Volume 1

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Egdar Allan Poe

Historias Extraordinarias Volume 1

Ilustração

Emily & Jeanie Prefácio à Poe

F. M . D o s t o i é v s k i


Título original: Extraordinary tales Copyright © 2008 by Dora Paes

Tradução anteriormente publicada pela Editora Spice Ltda. copyright © 1958 Capa : Emily & Jeanie Preparação : Sergio Tellaroli Revisão : Carlos Perrone Projeto Gráfico : Stephanie Bertante e Svetlana Bianca

Dados Internacionais de Catalogaçio na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Poe, Edgar AlIan. 1809-1849. Histórias extraordinárias / Edgar Allan Poe ; Seleção, apresentação e tradução José Paulo Paiva. - São Paulo: Spice Editora, 2009. Título original: Extraordinary tales. ISBN 978-85-359-1232-6 I. Contos norte-americanos I. Paiva, José Paulo. II. Título. 08-03318 Índice para catálogo sistemático: I. Contos: Literatura norte-americana 813

2009 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SPICE LTDA. Rua Havaí, 702, 01259-000 -Sumaré - São Paulo - SP Telefone: (11) 3895-3500 Fax: (11) 3895-3501 www.editoraspice.com.br


Sumário Prefácio

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Ligéia

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Pequena palestra com uma múmia

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A carta roubada

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O gato preto

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O sistema do doutor Alcatrão e professor Pena

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O barril de amontiliado

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O poço e o pêndulo

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A máscara da morte rubra

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Berenice

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Prefácio a Poe1 por

F. M. Dostoíévski

Dois ou três contos de Edgar Poe já foram traduzidos para a língua russa em nossas revistas. Ofereceremos aos leitores mais três contos. Este é um escritor particularmente estranho ­isso mesmo, estranho, embora de grande talento. Não se pode classificar suas obras imediatamente como fantásticas; mesmo quando parece fantástico, ele o é apenas de forma exterior. Admite, por exemplo, que uma múmia egípcia, jazendo há cinco mil anos nas pirâmides, reviva pelo galvanismo.2 Admite, de novo por obra do galvanismo, que um morto relate o esta­ do de sua alma etc etc.3 Mas isso não constitui ainda o gênero autenticamente fantástico. Edgar Poe apenas admite a possi­ bilidade externa de um acontecimento sobrenatural (aliás, provando sua possibilidade, às vezes de forma extremamente engenhosa) e, tendo admitido esse acontecimento, mantém-se perfeitamente fiel à realidade em todo o restante. Não é esse o fantástico, por exemplo, de Hoffmann. Este personifica as forças da natureza em imagens: introduz em seus contos feiti­ ceiras, espíritos e, às vezes, procura seu ideal fora do mundo terreno, em algum mundo extraordinário e superior, como se acreditasse na existência indubitável desse misterioso mundo mágico ... Seria antes o caso de chamar Edgar Poe não de es­critor fantástico, mas de caprichoso. E que caprichos mais estranhos, que coragem nesses caprichos! Quase sempre toma a realidade mais extraordinária, põe seu herói na mais extra­ ordinária situação externa ou psicológica, e com que perspi­ cácia, com que precisão surpreendente ele relata o estado de alma dessa pessoa! Além disso, em Edgar Poe há justamente um traço que o diferencia de forma decisiva de todos os ou­tros escritores e constitui a sua peculiaridade marcante: a força da imaginção. Não que ele te-nha superado outros escritores pela 1 Publicado originalmente em Vrêmia (O tempo), no primeiro número de 1861. O artigo de Dostoiévski precedia as traduções de três contos de Poe: “The Tell- Tale Heart”, “The Black Cat” e “The Devi! in the Be1fry”. (N. T.) 2 “Some Words with a Mummy”. (N. T.) 3 “Mesmeric Revelation”. (N. T.) 4 “The Unparalle1ed Adventure of One Hans Pfaall” o (No To) 5 “The Balloon-Hoax”. (No To)


