SAMARCANDA
FEV 2022
OLÁ, Olá, tagger TAGGER A
certa altura do livro do mês, lemos que a poesia “nunca nega o que a precedeu e nunca é negada pelo que se segue”, que ela “atravessa os séculos em paz”. Em tais linhas, parece estar o mote desta obra fascinante que é Samarcanda, uma indicação feita ao clube por Guga Chacra. O jornalista apostou na obra de um autor com forte conexão com o Oriente Médio, o franco-libanês Amin Maalouf, que centrou seu romance na vida de uma figura emblemática da Pérsia do século XI — o polímata Omar Khayyam. “O que sabemos sobre ele é uma mistura de realidade e lenda, mas isso não foi um problema, já que eu pretendia escrever um romance centrado em sua vida e não uma biografia”, comenta o autor em entrevista à TAG. É sobretudo a produção poética de Khayyam que inspira Maalouf. Logo no início de Samarcanda, descobrimos que uma coleção de poemas de sua autoria pautará toda a trama. Seus versos, de fato, atravessaram os séculos e “embarcaram” no Titanic. Assim, o que lemos na sequência é uma saga fascinante em torno do manuscrito de Khayyam, desde a sua concepção até o seu extravio no trágico naufrágio de 1912. Para ajudá-lo a desbravar esse território entre a história e a ficção, preparamos conteúdos especiais. Além de entrevistas com o autor e o curador, publicamos um texto introdutório à obra, uma breve biografia de Khayyam e uma contextualização das localidades exploradas no romance. E tem mais: você também poderá ler um artigo sobre os versos consagrados pelo poeta persa e uma análise crítica de Samarcanda. Boa leitura!
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QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
JÚLIA CORRÊA
Publisher
Editora
LIZIANE KUGLAND
ANTÔNIO AUGUSTO
PAULA HENTGES
LAÍS FONSECA
Revisora
Revisor
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Designer
PÂMELA MAIDANA
LUANA PILLMANN
GABRIELA BASSO
Estagiária de Editorial
Estagiária de Design
Estagiária de Design
Impressão Gráfica Ipsis
Capa bloco gráfico e Ana Cartaxo
prefácio
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Por que ler o livro O livro indicado Saiba mais Contextualização
Entrevista Guga Chacra
posfácio
32 28 24 22
guia de conteúdos
Experiência do mês
Para ir além
Entrevista Amin Maalouf
Crítica
Próximo mês
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EXPERIÊNCIA DO MÊS
vamos ler
SAMARCANDA?
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riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!
Marque a cada parte concluída
O primeiro passo você já deu, agora é só terminar de ler o Prefácio da revista. Vamos lá? Inicie o livro e leia até a página 50 Assim começa o amor entre Omar Khayyam e Djahane, dois espíritos livres à frente de sua época. Será que eles conseguirão levar adiante essa relação? Leia até a página 93 Chegamos ao ponto em que Omar, Hassan e Nizam, três amigos que mudarão o destino da Pérsia, se encontram. Mas de que maneira cada um deles inscreverá seu nome na história?
Leia até a página 187 Um desfecho impressionante para a parte medieval de Samarcanda! Mas você terá de ler a outra metade da obra para conhecer mais da sobrevida que os poemas de Khayyam terão até o naufrágio do Titanic. Leia até a página 245 Que aventura nosso herói Benjamin O. Lesage viveu! Mas o manuscrito ainda está distante de ser recuperado. Até onde sua obsessão o levará? Leia até a página 309 Após tantas viagens e reviravoltas, a trama do livro nos leva de volta ao ponto inicial: Samarcanda! Ficou impactado? Não deixe de comentar lá no app! Agora, vamos à reta final. Leia o Posfácio da revista.
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EXPERIÊNCIA DO MÊS
jan
projeto gráfico O estúdio bloco gráfico foi o responsável pelo projeto deste mês, que une referências clássicas e modernas. A fonte de texto foi inspirada no trabalho do francês Robert Granjon, impressor do século XVI. Nos títulos, as serifas agudas e geometrizadas remetem a ornamentos árabes. Na capa, o uso de pantone metalizado e verniz busca criar um efeito luxuoso. Os raios solares fazem referência à frase "Samarcanda, a mais bela face que a Terra já mostrou ao Sol", presente originalmente no livro e citada no marcador. As ilustrações da luva e da capa da revista são compostas por mapas dos principais locais mencionados na obra e foram desenvolvidas pela artista Ana Cartaxo. O estúdio também já assinou outros projetos da TAG, como Uns e outros, A câmara sangrenta e outras histórias e A praça do diamante.
mimo Para fazer uma imersão em uma cultura, é sempre bom conhecer a sua gastronomia. Pensando nisso, preparamos um livro com cinco receitas tradicionais da culinária persa. A publicação inclui ainda um glossário elencando as principais especiarias da região. Você descobrirá que alguns dos temperos mencionados inclusive já estão difundidos no Brasil.
