrocinador da mostra individual. Trata-se, logicamente, de resenha positiva sobre a escultora. Sabe-se que a crítica tratou hostilmente os trabalhos apresentados. Na exposição seguinte, em 1956, o catálogo continha uma mensagem destinada aos críticos. Maria reproduziu, em inglês, fragmento de autoria de Marcel Duchamp, que diz: “The more hostile the criticism, the more encouraged the artist should be” (Quanto mais hostil for a crítica, mais encorajado deve se sentir o artista).8 Enquanto na Europa e nos Estados Unidos recebia elogios de nomes reconhecidos, no Brasil a artista era alvo de críticas, muitas vezes deselegantes e iradas, sobre o conteúdo sexual de suas obras, como as expressas por Pedro Manuel, em texto citado. Maria plasmava imagens com evidente 8 Maria selecionou o fragmento em Marcel Duchamp: the western round table on modern art, utilizando-o para abrir o catálogo da exposição de 1950 e repetindo-o aos jornalistas, quando lhe perguntavam sobre o papel da crítica, no interior do constante diálogo que mantinha com as idéias de Duchamp.
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inverso, pois, segundo Salztein e Mesquita, sua obra “expressa ingenuamente essa desordem em dois tipos de figuração. A primeira, apresentando-se como o inconsciente mítico da própria alma brasileira, surgida do esforço tortuoso de materialização de uma natureza generosa e exuberante, mas ao mesmo tempo inculta e indomável”. A segunda forma aparece com o “transbordamento do inconsciente psicológico, entregue sem pudor à transcrição quase retórica de suas imagens”. Ela não só absorveu a proposta antropofágica, mas também a dotou de maior alcance, ao misturar suas raízes com as técnicas e discursos aprendidos no exterior, dedicando-se a um tema que, no Brasil, ainda era tabu como manifestação artística: o erotismo violento. Realizou peculiar antropofagia em um grande banquete canibal com corpos ora inteiros, ora fragmentados, corpos que gritam, devoram, expõem roteiros de vida e morte. Traduziu na arte o princípio canibal da deglutição de vários discursos para criar produto único, como estratégia de sobrevivência artística. Sua filiação à Antropofagia será reforçada somente a partir da organização da XIX Bienal de São Paulo, em 1987. A mostra Imaginários singulares incluiu a artista, com o reconhecimento de que a persistência na temática surrealista, a par com a Antropofagia, fez com que a obra de Maria “se transformasse em uma flor rebelde, obstinada”. A rebeldia e as concepções artísticas de Maria mantiveram-se intactas – sempre as expressou em público – até a velhice. Chegou a ser hábito a publicação de artigos que versavam sobre os mais variados temas. Provocava seus interlocutores, questionava de forma rotineira o Abstracionismo e as políticas culturais. Em fevereiro de 1957, a escultora havia sido designada para representar o Brasil no Congresso da Unesco realizado em Nova Délhi. Quando os países começaram a discordar com relação ao orçamento do Conselho Internacional de Museus para 1957-1958, Maria realizou uma intervenção veemente a favor das artes plásticas: [...] estou tristemente surpresa de ver que a Unesco pouca importância dá à Arte, sobretudo às artes plásticas... Ouso vos pedir que em vossas sábias deliberações não vos esqueçais de que a arte é eterna, de que a política, as ciências, mesmo as altas ciências se transformam, evoluem, e se desmentem, mas que a arte fica e a obra de nosso primeiro artista desde a aurora da humanidade está sempre conosco, viva e eterna, tanto quanto a dos grandes mestres de todas as épocas e dos mestres contemporâneos, que só eles falarão de vós nos séculos futuros.
Anos depois, em 1967, quando o Brasil vivia novamente sob o peso de uma ditadura e a censura de idéias era lei, o governo brasileiro, mais concretamente o Departamento Cultural do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) decidiu encarregar um jovem diplomata da eleição dos artistas que representariam o Brasil na Bienal de Veneza. Indignada com a decisão, Maria escreveu extenso artigo, no Correio da Manhã, intitulado “A Bienal e o Itamarati”, defendendo ser mais justo e democrático que uma das instituições culturais reconhecidas internacionalmente, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, se encarregasse dessa eleição. Seu território era a arte e não estava disposta a vê-lo maltratado por atrocidades políticas. É possível que sua posição de embaixatriz, o fato de ser a viúva de Carlos Martins, lhe autorizasse a assumir posição contrária à do governo. E o fez sem reservas: “contra aqueles que usam, que se utilizam da arte sem amá-la, devemos, somos obrigados a abrir um combate leal para obrigá-los a pelo menos respeitar aos que a ela dedicam a vida, o trabalho e o ideal”. Também provocou a organização da Bienal de São Paulo:
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Capítulo II Tenho alma de cigana e ser-me-ia profundamente ingrato ter que fincar os pés na terra, em determinado lugar, até a visita da morte (aliás, não morremos, são os outros que morrem…). (Maria Martins, 1958, Brasil) Além do mais, são os outros que morrem. (Epitáfio de Marcel Duchamp, 1968, França)
44. Maria, década de 1940
Personalidade esférica A memória deixada pela artista Maria, ao mesmo tempo em que fascina, confunde. É difícil rastrear certos períodos de sua existência, pois são escassos dados oficiais que permitam traçar o perfil dessa personalidade múltipla, envolvente e tão criadora de histórias e versões sobre si mesma como de imagens escultóricas desconcertantes. Os diferentes papéis que desempenhou dificultam o traçado de sua trajetória, assim como a interpretação de sua obra. Foi muitas em uma só: escultora, promotora das artes, mulher de dois homens poderosos – o historiador Otávio Tarquínio de Sousa e o embaixador Carlos Martins –, mãe de cinco filhas. Além de manter relacionamento amoroso com Marcel Duchamp, possivelmente foi amante de Benito Mussolini. Atuou como escritora, crítica de arte e cronista. Estudar a obra de Maria, investigar sua vida, consultar textos, entrevistar pessoas que a conheceram, escutar sua família foi perceber que ela possuía muitos rostos, que detinha grande poder de ambivalência e, assim, gerava os mais diferentes aspectos de si mesma. Nasceu Maria de Lourdes Faria Alves. Ao morrer, no Rio de Janeiro, aos 78 anos, o ambiente artístico a chamava de “Maria, a escultora” e o mundo social de “embaixatriz Maria Martins”. Entrelaçam-se a vida e a obra desta criadora de formas fantasmagóricas, mulher de inteligência vigorosa, com sedutora feminilidade e admiradora de homens poderosos. Era originária de Campanha, cidade situada no interior de Minas Gerais, rodeada de verde e de montanhas, importante ponto de extração de ouro em outras épocas, cujas histórias e lendas sobre o metal precioso muito a impressionavam. Filha de João Luiz Alves (1870–1925) e Fernandina de Faria Alves, Maria nasceu às 10 da manhã do dia 7 de agosto de 1894. Dez dias depois, João Luiz chamou o notário Sebastião de Assis Ribeiro para registrar o nascimento da filha e convidou seu vizinho Euclides da Cunha, autor de Os sertões, e o estudante Octávio Barbosa Carneiro para serem testemunhas. Foi um dia de festa para a família, que incluía a jovem Maria Antônia, irmã de João Luiz, escolhida para madrinha.
43. Canto da noite, 1968 (detalhe)
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45. Maria, 1895
46. Antiga casa da família Alves, Campanha-MG, 1999
Cresceu dividida entre a severidade da mãe e a postura mais afetiva e liberal do pai, homem que pouco a pouco foi adquirindo importância no cenário político brasileiro. Até 1918, foi senador pelo estado do Espírito Santo e, a partir de 1922, ministro da Justiça e Interior do agitado governo do presidente Artur Bernardes, durante o qual foi responsável pela reestruturação da justiça e do ensino no Rio de Janeiro, reformas consideradas de orientação moderna. Pertenceu também à Academia Brasileira de Letras. Era homem divertido, irônico, chamado pelos amigos de All Right ou João Uísque. O primeiro apelido referia-se à expressão inglesa a que recorria quando surgia algum problema que precisava ser rapidamente resolvido. O segundo, ao hábito de tomar o destilado, algo raro no Brasil daqueles tempos. As conversas entre pai e filha deleitavam a ambos. No entanto, algumas vezes a menina lhe irritava com perguntas e provocações, a ponto de ele dizer que ela se tornava chata. À medida que a filha crescia, o pai a alertava: se continuasse com essa atitude só se interessaria por diálogos com homens como Gabriele D’Annunzio (1863–1938), tal o grau de exigência na eleição dos interlocutores. A previsão do pai se confirmaria ao longo da trajetória da artista, sempre envolvida intelectual ou amorosamente com homens fortes, capazes de modificar discursos e/ou realidades. Ao passar uma temporada na Itália, na década de 1920, Maria conheceu D’Annunzio, famoso como poeta-soldado. Mandou dizer ao pai que a profecia se cumprira. No entanto, nessa época, como veremos adiante, João Luiz arrependia-se do excesso de liberdade intelectual e emocional que havia proporcionado à filha. Adulta, Maria gostava de contar aos amigos que João Luiz começou a ler obras dos grandes mestres da literatura ocidental para a menina de sobrancelhas bem delineadas e cabelos “acaju” quando era ainda muito pequena. Ela agradeceu publicamente essa simbólica dívida tecida pelo amor, quando lançou o livro Ásia Maior: Brama, Gandhi e Nehru, em 1961, com a seguinte dedicatória ao pai: “Ele me ensinou, quando eu mal sabia ler, a amar Goethe e Dante, que me ficaram até hoje no fundo da memória, com o som de sua voz, e me deixou, como herança, essa paixão indomável pelas obras do espírito: Arte, Poesia, Filosofia”. Marcaram-lhe para sempre as imagens criadas e sugeridas por Dante Alighieri (1265–1321), o autor que apresentou à futura artista a idéia de que a existência é uma luta, enfrentamento entre oposições, como ela escreveu no livro em que estuda a vida e a obra de Nietzsche, lançado em
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47. Família Alves em Poços de Caldas, década de 1910
48. Casal Alves, década de 1920
1965, denominado Deuses malditos I: Nietzsche. Ao comparar trechos do canto “Antes do nascer do sol”, escrito pelo filósofo, com a Divina comédia, ela comenta que a luta dionisíaca entre os poderes pode ser, por vezes, cooperante e, por vezes, destrutiva. Nesse texto apaixonado, Maria demonstra grande entusiasmo ao comentar a vida e a obra do pensador alemão, então pouco conhecido e menos ainda admirado no Brasil: “Nietzsche não mais afirma um ideal, mas um contra-ideal. Descobrira que unicamente a dor dominada nos une à vida e que a inteligência é o único contraveneno ao desespero. Da grande dor se origina a grande suspeita e a suspeita e a dúvida são, ambas, o antídoto necessário às ilusões naturais”. Há teóricos que sustentam que a biografia elaborada por Maria não é um retrato de Nietzsche, mas de Marcel Duchamp, com quem durante muitos anos manteve, além do relacionamento amoroso, rico diálogo intelectual, artístico e existencial. Antelo afirma em “Maria, Marcel & Nietzsche”: Ora, é mesmo uma biografia de Nietzsche? Ao menos é o que se pode dizer explicitamente, porque se, pelo contrário, aplicássemos a esse livro o jogo das transposições, caberia pensar que nesse retrato do artista-filósofo, materializado no novo anarquista, um sujeito elegante, radical, porém alheio às conspirações e aos fins humanitários dos anarquistas tradicionais, um adversário da burguesia, sim, mas também um poeta emancipado, um propagador, enfim, da alegria dionisíaca da vida que, para tanto, não teme ir até às últimas conseqüências, nesse retrato, penso, Maria Martins traça o perfil de alguém mais próximo dela do que o próprio filósofo da gaia ciência. Creio ver, pelo contrário, nesse retrato, a marca de Marcel Duchamp, o artista do século e seu amante durante uma década.
