ENTRE RISOS E RIOS: TRAJETÓRIA DE CONSTRUÇÃO DO PALHAÇO CORCORÃ Jeferson dos Santos da SILVA1; Suani Trindade CORRÊA2 RESUMO: Este trabalho apresenta a trajetória de construção de meu palhaço Corcorã, esmiuçando e revelando os rastros de seu nascimento, o qual se alia à minha própria história de vida; e de seu desenvolvimento criativo e artístico, que se deu, principalmente, durante a Licenciatura em Teatro do PARFOR/UFPA. A pesquisa desenvolvida tem cunho qualitativo e teve como embasamento teórico autores que versam acerca da linguagem clownesca, tais como: Andreia Pantano, Alice Viveiros de Castro, Luís Otávio Burnier, Jacques Lecoq, entre outros. A escrita proposta se configurou como um memorial descritivo, cuja investigação se deu a partir da análise de fotografias, anotações, além de recorrer às minhas lembranças e memórias. Concluiu-se que ser palhaço é o que me mantém vivo e o que me faz lutar pelos meus objetivos, além de entender que foi necessário reviver o processo criativo de meu clown. PALAVRAS-CHAVE: Trajetória de vida. Palhaçaria. Criação Clownesca. RÉSUMÉ: Cette proposition de recherche presente le chemin de la construction de mon clown Corcoran, esquissant et révélant les traces de sa naissance, qui est alliée à ma propre histoire de vie; et son développement créatif et artistique qui s‟est déroule principalement durant le cours de Théâtre du PARFOR UFPA. La recherche développée a um caractere qualitatif et a pour base théorique des auteurs qui parlent de la langage clownesque, tels que: Andreia Pantano, Alice Viveiros de Castro, Luís Otávio Burnier, Jacques Lecoq. L‟écriture proposée était configurée comme un mémorial descriptif, dont l‟investigation étaiet basée sur l‟analyse des photoraphies, des notes et de recours à mês souvenirs. Il a été conclu qu‟être un clown est ce qui me maintient en vie et ce qui me fait me battre pour mês objectifs, et comprendre qu‟il était nécessaire de revivre ce processos créatif de mon clown. MOTS-CLÉS: Trajectoire de vie. Clownerie. Création clownesque. INTRODUÇÃO As cortinas se abrem para uma apresentação única! Aqui quero me apresentar: eu me chamo Jeferson dos Santos da Silva, sou de um lugar muito distante e de muitos talentos. Sou artista de teatro e minha melhor forma de expressão artística é a palhaçaria, a qual faço há 11 anos; desde 2011, sou professor da rede municipal de Gurupá, cidade paraense localizada na Ilha do Marajó, e lugar onde existe o melhor pôr-do-sol... Também sou Licenciado Pleno em Teatro pelo Plano Nacional de Formação Docente (PARFOR) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Hoje posso dizer que tenho uma profissão!
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Professor e arte-educador; graduado em Teatro (PARFOR/UFPA); ator e palhaço; e-mail: corcora2017@gmail.com. 2 Professora-orientadora (PARFOR/UFPA); professora de teatro, de comunicação e expressão e de literatura; atriz e palhaça; e-mail: suani0707@gmail.com.
sou professor de teatro e palhaço muito orgulho quero da não posso mudar o mundo mas esperança quero dar para aqueles que deixaram de sonhar3.