imaginação; mas há uma peculiaridade na sua imaginação que não encontramos em ninguém mais: a força dos detalhes. Tentem imaginar, por exemplo, algo de incomum ou até de inexistente, mas meramente possível; a imagem que se dese­ nhará diante de vocês sempre conterá traços mais ou menos gerais do quadro ou se deterá em alguma particularidade, em algum detalhe. Mas nos contos de Poe vocês vêem intensa­ mente todas as minúcias da imagem ou do acontecimento apresentados, a tal ponto que finalmente acabam por se con­ vencer da sua possibilidade ou realidade, quando na verdade esse acontecimento é praticamente impossível ou jamais acon­teceu neste mundo. Num de seus contos, por exemplo, desereve-se detalhadamente uma viagem à lua, acompanhada quase de hora em hora e que quase convence os leitores de que tal viagem poderia ter acontecido.4 Da mesma forma pre­cisa, ele descreveu, num jornal americano, um vôo de balão que atravessa o oceano da Europa à América. Essa descrição era tão minuciosa, tão precisa, tão repleta de fatos inesperados e fortuitos, parecia tão real, que todos acreditaram nessa via­ gem, é claro que apenas por algumas horas; logo em seguida verificou-se que não houvera nenhuma viagem e que o conto de Edgar Poe era umá “barriga” de jornal. 5 A mesma força de imaginação ou, mais precisamente, de raciocínio manifesta-se nos contos sobre a carta roubada, sobre o assassinato cometido por um orangotango em Paris, sobre um tesouro desenterrado e em outros mais.6 Comparam-no a Hoffmann.]á dissemos que isso é in­correto. Ademais, Hoffmann está imensamente acima de Poe como poeta. Em Hoffinann há um ideal, que, é bem verdade, nem sempre é apresentado de forma precisa; mas nesse ideal há pureza, há uma beleza efetiva, verdadeira, inerente ao homem. Isso é mais evidente nas novelas que não são fantásti­cas, como, por exemplo, “Mestre Martin” ou a belíssima, gra­ciosíssima “Salvator Rosa”. Isso para não falar na sua melhor obra: Opiniões do Gato Murr.7 Que humor verdadeiro, maduro, que realidade poderosa, que raiva, que tipos e retratos e, a par disso tudo, que sede de beleza, que ideal luminoso! Se existe algo de fantástico em Poe, ele é, por assim dizer, material, se é que se pode falar assim. Nota-se logo que é bastante america­no, até nas suas obras mais fantásticas. 8 ‘Tradução de Renata Esteves

6 “The Purloined Letter”, “The Murders in the Rue Morgue”, “The Gold Bug”. (N. To) 7 “Mestre Martin” é de 1817; Dostoiévski cita incorretamente o título da segunda novela: Salvator Rosa é personagem de “Signor Formica”, de 1819. O romance satíricosobre o Gato Murr foi publicado entre 1819 e 1821 o (No T.) 8 O artigo terminava com uma referência aos contos que vinham publica­, dos na seqüência: “Para apresentar aos leitores esse talento caprichoso, estam- pamos, por ora, três de seus contos”. (N. T.)


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Francis Allan e John Allan



"Não há beleza rara sem algo de estranho nas proporções." — Edgar Allan Poe





Ligeia



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Ealide77tToestáavo77tade,quenão11101’re.Quemc017hece os mistérios da vo77tade e do seu vig01’? Pois Deus IUlO é mais que umagralldevo77tade,pene­tm17dotodasascoisaspelaqualidadede sua apli­cação. O homem 17ão se entl’ega aos a17jos, 17em seTe17de i77teimme77te;’1Il0/1e, senão pela fraqueza de sua débil vo77tade.