Como no caso do livro dedicado a Nietzsche, pouco da biografia e da obra de Maria pode ser enquadrado esquematicamente, pois ela sempre tentava atribuir um sentido mais poético que lógico às suas experiências. Gerou polêmicas e lendas ao redor de sua vida, como todo bom viajante, diga-se de passagem. Quando chegou ao Brasil, conversou com suas duas irmãs, Maria Evangelina e Maria Vitória, e lhes propôs um pacto: não deviam revelar nunca suas respectivas idades. No arquivo do Registro Civil de Campanha, consta, no entanto, na folha 20, do livro 2, número 44, que Maria de Lourdes Faria Alves nasceu às 10 horas do dia 7 de agosto de 1894.
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57. Sem título (Série Samba), 1941
58. Sem título, década de 1940
59. Uma pobre Europa mendigando, 1940
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60. Awakening, 1941
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empresário dos Estados Unidos e se nacionalizado norte-americana.14 Como viveu muitos anos afastada do país, Maria despertava curiosidade nas pessoas, e creio que ela mesma não tentava desmentir essas versões, no jogo que mantinha com a realidade. A fascinação dos Martins por Bruxelas diminui com as notícias que chegavam da Alemanha. Crescia o poder do exército nazista e as ambições de Adolf Hitler não tinham limite. Durante o período em que viveram na Bélgica, entre 1936 e 1939, especialmente nos últimos meses, os embaixadores conviveram com a tensão provocada pelo estado de pré-guerra; entretanto, não chegaram a viver a violência no cenário europeu, porque Getúlio Vargas nomeou Carlos Martins embaixador em Washington, posição que começava a ser estratégica para a política brasileira de relações exteriores. Maria muito rapidamente percebeu o cenário político que se desenhava. Quando desembarcaram nos Estados Unidos para representar o Brasil, em 1939, pouco depois de o governo brasileiro iniciar a aproximação com os países do Eixo, Maria já defendia a aproximação do Brasil aos Estados Unidos. E, em jantares diplomáticos, esmerava-se em conversas com Summer Wells, subsecretário de Estado norte-americano, encarregado de negociar com Martins acordos que garantissem o apoio brasileiro aos aliados, o que acabou ocorrendo. O Brasil rompeu com os países do Eixo em 1942.15 Em Bruxelas, a embaixatriz atraiu um grupo de senhoras de diplomatas interessadas em receber aulas de arte. Improvisou um ateliê embaixo da escada da residência, contratando professores para lições despretensiosas às interessadas. Entretanto, decidiu continuar mais seriamente com a nova atividade. Queria tornar-se escultora. Começou a ter aulas com Oscar Jespers, na época nome reconhecido no mundo artístico belga. Não é possível definir a duração do curso que a ajudou a trabalhar com terracota, quando produziu imagens como Japonesa. Antes, experimentara a talha em madeira. Havia descoberto que possuía o mesmo dom do avô João Luis Alves Filho, que esculpia santos apenas com um canivete. Dom herdado pelo seu neto, Gabriel Fonseca (1938–), filho de Lúcia.16 “Eu não sabia que tinha talento”, contou à escritora e amiga Clarice Lispector na entrevista citada. “Um dia senti a necessidade de talhar madeira e surgiu um objeto que amei. Nesse momento decidi me entregar à escultura”. É possível considerar Bruxelas como a cidade que despertou a atenção de Maria sobre sua própria capacidade criativa relacionada com as artes plásticas. Ali, realizou vários retratos, geralmente de personagens vinculados ao seu mundo pessoal, exercitando-se no desenho e na captação das expressões. Também foi o lugar onde se preocupou em definir um local de trabalho, seu primeiro ateliê, entre muitos que arrumou ao longo da vida, em cidades distintas. A partir da viagem à América do Norte, na bagagem de Maria, foram-se acrescentando objetos ligados à tarefa artística. 14 O último texto do crítico, já citado, é emblemático. Amigo da escultora, Maurício afirma que ela tinha uma filha norteamericana, nascida da união com um cidadão daquele país. Não é verdade. Lúcia, fruto da união de Maria com Tarquínio, é que se nacionalizou norte-americana, em virtude de seu matrimônio com um empresário norte-americano, com quem teve uma filha chamada Leigh. 15 A participação de Carlos Martins nas negociações com os aliados está detalhada no Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós1930. v. III. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001. p. 3.608-3.610. 16 Sylvia Alves de Vilhena, prima de Maria, também esculpe. Usa pedra-sabão e uma agulha de costura de 5 cm para fazer, em tamanho reduzido, casas da arquitetura colonial brasileira, expostas no Museu das Reduções, em Amarantina (MG), mantido por ela e seus irmãos, Evangelina e Décio.
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Estados Unidos: ser escultora Os Martins chegaram a Washington em fevereiro de 1939. Sem dúvida alguma, de todas as viagens realizadas por Maria, essa foi a mais enriquecedora, a que mais provocou mudanças em sua vida. Ali decidiu se dedicar com afinco à escultura. Começou a trabalhar com madeiras típicas brasileiras, em especial o jacarandá, aproveitando peças que restaram da mostra brasileira na Feira Mundial de Nova Iorque de 1939, que havia exibido um pavilhão dedicado à arte surrealista. Também decidiu voltar a trabalhar com cerâmica e começou modelando pratos e pequenos utensílios. Mais tarde, passou aos bustos. Sua vinculação com as artes plásticas transformará a embaixada do Brasil em Washington, ao longo da década de 1940, em ponto de encontro de artistas brasileiros em viagem pelos Estados Unidos, como Cândido Portinari (1903-1962), Djanira (1914–1979) e Teresa D’Amico (1914–1965). A pintura mural de cunho social, influência dos muralistas mexicanos, exercia fascinação sobre os norte-americanos na época. A partir daí, Portinari, o pintor mais famoso do Modernismo brasileiro, foi eleito pelo governo para pintar os três pavilhões brasileiros na Feira Mundial de Nova Iorque. Em 1941, voltou àquele país para realizar painéis para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, obra financiada parcialmente pelo governo brasileiro. Em 1943, durante as viagens que empreendeu aos Estados Unidos, Portinari foi presença assídua na casa dos embaixadores. Durante o dia, Maria trancava-se no ateliê e, à noite, comparecia a recepções e, nas horas intermediárias, abria os salões da embaixada para realizar encontros em que grupo restrito discutia política e arte. Essas happy hours eram prestigiadas normalmente pelo jovem empresário Nelson Rockefeller. Ele presidia a Inter-American Affairs, entidade com sede em Washington, destinada a desenvolver a política da boa vizinhança implantada pelo governo norte-americano nos países da América Latina. Rockefeller e o embaixador Carlos Martins mantinham diálogo intenso sobre política. Mas o maior prazer de Rockefeller era sentar casualmente no chão e conversar descontraído com Maria. A relação que mantiveram – incluindo a compra, por parte do empresário, de algumas peças da artista – levou Tomkins, na biografia de Duchamp, a
61. Searching for light, 1940
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especular que teriam sido amantes, o que é negado com veemência pela família da artista. Quando Maria passou a confeccionar jóias, Mary, então mulher de Rockefeller, foi uma das damas da alta sociedade norte-americana que as exibiam em jantares e festas – adquiriu um adereço em forma de orquídea. Efetivamente, o que se sabe é que a artista conseguiu vender suas obras a alguns museus norte-americanos graças à intervenção de Rockefeller, que foi grande amigo do casal por toda a vida. O contato com a política permitiu ao milionário conhecer muitos artistas das Américas do Sul e Central e se converter em um dos grandes colecionadores da arte latino-americana. Entre as aquisições que fez para sua coleção privada estava uma escultura de Maria, Boiuna (1942), hoje no Museu das Américas. Sintoma do preconceito: Rockefeller foi o mecenas, por exemplo, do equatoriano Osvaldo Guayasamín (1919–1999), de quem comprou várias pinturas. Ninguém levantou a hipótese de ter existido relação amorosa entre o empresário e o equatoriano. Um ano depois de instalar-se na paisagem árida de Washington, Maria expôs, pela primeira vez em coletiva, na Philadelphia Internacional. Exibiu alguns dos trabalhos em madeira e terracota, mas não atraiu a atenção da crítica. Sabe-se também que esculturas de Maria foram exibidas, no final de 1940, em Nova Iorque, durante a coletiva intitulada Latin American Art, promovida pelo Riverside Museum. Enclausurada em seus ateliês, sentia a explosão de criatividade e passava semanas lutando com os materiais. Entre “torturas e prazeres infinitos”, como gostava de dizer, Maria tinha consciência de que gerava peças capazes de manter o público, a princípio, distante, mas que, em um segundo momento, era convocado para uma aproximação lenta e difícil. A presença freqüente dos Martins no mundo político, diplomata e social norte-americano permitiu que a primeira exposição individual de Maria em Washington, aberta na Corcoran Gallery, em 14 de outubro de 1941, fosse um êxito em termos de público. Políticos, diplomatas e empresários aceitaram o convite feito pela madame Maria Martins para a exposição intitulada simplesmente Maria, nome artístico que adotaria a partir de então e que, como constatei, traria barreiras para a divulgação do seu trabalho. É difícil identificar uma artista somente pelo prenome. Durante a pesquisa, para localizar esculturas e textos, foi necessário trabalhar com dois nomes: Maria Martins e, simplesmente, Maria.17 Um dos mais antigos textos sobre o trabalho da artista foi publicado em O Estado de S. Paulo. Trata-se de “Uma escultora brasileira em Nova York”, assinado pelo correspondente em Washington, H. T. M. Não esclarece o lugar da exposição, mas pela descrição das peças é possível perceber que se trata da mostra realizada na Corcoran Gallery. Segundo o documento, John Abott, naquela época do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque, ficou encantado com as imagens fabricadas em madeira, bronze, gesso e barro, ao ponto de comentar: “é uma artista que só é possível encontrar uma em um milhão”. A capa do catálogo exibia o perfil da artista desenhado por Portinari. Das vinte peças apresentadas, quase todas se referiam ao universo feminino e unicamente uma, Salomé, elaborada em bronze, era de concepção inteiramente clássica, embora com uma diferença relevante em relação à tradicional representação da figura bíblica: Salomé não levava a cabeça de João Batista. Somente um texto, na base da escultura, recordava o santo: 17 Em 2002, no Metropolitan Museum de Nova Iorque, na exposição Surrealism: desire unbound, as obras da artista foram identificadas somente com o nome de Maria e com algumas referências a seu papel de amante de Marcel Duchamp. Esse fato comprova também que a recepção de sua obra ainda enfrenta problemas, pois vincula-se com o dito papel de amante de um artista fundamental para a história da arte, circunstância que a relega a uma posição secundária.