Samarcanda pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
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SAMAR POR QUE LER O LIVRO Um manuscrito oriental que atravessou os séculos, conquistou o Ocidente e encanta o mundo ainda hoje é o mote da trama épica e envolvente construída pelo autor franco-libanês Amin Maalouf. Com essa obra, ele venceu o Prix Maison de la Presse de 1988. Samarcanda é um romance histórico memorável que conduz habilmente os leitores desde a Pérsia medieval até o naufrágio do Titanic.
RCANDA "Ao longo do livro, o leitor é presenteado com cenários encantadores que evocam a Era Medieval e a Moderna da Ásia central." New York Times
"Amin Maalouf tem sido um incansável construtor de pontes, procurando mostrar o caminho das reformas necessárias para construir um mundo em paz, de acordo com um modo de vida mais justo e sustentável." Fundação Calouste Gulbenkian
“Maalouf escreveu um livro extraordinário, descrevendo as vidas e o tempo de pessoas que nunca apareceram na ficção [...]. O livro é muito mais que um romance histórico.” The Independent
8 O LIVRO INDICADO
O elo perdido entre Ocidente e Oriente ANDRÉ CÁCERES*
Em Samarcanda, manuscrito de Omar Khayyam, poeta persa que inspira o romance, sintetiza uma reconciliação proposta por Amin Maalouf
O
É editor na Sesi-SP Editora, autor de Nebulosa (Patuá, 2021) e escreve na imprensa sobre literatura.
que a Alta Idade Média pode ter a ver com a Belle Époque? O romance Samarcanda (1988), do escritor franco-libanês Amin Maalouf, sugere um possível elo. A imagem central da obra — um manuscrito do poeta, matemático, astrônomo e filósofo persa Omar Khayyam naufragando com o supostamente inafundável navio Titanic — sintetiza a reconciliação entre esses dois períodos tão distintos, e entre Oriente e Ocidente, algo que o livro todo parece operar. O romance é dividido em quatro partes, sendo as duas primeiras centradas na vida de Khayyam (1048–1131) e as duas últimas, no narrador e personagem fictício Benjamin O. Lesage, norte-americano descendente de huguenotes franceses. Maalouf usa ambos os personagens para contar episódios marcantes da história do Oriente Médio e da Ásia Central, por vezes fazendo deles testemunhas oculares ou até cúmplices dos acontecimentos, por vezes fazendo uso do narrador para mostrar desdobramentos que Khayyam e Lesage não chegaram a viver.
O LIVRO INDICADO
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A metade inicial da obra retrata a relação de Khayyam com personagens históricos como Hassan Sabbah, fundador da seita dos Assassinos e um dos primeiros líderes políticos e religiosos a usar do terrorismo como arma de guerrilha, e Nizam Al-Mulk, vizir a serviço do império turco-persa dos seljúcidas, que governou como uma espécie de regente durante vinte anos entre a morte do sultão Alp Arslan e a ascensão de seu filho Malikchah. Mas o fio condutor da narrativa é um livro em que Khayyam anota seus rubaiyat, poemas tradicionalmente escritos em quadras. A metade restante do romance, ao mostrar Lesage se aventurando pela Pérsia da dinastia Qajar (1789–1925) em busca do manuscrito que contém os versos de Khayyam, acaba por discutir os traumas da região e sua aparente infertilidade para os valores democráticos. A obra não trata o Oriente Médio com condescendência ou apelando para o exotismo, como muitas vezes a literatura chamada orientalista fez, especialmente do século XVIII em diante. Alguns exemplos do orientalismo na literatura são Salammbô (1862), do francês Gustave Flaubert, Alamut (1938), do esloveno-italiano Vladimir Bartol, e vários contos do argentino Jorge Luis Borges, autor que exibia verdadeiro fascínio pela cultura da região. Maalouf desloca o centro do mundo medieval da Europa para o Oriente Médio e a Ásia Central. É por isso que declara o Império Seljúcida como "o mais poderoso do Universo" e considera o tratado político Siyaset-Nameh, de Nizam-Al-Mulk, "uma obra notável, que significou para o Oriente muçulmano o que virá a ser para o Ocidente, quatro séculos mais tarde, O príncipe, de Maquiavel. Com uma diferença importante: O príncipe é a obra de um desiludido pela política, um homem despojado de todo poder, e o Siyaset-Nameh é fruto da insubstituível experiência de um construtor de império". A admiração de Maalouf pelo esplendor da Pérsia, porém, não o impede de retratar suas mazelas, o patrulhamento moral e o anti-intelectualismo presentes tanto na Idade Média quanto na virada do século XIX para o XX. Um sábio cádi, espécie de juiz que aplica a Lei da Sharia, aconselha a
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Khayyam em Samarcanda, no atual Uzbequistão: “Se você quer manter os olhos, os ouvidos e a língua, esqueça que tem olhos, ouvidos e língua”. O cádi dá a ele um livro em branco para preencher com seus poemas e pensamentos que não podem ser externados em sua época, obra que percorrerá um périplo pelo tempo e pelo espaço, de um tribunal muçulmano no século XI até o naufrágio do Titanic. Não é por acaso que toda essa trama sobre um pedaço do mundo que pode ser simultaneamente sublime e melancólico é contada a partir da saga de um livro que reconcilia Oriente e Ocidente, Idade Média e Belle Époque. Em 1859, o poeta inglês Edward FitzGerald traduziu e resgatou os rubaiyat, após séculos de obscuridade, com tamanho sucesso a ponto de Algernon Charles Swinburne afirmar que ele colocou Khayyam no panteão da poesia anglófona e Borges ponderar se a alma do persa reencarnara na Inglaterra para cumprir seu destino literário. O manuscrito fictício, que conserva a poesia e a genialidade de Omar Khayyam, simboliza o quão multifacetado pode ser o Oriente e como ele pode suscitar deslumbramento, temor e reverência em nós, ocidentais.