Joseph Glanvil

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URO PELA MINHA ALMA que não posso lembrar-me de co­mo, quando ou mesmo precisamente onde travei conhecimen­to, pela primeira vez, com lady Ligéia. Desde então, longos anos decorreram, e os muitos sofrimentos por que passei perturba­ram-me a memória. Ou talvez não possa recordar-me desses pormenores agora porque, na verdade, o caráter de minha bem­amada, seu raro saber, seu singular embora plácido tipo de be­leza, a emocionante e aliciadora eloqüência da sua veludosa fala musical, tivessem conquistado meu coração tão furtiva e cons­tantemente que mal me dei conta deles então. Todavia, acredi­to que a encontrei inicialmente, e quase sempre daí por diante, numa grande, antiga e decadente cidade às margens do Reno. De sua família ouvi-a falar, com certeza, mais de uma vez. Que era de remota estirpe é fora de dúvida. Ligéia! Ligéia! Enfro­nhado em estudos de natureza tal que, melhor que quaisquer outros, abafam as impressões do mundo circundante, somente essa doce palavra - Ligéia - pode trazer-me de volta aos so­nhos da fantasia a imagem daquela que não vive mais. E hoje, enquanto escrevo estas linhas, a lembrança que me vem como um clarão - nunca soube o nome de família da que foi minha amiga e noiva, depois se tornou a companheira de meus estudos e, finalmente, a esposa do meu coração. Fora travessa injunção de Ligéia, ou tratara-se, antes, de uma prova para medir a força do meu afeto, o não ter feito eu perguntas sobre esse ponto? Ou talvez tenha sido capricho meu, exaltada e romântica oferenda deposta no altar da mais fervente devoção? Mal me lembro do fato em si; não é de admirar que tenha esquecido as circunstân­cias que o motivaram e acompanharam. De fato, se algum dia o espírito chamado Romance - se jamais a pálida Ashtophet* do Egito idólatra, com suas asas tenebrosas, presidiu, como se diz, a esponsais de mau agouro, então, sem dúvida alguma, presidiu ao meu. Há, no entanto, um assunto querido sobre o qual a memó­ ria não me trai. É a pessoa de Ligéia. Era alta de estatura, um tanto delgada e, em seus últimos dias, bastante emagrecida. Tentaria em vão descrever a majestade, o calmo desembaraço, a incompreensível leveza e elasticidade do seu andar. Ela chega­ va e partia como uma sombra. Nada denunciava sua entrada em meu gabinete de trabalho, a não ser a música querida da sua doce e veludosa fala, quando pousava a mão marmórea sobre meu ombro. Em beleza de rosto, mulher alguma a


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igualou. Era a radiância de um sonho de ópio, visão aérea e encantadora, mais exaltadamente divina que as fantasias a flutuarem sobre as almas dormentes das filhas de Delos. Não obstante, nada havia em suas feições daquele modelado regular que aprendemos a cultuar nas obras clássicas do paganismo. “Não existe beleza rara”, explica Bacon, lorde Verulam, referindo-se, na realidade, a todas as formas e beleza, “sem algo de nas proporções.” Todavia, embora me desse conta de que as feições de Ligéia não eram de regularidade clássica; embora percebesse que seu encanto era inegavelmente “raro” e sentisse o muito que havia de “estranho” animando-o, mesmo assim eu tentava inutilmente localizar a irregularidade e formular minha própria concepção de estranho. Examinava o contorno de sua fronte elevada e pálida - era impecável. Como poderia palavra tão inexpressiva ser aplicada a majestade tão divina! A cútis rivaliza­va com o mais puro marfim, e que dominadora calma e repou­so nas gentis proeminências das regiões acima das têmporas! Negra como asa de corvo, a cabeleira brilhante, luxuriosa e mansamente ondulada dava pleno significado ao epíteto homé­rico - “hiacintina”. Olhava as delicadas linhas do nariz: em nenhum lugar, a não ser nos graciosos medalhões dos hebreus, havia eu visto semelhante perfeição. Era a mesma voluptuosa maciez de superfície, a mesma quase imperceptível tendência para o aquilino, as mesmas narinas harmoniosamente arredon­dadas a revelar o espírito livre. Olhava a boca encantadora. Ali estava indubitavelmente o triunfo de todas as coisas celestes: a curva magnífica do breve lábio superior, o jeito macio e volup­tuoso do inferior, as travessas covinhas do rosto, a cor que fala­va, os dentes brilhando, de brilho quase cegante, aos raios sagra­dos que sobre eles infletiam, quando ela sorria o mais plácido, sereno e, ao mesmo tempo, o mais exultante de todos os sorri­ sos. Examinava a forma do queixo - nele também encontrava eu a graciosidade da largura, a maciez e majestade, a plenitude e a espiritualidade dos gregos, o contorno que o deus Apoio so­mente em sonho revelara a Cleómenes, o filho do ateniense. E, por fim, eu contemplava os grandes olhos de Ligéia. De olhos, não encontramos modelos na antiguidade remo­ta. Pode ser que nos olhos de minha bem-amada estivesse o se­gredo a que lorde Verulam alude. Quero crer fossem eles bem maiores que os olhos comuns à nossa raça. Eram, inclusive, mais rasgados que os olhos agazelados da tribo do vale de Nourjahad. Contudo, só ocasionalmente, em horas de intensa excitação, fa­zia-se notar essa peculiaridade de Ligéia. Nessas horas, sua be­leza - pelo menos, assim a via minha fantasia exaltada - co­piava beleza dos seres extra terrenos, a beleza da fabulosa huri dos turcos. As pupilas eram do negro * Provável referência a “Ashtoreth”, deusa fenícia e egípcia do amor e da fertilidade, e “Tophet”, que, no Velho Testamento, é uma versão do inferno as­sociada à idolatria egípcia de Moloch. (N. E.) for teh love os god.