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68. Orpheus, 1953
sentiu-se fascinado pelas formas criadas pela escultora, que ainda se aproximava de uma concepção clássica do corpo humano. “Acredito que nunca tinha recebido, em nenhuma exposição individual, um choque comparável àquele que senti na primeira exposição de Maria”, disse Ozenfant no catálogo da exposição de Maria realizada em 1950, em São Paulo e Rio de Janeiro. E prosseguiu: “desde então ela nunca me decepcionou, ela justifica minha admiração”. Edward Alden Jewell, em artigo publicado no The New York Times, afirma que duas obras apresentadas, Nostalgia e Yara, refletiam a influência de Bourdelle, indício de que, como já sublinhado, a escultora ainda estava submetida às noções escultóricas clássicas. Yara, representação da mais conhecida sereia do Amazonas, esculpida em bronze com dimensões naturais, era, segundo ele, “pagã e violenta”. Em 1942, a peça foi comprada pelo Philadelphia Museum, que concentra a maioria dos trabalhos de Marcel Duchamp. Outras esculturas acabaram nos acervos de alguns museus norte-americanos: São Francisco, feita em madeira, no Metropolitan Museum; e Awakening (Despertando), em terracota, no Brooklyn Museum. A recém-encerrada exposição permitiu completar o calendário cultural de Nova Iorque naquele riquíssimo ano de 1942, repleto de exposições importantes realizadas pelos artistas emigrados da Europa. Para dar idéia da diversidade de mostras oferecidas na cidade naquele ano, pode-se citar as de André Masson (1896–1987), realizadas na Curt Valentine Buchholz e na Marian Willard Gallery, a organizada por Pierre Matisse, intitulada Artist in exile, realizada em março, com trabalhos de Marc Chagall (1887–1985), Fernand Léger (1881–1955), Lipchitz, Piet Mondrian, Ozenfant e Ossip Zadkine (1890–1967) e, em outubro, a exposição First papers of Surrealism, que reuniu trabalhos dos exilados e de alguns dos novos artistas norte-americanos, como William Baziotes (1912–1963), Alexander Calder (1898–1976) e Kay Sage (1898–1963).
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69. Prometheus, 1948
Sculptures by Maria funcionou como um certificado de talento para a escultora. Foi convidada, pela mesma galeria, a fazer nova exposição, prevista para o início da próxima primavera. O mais importante, no entanto, foi a evolução do estilo de Maria, que passou por mudanças, definitivamente incorporadas em sua expressão. Ela abandonou os temas convencionais e passou a explorar questões relacionadas com o inconsciente, com o seu eu e com os temas folclóricos brasileiros. Pode-se dizer que a estada em Nova Iorque e o trabalho com Lipchitz, que conhecia as teorias surrealistas, permitiram-lhe valorizar os motivos nativos, diálogo com as riquezas do mundo em que tinha sido engendrada que já estava em curso. Suas composições ainda mantinham certo caráter literário. No entanto, começavam a expressar novos parâmetros. Suas formas não se pautavam pelo equilíbrio regido pela unidade da composição, não seguiam o padrão esperado, pois a artista buscava diminuir o peso das concepções acadêmicas sobre a expressão tridimensional. Começava a criar uma poética do aleatório. Em lugar de tentar ordenar a realidade, decidiu expor a desordem natural do cosmos, especialmente a aparente desordem da selva tropical. Portanto, foi no ano de 1942 que o estilo particular da artista se consolidou e ela se afirmou como a escultora dos trópicos. “Acredito ter sido o primeiro a chamar a atenção com meu entusiasmo, quando na primeira exposição de Maria, em 1942, pronunciei a palavra gênio”, contou Ozenfant, no texto já citado. Em seu artigo, ele afirmava: “sem dúvida é uma sorte ter nascido no Brasil quando o destino a designou para esculpir a alma dos trópicos”. A partir daí, a escultora fica associada ao surrealismo amazônico: “uma selvagem iconografia de pesadelos, híbrida e erótica, de primitividade profunda”, segundo Zanini, em História geral da arte no Brasil. Ele vincula a obra escultórica às lendas dos povos da região amazônica, às formas da selva, ao excesso barroco de traços sinuosos, de curvas e sugestões miméticas encontradas na mata, sempre prenhe de imagens. O surrealismo
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71. Página do catálogo Les statues magiques, com a escultura Macumba, 1948.
amazônico manifesta-se na criação de esculturas em que forças poderosas ganham corporeidade em seres híbridos, evocando o excesso da vida, “ao interpenetrar as espécies animal, vegetal e mineral”. Ainda que falassem de experiências pessoais, de seus medos, traumas e desejos, seus trabalhos plasmavam formas da imensidão da selva, zona de forças primitivas, repleta de surpresas e carregada de energia telúrica. Árvores frondosas, galerias lúgubres, espaço cheio de água, de inalcançáveis abraços entre rios. Mundo rico em mitos e ritos, já presentes na obra de poetas modernistas, de que são exemplos o poema Cobra Norato, de Raul Bopp e, especialmente, as composições de Villa-Lobos, que descrevem o excesso de impressões, suscitadas em uma viagem à região da grande serpente, que é o Rio Amazonas. Não organiza espaços e matérias. Mais próximas ao instintivo, suas imagens simbolizam a natureza não domesticada do humano. Esse mundo de seres selvagens – vegetais, animais e humanos – destila atmosfera inculta, rude, que infunde medo e, às vezes, aversão. Trabalhos como Macumba, realizado em bronze, e Les deux sacres (Os dois ritos), datados de 1942, já expressavam claramente a opção por evocar esse mundo primitivo, meio mágico, dotado de sensualidade e violência. Tais obras, segundo Jewell, no texto referenciado, padeciam, no entanto, de certa confusão entre as formas: eram barrocas, quase rococó. A observação é ainda mais procedente, se levarmos em conta que a expressão barroca, ainda que tardia, foi forte no Brasil, especialmente em Minas Gerais, onde Maria nasceu. Macumba alude ao ritual religioso de origem afro-brasileiro, mas incorpora elementos de religiões indígenas do país. Por derivação, evoca magia e bruxaria. Na peça, observam-se duas figuras primitivas, com marcas do masculino e do feminino, separadas por uma série de galhos e ramagens, onde se instala a figura de um galo antropomorfizado, cujo corpo se transforma em violino, em forma de coração ou vagina. A imagem do galo, que em diversas tradições está vinculado à explosão de um desejo desmesurado e contrariado, será explorada pela escultora em vários outros trabalhos,
70. Les deux sacres, 1942
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72. O galo, 1955
73. O galo gaulês, 1956
74 e 75. Chanson em suspens, 1945
como Chanson en suspens (Canção suspensa, 1945). Les deux sacres apresenta também modelado intrincado: de uma figura humana saem galhos e ramos, estabelecendo confusão de formas. Os galhos parecem aves nascidas das mãos da figura sexualmente indefinida. O conjunto de galhos e aves sugere a forma de um manto envolvendo a imagem central. As três esculturas continuam pertencendo a museus norte-americanos. O excesso de ornamento das formas será mantido por longo tempo nas obras da escultora, como comprova a exposição apresentada em 1943, em Nova Iorque, com Piet Mondrian, na galeria Valentine. Quando as portas se abriram, no dia 22 de março, inaugurando as mostras da primavera, o público ficou estupefato. Junto às esculturas de Maria, centradas na figuração, nas imagens de seres entre o animal, o humano e o vegetal, encontravam-se telas de Mondrian, completamente abstratas. Enquanto ele apresentava seus quadros de racionalidade construtivista, Maria expunha o barroquismo da selva tropical. Excesso de dobras em contraste com a contenção das formas. Para esta exposição, Maria subverteu a idéia de um catálogo tradicional, ao produzir livro em que recriava as lendas e os mitos brasileiros, intitulado Amazonia by Maria. Para cada lenda, esculpiu a/o protagonista e incluiu fotografias das esculturas com os textos escritos, por ela, em inglês. Apresentou oito esculturas (Maria: new sculptures era o nome da exposição) e teve sucesso. Todas as suas peças foram vendidas, enquanto Mondrian só conseguiu vender uma: Broadway boogie-woogie, comprada por Maria e posteriormente doada por ela ao MoMA, em Nova Iorque.21 21 A história era contada por Maria a familiares e amigos. Ela dizia que havia comprado o quadro por U$ 800 e o artista lhe indagara se não era muito dinheiro. No MoMA consta que a doação da obra de Mondrian foi feita por doador anônimo através da galeria Valentine. Em fotografias pertencentes a Nora Martins Lobo, existem indicações sobre o destino das obras: Yara/ Cleveland Museum of Art; Yemanjá/ Museum of Contemporary Art Dedroit; Babassu/ Museum of Contemporary Art Chicago; Iacy/ The Museum of Fine Arts Houston; Boto/ Albright-Knox Art Gallery e Macumba/ San Francisco Museum of Modern Art. As três últimas instituições mantêm a posse das esculturas. Consultados, os demais museus não confirmaram ter as peças em seus acervos.