SAIBA MAIS
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A passagem de Omar Khayyam por este mundo BRUNA MENEGUETTI*
Um dos grandes polímatas da humanidade, o personagem de Samarcanda deixou importantes contribuições para as ciências exatas e foi imortalizado por sua obra literária Gota d'água que cai e se perde no mar, Grão de poeira que se dissolve na terra, O que significa nossa passagem por este mundo? Um vil inseto apareceu e depois desapareceu. (Poema atribuído a Omar Khayyam em Samarcanda)
O
Jornalista, escritora e dramaturga. Autora do livro O último tiro da Guanabara, vencedor do prêmio Bunkyo de Literatura de 2021.
mar Khayyam (pronuncia-se “Raiam”) nasceu em Nichapur, no leste do atual Irã, em 18 de junho de 1048, como conta Samarcanda, livro de Amin Maalouf. Ele começou sua carreira ensinando álgebra e geometria, e tornou-se polímata ainda jovem, pois exercia a astronomia, a matemática, a filosofia e a literatura. Antes dos 25 anos, escreveu o livro Problemas de aritmética e, em 1070, aos 22 anos de idade, se mudou para a cidade de Samarcanda, no Uzbequistão, uma das mais antigas cidades da Ásia Central. Lá, Khayyam conquistou a simpatia do cádi Abu-Tahir, que no livro de Maalouf dá ao poeta um livro em branco para que Khayyam possa escrever seus rubaiyat, na época tidos como uma forma literária menor. Em 1070, o matemático finaliza a sua obra teórica mais famosa: Tratado sobre a demonstração dos problemas de álgebra. Por ser astrônomo, não demorou muito para o grão-vizir Nizam Al-Mulk e o sultão Malikchah o convidarem para construir um observatório na cidade de Isfahan, no Irã. Khayyam ficou trabalhando ali por 18 anos enquanto produzia diversas pesquisas, como, por exemplo, uma reforma no calendário iraniano ordenada por
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Malikchah em 1079. O resultado foi o calendário Jalali, que serviu de base para outros e que é célebre por ser mais preciso do que o gregoriano — usado atualmente no mundo e criado em 1582. Quando Malikchah morreu, Khayyam foi acusado de ateísmo por mulçumanos ortodoxos e se mudou para a cidade de Merv, hoje no Turcomenistão. Lá, ele escreveu outros trabalhos científicos. Pesquisadores dizem que Khayyam talvez tenha sido o primeiro a conceber uma teoria geral das equações cúbicas, enquanto que seu trabalho com geometria envolveu também a teoria da proporção. Porém a maior parte das pesquisas produzidas pelo polímata se perdeu. Apesar de todas essas contribuições para a área das ciências exatas, o que levou Khayyam a ser conhecido no Ocidente foi justamente a literatura. Em 1859, o tradutor e poeta vitoriano Edward FitzGerald (1809–83) traduziu livremente e publicou o Rubaiyat, que continha 600 quadras, poemas de quatro versos, feitos por Omar Khayyam. Segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges, o livro era “fruto de uma simbiose poética das mais fecundas da história da literatura”. A partir daí, a fama de Khayyam se espalhou pelo mundo todo. No entanto, dos 600 poemas presentes no Rubaiyat, pesquisadores discutem quantos podem ser verdadeiramente considerados como sendo da autoria de Khayyam. Em seus versos, o matemático colocava em dúvida a fé e o significado da existência, além de mostrar seu amor ao vinho e falar sobre a efemeridade da vida. A sua, ao menos, foi longa para a época. Ele morreu em sua cidade natal com 83 anos, em 4 de dezembro de 1131.
CONTEXTUALIZAÇÃO
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Entre impérios e revoluções EDUARDO PALMA*
Saiba mais sobre as localidades do Oriente que são pano de fundo da trama de Amin Maalouf — a começar por Samarcanda, que dá título ao romance
E
Já escreveu sobre política brasileira, relações internacionais e comportamento. Sempre com um livro na mão, não dispensa uma leitura com ideias que transcendem seu tempo, de temas complexos a amenidades.
m suas jornadas, Omar Khayyam passou por diferentes territórios da Ásia Central, mas Samarcanda acabou sendo o pano de fundo de muitas das aventuras do poeta. Fundada no século VII a.C., Samarcanda foi ponto de encontro de distintos povos e culturas — a cidade era um entreposto para mercadores orientais e viajantes do Ocidente por abrigar mercados com enorme variedade de produtos e especiarias. Samarcanda já foi até a capital de um império — o Timúrida, por volta do século XIV — e se consolidou como centro de estudos científicos, principalmente nas áreas de matemática, álgebra, geometria e astronomia. Até hoje existem observatórios conservados e obras arquitetônicas, como mesquitas, madrassas (escolas islâmicas), memoriais e mausoléus, que atraem turistas para a cidade. Atualmente, Samarcanda tem 513 mil habitantes e é a terceira maior cidade do Uzbequistão, nome que não veremos no livro porque o país ainda não existia naquela época — o território passou a se chamar assim em 1991, após o fim da União Soviética. Por ser considerada essa encruzilhada de culturas e por sua arquitetura exuberante decorrente dessa afluência histórica, Samarcanda foi designada Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco e é hoje um dos locais mais visitados da Ásia Central.