Esta pesquisa partiu da necessidade de entender e analisar de que forma começou a criação e construção de meu palhaço Corcorã a partir de uma trajetória sobre mim, fazendo um apanhado de como essa construção foi surgindo, relembrando minha própria história até chegar ao meu palhaço Corcorã. Para isso, a minha pesquisa que tem base qualitativa, seguiu a escrita de um memorial descritivo para dar conta de todo o universo clownesco e trajetória de vida em que estou mergulhado, pois o memorial “é a prática de contar as suas próprias memórias, caracterizada por uma escrita reflexiva, atrelada a dimensão individual e coletiva” (ALBUQUERQUE, 2007, p. 2). Logo, poder traçar a minha própria experiência vivenciada, a qual iniciou de forma empírica, mas que ao longo de minha formação acadêmica foi complementada com teorias, é algo que me permitiu voltar ao meu passado para poder refletir de onde eu vim e como cheguei até ao meu clown e, por fim, ao PARFOR. Para alcançar esse objetivo, me debrucei a pesquisar e analisar fotografias, anotações, além de coletar depoimentos de amigos e recorrer às minhas lembranças e memórias. DA TRAGÉDIA À COMÉDIA: EIS QUE VEJO UM PALHAÇO No ano de 2002, aconteceu meu primeiro contato com um palhaço (até então, só havia tido o contato pela televisão). Um circo foi à Gurupá e todas às tardes, eu ia ao circo para saber como era um palhaço: queria saber como era a pintura, a fala, o que ele fazia; eu ficava do lado de fora, ouvindo e tentando adivinhar o que estava acontecendo quando as pessoas gargalhavam; eu sorria também e através daqueles sorrisos, conseguia perceber a felicidade de todos. Então eu tive certeza que eu queria fazer aquela arte, a arte do riso, e meu primeiro passo era entrar em um grupo de teatro com o objetivo de aprender as técnicas de atuar, mas tudo dependia apenas do meu esforço. Segundo Colla, Se partimos do pressuposto de que técnicas é uma compilação procedimentos e elementos organizados de maneira particular. E que a experimentação e desenvolvimento desses elementos só podem ser assimilados individualmente, para 3
Poema de minha autoria.
assim tornarem- se próprios. E que nunca uma pessoa fará igual a outra porque o sujeitos são diferentes entre si e sua relação com o procedimento é particular. Podemos, assim, considerar que a organização pessoal de procedimentos experienciados podem ser denominados de uma técnica pessoal, individual, mesmo que ela possua ponto de contato com o outros (COLLA, 2013, p.45).
Já em 2004, entrei em um grupo de teatro chamado Êxodo, e durante a minha passagem por ele, sempre me destacava fazendo comédia. Então comecei a perceber que tinha talento para esse gênero. Em uma das cenas do filme Marquise (1997), livremente inspirado na vida de Marquise Du Parc, o ator René Du Parc (um dos atores da troupe de Molière e marido de Marquise) reivindica a sua condição de comediante, pois, como tal, segundo ele, não seria capaz de interpretar papéis trágicos: sua vocação e seu aprendizado só permitiam que se dedicasse à arte de fazer rir (CORRÊA, 2011, p. 43, grifos da autora).
Assim, passei reivindicar o meu status de comediante, mas diferente de René Du Parc, a reivindicação não se deu porque eu achava que não poderia fazer tragédia, mas sim porque o riso e a comédia eram instâncias que me deixavam felizes e faziam esquecer a dureza da vida. Infelizmente, após algum tempo, saí do grupo e deixei de fazer teatro. Mas em 2006, eu e alguns amigos - Caicó Roberto Balieiro, Caito Santos, Jardel Fernandes, Benedito, Patrique, Ezequiel - criamos o grupo Risos e Gargalhadas. Ali, naquele grupo, eu vi o nascimento de meu palhaço, o Corcorã, mas eu ainda não sabia que era ele. Talvez não fosse ele em sua totalidade, mas já havia traços deles surgindo. Eu representava o personagem Chapadinha Vermelha, na peça Chapeuzinho Vermelho, que foi modificada para a comédia, e a nossa proposta