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76 e 77. Cobra grande, 1942
Amazonia by Maria Com a reelaboração, na escultura e no texto, dos mitos amazônicos, Maria estabeleceu uma ponte de aproximação com os surrealistas, bastante interessados, naquele momento, no universo de mitos e lendas dos povos do chamado Novo Mundo. A América ainda cultivava mitos ancestrais e favorecia uma forte vinculação entre o homem e a terra, algo muito distante do universo de degradação vivido por uma Europa em guerra, massacrada pelas tropas de Hitler, auxiliado por Mussolini e amparado pelo ditador espanhol Franco. Na realidade, o que mais atraía a atenção dos surrealistas, desde a origem, era a primitividade, entendida como manifestação artística, segundo Robert Ponge, no livro Surrealismo e Novo Mundo: Nos anos 20, os surrealistas não desconhecem a contribuição da escultura africana para com a arte moderna, mas essa é ainda por demais realista para seu gosto. A arte dos povos da Oceania é que então recebe todo o seu fervor. Porém, aos poucos e ainda nos anos 20, eles descobrem a arte dos povos indígenas das Américas, provavelmente durante suas visitas ao Musée du Trocadéro que, na capital francesa, fazia às vezes de museu etnológico. A tal ponto que, em 1927, o grupo parisiense organiza uma exposição na qual objetos da América indígena estão à mostra ao lado de telas de Yves Tanguy.
Durante o exílio nos Estados Unidos, a proximidade com as culturas existentes na América Central permite aos surrealistas entrar em contato com as manifestações de diferentes povos, como os mexicanos, os dominicanos e os haitianos. O próprio Breton, na década de 1930, ficou fascinado com o México; Pierre Mabile decidiu viver no Haiti; Leonora Carrington, Remedios Varos e Benjamin Péret embarcaram rumo ao México. Neste ambiente de fervor dos surrealistas com relação às culturas americanas, o Brasil ainda era desconhecido. Distante geograficamente dos Estados Unidos, e com uma política intelectual até então voltada para a Europa, para onde se dirigiam artistas e intelectuais à procura de formação, o Brasil iniciou suas relações com os EUA durante a Segunda Guerra Mundial. A exposição de Maria, com o nome e as madeiras do país, funcionou – talvez programaticamente – dentro dessa estratégia.
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79. Boto, 1942
Cabe ressaltar que, dos artistas que conheceram a produção apresentada por Maria, Péret era, com toda probabilidade, o que melhor podia compreender intelectualmente a dimensão do que estava proposto pela escultora, pois morara alguns anos em nosso país, onde escreveu uma série de treze artigos intitulados “Candomblé e makumba”. As esculturas de Amazonia by Maria funcionaram como uma apresentação das lendas e dos mitos dos povos originários do Brasil aos surrealistas. Se as obras expõem um modo de pensar e de sentir poético, vinculado à natureza, característicos de diversas nações indígenas da região amazônica, significam, antes de tudo, a forma como Maria aprendeu e transformou os relatos que ouviu – e os textos antropológicos que estudou – sobre aquela realidade. Os mitos da selva transformam-se em árvores, têm inumeráveis bocas, que se transformam em espécies de vulvas. É difícil explicar o que é macho ou fêmea no microcosmo da artista, porque ela recorre a antigas fábulas nas quais persiste certa indistinção quanto à identidade sexual dos seres que, real ou simbolicamente, atormentam os moradores da selva. Na escultura Amazônia, percebe-se o tratamento quase literal da lenda, história que evoca o casamento entre o grande rio e a terra, a união cósmica que gera e mantém a vida. No texto poético de Maria, inserido no catálogo, a noiva Amazônia prepara-se para o enlace: “ela se veste com o adorno mais elegante, se adorna com suas jóias mais raras e se rende selvagem – com uma mistura de amor e medo – ao sacrifício. Agora, a selva viverá um novo ano, mais forte, mais misteriosa, mais luminosa e mais lúgubre, guardando dentro do coração o segredo das riquezas cobiçadas pelo homem”. Todas as peças guardam potente carga erótica, suscitam dúvidas sobre a fertilidade e o alcance da ânsia sexual. Os mitos e ritos dos povos indígenas estão centrados no poder da vida e da morte, na criação e na destruição do homem e da natureza, no encontro entre dois seres para gerar vidas. Maria recriou de forma escultórica e quase literal as histórias e apresentou em território norte-americano essas entidades e divindades. Com capa verde, alegoria das matas da floresta, o catálogo Amazonia by Maria teve tiragem numerada de quinhentos exemplares assinados pela autora. Na introdução, intitulada “A lenda da origem”, Jorge Zarur, diretor do Conselho Nacional de Geografia, explica a história da formação do leito do Amazonas, comenta que o rio possui águas turvas e velozes e conta, além disso, que os povos indígenas que habitam nas suas margens possuem rico folclore, composto de grande número de lendas e mitos. O primeiro livro escrito por Maria reconta as maravilhas da Amazônia, embora a narradora nunca tenha visitado a região brasileira. Ela recuperou algumas das belas e intrigantes ficções indígenas que tentam explicar a origem do mundo, falam de forças que regem a natureza, evocam monstros que aterrorizam as noites úmidas e exibem desejos que erguem ou destroem os humanos. A elaboração das esculturas e a recriação das lendas são decisivas para que a artista ocupe uma posição diferenciada no palco das artes plásticas norte-americanas.
78. Amazônia, 1942
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86. Caixa e ex-libris do catálogo da exposição de Maria, 1946, Nova Iorque
87. Poema Explications,1946
85. Sans echo,1946 miolo-livro-MM-finalizacao2.indd 115
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jogo de aventura se produz entre a Obra e o Espectador, contra ele e contra todos, entrem na dança”. Para cada nome de uma peça, escreveu pequena frase poética. Em Sans fin quelque part hors l’espace (Sem fim em algum lugar fora do espaço), anotou: “não é preciso, sobretudo, que a eternidade dure”. Sobre Krabochima, disse: “No rastro desse monstro alado, a vida não germinará nunca mais”. Em La femme a perdu son ombre (A mulher perdeu sua sombra), refletiu sobre o poder da liberdade: “Ela se liberou tanto que chegou a perder inclusive sua sombra; já não lhe fica nada: é o grande perigo da liberação, tornar-se escravo da liberdade”. E Saudade recebeu a seguinte observação: “Ela joga com seus cabelos, para poder recordar com doce amargura das coisas vividas”. No final, provocou os espectadores, perguntando-lhes: “Agora, é a vez de vocês: vão seguir ao guia ou lhe vão cortar a língua?” A exposição foi sucesso de público e de crítica. Germain Bazin (1902-1990) escreverá texto a respeito da exposição, em que observa que as esculturas remetem à selva tropical e lembram a expressão simbólica das formas genesíacas do subconsciente. Ao comentar o trabalho da escultora, o historiador e crítico de arte Christian Zervos (1889–1970) considerou, em Cahiers D’Art, a importante revista que demarcou territórios na arte do século XX, que a obra da brasileira era impulsiva, ainda que as “virtualidades plásticas não parem de surgir para acertar os rápidos movimentos da alma, determinar a expressão do sonho, assegurar as ligações das formas”. Zervos, cujo texto integra o catálogo da exposição da artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1950, é um dos primeiros críticos contemporâneos à obra da artista que não realçou o caráter mágico de suas composições, nem o tropicalismo, essa espécie de alteridade com relação à cultura européia, sempre evocada por aqueles que analisam a produção da escultora. Apreciou a produção da artista como obra que prescinde das referências do meio físico para apresentar efeitos e provocar reações no espectador. 80
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90, 91 e 92 (página 124/125). A mulher e a sombra
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93. Catálogo da exposição Maria, 1950, Rio de Janeiro. 94. Catálogo da exposição Maria, 1956, Rio de Janeiro.
95. Catálogo da exposição de Maria, 1946, Nova Iorque. 96. Catálogo da exposição de Maria, 1948, Paris.
97 e 98. Página da boneca do catálogo Les statues magiques, 1948 miolo-livro-MM-finalizacao2.indd 122
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99. Página do catálogo Les statues magiques, com a escultura Hasard Hagard, 1948
100. J’ai cru longtemps rèvé que j’étais libre , 1946
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102. Saudade, 1944
103. Saudade
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A realização e a forma de inspiração de Étant donnés deixaram de ser um segredo entre os dois artistas. Hoje, comprova-se que, ainda que geograficamente distantes, Maria e Duchamp jogavam dados durante a confecção desse enigma póstumo. Nele, em uma velha porta, originária de Cadaqués, dois pequenos buracos permitem ao espectador visualizar uma cena inquietante: em um espaço escuro, o corpo desnudo de uma mulher jaz sobre um leito de galhos e folhagens secos. A cabeça não está à vista, as pernas abertas exibem a vulva para o espectador-voyeur. Na mão esquerda, a mulher sustenta uma lâmpada de gás. No fundo, há um pequeno manancial situado em meio à natureza, uma natureza típica dos países situados no hemisfério norte. Naquele desenho inspirado em Maria o corpo flutua no ar, a perna esquerda fica em suspensão, mostra-se a vagina coberta de penugem púbica. A legenda diz: Étant donnés: Maria, la chute d’eau et le gaz d’eclairage. Duchamp também entregaria a Maria o baixo-relevo feito a partir do desenho, de cinqüenta centímetros de altura, coberto com couro sobre um fundo de veludo, cuja diferença em relação ao primeiro esboço é a depilação da penugem púbica, a vulva aberta e a perna esquerda amputada ligeiramente acima do joelho. No reverso – ambos os trabalhos foram vendidos pelos herdeiros de Maria ao Museu de Arte Moderna de Estocolmo –, Duchamp escreveu: “Cette dame appartient à Maria Martins/ avec toutes mes affections/ Marcel Duchamp 1948-1949”.28 Durante o preparo de Étant donnés, que só viria a público depois de sua morte, o artista dialogou com ela também a respeito dos materiais. Em uma das cartas, descreve seus progressos com o molde de parafina. Em outra, comenta: “a parafina é como uma opala mole e fica dura à temperatura elegível”. Gestada ao longo de vinte anos, a obra final, cujo nome completo é Étant donnés: 1º la chute d’eau 2º Le gaz eclairage, apresenta um corpo de mulher diferente daquele do desenho original. Duchamp eliminou o nome de Maria do título e acrescentou um pedaço de cabelo loiro ao desenho – provável referência à sua mulher Alexina, com quem se casou em 1954 – e fez o corpo mais arredondado. A nova orientação do francês ao objeto de desejo foi paulatinamente modificando o desenho original. A peça encontra-se no Philadelphia Museum of Art, que possui grande parte da obra de Duchamp. Ao mesmo museu, pertence Yara, de Maria Martins, e provavelmente foi o pintor francês quem solicitou que colocassem a escultura em um ponto do jardim onde pudesse ser vista a partir da posição do Grande vidro. Alguns meses depois do encontro dos dois em Nova Iorque, em 1966, o artista inglês Richard Hamilton escreveu uma carta a Maria em que perguntava se ela lhe emprestaria a obra 1911 coffee mill, de Duchamp, para a retrospectiva de Marcel Duchamp a realizar-se na Tate Gallery, em Londres. Maria respondeu afirmativamente e ainda perguntou se ele queria algo mais de Duchamp para a exposição. Com resposta afirmativa, ela enviou, envolvido em papel de jornal, o baixo-relevo preparatório para Étant donnés, que ninguém conhecia, com uma dedicatória do artista francês para ela. Ninguém, até então, desconfiava de que Duchamp tivesse voltado a trabalhar na confecção de obras que enlaçam a linguagem da pintura com a da escultura. No vídeo The secret of Marcel Duchamp, Hamilton conta que, ao ver a peça na exposição, Duchamp irritou-se, quis saber onde a haviam conseguido e soube, então, que a responsável pelo envio era Maria. Não comentou nada. Não queria revelar o erotismo que marcara a relação dos dois. Continuava muito reservado a respeito de sua vida pessoal. Maria, ao contrário, com a entrega da obra, 28 Maria possuía, também, uma miniatura do famoso urinol, agora pertencente à galeria Tokoro (Japão). Ela havia comprado de Marcel Duchamp por US$ 300,00 em 1947.