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PARA ENTENDER Ao longo do livro de Amin Maalouf, vemos muitas menções à Pérsia. Vale lembrar que a Pérsia mudou de nome oficialmente para Irã em 1935, mas ainda hoje é comum vê-los como sinônimos. É importante não confundir o termo com o Império Persa, um dos mais longevos da história, que durou de 500 a.C. a 500 d.C. Esse império ocupou espaços onde agora estão nações como Turquia, Paquistão, Uzbequistão, Iraque, Afeganistão e Irã. O romance se passa majoritariamente no século XI, quando esse império já não existia, mas muitas das histórias ocorrem na região da Pérsia. Com a queda do Império Persa, aquela grande região foi dominada pelos árabes e passou a fazer parte do Islã. Séculos mais tarde, a fragmentação política permitiu o surgimento de novos reinos, sendo um deles o Império Safávida, liderado por uma dinastia local, xiita, que viria a dar origem ao Irã moderno.
UMA VOZ DA PÉRSIA PARA O MUNDO O poeta Omar Khayyam nasceu em Nichapur, na Pérsia (atual Irã). Viveu entre 1048 e 1131 em locais como Samarcanda, Isfahan e Merv. Segundo Arlene Clemesha, especialista em História Árabe e professora do tema na USP, Khayyam é um dos maiores poetas islâmicos e até hoje é respeitado pelos iranianos. Apesar disso, em sua época, Khayyam foi considerado em muitos locais como um “filassuf", uma pessoa malvista que se interessava mais por ciências consideradas profanas do que pela religião.
Detalhe do mapa da Ásia
UZBEQUISTÃO Samarcanda Samarcanda
TURCOMENISTÃO Merv Merv Nichapur Nishapur
Isfahan Ispahan
IRÃ
AFEGANISTÃO
CONTEXTUALIZAÇÃO
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O TRIUNFO DE UMA CONSTITUIÇÃO
Madrassas históricas construídas nos séculos XV e XVII, localizadas na praça pública ornamental de Reguistão, em Samarcanda.
Conforme a narrativa avança, chegamos ao início do século XX, em uma sociedade persa efervescente e dividida. De um lado, os que queriam modernizar o país, inspirados por ideias europeias. De outro, grupos mais tradicionais, defensores de doutrinas religiosas, queriam manter os valores originários do país e do Corão. Em determinada passagem do livro, uma personagem descreve que o país está “doente” e tem vários médicos à cabeceira, cada um propondo distintos remédios. “Se esta revolução triunfar, os mulás deverão transformar-se em democratas; se ela fracassar, os democratas deverão transformar-se em mulás." Mulás são pessoas educadas segundo os valores islâmicos. Por fim, mas não sem resistência, até mesmo de potências estrangeiras que tinham interesse na região, triunfou a revolução constitucional. A Pérsia teve o seu primeiro parlamento em outubro de 1906. Muitos consideram que aquele momento permitiu a chegada da “era moderna” ao país, com a criação de associações civis, o florescimento de uma imprensa independente, desenvolvimento econômico e mais liberdade individual. Em entrevista à TAG (confira na página 24), Amin Maalouf define esse momento como “crucial” na história do país. “Foi o primeiro ato da revolução que minha geração testemunhou setenta anos depois. Seu objetivo era estabelecer um regime constitucional, com um parlamento eleito e um governo competente que pudesse modernizar o país."
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GOSTO DE LER PARA TER A SENSAÇÃO DE COMO ERA VIVER EM DETERMINADOS LUGARES E ÉPOCAS” JÚLIA CORRÊA*
Guga Chacra fala de seu gosto pela obra de Amin Maalouf e da importância da literatura em seu trabalho como jornalista
G É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.
uga Chacra, nosso curador deste mês, é sempre lembrado por seu amplo conhecimento sobre o Oriente Médio, tema ao qual se dedica em seu trabalho como comentarista de política internacional na imprensa brasileira. De família libanesa, o jornalista indicou ao nosso clube a obra de um autor de origem semelhante à sua, que, segundo ele, fala “de forma espetacular” sobre a região na qual ambos têm raízes. Na entrevista a seguir, Guga lista outros autores, além de Amin Maalouf, marcantes em sua vida de leitor. Também comenta o papel da literatura em sua atividade jornalística.