era apresentar no aniversário de Gurupá, no dia 11 de novembro daquele ano. Ensaiamos poucos dias e no dia 11, ficamos confinados em minha casa o dia inteiro ensaiando para a apresentação. À noite, no momento da apresentação, eu estava nervoso, mas quando me caracterizei, retornei àquele circo... E quando entrei em cena e vi que o público começou a sorrir, lembrei da sensação daquele palhaço no picadeiro, eu me vi naquele palhaço... “O riso provoca; o riso move, comove e remove” (ROBLEÑO, 2015, p. 17). Naquele momento, percebi que a minha vida poderia tomar um caminho diferente, que não era a marginalidade; meus amigos também perceberam isso, então a partir daquele dia, tudo mudou em nossas vidas: fomos convidados para animar festas de aniversário, com pagamento de um cachê, o qual não era um valor significativo, mas para nós,
o que importava não era o dinheiro e sim se o público iria gostar do que
apresentaríamos; quando confirmávamos isso, íamos para a praça Mariocay, tomávamos refrigerante e nos divertíamos comemorando. Após esse período com o grupo Risos e Gargalhadas, conheci uma pessoa que mudou totalmente minha vida: Telma Alvarenga, uma psicóloga que foi em minha casa me fazer um convite para entrar no programa Agente Jovem do Governo Federal. No começo, tudo era apenas uma brincadeira, um momento de tranquilidade, mas com a psicóloga Telma, acreditando em meu talento, também comecei a acreditar que a brincadeira poderia me levar muito longe. Assim, durante o programa, fizemos oficinas de rádio, dança, teatro e circo, em que aprendi a pirofagia (número circense com fogo). Assim, o Corcorã começou a me ajudar no dia a dia. Contudo, no começo sentia vergonha dele, pois as pessoas riam de mim sem estar caractterizado de palhaço, fazendo com que eu acreditasse que eu era um tanto louco, mas abracei o meu palhaço e nunca mais o deixei sair da minha vida; comecei a enfrentar todos que me criticavam, mostrando que eu era capaz de me tornar uma pessoa que serviria de exemplo para outras pessoas que não acreditavam em si mesmo. Além disso, ele me fazia rir e fazia com que as outras pessoas rissem. Para Robleño (2015, p. 28): “Fazer alguém rir é uma das mais bonitas e estimulantes atividades humanas”. Através do meu palhaço, consegui meu primeiro emprego. Trabalhei como orientador social no programa Agente Jovem e eis meu primeiro passo para ser reconhecido na sociedade gurupaense. Eu não acreditava no que estava acontecendo, mas para continuar a trabalhar, teria que terminar o ensino médio. Infelizmente, me atrasei nos estudos devido às viagens com minha mãe, mas quando completei 15 anos, fiquei na casa de parentes para poder concluir o ensino médio. Durante o período que eu fiquei no Agente Jovem, meu palhaço foi amadurecendo a partir das pequenas apresentações que eu fazia para a assistência social do município. Assim, fui obtendo conhecimentos do fazer teatral de rua, e acredito que as técnicas são aprendidas e descobertas se você vivê-las na pele, fazendo-as na prática.
O NASCIMENTO E A CONSTRUÇÃO DO PALHAÇO CORCORÃ Os primeiros passos As lembranças de felicidade de minha infância me rodeavam, mas era muito passageiro e viver aquele momento era o que eu mais queria. No entanto, algo estava atrelado em meu peito: o ódio, a raiva me prejudicavam. Então encontrei uma saída: a arte. Esse foi o primeiro passo para conhecer meu melhor amigo Corcorã. “O trabalho de criação de um clown é extremamente doloroso, pois confronta o artista consigo mesmo, colocando à amostra os recantos escondidos dentro de sua pessoa; vem daí caráter profundamente humano” (BURNIER, 2009, p. 209). No começo, ele não tinha nome, então resolvi batizá-lo de Corcorã, que era um apelido que recebi quando eu era bebê. Segundo meu tio, Corcorã era a criança que nascia com cabeça pelada, ou seja, sem cabelo. Eu nasci assim. Então resolvi revivê-lo, e isso deu a sensação de