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anunciou ao mundo artístico a relação que haviam tido. No entanto, indiretamente, o próprio Duchamp pode ter ajudado na localização do relevo durante a preparação da mostra, pois havia dito a Cabanne que algumas de suas peças se encontravam em coleções particulares, como a de Maria Martins, no Brasil. O livro de entrevistas foi publicado após o encerramento da exposição em Londres. Todavia, Cabanne e Hamilton haviam entrevistado Duchamp para a BBC em 1961 e o segundo pode ter consultado o primeiro durante a organização da retrospectiva e, assim, obtido a informação sobre a colecionadora. Maria dizia a seus marchands que queria receber o pagamento pela venda de suas peças em obras de arte de outros artistas, que ela escolhia com muita atenção e atenta a novidades estéticas. Assim, reuniu coleção valiosa, que contava com peças de Roberto Matta, Dalí, Picasso (um deles, um estudo preparatório para Mademoiseles de Avignon). Reuniu cinco Léger, um nu de Matisse, esculturas pequenas de Giacometti e outras de Lipchitz. Em 1946, induzida por Duchamp, comprou Le modèle rouge (1935), de René Magritte. Tinha olhar aguçado, dizia que gostava de colecionar de tudo e, por isso mesmo, reuniu um patrimônio em óleos, gravuras, esculturas, vendido, em parte, por ela, quando regressou ao Brasil, e o que conservou foi vendido pelas herdeiras, após sua morte. O mesmo olhar aguçado para o novo e sua rede de relações com artistas e marchands permitiram que o MAM do Rio de Janeiro reunisse uma rica coleção de obras surrealistas e também do Expressionismo Abstrato, da chamada Escola de Nova Iorque. Amiga de Niomar Bittencourt, que dirigia o museu, a escultora tinha grande influência sobre a decisão das aquisições e esforçava-se para articular as negociações com os artistas. Aqui, Maria e Pedrosa revelavam objetivos em comum, pois trabalharam muito para que o MAM fosse um museu sintonizado com as mais importantes expressões artísticas da época.
Regresso à casa O retorno definitivo de Maria ao Brasil, essa grande casa originária, ocorreu após 25 anos da primeira viagem. Passou quase outros 25 anos (1949–1973), os últimos de sua existência, na terra que tantas obras lhe inspirou. No entanto, permaneceu muito tempo com a sensação de que era estrangeira no seu país. Em outras terras, foi reconhecida pelo exotismo das formas que criava. Na terra natal, acabou recebida como exótica, por não falar a mesma língua dos que ficaram. A sina de estrangeira a perseguia. Ao chegar ao Brasil, Maria comprou um apartamento no Edifício Residência, um dos mais elegantes do Rio de Janeiro, na Avenida Rui Barbosa, e decorou-o com a coleção de arte moderna e de máscaras africanas. Algumas de suas obras foram dispostas estrategicamente pela sala. Montou uma oficina, no bairro de Botafogo, na Rua Conde de Irajá, 541, no térreo, para facilitar o movimento das esculturas. Gostava de chamar jovens artistas para conhecer seus trabalhos e freqüentava com bastante assiduidade as mostras de nomes que despontariam mais tarde na arte brasileira, como Carlos Scliar (1920–2001) e Franz Krajcberg (1921–). Como Martins gostava do ar do campo, o casal restaurou a casa que pertenceu ao barão de Rio Branco, em Petrópolis, e ali decidiram passar os fins-de-semana e o verão. Rapidamente, Maria transformou a antiga cocheira em oficina e disseminou pelo jardim peças de bronze.
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104. Calendário da eternidade, 1953
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Capítulo III O diálogo erótico e artístico Longtemps même après ma mort Longtemps après ta mort Je veux te torturer Je veux que ma pensée comme un serpent de feu S’enroule autour de ton corps sans te brûler Je veux te voir perdu, asphixié, Errer dans les brouillards Tissés par mes désirs. Je veux pour toi des longues Nuits sans sommeil Accompagnes par le tam-tam rugissant des tempêtes Lointaines, invisibles inconnues
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Je veux que la nostalgie de Ma présence alors te paralyse (Maria Martins)29
Natureza de Eros A sexualidade sempre fez parte do universo imagético dos surrealistas, mas em Maria Martins transformou-se na própria energia da obra, a ponto de ser considerada “a escultora do desejo”, na acepção de Paulo Herkenhoff. A maior parte de sua produção foi gerada a partir da Segunda Guerra Mundial, época em que os temas erótico-sexuais passam a ocupar espaço cada vez maior na história da arte. Maria compôs uma iconografia que celebra o erotismo, com imagens figurativas de dramática e perturbadora fantasmagoria. Mas, como no poema, a sexualidade em sua escultura percorre caminho complexo em que comparece a violência do desejo, a inquietude provocada pelo outro, a impossibilidade da fusão amorosa, a solidão, conforme destacou Katia Canton, curadora da sala dedicada a Maria na XXIV Bienal de São Paulo. 29 No manuscrito não consta a data nem o lugar em que foi escrito. Pertence a Kátia Mindlin Leite Barbosa (Rio de Janeiro). Francis Naumann, que o publicou pela primeira vez no catálogo da exposição The surrealist sculpture of Maria Martins, acredita que o texto seja da década de 1940. A tradução é literal: “Inclusive muito depois da minha morte/ Inclusive depois da sua morte/ Eu desejo lhe torturar/ Eu desejo que meu pensamento como uma serpente de fogo/ se enrosque ao redor do seu corpo sem chegar a lhe queimar/ Eu desejo vê-lo perdido, asfixiado/ vagando na neblina / escura urdindo pelos meus desejos/ Para ti, desejo largas/ noites de insônia/ Acompanhadas pelo tam-tam ruidoso das tempestades/ Bem longe, invisível/ Eu desejo que a nostalgia de/ minha presença te paralise.”
106 e 107. Huitième voile, 1949
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108. Sem título, década de 1940
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Conhecer a natureza de Eros na obra requer esculpir – na acepção original do termo em latim, escavar, abrir cortes – para desvelar o enigma de sua escultura. Nela, a sexualidade vai além da mera exposição ou exibição de órgãos genitais. Esses seres fragmentados, híbridos martirizados, privados de inteireza, são indagações sobre o estado fundante do homem. O corpo sofre transformações, os seres são mutáveis. Para realizar essa fantasmática angustiante, ela criou esculturas assustadoras – “grandes acordos acrobáticos”, no dizer de Breton – que, na forma e no conteúdo, expõem vazios, sugerem a falta e a incompletude humanas, exibem o monstruoso, a paisagem defeituosa da existência. A poética escultórica de Maria familiariza o espectador com a ausência de plenitude e de apaziguamento. Tome-se como exemplo a escultura Cobra Grande (1942). De uma base retangular em bronze, surge uma forma serpentina, falo possuidor de vários seios, grotescamente inserido no que parece ser uma caverna na floresta. Entre os dois seios maiores há um oco, ponto central do olhar do espectador. Incapaz de ser identificado como pertencente a uma instância sexual definida, Cobra Grande causou impacto em Breton, que assim a resumiu no texto do catálogo Maria: “ela é, sem dúvida, em última análise, o Desejo elevado, pela primeira vez na arte, ao poder pânico – e é o desejo mestre do mundo – conseguindo se liberar” (ênfase no original). Inspirada na lenda sobre a grande serpente, rainha de todas as deusas da Amazônia, a escultura recebeu tratamento inacabado, aludindo às inúmeras possibilidades de circulação do desejo, que se movimenta ora às claras, ora de maneira subterrânea, imiscuindo-se nos corpos. Cobra Grande, a entidade, é considerada a mãe de todos os homens, ou a rainha de todas as deusas da Amazônia. É também o nome da entidade Boiúna – do Tupi, mbó (cobra) e una (negra) –, ser que, sob a forma de uma cobra, faz virar as embarcações. A expressão Cobra Grande, segundo o significado popular, também designa o órgão genital masculino. Como a serpente se intromete no leito do Rio Amazonas, fertilizando a floresta, o desejo transborda nas formas e submerge aquele ser que tem “a crueldade dos monstros e a docilidade de um fruto silvestre”, segundo Maria escreveu no texto “Cobra Grande”, do catálogo da exposição Amazonia by Maria. Em fragmento do poema-desabafo Explications, a escultora deixa claro que a escolha por retratar seres estranhos e dotá-los de desejo era consciente: “Eu sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros/ Sempre te parecerão sensuais e bárbaros/ Eu sei que você gostaria de ver reinar em minhas mãos/ A medida imutável das linhas eternas./ Você esquece/ Eu sou dos trópicos, e de mais longe vinda”. É possível identificar no poema uma crítica de Maria a Marcel Duchamp. Ela o censuraria por ter um olhar estereotipado para sua diferença, recriminando-a por seus monstros primitivistas. Fragmentados, violentados em sua organicidade anatômica, expostos em suas brechas, os monstros de Maria Martins são visivelmente – seria essa crueza denotativa que, supostamente, incomodaria o anti-retiniano Duchamp? – metamorfoses com intensa carga erótica. Mas, se, segundo Xavière Gauthier, em Surrealismo y sexualidade, “a força do Surrealismo reside em haver inscrito em suas premissas que a arte, como a revolução, é uma violência, um rapto e uma metamorfose dolorosa do corpo”, o que de mais bárbaro poderia haver nos monstros criados por ela? Desde o início da produção, a fascinação de Maria pelo corpo era evidente. A partir de Amazonia by Maria, o deslumbramento mostra-se de maneira peculiar: Maria rompe com a figuração tradicional ao criar corpos humanos que se confundem com formas animais e vegetais, híbridos indisciplinados que indagam sobre medos e prazeres, questionam o sentido do corpo e
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109. Huitième voile, 1949 (detalhes)
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110. Página do catálogo Les statues magiques, com Huitiéme voile, 1948
dos seres. As duas esculturas de nome Yara simbolizam esse momento de ruptura, em que Maria se recusa a seguir ditames clássicos, marcando assim um diferencial em relação à tradição do corpo normatizado. Na primeira vez que plasmou a deusa Yara, em 1940, a artista ainda buscava o ordenamento do corpo segundo uma concepção clássica e bem equilibrada da anatomia. Essa é a escultura que pode ser vista instalada próxima ao Grande vidro, provavelmente a pedido de Duchamp, no Philadelphia Museum. Na versão realizada para Amazonia by Maria (1943), a artista passa à prática de deformar os seres. Vê-se, então, um monstro feminino, robusto, de braços abertos, seios gigantescos e ventre saliente. Está instalada em base de bronze, que lembra as formações lúgubres das florestas. Junto com a escultura, a artista escreveu: Yara está enamorada do amor. Ela é a sereia da Amazônia. Apesar do distante que possa estar o amor, Yara canta sua canção de sedução. Perdido em amor como mortal que é, o amante ouve a canção e escuta a Yara. Miséria para ele, que deverá escutar outra vez. Então, é induzido à busca dela. Ele a busca. Ela emerge do grande Rio em uma Vitória régia, lótus carmesim do Amazonas. Ela é tão branca que brilha com o reflexo verde das folhas. Seus olhos esmeraldas têm a claridade e a perfídia das águas. Seus verdes e dourados pêlos a vestem com outra sedução. Ele não pode resistir – escutou muito bem a canção da tentação. Yara lhe oferece uma flor e o beijo da morte. Ele desaparece com ela na corrente. Juntos, seguem seu curso – um curso ora calmo, ora tempestuoso – até o momento em que um novo amor aparece, não importa onde no imenso mundo, e Yara regressa para destruir outro mortal que não consegue resistir à tentação do assassino – Yara.