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mais brilhante, ensombra­das por longas pestanas de azeviche. As sobrancelhas, de contor­no irregular, tinham a mesma cor. A “estranheza”, todavia, que eu descobria nesses olhos independia do formato, da cor ou do brilho deles; vinha, antes, da Ah, palavra sem sentido, sob cuja ampla latitude de mero som sepultamos nossa ignorân­cia de tantas coisas espirituais! A expressão dos olhos de Ligéia! Quantas vezes não refleti sobre isso! Quanto não lutei, durante uma noite inteira de verão, para sondá-Ia! Que era aquilo, mais profundo que o poço de Demócrito, jacente bem no fundo das pupilas de minha bemamada? Que em aquilo? Dominava-me a ânsia de descobrir. Aqueles olhos, aquelas enormes e brilhantes e divinas pupilas, tornaram-se para mim as estrelas gêmeas de Leda, e eu me verti no mais devoto dos astrólogos. Entre as muitas e incompreensíveis anomalias da ciência da mente nada existe de mais agudamente excitante que o fato ­jamais, acredito, percebido nas escolas - de, em nossos esfor­ços de recordar algo desde há muito esquecido, encontrarmo­nos 17U itelillência da recordação, sem, contudo, sermos capazes de, finalmente, lembrar. Assim, quantas vezes, no meu intenso escrutínio dos olhos de Ligéia, não senti aproximar-se o conhe­ cimento completo de sua expressão - senti-o aproximar-se ­quase meu - para vê-lo evolar-se por completo dali a instantes! E (o mais estranho de todos os mistérios!) encontrei nos corri­queiros objetos do universo um CÍrculo de analogias daquela ex­pressão. Quero dizer que, imediatamente depois do período em que a beleza de Ligéia passou-se para o meu espírito, ali se en­tronizando como um altar, deduzi das muitas existências do mundo material um sentimento idêntico àquele que me rodea­va e me penetrava quando seus grandes e luminosos olhos me fi­tavam. E, não obstante, mais do que nunca eu me sentia incapaz de defini-lo, de analisá-lo, de sequer enxergá-lo claramente. Re­conheci-o, repito, algumas vezes na contemplação de uma vinha rapidamente crescida, na contemplação de uma falena, de uma borboleta, de uma crisálida, de um riacho de águas murmuran­tes. Senti-o no oceano, na queda de um meteoro. Senti-o nos olhares das pessoas extraordinariamente velhas. E há uma ou duas estrelas no céu (uma particularmente, uma estrela da sexta magnitude, dupla e mutável, próxima da estrela grande de Lira) que, vistas pelo telescópio, comunicaram-me sensação igual. Cer­ tos sons de instrumentos de corda e, não raro, trechos de livros provocaram-na também. Entre outros exemplos, lembro-me bem de algo lido num volume de Joseph Glanvill que (talvez devido apenas a sua singularidade - quem o sabe?) nunca deixou de inspirar-me tal sentimento: “E ali dentro está a vontade, que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade e do seu vi­gor? Pois Deus não é mais que uma grande vontade, penetran­do todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se entrega aos anjos, nem se rende inteiramente à