como se com ele, eu nascesse de novo. Quando ele aparecia, todos os meus problemas sumiam; logo renascer era o que mais queria, e com o meu palhaço do meu lado, tudo ficava mais fácil de enfrentar. Corcorã, após um longo tempo preso em meu corpo, em meu “ventre”, conseguiu se libertar e nasceu para Gurupá, na praça Mariocay no dia 11 de novembro de 2006, no aniversário da cidade. Naquele dia, Corcorã deixou muitas pessoas felizes e o seu olhar para o público era de uma grandeza; ele queria correr, gritar, mas não sabia por onde começar, tudo para ele era novo, apenas brincou e se divertiu, e saiu de cena com muitos aplausos. Para Simon (1988, p. 21, tradução nossa), “o palhaço tem a necessidade de sentir todo o seu público junto dele. É um solitário que procura solidários”. A partir daquele dia, Corcorã começou a “engatinhar‟ por Gurupá e foi crescendo de acordo com o que tínhamos; como eu nasci em uma família pobre, não tinha condições de comprar as melhores roupas de palhaço, então improvisava algumas, e assim fomos levando. Sempre caracterizei o meu palhaço com o que tinha, e por esse motivo gerava nas pessoas a graça, o riso. Assim fui amadurecendo na arte da palhaçaria e Corcorã começou a ganhar suas próprias características. No começo tudo era novo, eu vivia feliz, mas houve momento de tristeza, pois as pessoas faziam julgamentos sobre a minha arte e sobre meu palhaço. Muitas achavam que tudo aquilo era ‘coisa de louco’, mas o pior de tudo era que eu não conseguia namorar pelo
simples fato de eu ser/ter um palhaço. O preconceito era grande por parte das meninas, e por um curto tempo, parei de fazer o que mais gostava que era a palhaçaria. Após algum tempo refletindo, percebi que para mim não importava o que as pessoas achavam, afinal elas eram minoria e todos teriam de gostar de nós, do jeito que éramos. Assim, Corcorã voltou com todo vigor; cada derrota se transformava em uma vitória; quando Corcorã entrava em cena, tudo parecia ser mais fácil, brincar era apenas o que eu queria (ele também!), e sorrir para conseguir o sorriso de cada pessoa era seu maior desafio. Cada sorriso era uma luz que iluminava cada pedacinho que existia nas sombras dentro de mim e dele, era o que o deixava vivo em cena durante suas apresentações. Durante muito tempo, ele viveu dessa forma, mas quando percebi que poderíamos ser exemplo para muitas pessoas, Corcorã passou a ser não só um palhaço, mas um herói que não precisava de uma capa, precisava apenas de um nariz vermelho para fazer a verdade acontecer. Deste modo, quando entrava em cena, ele não fingia, ele era de verdade, assim como as crianças que vivem de verdade o momento de ter um palhaço ao seu lado. O nascimento do meu palhaço mudou a minha realidade e o meu destino (um herói pra toda vida). Para Lecoq, A pesquisa do clown próprio de cada um é, primeiramente, a pesquisa de seu próprio ridículo [...] que o ator, deve descobrir nele mesmo a parte do clown que o habita. Quanto menos se defender e tentar representar um personagem, mais o ator se deixará surpreender por suas próprias fraquezas, mais seu clown aparecerá com força (LECOQ, 2010, p. 214).
Fui trabalhar para o interior de Gurupá para dar aula na E.M.E.F Nossa Senhora da Conceição do Rio Pucuruí. No começo, pensei que se levasse um palhaço para sala de aula, eu perderia a autoridade de professor, mas foi onde eu me enganei; criei coragem de apresentar o Corcorã para a comunidade, e a partir daquele dia, levei-o para a sala de aula daquela e de outras escolas que eu trabalhei; assim ele me ajudou a alfabetizar as crianças e a mostrar a elas a arte da palhaçaria. A partir daquele dia, tudo foi mais fácil, e como Deus escreve certo por linhas tortas, para minha surpresa, a Universidade Federal do Pará, pelo PARFOR, abriu vagas para Artes Cênicas (Teatro) em Gurupá. Era tudo que eu queria para aprimorar a construção do meu palhaço Corcorã.