Na primeira versão escultórica da deusa, os braços estão contidos, as mãos unidas quase em súplica, as pernas fechadas, os pés perfeitos. Na última, os braços soltam-se no ar, as pernas sugerem movimento, os pés transformam-se em cauda e essa se confunde com o lugar de onde sai a mulher, talvez fundo da terra, talvez leito do rio, talvez ventre materno. Inevitável lembrar o molde em parafina da mulher de braços abertos, corpo entrecortado por uma forma vegetal, um jorro d’água ao fundo, confeccionado por Duchamp nos estudos para Étant donnés, e hoje pertencente ao
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permanece paralisada e paralisando os que a vêem, tal angústia suscita. Como em muitas outras obras surrealistas, essa Gradiva é sinônimo de tentação, porta para a efetivação de inúmeras fantasias, corpo à espera de complementação, falta que danifica. Grande parte das obras surrealistas, ao caracterizarem a falta na mulher, negam a castração masculina. Os homens surrealistas fornecem uma compreensão da natureza da feminilidade como sendo algo inerente apenas à mulher.31 Nela concentram, e repudiam, a condição de faltosa, e terminam por demarcar territórios sexuais. Em Cabeça de mulher (1938), Joan Miró (1893–1983) envereda por essa identificação da mulher como um cenário de horrores. Pintou a parte superior do corpo feminino como um mundo escuro, praticamente sem vida. Pássaro agressivo, a mulher se expressa por uma extremidade aguçada e dentada, devoradora, mas dentro de sua cabeça nada existe. Essa encarnação do falível nos corpos femininos é patente em quase toda a obra de Hans Bellmer (1902-1975), em especial nas fotografias das bonecas articuladas, de aparência perversa e atormentada pela sexualidade. Simultâneo ao fato de questionarem a ordem do erótico e do sexual, o corpo como espaço para múltiplas vivências do desejo, elas também cristalizam a falta e a perversão como sendo algo pertencente ao feminino. A contraposição de Maria ao lugar da mulher estabelecido pelo Surrealismo é ampla. Ela desestabiliza a visão do feminino e do masculino, na medida em que sua escultura recorda que o ser humano é portador de lacunas e silêncios, corpo composto de fendas, buracos, cavidades. Seus monstros associam o humano à perda primordial. Não importa o gênero sexual, todos são seres impossibilitados de plenitude. Castrados. Ao romper a estrutura do corpo biológico, criando homens-bichos e mulheres-bichos, os trabalhos de Maria alteram brutalmente o corpo, abrem brechas na sexualidade e realizam uma destruição da estrutura do ser fechado. A abstração não poderia ter sido a opção de Maria, por ser auto-referente e tender a comentários sobre a própria arte. Reafirmou, então, sua opção pelo corpóreo, por aquilo que é comum a todos. E optou pelo carnal com uma visão a partir da experiência “feminil”, isto é, retratou corpos de homens e de mulheres com fendas, pequenos e grandes orifícios, ocos passíveis ou não de preenchimento. Incompletos, ou acrescidos de formas anatômicas de animais e vegetais, os corpos apontam, ao mesmo tempo, para um excesso e uma ausência. O par excesso/ausência remete ao desejo, a essa constante busca de um objeto de satisfação, inerente ao humano. Se a problemática do erotismo é a problemática do excesso, do desbordamento do ser, as peças de Maria falam dessa exuberância. Consciente ou inconscientemente, a escultora recorreu ao excesso amazônico para se referir ao excesso do existir que é próprio do desejo. Afinal, refletiu a escultora no catálogo parisiense: “é preciso que o desejo tenha muita imaginação para poder suportar-se a si mesmo”. Em obras como Boto, baseada na lenda do peixe que seduz as mulheres que vivem às margens do Rio Amazonas, existem tantas formas e profusão vegetal que é imediata a associação com a 31 Sigmund Freud apontou “o enigma da natureza da feminilidade” como sendo o da falta. Ocorre quando a menina descobre a ausência do pênis e se sente castrada. Terá, então, três opções a seguir: renegar a sexualidade, exacerbar sua falicidade ou viver plenamente em sua condição femínea, reconhecendo a falta primordial e dela obtendo gozo. No homem, a feminilidade representaria a aceitação da castração. Assim, as polaridades sexuais dissolveriam-se, mostrando a indiferenciação sexual/ visual atribuída ao masculino e ao feminino. Homens e mulheres seriam portadores das duas intensidades e ambos, subjetivamente, viveriam sob o domínio do desejo nunca realizado de regresso ao útero, quando formavam uma identidade total. A transitoriedade de estados, a circulação dessas intensidades, caracterizaria, portanto, o “enigma da feminilidade”. Conferir: Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXII. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Especialmente “Conferência XXXIII – feminilidade”, p. 139-165.
116. Porquoi toujours (detalhe)
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vulva a partir do canto do abdômen daquele monstro-feminino, enquanto o órgão genital se mantém resguardado pela posição arqueada das pernas. Nas mulheres de Maria e Duchamp, a fenda concentra-se na própria vagina. Em tais obras, o observador não precisa mudar a posição em relação ao objeto artístico para defrontar-se com a estrutura genital. Em Man Ray, prevalece certo pudor em explorar frontalmente os buracos anatômicos – o que se repete, por exemplo, em La prière (1930). Na fotografia, o orifício anal está escondido pelas mãos que se unem em forma de prece. Já a ausência de recato se faz presente na trajetória de Maria, assim como na obra final de Duchamp. Em Canto da noite, o despudor é acentuado pela oralidade da figura-monstro, possuidora de imensa boca, símbolo do desejo canibal e tantálico de deglutição. Boca/buraco que é, também, metáfora da condição humana, inserida entre os impulsos da natureza, as necessidades do corpo físico e as inúmeras possibilidades da fala/falo, que é a linguagem. Se Duchamp construiu uma mulher a partir de um molde recoberto com pele de porco, e colocou-a em uma câmara escura, criando um jogo entre obra e espectadores/voyeurs, e para isso levou muitos anos de sua vida, Maria, mesmo acometida de intensa nevralgia na mão direita, continuou a trabalhar com material tradicional, o metal, modelando a massa de maneira coerente com sua trajetória. Embora trabalhassem com materiais muito diferentes – o bronze polido remete ao luxo, ao esplendor, enquanto a instalação de Duchamp está composta de materiais menos sofisticados –, escolheram um corpo de mulher, exposto naquilo que tem de mais íntimo, para expressar suas indagações e reflexões finais. Os dois alimentaram longa troca de experiências artísticas, a crer na carta em que Duchamp escreve a Maria, em 6 de junho de 1949, que inicia com a expressão “Le jour le maulage est arrivé” (o dia em que o molde chegou) e, logo depois, registra o aborrecimento com Alfred Barr, por ter comentado com sua mulher sobre “a nossa pele”. Também faz comentários sobre os bronzes da escultora. Em outra, deixa claro que travavam diálogos a respeito do lugar da arte em suas vidas e a função que tinha em suas existências, exercendo o papel de caminho para expurgar e superar a ausência, a dor, a angústia da separação: “aliás, como nós dois sempre dissemos, a porta de saída é a tua escultura e a minha mulher da vulva aberta”, diz ele em outra carta. Em uma carta a Maria, quando ela já se encontrava no Brasil, escrita em um mês de agosto, pouco depois do aniversário da escultora, Duchamp deseja-lhe “boas festas”, diz que são “tristes festas” (por causa da separação) e comenta: “seria tão belo que nós estivéssemos juntos. Separados como estamos, essas datas só fazem insistir sobre nossa separação, e são mais doloridas que prazerosas”. Na mesma carta, pergunta que peças Maria está mandando para fundição e pede que ela envie fotos do trabalho para que ele veja. Em nova missiva, insiste: “não esqueça de me mandar fotos”. O longo tempo de gestação de Étant donnés, o vácuo entre Canto do mar e Canto da noite, a troca de correspondência e informações sobre os trabalhos que realizavam indicam que Maria Martins e Marcel Duchamp criaram uma conspiração artística, uma charada, que, como as formas excêntricas geradas pela escultora e os enigmas de Duchamp, enreda historiadores, críticos e público, levando-os a perfurar buracos na porta da intimidade dos dois. Para compreender seus últimos engenhos, faz-se preciso rever o homem e a mulher que os inventaram, pois, como alertou o próprio Duchamp na entrevista a Cabanne, “o artista não existe sem que se o conheça”.