ENTREVISTA
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Como você entrou em contato com a produção de Amin Maalouf? O que mais chama a sua atenção na obra dele? O primeiro livro que li de Amin Maalouf foi A odisseia de Baldassare, já há muitos anos. Depois, li As cruzadas vistas pelos árabes. Mais recentemente, nesse último ano mesmo, li um livro dele que fala de islamismo e de liberalismo [Guga se refere a O naufrágio das civilizações, de 2020]. Eu, como Amin Maalouf, tenho origens ali na região que a gente chama de Levante, parte egípcia e parte libanesa. Eu sempre o enxerguei como alguém que fala de forma espetacular daquela região. O conhecimento histórico dele é chocante; a capacidade de escrever também. Eu não duvido inclusive que ele venha a ser indicado para o Nobel de Literatura. Como você avalia a reconstrução histórica feita pelo autor em Samarcanda? O que mais me encanta em Samarcanda é a capacidade do Amin Maalouf de reconstruir o passado. Lendo o livro dele, você faz uma viagem para aquela região, mais ou menos o que seria a Pérsia. É algo impressionante. Parece que você está ali naquele momento. Quem gosta de estudar História, quem gosta daquela região do mundo, realmente se delicia quando lê esse livro. Embora Amin Maalouf viva na França, ele é um autor de origem libanesa e, em sua obra, traz diversos elementos do Oriente Médio. Quais outros escritores relacionados a essa região você indicaria aos nossos associados? Do Líbano, além do Amin Maalouf, o Elias Khoury. Eu também recomendaria o Amós Oz, escritor israelense que é bem conhecido no Brasil. Outro é o escritor egípcio Naguib Mahfouz. Já o meu escritor preferido é o turco Orhan Pamuk. Desse, eu li todas as obras. Sou completamente fanático por ele.
18 ENTREVISTA
O primeiro livro que eu li: O gênio do crime, de João Carlos Marinho O livro que estou lendo: Byzantium, de Judith Harry O livro que mudou a minha vida: O estrangeiro, de Albert Camus O livro que eu gostaria de ter escrito: Pobre nação, de Robert Fisk O último livro que me fez rir: Nu, de botas, de Antonio Prata, e James Lins, o playboy que não deu certo, de Mario Prata
Qual a importância da literatura no seu trabalho como jornalista? A literatura no meu trabalho é mais especificamente em relação ao Oriente Médio. Gosto de ler os livros para poder, pelo menos, ter a sensação de como era viver em determinados lugares e épocas que não vivi. Sinto muito isso nos livros do Orhan Pamuk, de ir para uma Istambul que, embora eu conheça bem e tenha ido várias vezes, nunca vivi naquelas épocas. Acho que isso ajuda muito para entender todo aquele cenário. Com A odisseia de Baldassare, do Amin Maalouf, também tive bastante essa sensação — é uma viagem longa na época do Império Otomano, no ano de 1666. Relembre uma passagem de Samarcanda marcante para você. O Omar Khayyam e o Hassan conversando antes de irem para Isfahan, quando eles se conhecem.
O último livro que me fez chorar: O museu da inocência, de Orhan Pamuk O livro que eu dou de presente: Brimos, de Diogo Bercito O livro que eu não consegui terminar: Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski
O curador do mês, Guga Chacra Divulgação
Ilustração do mês De Curitiba, Felipe Mayerle é ilustrador graduado em gravura. Tem experiência em áreas como política, sociedade e cultura. Seu trabalho, segundo ele, é reflexo de suas experiências cotidianas através de símbolos, emoções e cores. Guiada pelo desenho e pelo traço, sua produção resulta em um alto grau de expressão imaginativa e criativa. @felipemayerle A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: "Para Omar, a vida é diferente, é prazer da ciência e ciência do prazer. Acorda tarde, bebe em jejum a tradicional 'dose matinal', depois se instala em sua mesa de trabalho, escreve, calcula, traça linhas e figuras, escreve mais, transcreve algum poema em seu livro secreto."
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ATENÇÃO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.
A seguir, você confere o posfácio — conteúdos com spoilers, indicados para depois da leitura da obra.
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Os tesouros de Omar Khayyam PEDRO GONZAGA*
Centrais em Samarcanda, os versos do poeta persa, conhecidos como Rubaiyat, nos convidam a refletir sobre o predomínio da prosa em nossos tempos
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É tradutor, poeta e escritor. Doutor em Literatura pela UFRGS, com diversas obras publicadas, tanto em prosa quanto em verso, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa. Foi colunista em Zero Hora e no Estado da ArteEstadão. Hoje mantém o blog Da Torre.