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morte, se­não pela fraqueza de sua débil vontade”. O correr dos anos e as meditações subseqüentes habilitaram­ me a traçar uma remota conexão entre essa passagem do mora­ lista inglês e uma parte do caráter de Ligéia. A intensidade de pensamento, ação ou palavra era nela possivelmente um resulta­do, ou pelo menos um índice da poderosa vontade que, durante nosso longo intercâmbio, jamais deu provas mais imediatas de sua existência. De todas as mulheres que conheci, ela - a apa­rentemente calma Ligéia, a sempre plácida Ligéia -, mais do que qualquer outra, era presa dos tumultuosos abutres da paixão desenfreada. E de tal paixão eu só podia formar estimativa pela miraculosa dilatação daqueles olhos que, ao mesmo tempo, me encantavam e atemorizavam; pela quase mágica melodia, modu­lação, clareza e placidez de sua voz tão grave; e pela feroz ener­gia (tornada duplamente efetiva pelo contraste com seu modo de elocução) das árdegas palavras por ela ditas habitualmente. Já me referi ao saber de Ligéia - era imenso, tal como eu jamais vira em mulher alguma. Era profundo seu conhecimen­ to das línguas clássicas e, tanto quanto o podia avaliar minha fa­miliaridade com os modernos dialetos da Europa, jamais a sur­preendera em falta. E, com efeito, em qualquer dos temas mais admirados, simplesmente porque dos mais abstrusos da decan­tada erudição acadêmica, encontrara eu Ligéia alguma vez em falta? Com que singularidade, com que vibração esse aspecto da natureza de minha esposa impôs-se, apenas em nosso derradei­ro período, à minha atenção! Eu disse que seu saber era tal que jamais encontrara semelhante em mulher alguma, mas onde está o homem que perlongou com êxito todas as amplas áreas da ciência moral, física e matemática? A essa altura, eu não me dava perfeita conta, como agora, de que os conhecimentos de Ligéia eram gigantescos, espantosos; e, no entanto, conhecia suficien­temente sua infinita supremacia para resignar-me, com uma con­fiança infantil, a ser guiado por ela através do mlmdo caótico das investigações metafísicas nas quais estive ativamente empenha­do nos primeiros anos de nosso casamento. Com que vasto triun­fo, com que vívido prazer, com que funda esperança etérea eu sentia, quando ela se inclinava sobre mim, em estudos apenas devassados, mas pouco conhecidos, abrir-se aos poucos à minha frente aquela deliciosa perspectiva por cujos longos, suntuosos e de todo indevassados caminhos eu poderia avançar até uma sa­bedoria preciosa e divina demais para ser esquecida! Quão pungente, pois, haveria de ser a aplicação com que, anos mais tarde, contemplei minhas bem fundadas esperanças criarem asas e fugirem para sempre! Sem Ligéia eu não era se­não uma criança tateando no escuro. Sua presença, as leituras que fazia, tornavam vividamente luminosos os muitos mistérios transcendentais em cujo estudo estávamos imersos. Falta do ra­diante lume de seus olhos, aquela literatura,