123. Canto da noite, 1968 (detalhe)
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126. Tamba-tajรก, 1945
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127. Ma chanson, 1944
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dos trópicos”. A sentença acabou por se converter no título de uma obra, Don’t forget I come from the tropics (1942). Um monstro feminino, de cuja barriga surgem outros cinco monstros. Os braços, estendidos e vazios, aguardam um abraço. O diálogo com Étant donnés é ainda mais evidente em outra peça da artista, realizada a partir de Don’t forget... e titulada Glebe-Ailes (1944). Nessa obra, a postura da cabeça da mulhermonstro é similar à do manequim de Étant donnés. A grande fascinação que Maria sentia por essas esculturas em movimento, que são os corpos humanos, pode ter sido a característica artística que acabou atraindo e, inclusive, contaminando o trabalho final de Duchamp, que há muitos anos estava distante da arte figurativa tradicional. Contrapostas, Tamba-tajá e Paysage fautif – o gozo em público, o gozo em privado, dentro de uma maleta particular – parecem refletir as personalidades de seus autores. Cerebral, Duchamp rendeu-se à vitalidade transbordante de Maria, com quem dividiu intensas emoções, a ponto de perguntar em uma das cartas: “Onde estão nossos belos dias e nossas belas noites?”. A correspondência, a lenta construção de Étant donnés, espécie de trabalho de luto pela perda amorosa, indicam que ele permaneceu longo tempo desgarrado ante a entrega passional, porém parcial, da mulher dos trópicos que o abandonou. Foi preciso lento trabalho de criação de uma nova metáfora para que ele se recuperasse da separação, iniciada quando Maria se mudou para Paris e, logo a seguir, regressou ao Brasil. “Infelizmente não me sinto muito alegre e tenho momentos de prostração física, que me preocupam um pouco”, relata ele, na carta em que conclui que a relação se encerrava, escrita em 1951: “eu sei que a razão disso é que não há nada a esperar de nossa situação. Não quero estragar tua vida”. Escreveu-lhe cartas em que chama Étant donnés de “Nossa Senhora do Desejo” (“Nossa Senhora do Desejo agora está cor de pele. Está muito rosa, rosa-pele, lutando com a cor que é rosa bombom”), e pede que vá viver com ele. Acabou aceitando a decisão dela de regressar ao Brasil. “Aceito a situação como é”, “e já não espero um milagre. Me sinto feliz quando penso em ti”. A troca epistolar era intensa. Em 9 de novembro, sem identificação do ano, ele escreveu: “O molde em parafina segue seu percurso. Espero acabar brevemente a parte superior. É muito longo, mas divertido”. Em outra carta, de 8 de outubro, também sem especificação do ano, comenta: “já botei pele na perna, esperando que o resto da madame seque bem”; “a perna estará acabada esta semana, imediatamente depois, começarei a moldar em parafina, pois decidi que a cera que você me indicou é muito menos rígida que a parafina”. Aproximar-se como um voyeur das trocas efetuadas por Maria e Duchamp provoca questionamentos sobre influência e contaminação na obra de arte. Portanto, há na história da arte um grande equívoco em relação a Maria, ainda vista apenas como musa de Duchamp. É evidente que a escultora pertence aos trópicos, esse lugar “fora da história da arte”, segundo Herkenhoff. Por isso, atrai a atenção de poucos investigadores oriundos do hemisfério norte. Mesmo assim, o parco interesse dos historiadores, em investigar o possível diálogo entre a produção artística dos artistas, é problemático, na medida em que posiciona Maria como objeto de representação, como amante, e não como sujeito produtor de discurso. A questão faz-se ainda mais complexa quando se descobre que Cirlot conseguiu, em 1958, no livro Arte contemporáneo: origen universal de sus tendencias, identificar diferenças na trajetória da escultora, que em sua opinião transitou pelo Surrealismo passando pelo Informalismo, até chegar a obras como El sueño (1948), de elaboração de “superior complexidade”. Portanto, já existia uma bibliografia mínima sobre ela e a opção por destacar apenas seu papel feminino tradicional – o de amante – provoca a falsa impressão de que Duchamp foi o único que refletiu sobre a vivência que compartilharam.
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128. Glebe-ailes, 1944
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Étant donnés, a obra póstuma de Marcel Duchamp, deve ser vista a partir de uma ótica que leve em conta a produção de Maria. Ela não é somente a mulher cujo corpo o inspirou, mas, sim, a criadora de formas escultóricas, a geradora de idéias e a autora de poemas que aportaram nele inúmeras novidades. No diálogo que estabeleceram, Maria indicoulhe materiais, além de mostrar novas maneiras de plasmar o desejo que impera no encontro entre seres e de recordar a importância da figura humana. A mulher que vinha dos trópicos, que gozava dos trópicos, quis mostrar-lhe as complexas tramas existentes entre homem e natureza, entre sexo e violência, entre prazer e dever, entre amor e morte. Faloulhe de vida, mas também de saudade, nostalgia, recordações e solidão, sentimento que domina a obra final da artista. O Duchamp que Maria encontrou na Nova Iorque dos anos 1940 privilegiava o cultivar-se. Dedicava-se ao xadrez e fazia anotações, como bem apontou Joseph Beuys, em O silêncio de Marcel Duchamp é supervalorizado (Alemanha, 1964), uma crítica a tal comportamento. Com sua vitalidade, Maria sacudiu o silêncio de Duchamp. Funcionou como gás que inflamava as idéias. Partilhou com ele descobrimentos íntimos, artísticos e intelectuais, para que regressasse uma vez mais à arte. Não seria exagerado dizer que Maria terminou por engendrar, de certo modo, a quatro mãos – impossível não recordar a gravura da Yara – Étant donnés, essa mulher de pele de porco e vulva aberta. Pode-se pensar que a alusão de Duchamp à “Nossa Senhora do Desejo” se refere muito mais a um bem compartilhado pelos dois, realizado em comum, que a uma ironia religiosa, embora a superposição de sentidos em Duchamp e Maria não seja incomum. O certo é que, em termos formais, a imagem de Étant donnés deve muito a Maria, já que era “nossa pele”, como disse Duchamp. Depois de tantas evidências, se, até agora, o papel de Maria como produtora encontra escasso reconhecimento na história da arte, é porque estamos uma vez mais diante da questão de gênero: a mulher vista, historicamente, como falta, como ausência que não deve – ou leva tempo para – ser reconhecida. Mesmo que livros a identifiquem como uma grande escultora – caso de Read em La escultura moderna – e Seuphor a reconheça como “o grande escultor” do Surrealismo, a parceira de Duchamp neste jogo de “dados” ainda é ignorada enquanto corpo subje-
129, 130 e 131 (página 172 e 173). A mulher e a sombra.
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tivado. Ao longo de sua vida, Duchamp esmerou-se no papel de solteiro convicto – “pode-se ter todas as mulheres que se quer, não se é obrigado a desposá-las”, comentou com Cabanne –, mas seus sentimentos para com Maria o levaram a pensar diferente. Em uma das cartas, desabafou: Apesar de tudo que você me conta, amo a solidão do ateliê, solidão que vem da entrada no indivíduo, dando a ilusão de uma liberdade entre quatro paredes, mas se você quiser fazer corpo com essa liberdade e entrar na minha liberdade, haverá lugar para dois e uma liberdade ainda maior nascerá, pois a tua aumentará e protegerá a minha, e, espero, vice-versa.
A correspondência indica que, intimamente, ele parecia fazer eco ao discurso amoroso dos surrealistas, que evoca uma longa espera e a busca sem retorno de uma mulher única no mundo. Por isso, alguns, como Naumann em “Marcel & Maria”, acreditam que Duchamp terminou por considerar Maria como a “marieé” finalmente chegada. Maria parecia apreciar tanto quanto ele, durante anos solteiro convicto, o poder da liberdade que havia conquistado. Como já indicado, várias de suas peças falam sobre isso, como fica claro em “Mensagem”, ao explicar a obra La femme a perdu son ombre, realizada em 1946: “Ela se liberou tanto que até perdeu sua sombra, ela não tem mais nada: é o grande perigo da liberação, torna-se novamente escravo da liberdade”. Canto da noite representa também essa mulher escrava de si mesma, provocativa e solitária. Uma mulher, à maneira da descrição de Maria para However!!, no mesmo texto, que “pensando estar liberada, ainda está presa à terra; e felizmente”. Uma das inúmeras brincadeiras que os surrealistas gostavam de praticar, quando se reuniam, era o jogo “O cadáver requintado”. Nele, cada jogador escrevia uma palavra, desconhecida dos outros jogadores, para formar uma frase, quase sempre inusitada. Parece que Duchamp e Maria criaram também um exclusivo jogo conspiratório, esses cadáveres esquisitos que assombram público e críticos. É bom lembrar que ele se baseou no pé da artista para criar Torture-morte (1959)42 e ela desejou ser enterrada descalça, reafirmando o diálogo que mantiveram. Assim, olhando de longe as obras que legaram ao público, os dois artistas parecem colocar a criação artística e o erotismo naquele mesmo lugar atribuído a eles por Anton Tchecov (1860-1904), no conto “A obra de arte”. No texto, uma família de antiquários paga dívida a um médico, dando-lhe um candelabro decorado com figuras eróticas, e desculpa-se por poder dar-lhe apenas um candelabro, e não o par a que pertencia. Por medo da possível reação de seus clientes, o médico repassa o presente para um advogado, que o vende ao mesmo antiquário. Esse, acreditando tratar-se do candelabro que faltava, decide presentear novamente o médico, para que tenha, assim, o par completo, o duplo original, que, no entanto, permanece impossível. Resta ao leitor, como ao espectador de Étant donnés e Canto da noite, apenas o enigma do que será feito com aquilo que lhe foi entregue.
42 Trata-se de um desenho sem título que fazia parte da Boite-en-valise dada a Enrico Donati. Ver: GIRST, Thomas. Duchamp’s window display for André Breton’s Le Surrealism et la peinture (1945). Tout-fait: The Marcel Duchamp Studies Online Journal, jan. 2002. Disponível em: <http://www.toutfait.com/issues/volume2/issues_4/articles/girst/girst4.html>.