ivemos imersos na forma da prosa, de um modo tão natural, que sequer suspeitamos de nosso fundamentalismo prosaico. Quase tudo o que lemos (e escrevemos) manifesta-se por meio de frases e parágrafos. De um ponto de vista puramente formal, a diferença entre este pequeno artigo e a prosa de Cervantes reside na mera extensão dos textos. Reparem, não poderíamos fazer tal aproximação com Camões sem antes dominarmos metros decassílabos e alguns padrões de rima. Antípoda da prosa, a poesia respondia por um ideal de elevação artística das palavras, como o mármore que deixa de ser piso para ser estátua, uma lembrança de que cada termo é feito de som e imagem ativos, mais do que inocentes arcabouços de conteúdo. Tal visão, a de uma forma distinta da prosa, apartada do uso corrente, perdurou por mais de dois milênios. Fosse na Dinastia Tang (China do século VIII), no mundo greco-romano, na tradição trovadoresca da Provença, no Japão dos tankas e dos haikus, na Índia medieval e na antiga Mesopotâmia, nos sonetos do dolce stil nuovo renascentista, na cultura persa e árabe, com a riqueza dos ghazals (praticados no Brasil por Manuel Bandeira) e dos rubais, popularizados no Ocidente a partir da obra de Omar Khayyam. Um universo em que cada forma era um tesouro. E talvez siga sendo. Um rubai é um conjunto de quatro versos longos com um mesmo número de células rítmicas, sendo o primeiro verso, o segundo e o quarto rimados ao final, com algumas possíveis variantes. Tem, por definição, uma estrutura autônoma: tudo o que o poeta tiver de dizer precisa estar
PARA IR ALÉM
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circunscrito ao quarteto. Espera-se do conteúdo eloquência, engenho, espontaneidade. Por fim, os três primeiros versos servem como uma espécie de moldura ao assunto, e o quarto deve promover um giro sublime e revelador. Vejamos dois exemplos, o primeiro de Khayyam, do Rubaiyat (que significa coleção de quartetos), vertido da famosa tradução inglesa de Edward FitzGerald:
Ah, amor, se pudéssemos com o destino conspirar Para o esquema todo destas tristes coisas agarrar Não o faríamos numa porção de pedaços, e então Reerguê-lo-íamos à maneira que o coração desejar. E este segundo, de Fernando Pessoa, que se encantou com os rubais de Khayyam e buscou elaborar os seus próprios:
Se tive amores? Já não sei se os tive. Quem ontem fui já hoje em mim não vive. Bebe, que tudo é líquido e embriaga, E a vida morre enquanto o ser revive.
Reprodução da verdadeira edição de luxo dos poemas de Khayyam perdida no Titanic. Sangorski & Sutcliffe
O filósofo alemão Günter Figal nos lembra que toda arte é antes perceptível que inteligível. Não seria o momento, pois, de reacordarmos para a forma, deixarmos de olhar tão somente para o conteúdo, mal-acostumados pela ampla leitura de prosa? Gosto de acreditar que sim, mas talvez a resposta seja mais ambígua e complementar. Pensemos na tradução. Não há equivalências perfeitas, nem como fazer uma língua soar como outra, ou seja, no fim o conteúdo parece ser o aspecto mais importante. Por outro lado, apesar da poesia modernista ter eliminado o uso do metro fixo e das rimas, convertendo o canto em fala, nada disso afetou a essência da forma lírica: o corte dos versos, a estrofe, a força maior das palavras em destaque em meio ao branco da página. Ao fim, cada forma é um tesouro. E prisão voluntária. E liberdade.
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PAPEL DA LITERATURA É CONSTRUIR PONTES” EDUARDO PALMA*
Amin Maalouf fala sobre a concepção de Samarcanda, destaca a importância do livro em sua trajetória literária e comenta conflitos do mundo atual
A
Já escreveu sobre política brasileira, relações internacionais e comportamento. Sempre com um livro na mão, não dispensa uma leitura com ideias que transcendem seu tempo, de temas complexos a amenidades.
os 71 anos, o autor franco-libanês Amin Maalouf costuma dizer que o mundo está sem uma "bússola moral", e que, sem lideranças, caminha para o desconhecido. Apesar de esse ser o tom de suas últimas reflexões, o autor demonstra otimismo ao ver na literatura um meio para construir pontes entre universos distintos — como o Oriente e o Ocidente. Aliás, pode-se dizer que, nesse aspecto, a sua contribuição é valiosa. Vencedor de prêmios como o Goncourt e o Princesa das Astúrias, Maalouf publicou ensaios e romances dedicados ao diálogo entre culturas, como é o caso de Samarcanda, sua primeira obra literária, e de O naufrágio das civilizações, seu mais recente livro de não ficção. Para o escritor, que foi jornalista até o início dos anos 1980 e é membro da Academia Francesa desde 2011, o mundo seria mais capaz de enfrentar as ameaças atuais se as relações entre nações e comunidades fossem mais serenas e menos hostis. "Precisamos aprender como viver juntos e como transformar nossa diversidade em um ativo, ao invés de um passivo", diz ele na entrevista a seguir. Confira a conversa completa.