Eu, um palhaço no Teatro do PARFOR Em 2013, foram abertas as inscrições para a Licenciatura em Artes cênicas do PARFOR/UFPA. O engraçado foi que até na hora de fazer a inscrição, atrapalhei-me todo; faltava documento e para piorar, o rapaz que estava me atendendo, aparentava ser meio estrangeiro, pois ele falava e eu tinha que prestar bem atenção para poder entender o que ele falava. Foi uma correria para recolher todos os documentos necessários, mas após muita correria, consegui me inscrever no curso... A alegria tomava conta de todo o meu ser, pois fazer uma Universidade era tudo o que eu queria, ainda mais na área do teatro. Um dia antes da seleção, um “beija-flor” me falou que eu estava entre os selecionados; pulei, gritei de alegria, mas no dia seguinte, quando fui olhar a lista dos aprovados, meu nome não estava. Mas palhaço sofre! Nem na hora de estudar, ele é levado a sério! Fiquei pensando o porquê de não ter sido selecionado e vários pontos de interrogações foram surgindo, mas me posicionei como qualquer cidadão que tem direito ao ensino superior. Após muita luta, informaram-me que foi um erro de digitação e meu nome estava na lista dos aprovados. No ano de 2014, no mês de julho, iniciamos as aulas; meu coração estava a mil por hora, a euforia e a ansiedade tomavam conta de mim. A recepção de todos foi ótima, eu me senti muito bem, mas as perguntas não saiam da minha cabeça: como serão as aulas? O que vamos aprender? Mas no decorrer dos módulos, tudo foi dando certo; encantei-me com tudo o que estava aprendendo e me esforçava ao máximo. Pelo fato de já fazer teatro e palhaçaria, todos diziam que eu estava no curso certo; as pessoas confiavam muito em mim, então mais um motivo para eu não errar na frente das pessoas, que eram minhas admiradoras. Para completar a felicidade, falaram-me que iria ter a disciplina Clown (Palhaço4), eu disse comigo mesmo: é nessa que eu quero me aprofundar, aprender detalhe por detalhe... Então em 2015, o prof. Jorge Torres deu essa disciplina. Com ela, fui adquirindo novos conhecimentos, novas técnicas de atuação. Logo eu descobri que meu palhaço não era apenas um palhaço e muito menos um personagem, mas sim a exposição de meu ridículo, aquela persona que mostra minhas fraquezas, o que está escondido em meu ser. 4
Clown e palhaço designam a mesma coisa. A diferença entre os dois vocábulos reside apenas na origem, mas “designam o mesmo personagem popular, esteja ele onde estiver – no circo, na rua ou no palco e como estiver – vestido espalhafatosamente ou discreto, com ou sem nariz vermelho” (MAUÉS, 2004, p.10).
Para Burnier: O clown é a exposição do ridículo e das fraquezas de cada um. Logo, ele é um tipo pessoal e único. Uma pessoa pode ter tendência para o clown branco ou o clown augusto, dependendo da sua personalidade. O clown não representa, ele é – o que faz lembrar os bobos e os bufões da Idade Média. Não se trata de um personagem, ou seja, uma entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação dos aspectos ingênuos, puros e humanos (como no clods), portanto estúpidos, do nosso próprio ser (BURNIER, 2009, p. 208, grifos do autor).
Após essa descoberta, tudo foi se esclarecendo: minha vida estava ligada ao palhaço Corcorã para sempre. Com as novas experimentações com o prof. Jorge, fui aprimorando novos conhecimentos aos conhecimentos empíricos que já tinha e assim partimos para a experimentação no corpo do Corcorã. Posso dizer que Corcorã passou por uma reeducação da sua corporeidade (trabalhar mais o corpo expressivo, fazendo com que o público entendesse mais com os gestos do que com a fala), sua gestualidade, seu tempo e, principalmente, a sua estética/figurino, por exemplo: Corcorã passou a usar roupas e perucas coloridas em festas de aniversário, pois para as crianças, a visão de um palhaço sempre foi de um palhaço muito arrumadinho, bonitinho e para que as crianças não tivessem medo do meu palhaço, procurei deixá-lo o mais amigável possível. Contudo, para um público mais informal, a sua estética é de um palhaço mais largado, a peruca já não é colorida, sua roupa tem menos cor, e com esse público, ele tem mais liberdade de improvisar situações que acontecem no momento do jogo do palhaço com a plateia. “O clown deve estar sempre pronto a jogar, pronto a brincar. E o público é um dos seus principais parceiros” (MAUÉS, 2004, p. 37 apud NOGUEIRA; CORREA, 2010, p. 23). Outro momento de pura ansiedade foi com a oficina de Palhaçaria ministrada pela profa. Romana Melo já no último módulo do curso. Essa oficina era uma continuidade do que já tinha aprendido na disciplina Clown. Naquele momento, meu clown estava sofrendo umas transformações com relação ao corpo e a voz: eu estava explorando mais o primeiro em detrimento do segundo. Com essa oficina, o aprimoramento foi maior pelo fato de termos trabalhado mais o corpo do palhaço; supri a dúvida se poderia usar menos voz e mais corpo, e compreendi que deveria deixar bem claro o que queria fazer e para quem iria fazer.