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132. Maria com o broche Ailes, década de 1940
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133. Le couple, 1943 172
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Preface Maria Graça Ramos has written a biography of Maria Martins organized with a special sense for detail. Besides a wealth of information on the life of the artist, it also includes critical observations that are interrelated with the objective facts. In this way, the author resorts to the model set forth by Giulio Carlo Argan, which holds that there is no history of art without critical reflection, and vice versa. The historiographic research is noteworthy for relying on sources in various countries. Besides the contribution presented by the research itself, this text provides indications and bases for future interpretations of Martin’s oeuvre and artistic career. Here lies the text’s dynamic force. Maria Martins – escultora dos trópicos [Maria Martins – Sculptor of the Tropics] adds a singular perspective to the scarce Brazilian bibliographic corpus on Maria Martins, which has received some contributions over the last 12 years, including Jean Boghici’s pioneering survey. The critical evaluation by Kátia Canton, curator of the Maria Martins exhibit in the Historical Nucleus segment of the 24th Bienal de São Paulo (1998) incorporates the artist to the academic canon. The sweeping view given by Ana Arruda Callado in Maria Martins – uma biografia [Maria Martins – A Biography] places the sculptor within a circle of highly influential Brazilian women. Raul Antelo produced his “epistemological leap” with Maria con Marcel: Duchamp en los tropicos [Maria with Marcel: Duchamp in the Tropics], a text that has not yet been published in Brazil, which problematizes the artist in the context of modern art. Graça Ramos also explores the formation and the manifestations of the sculptor’s “material will” – an expression by philosopher Gaston Bachelard in La Terre et les rêveries de la volonté – in terms of her affinity with the sculptural materials such as bronze and carved wood, and the reveries made possible by these materials, or the political meaning of the use of Brazilian woods. The text shows that Maria Martins was the first case of a modern artist becoming integrated with the international art world beyond the relation of a Brazilian student with foreign teachers or fellow students in the schools of Europe and the United States. Like no one before her, Maria had close relationships with the forerunners of modern art. The author demonstrates, beyond the biographical question, the nature of Maria’s productive shared experience with Marcel Duchamp, Jacques Lipchitz, André Breton, Piet Mondrian, Michel Tapié and many others. Previously, it was universally held that it was the Japanese immigration to Brazil beginning in 1907 (Rio de Janeiro) and 1908 (São Paulo) that opened Brazilian art’s relations with Zen Buddhist spirituality. The text demonstrates another area of the artist’s pioneering. In Japan in 1934, where her husband was a diplomat, Maria Martins maintained contacts with Daisetz Teitaro Suzuki, even though her art may not evince clear vestiges or references in regard to this interest. In her book about China, she recalls the lessons of this Buddhist master. Of all the Brazilian artists, Maria Martins and Flávio de Carvalho are the two most radically concerned with psychoanalysis in their work. Flávio sought for the borders between the conscious and the unconscious (which he called the subconscious) in experiments such as Experiência nº 2 [Experiment #2] (1932) and the drawings of the Série Trágica [Tragic Series] also called Minha mãe morrendo [My Mother Dying] (1947). In the former case he resorted to the improper use of a hat
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to deliberately switch the feelings of the faithful in a religious procession from pity into fury. In the drawings, he recorded his terminally ill mother’s struggle between life and death, interrupting the record when she died, that is, at the moment of absolute loss of vital consciousness. Maria’s sculpture deliberately assumes a perturbing somatic character. Maria Martins’s transgressive and libertarian spirit is ratified in her book dedicated to Nietzsche. Her Nietzscheism also represents a striking relation between art and philosophy in the Brazilian modern experience. In this case her parallel would be Hélio Oiticica. Maria Martins constitutes a political paradigm of the social sense of form. One of the author’s great contributions is to provide further evidence of the macho moralism prevailing in Brazil against Maria Martins’s oeuvre. In constructing her critical view of the oeuvre’s reception, Graça Ramos problematizes the Brazilian cultural environment itself. The historian proceeds like a mechanical engineer assembling the gears that drive the relations between power and art both in Brazil and abroad. The case of Nelson Rockefeller is paradigmatic. As Assistant Secretary of State for the Americas and trustee of the Museum of Modern Art New York (MoMA), Rockefeller was behind two emblematic acquisitions of sculptures by Maria Martins: L’Impossible, the artist’s surrealist masterpiece, for MoMA, and Boiuna, a mediocre work he acquired while she was living in the US as the Brazilian ambassador’s wife, a work he offered to the obscure Museum of the Americas in Washington, DC. In Brazil, Maria Martins’s artwork was incorporated to two museum collections originally constructed by the direct action of two representatives of the enlightened bourgeoisie: the Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, with Niomar Bittencourt, and the Museu de Arte Moderna do São Paulo, with Francisco Matarazzo Sobrinho. Notwithstanding her condition as an “artist of power,” according to the image imputed to her by some critics, Maria’s work was not incorporated to the Museu Nacional de Belas Artes, the art collection of the Brazilian nation. The Museu de Arte de São Paulo (MASP), founded by Assis Chateaubriand, had its notable collection put together by Pietro Maria Bardi. Maria Martins’s artwork did not arrive at MASP. After all, Bardi neglected surrealism... Gilberto Chateaubriand and Sergio Fadel are paradigms of collectors who adequately recognized Maria Martins’s contribution to the historical process of Brazilian modern art. More specifically, the book proposes to deconstruct the opaqueness existing in Brazil in regard to the sculptor’s oeuvre. Furthermore, Graça Ramos produces a powerful arsenal of questions that reveal the artist’s impact on Brazil and the moralistic uneasiness her work aroused here. The author exposes the petit bourgeois rejection of the sculptor’s success, explained from a reductionist standpoint as the mere result of her political influence. The author demonstrates the wide range of preconceptions and the corresponding strategies of silencing. She offers biographically-based explanations for various questions, including Mário Pedrosa’s aggressiveness in relation to Maria’s work, almost an exception in his writing. In analyzing historical critical texts the author examines the reception of Maria Martins’s work in Brazil and abroad. She sets forth two principal motivations for the hostile reception of Maria Martins: patriarchical moralism in regard to her personal life or her themes, along with
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134. Sombras, ca 1952 180
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135. Sem tĂtulo, 1940 187
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four walls, but if you want be part of this freedom and enter into my freedom, there will be a place for two and an even greater freedom will be born, as yours will grow and protect mine, and, I hope, vice versa.
The correspondence indicates that, intimately, he seemed to echo the amorous discourse of the surrealists, which evokes a long wait and the search without return for a single, unique woman in the world. For this reason, some writers, such as Naumann in “Marcel & Maria,” believe that Duchamp ended up considering Maria as the finally arrived “marieé.” As much as he – who for years had remained a staunch bachelor – Maria seemed to appreciate the power of freedom that he had attained. As previously indicated, various of her pieces speak of this, as is clear in “Message,” upon explaining the work La femme a perdu son ombre, produced in 1946: “She became so free that she even lost her shadow; now she has nothing left: this is the great danger of liberation, one becomes a slave of freedom.” Canto da noite also represents this provocative and solitary woman who is a slave to herself. A woman, as described by Maria for However!!, in the same text, who, “thinking she is free, is still stuck to the earth; and happily.” One of the countless games that the surrealists liked to play, when they got together, was called The Exquisite Corpse. In this game each player would write a word, unknown to the other players, to form a phrase, which almost always turned out to be a very uncommon one. It seems that Duchamp and Maria also created an exclusive conspiratorial game, these exquisite corpses that haunt the public and the critics. And it is good to remember that he based his work Torture-morte, 1959, on Maria’s foot,89 and that she wanted to be buried barefoot, reaffirming the dialogue they maintained. Thus, looking from a distance at the works they bequeathed to the public, the two artists seem to have attributed the same place to artistic creation and eroticism as did Anton Tchecov (1860–1904), in the story “The Work of Art.” In the text, a family of antique dealers pays a debt to a doctor by giving him a candlestick decorated with erotic figures, apologizing for the fact that they can only give him one candlestick, and not the other member of the pair it belongs to. Afraid of a possible reaction by his clients, the physician passes the present on to a lawyer, who sells it to the same antique dealer. The antique dealer, believing it to be the candlestick that was missing, decides to give it to the doctor, for him to therefore have the complete pair, the original double work, which, however, remains impossible. The reader, just like the viewer of Étant donnés and Canto da noite, is presented with the enigma of what is to be done with what he/she has been given.
89 This was the untitled drawing that was part of the Boite-en-valise given to Enrico Donati. See: GIRST, Thomas. “Duchamp’s Window Display for André Breton’s Le Surrealism et la peinture (1945).” Tout-fait: The Marcel Duchamp Studies Online Journal, Jan. 2002. Available online at: < http://www.toutfait.com/issues/ volume2/issue_4/articles/girst/girst4.html>.
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137. Sem título, 1945
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Créditos / Credits Texto / Text Graça Ramos Introdução / Introduction Paulo Herkenhoff Projeto e pesquisa / Content design and research Graça Ramos Projeto editorial / Editorial production ARTVIVA Editora Coordenação editorial / Editorial coordination Ana Regina Machado Carneiro Assistente / Assistant Lucia de Oliveira Assistente pesquisa iconográfica / Iconographic research assistant Automática / Luiza Mello Projeto gráfico / Graphic design Studio Ronaldo Barbosa Coordenação-geral / General coordination ARTVIVA Produção Cultural Revisão de texto / Text revision Duda Costa Versão / Translation into English John Norman Fotografias / Photographs: Bob Narod Cristiana Isidoro Isabella Matheus Jaime Acioli Jean-Louis Losi João L. Musa Foto Araújo Mario Grisolli Pat Kilgore Rômulo Fialdini Scherley Busch Sérgio Guerini Wilton Montenegro Zuleika de Souza
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) FUNARTE / Coordenação de Documentação e Informação
Ramos, Graça. Maria Martins : escultora dos trópicos / texto Graça Ramos ; introdução Paulo Herkenhoff. – Rio de Janeiro : Artviva, 2009. 286 p. : il. color. ; 21 cm .
ISBN 978-85-99616-07-9
1. Escultores brasileiros. 2. Martins, Maria, 1894-1973. 3. Escultura. 4. Arte moderna – Séc. XX – Brasil. I. Herkenhoff, Paulo. II. Título.
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Copyright © 2009, desta edição ARTVIVA Editora Copyright © 2009, textos Graça Ramos
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Este livro foi impresso no outono de 2009, em papel couché 150g/m2 (miolo e capa), na tipografia Kinesis, com tiragem de 3.000 exemplares. A obra da capa e folha de guarda é Canto do mar A obra na folha de rosto é Ritmo dos ritmos
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