ENTREVISTA
O autor do mês, Amin Maalouf Magnum Photos/Fotoarena
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O que o motivou a escrever um livro com fatos históricos que retratam a vida de um poeta persa do século XI? Desde criança, me interesso por Omar Khayyam, de quem meu pai falava. Ele tinha o Rubaiyat em sua biblioteca, e eu lia algumas das quadras desde jovem. Mas o que me levou a escrever sobre ele foi uma nota que encontrei no livro Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, em que ela dizia ter hesitado entre dois personagens históricos, o imperador romano Adriano e o poeta persa Khayyam, e que ela escolheu o primeiro por se sentir mais próxima de sua cultura. Naquele momento, comecei a fazer pesquisas sobre Khayyam e fiquei fascinado. O que sabemos sobre ele é uma mistura de realidade e lenda, mas isso não foi um problema, já que eu pretendia escrever um romance centrado em sua vida e não uma biografia. Antes de enveredar para a literatura, o senhor foi jornalista e visitou vários países, inclusive o Irã para cobrir a revolução de 1979. Como essa experiência e a mistura de religião, política e cultura o inspiraram a tratar da região em um romance? Você está absolutamente certo ao ligar os dois fatos. No final dos anos 1970, eu me intrigava com o que acontecia no Irã. Como muitas pessoas no Líbano, as duas áreas com as quais eu sentia uma profunda conexão cultural eram o mundo árabe e o Ocidente. Os eventos que começaram a se desenrolar no Irã — um levante liderado por um clérigo idoso — não foram comuns. Queria saber mais sobre o país onde tais eventos estavam acontecendo e onde tais personagens estavam surgindo. Os dias que passei lá em 1979 foram cruciais para despertar minha paixão por aquele povo, sua cultura e sua trajetória histórica.
26 ENTREVISTA
"É importante, quando se escreve um romance, relacionar-se com o lugar. Dá uma sensação de confiança e de pertencimento."
Na narrativa, o senhor divide a trajetória dos personagens em diferentes períodos e eventos históricos, incluindo séculos passados na Pérsia, o naufrágio do Titanic e a Era Moderna. Qual foi o seu propósito com isso? Descobri um momento crucial na história do Irã: a Revolução Constitucional dos primeiros anos do século XX. De certa forma, foi o primeiro ato da revolução de 70 anos depois. Mas a primeira não teve a religião no centro. O objetivo era estabelecer um regime constitucional, com parlamento eleito democraticamente e um governo competente para modernizar o país. Senti que o espírito daquela revolução esquecida estava mais próximo dos valores incorporados por Khayyam. Por isso, o romance foi construído em duas partes, separadas por oito séculos e unidas pela voz do narrador. Quanto ao Titanic, ele tem uma conexão com Khayyam: uma cópia muito preciosa do Rubaiyat estava a bordo, transportada por um colecionador de arte, e foi perdida quando o navio afundou. Samarcanda foi um de seus primeiros romances, publicado logo depois de o senhor ter deixado a carreira de jornalista para ser escritor. Qual a importância do livro em sua trajetória? De fato, Samarcanda foi o primeiro livro que escrevi depois que decidi dedicar meu tempo inteiro à literatura. Não foi fácil deixar o trabalho no jornal, as reuniões, os colegas, que muitas vezes eram os meus melhores amigos. Ao mesmo tempo, foi um alívio passar meus dias em bibliotecas e viajar para lugares sobre os quais pretendia escrever. Fui para Samarcanda, que era, naquela época, na URSS, com minha esposa e amigos. Um momento de grande alegria e crucial para o romance. É emocionalmente muito importante para um escritor visitar o lugar em que os personagens viveram, ver a paisagem que viram, andar nas mesmas ruas de terra. É importante, quando se escreve um romance, relacionar-se com o lugar. Dá uma sensação de confiança e de pertencimento.
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Maalouf é membro da Academia Francesa desde 2011 Claude Truong Ngoc
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O senhor é tido como um escritor que constrói pontes entre o Ocidente e o Oriente. Também gosta de se atribuir esse papel? Um dos problemas do mundo é nossa incapacidade de conviver em harmonia. Essa é a fonte de numerosas crises, guerras, massacres, e a razão pela qual não somos mais capazes de enfrentar as ameaças ao planeta. Teríamos sido mais capazes de lidar com as ameaças se as relações entre nações e comunidades fossem mais serenas e menos marcadas pela hostilidade e desconfiança. Sim, precisamos construir pontes, superar os preconceitos em relação aos que são diferentes de nós pela cor, pela língua ou pelo credo. Precisamos aprender como viver juntos, como transformar nossa diversidade em um ativo, ao invés de um passivo. Uma compreensão profunda de outras culturas é o melhor caminho para esse objetivo. Não consigo ver um papel melhor para a literatura do que construir pontes. Sempre vou acreditar na humanidade... e na literatura. O senhor tem demonstrado preocupação com um "mundo em desordem política e desintegração". Por que diz que o mundo está sem uma "bússola moral"? Vivemos tempos muito estranhos. Por um lado, um avanço científico e tecnológico sem precedentes, que considero um privilégio. Não estou inclinado a dizer que "as coisas eram melhores nos velhos tempos". No entanto, esse progresso não foi acompanhado por progresso semelhante nas mentalidades. Na medida em que nos tornamos incapazes de administrar com serenidade as relações entre nações e entre comunidades, incapazes de lidar adequadamente com os efeitos secundários de nosso progresso tecnológico, incapazes de ter um senso de prioridade que pudesse ao menos assegurar a sobrevivência do ser humano. Precisamos construir um futuro diferente daquele que está à nossa frente.