O corpo de Corcorã Para chegar a um corpo interessante do palhaço Corcorã, pensei em várias possibilidades, mas cheguei à conclusão que apenas deveria exagerar um pouco mais, pois meu corpo (coluna) era selado pelo fato de praticar muita capoeira junto ao grupo Arqueado. Assim, Corcorã ficou com a coluna selada e com o bumbum arrebitado. Para mim, todo palhaço tinha de ter uma barriga grande, já que a maioria dos palhaços que eu via tinha um barrigão. Então, resolvi usar uma barriga falsa no meu palhaço, mas Corcorã começou a reclamar da sua coluna, que não aguentava ficar por muito tempo daquele jeito selado e ainda mais com uma barriga para atrapalhá-lo. Por isso, resolvi encontrar para ele uma forma mais confortável, a qual se sentisse bem, e assim eu fiz; mudei seu corpo, deixando mais ereto, ou seja, menos selado para que ele pudesse brincar à vontade. O selamento saiu, mas surgiu outro problema: a barriga de Corcorã que era feita com os lençóis da minha mãe. Quando pensei na sua estética, eu pensava muito no engraçado, e acabava esquecendo o conforto que meu corpo deveria ter. Nas apresentações, a barriga se desprendia do meu corpo, fazendo com que eu perdesse o foco. Como eu estava dando os meus primeiros passos com o Corcorã, às vezes conseguia improvisar, contudo nem sempre dava para fazer isso, então eu saia correndo, dizendo que queria ir ao banheiro (assim eu podia ajeitar a barriga). Percebendo a necessidade de tirar a barriga falsa, eu comecei a pensar em outra possibilidade para o corpo do Corcorã: comecei a brincar com a minha barriga, fazendo com que ela inflasse ao máximo e depois secava. Após algum tempo, mostrei para meus amigos para saber como eles iriam reagir, e a reação de todos foi muito boa: todos gostaram da minha barriga, que era ridícula, e isso que importava para mim. Assim, Corcorã ganhou uma barriga própria, a qual ele poderia brincar com ela sem que algo desse errado. Ah, depois de certo tempo, Corcorã e eu começamos a ganhar uns quilinhos a mais e já não precisávamos forçar muito para aparecer a barriga. A personalidade Corcorã é um garoto que apenas almeja a felicidade das pessoas, é todo desengonçado, um garoto que não se preocupa com que as pessoas irão falar. Ele é impulsivo, pois ele age sem pensar direito no que vai fazer e tem muita atitude. Além disso,
ele tem um temperamento muito forte, brinca com tudo, não deixa passar nada. Seu estilo é o de rua, do “povão” e por esse motivo, a cada momento, surge algo em suas cenas e, através do improviso, ele brinca com a plateia. Todos esses traços o caracterizam com o perfil do palhaço Augusto, que em linhas gerais também é um tipo desengonçado, que ao entrar em cena atrapalha tudo, mas ao final quase sempre se dá bem. Sobre esse tipo clownesco, Castro (2015, p. 70) pontua que: Conta a lenda que, em 1869, Renz, diretor do circo alemão que levava seu nome, furioso com sua equipe de cavalariços, começou a berrar por trás das cortinas durante um espetáculo. Um jovem tratador,chamado Tom Belling, ao tentar fugir da fúria do diretor, acabou se atrapalhando e entrou em cena.Nervoso, tropeçou nos tapetes, caiu no chão e foi expulso pelos artistas com um belo pé na bunda. O público riu e começou a gritar: - Auguste! (idiota, na gíria alemã da época). Vendo aquilo, Renz percebeu o talento dramático do jovem Belling e as possibilidades cômicas do personagem do auxiliar idiota e atrapalhado, a quem chamou augusto. (CASTRO, 2015, p. 70, grifos da autora)
Mas meu palhaço nem sempre é um Augusto. Quando Corcorã faz cenas-solo, ele é literalmente o Augusto, mas quando ele está na companhia de seus colegas, ele acaba sendo o palhaço Branco. Esse outro tipo, de certa forma, é quem comanda a cena do começo ao final, não deixando as cenas perderem o ritmo. Segundo Dorneles (2003, p. 30), A primeira máscara do clown era toda branca, era uma figura autoritária e inteligente. Diz- se que Joseph Grimaldi (1778 – 1837), um clown teatral, foi o pai do clown moderno porque foi o artista que elevou o clown de cara branco ao papel de protagonista. O clown astuto de cara branca (o Branco) já havia se estabelecido quando apareceu seu companheiro - o Augusto, que apareceu em 1860. Augusto era a denominação do clown de nariz vermelho roupas e sapatos grandes e maneiras desalinhadas. Este ser trabalhou com o clown de cara branca, bagunçando seus planos com suas atrapalhações, formando, com o Branco esse binômio eterno: a dupla de clown – um bobo e outro esperto; um que mando e outro lhe obedece (DORNELES, 2003, p. 30).