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dourada e ligeira, tornou-se mais opaca do que o chumbo. Pois aqueles olhos bri­lhavam cada vez menos freqüentemente sobre as páginas que eu esquadrinhava. Ligéia adoecera. Os olhos ardentes brilhavam com gloriosa e demasiada refulgência; os dedos pálidos adquiri­ram uma transparência cérea e fúnebre; as veias azuladas da alta fronte alteavam-se aos influxos da mais ligeira emoção. Percebi que ela ia morrer - e lutei desesperadamente em espírito con­tra o inflexível Azrael. E, para meu espanto, os esforços daque­la mulher apaixonada eram mesmo mais enérgicos do que os meus. Muito havia em sua firme natureza para fazer-me acredi­tar que, para ela, a morte viria sem terrores; mas não foi assim. As palavras são impotentes para expressar com justeza a tenaci­dade da resistência por ela oposta à Sombra. Eu gemia de an­gústia diante do lamentável espetáculo. Queria acalmá-Ia, que­ria persuadi-Ia, mas, na intensidade do seu ardente desejo de viver, de viver, viver apenas, alívio e persuasão teriam sido o cúmulo da loucura. E nem mesmo no instante derradeiro, en­tre as mais convulsivas contorções de seu espírito ardente, foi abalada a placidez do seu porte. Sua voz tornou-se mais suave, mais aveludada e, não obstante, eu não gostaria de relembrar o significado fantástico das palavras então pronunciadas surda­ mente. Meu cérebro vacilava quando eu ouvia, transportado por melodia sobre-humana, elevações e aspirações que os mor­ tais jamais tinham conhecido. De que ela me amava, eu não duvidava, e me dava conta de que, num peito como o seu, o amor não reinaria como paixão comum. Mas somente por ocasião da sua morte é que percebi toda a força de seu afeto. Por longas horas, conservando minha mão entre as suas, abria-me ela um coração repleto de devoção, tão apaixonado que tocava as raias da idolatria. Por que merece­ ra eu a bênção de tais confissões? E por que merecera também a maldição de minha amada ser-me roubada na hora de fazê-Ias? Nesse assunto, porém, prefiro não me demorar. Digo apenas que, no mais que feminil abandono de Ligéia ao amor, ai, aban­ dono em prol de quem não o merecia, eu, ao cabo, reconheci o princípio da sua saudade, movida por um desejo tão ferozmen­te sedento, da vida que ora lhe fugia com rapidez. É essa sauda­de feroz, essa veemente fome de vida, de vida apenas, que me sinto incapaz de retratar em palavras. A altas horas da noite em que partiu, ela me chamou impe­riosamente a seu lado e pediu-me para recitar-lhe uns versos por ela compostos não muitos dias antes. Obedeci-a. Os versos eram estes: De que ela me amava, eu não duvidava, e me dava conta de que, num peito como o seu, o amor não reinaria como paixão comum. Mas somente por ocasião da sua morte é que percebi toda a força de seu afeto. Por longas horas, conservando minha mão entre as suas, abria-me ela um coração repleto de devoção, tão apaixonado que tocava as raias da idolatria.

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Eia! que é noite de gala Nestes mlOS desolados. Umbandodeanjos,envoltosEmgaze,deolhoschorosos,Assiste, 1/0 palco, a um drama De esperanças e de pavores, El1quanto a oTquest1”fl l·epete A música das esfems. * ÀimagemdeDeus,oscômicos,MU’f7JlZwamcomvozmedl’osa, Voam de lá para cá. Bonecos são, sob o mando De vastas coisas info’f7lles Que, com asas de cond01~ Esparzem Dor invisível E alteram todo o cenário. Um dl’ama tão val’·iegado, O’ede, não o esquecerá Atll1’baque,emtornoacírculoSemfim,persegueumFantasma Sem, todavia, o alcançal’: Loucura, Pecado e Horr01· Formam a trama da peça. Mas eis que, em meio da l’·onda, Surge uma sombra furtiva. Sangrenta sombra, avultando Na solidão do cenário. Feridos de m01””te, os cômicos TOmam-se logo ma pl’·esa. Os anjos choram à vista Das fauces ensangüentadas. Apagam-se as luzes todas Com violência de tom1e1lta, Cai a cOTtina fimérea

- Ó Deus - quase gritou Ligéia, levantando-se e erguen­do os braços para o céu, num movimento espasmódico, apenas eu terminara de recitar. - Ó Deus! Ó Pai Divino! Devem as coi­sas ser sempre e invariavelmente assim? Não poderá este vence­ dor ser jamais vencido? Não somos nós parte de Vós? Quem co­nhece os mistérios da vontade e de seu poder? O homem não se entrega aos anjos, 17e777 se submete li lJ701te, senão pela fraqueza de sua débil vontade. Então, como se exaurida pela emoção, ela deixou cair os bra­ços alvos e voltou, com passos solenes, para o leito de morte. E, enquanto exalava os últimos suspiros, um murmúrio surdo saiu­lhe dos lábios. Inclinei-me sobre eles e ouvi novamente as pala­vras finais do trecho de Glanvill: “o homem não se entrega aos anjos, nem se submete à morte inteiramente, senão pela fraque­za de sua débil vontade”.



Volume I Ligéia Pequena palestra com uma múmia A carta roubada O gato preto O sistema do doutor Alcatrão e professor Pena O barril de amontiliado O poço e o pêndulo A máscara da morte rubra Berenice



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