A roupa A primeira proposta de roupa para o Corcorã foi uma bermuda, uma camisa comum bem velhinha e um chapéu. Naquele momento, foi o que me veio à cabeça; pensei em várias possibilidades, mas aquelas roupas eram apenas o que eu possuía no momento, e eu não tinha condições de comprar tecidos para uma produção mais adequada. Ao longo do tempo, vieram outras propostas de roupas. No ano de 2009, fui presenteado pela psicóloga Telma Alvarenga com uma roupa de palhaço feita de cetim. A partir daquele dia, percebi que a estética do palhaço tinha que dar um up, principalmente
quando fosse estar em um evento especial (aniversários, eventos públicos e festas particulares). Através da roupa, ele começou a ganhar características diferentes; sua pintura (maquiagem) mudou para uma mais moderna, mas foi algo que não me agradou muito, já que achava que a pintura tinha de mudar, pois para as pessoas tinha que ser um palhaço bonitinho, todo arrumadinho. A ideia de palhaço que elas queriam em suas festas, eram os palhaços de televisão e para ganhar dinheiro, eu acabava embarcando naquele pensamento. Mas com o passar do tempo, o Corcorã começou a ficar entediado com toda aquela novidade e comecei a perceber que se eu transformasse as roupas arrumadinhas em algo meio bagunçado, ele iria ficar mais com sua característica (palhaço sem um Q do ridículo não é palhaço!), então foi que eu fiz: no macacão de cetim, uma das pernas foi dobrada e colocada para dentro da meia, assim suas roupas foram mudando e ficando mais de acordo com a personalidade dele.
Maquiagem A primeira maquiagem que eu usei para caracterizar-me no Corcorã era de tinta gauche. No começo, eu e meus amigos não tínhamos ideia por onde começar, então foi pelo preço mais acessível, ou seja, guache (era próprio para trabalhos escolares e imprópria para a pele). Por esse motivo, sofríamos quando pintávamos nosso rosto, mas só era enquanto secava, pois depois que secava, parava de arder. Aquele material em nosso rosto, depois de um tempo, começava a desmanchar e para melhorar, recorri à maquiagem (a usada pelas mulheres). Naquela época, o pensamento era de que maquiagem era coisa de mulher, mas era a mais confortável para os números de palhaçaria, então a usávamos. O importante disso foi que, após muita prática, compreendemos que usar maquiagem não era coisa somente de mulher e sim de todos que trabalhavam com a arte. Meu primeiro contato com uma maquiagem própria para palhaço foi em uma oficina circense que aconteceu no Programa de Atenção Integral a Família (PAIF), que foi promovido pela Assistência Social de Gurupá - PA. A partir daquele momento, tudo começou a mudar, pois o meu palhaço estava mais bonito, com uma pintura que não fazia chorar (de ardência na pele) e sim o fazia feliz cada vez mais porque não tinha mais a preocupação de a maquiagem desmanchar em cena.
Sobre as cores, Corcorã usava no começo as amarela, azul, branca e vermelha. A branca pintava todo o rosto e para as sobrancelhas usava as cores azul e amarelo no formato de uma meia lua; para a boca fazia um bocão vermelho; nas bochechas, eu pintava uma bola de cada lado, combinando com as sobrancelhas. Para mim, a maquiagem do Corcorã tinha de ser dessa forma, mas comecei a perceber que quando terminava as apresentações, quase ninguém sabia quem estava por traz da maquiagem, então comecei mais uma mudança: tirei mais o branco de todo o rosto. Também percebi que algumas crianças tinham medo do palhaço pelo fato do rosto estar todo coberto de tinta, então tirei o branco de uma vez; comecei a pintar apenas as sobrancelhas e a boca; já com a boca um pouco menor, comecei a usar só as cores branca e vermelha e duas gotas do lado direito e uma gota do lado esquerdo de cor branca, já que o rosto não era todo pintado de branco. É importante dizer que quando eu entrei para a UFPA, no curso de Teatro, o pouco que conhecia se aprimorou cada vez; assim, aprendi mais outras técnicas de maquiagens no curso.
O belo (e macio) nariz de látex do Corcorã! No ano de 2015 (no PARFOR, na disciplina Clown) eu e Corcorã ganhamos o nosso primeiro nariz feito de látex. Durante muito tempo, eu sofri ao usar um nariz feito de material plástico, o qual machucava muito, pois não era confortável. Em outros momentos, eu pintava meu nariz de batom (o qual eu pegava escondido de minha mãe!). Porém, após a chegada do prof. Jorge, além de um nariz belo e macio, eu adquiri outros conhecimentos teórico-técnicos para as apresentações, como o principal: o palhaço olha com o nariz! O amor pelo meu nariz foi (e é) tão grande que até me inspirou a escrever um poema: Meu nariz, nosso nariz! Por muito tempo tínhamos apenas conhecimentos empíricos. Corcorã sai às ruas com muito vigor, Bate no peito, Sou filho desta terra, Meu talento eu descobri, Sofri, sorri, lutei para alcançar a vitória, Somos de um lugar tão distante, Seu nome é Gurupá, O melhor pôr do sol onde Corcorã põe-se a brincar; Estamos no anonimato, Mas aqui mostramos que devemos nos superar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste memorial, apresentei os rastros e trajetória de construção do palhaço Corcorã, que está entrelaçado à minha história de vida, e de como sofreu uma metamorfose. Esse processo me ajudou a superar as dificuldades da vida; meu caminho já estava traçado pela arte... Tanto sonhos, mas tão poucos estímulos. E assim eu poetizo: Sonhos!!!! Os sonhos são a única chance que temos do impossível impossível? Tudo posso se tenho como sonhar Fechar os olhos para o irreal e acordar para o futuro, basta querer. Qual é seu sonho? Nunca deixe que seus sonhos peguem caminhos diferentes. Real? O sonho só se torna real quando você sonha para com todos. Todos? Sim. Quando você realiza um sonho alguém fica feliz e a sua felicidade faz feliz quem você ama Fazer feliz quem amamos é um sonho que todos querem realizar.
Não é impossível concretizar nossos sonhos e objetivos, basta deixarmos o coração livre para isso. Eu não pretendo parar com essa arte do riso e da representação. Esse foi o primeiro passo para um novo começo de minha vida pessoal e profissional. Essa pesquisa que me é tão particular, pois toda investigação foi realizada em mim, a partir de mim, de minha vida, de minhas histórias, fazendo com que repensasse alguns erros cometidos quando eu era criança... Mas agora começo a entender que cada fracasso, cada mágoa e cada dor podem e dever ser tidas como algo que nos impulsionem para frente, com a cabeça sempre erguida; que nosso caráter suporta as mazelas da vida e é o que nos torna mais fortes. Ao final de tudo, descubro que sem meu palhaço, o mundo já teria me engolido. Ser palhaço é o que me mantém vivo, é o que me faz lutar pelos meus objetivos e poder recontar essa história tragicômica, se assim posso dizer, fez-se de suma importância e um momento único. Percorrer esse caminho, essa trajetória de construção do Palhaço Corcorã não foi fácil, pois sofri, pensei em desistir, mas a cada momento de dor, sabia que teria que ir mais adiante; poder reescrever tudo (ou quase tudo, pois se tratando de lembranças, memórias, nem sempre resgatamos tudo...), onde e como começou, para mim foi muito gratificante, pois revivi tudo de novo.
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