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O livro dentro do livro BRUNA MENEGUETTI*
A história de Samarcanda é, desde o início, a história de um livro, de como e em quais circunstâncias essa obra teria sido escrita e de como fora perdida e reencontrada
Q
Jornalista, escritora e dramaturga. Autora do livro O último tiro da Guanabara, vencedor do prêmio Bunkyo de Literatura de 2021.
uando pensamos no Titanic, é difícil não nos lembrarmos do filme homônimo de 1997, dos seus personagens e do icônico colar de diamante azul que é perdido para sempre no mar. Samarcanda, de Amin Maalouf, traz ao nosso imaginário um novo objeto que teria sido engolido pelo oceano no naufrágio: um livro. Assim, a obra de Maalouf lança o leitor para dentro do seu romance histórico, um gênero literário em que muitas vezes o que parece ficção é verdade, e o que parece verdade é ficção. É verdade que um exemplar do Rubaiyat, de Omar Khayyam, estava em um cofre do Titanic em 1912, porém não é verdade que esse exemplar era o manuscrito original. Mesmo assim, o livro que afundou com o Titanic era importante. Ele havia sido encomendado pela livraria Henry Sotheran’s, de Londres, e imitava os manuscritos persas antigos, sendo composto de “mais de mil pedras preciosas e semipreciosas”, como rubis, turquesas e esmeraldas. Porém, quando Maalouf inicia sua obra, na verdade ele está interessado em contar o quanto a riqueza dos poemas de Khayyam e de sua vida não pode ser mensurada em joias. A história de Samarcanda é, desde o início, a história de um livro, de como e em quais circunstâncias essa obra teria sido escrita e de como fora perdida e reencontrada inúmeras vezes. Entrecortado a isso, percorremos a história do Oriente Médio, de Omar Khayyam e do próprio narrador Benjamin O. Lesage — personagem inspirado no americano que comprou o exemplar da Henry Sotheran's em um leilão em Londres, apenas
"[...] quando tratamos de séculos distantes, os relatos históricos são em essência impregnados de ficção."
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para perdê-lo em seguida ao tentar levá-lo para a América. Assim, há em Samarcanda um livro dentro de um livro e também um romance histórico dentro de outro, visto que Lesage é também quem escreve em 1918 a ficção histórica sobre Khayyam, numa narrativa que se passa entre 1072 e 1131 e representa a primeira metade de Samarcanda. Há simetrias entre as duas partes da narrativa. Khayyam se assemelha muito a Djamaluddin, figura mais recente, por serem ambos intelectuais, filósofos e interessados na modernização do Oriente. Por outro lado, a poeta Djahane, inventada por Maalouf como o grande amor de Khayyam, pode ser comparada à também imaginada princesa Chirine — neta do xá e paixão de Lesage. Ambas possuem grande determinação e comprometimento com o local em que vivem. Djahane é uma mulher que não abandona a vida que tem nem mesmo a pedido de seu amor — inclusive, não deseja ter filhos. Por sua independência e opiniões, é uma figura que desponta aos olhos do leitor como extremamente moderna. Portanto, apesar da narrativa se passar em ambientes totalmente dominados por homens, as personagens femininas de Samarcanda não são passivas ou submissas — como o Ocidente é muitas vezes levado a pensar acerca do mundo islâmico. O maior exemplo talvez seja Terken Khatun, personagem real que foi esposa do sultão Malikchah. Atualmente, ela é “considerada por muitas associações feministas como um modelo da emancipação feminina da mesma forma que Joana d'Arc ou Marie Curie”. Mas os paralelos do mundo antigo com o mundo recente não terminam aí. O livro narra, por exemplo, a perseguição à ciência, em que os homens que buscam conhecimentos são desacreditados, e a compreensão das coisas tem como único objetivo a busca de “fins materiais”. Também vemos reflexos dos pensamentos dos seguidores de Hassan Sabbah em grupos extremistas atuais. No meio de tantas narrativas no livro de Maalouf, muitas vezes é difícil distinguir o que é lenda e o que é história. No entanto, quando tratamos de séculos distantes, os relatos históricos são em essência
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impregnados de ficção. Sem dúvidas, esse é um ponto que Maalouf sabe aproveitar bem. O livro caminha quase o tempo inteiro nos bastidores do poder, seja com Khayyam vendo as mentiras contadas na corte e as crises de sucessão, seja com Lesage narrando tentativas de se fazer uma Constituição no Irã. Mesmo querendo estar distantes, os personagens são afetados pela política. A narrativa, desse modo, vai preenchendo lacunas da história ao contar fatos que apenas os personagens fictícios poderiam ter escutado e visto. No entanto, há uma única grande lacuna: o que teria acontecido com o Oriente entre a saída de alguém de Alamut com o manuscrito, em 1257, e o momento em que Lesage embarca para Teerã, em 1895? Da mesma forma, Lesage pergunta o que teria acontecido com o manuscrito nesse meio tempo. Quando o leitor reencontra o Oriente na segunda parte do livro, o local é outro, quase como se a ideia da perda do livro e, portanto, o que os pensamentos de Omar Khayyam representavam, tivesse uma ligação com o sufocamento do Oriente pelo Ocidente. E quando, no final, Lesage pergunta se Chirine teria existido ou se seria fruto de suas “obsessões orientais”, entendemos que esse é um livro que duvida de si e da própria história que contou. Nesse sentido, a perda do manuscrito no fundo do oceano talvez simbolize a perda de um conhecimento histórico e de um tempo que se esvaiu para sempre.
Ilustração de Edmund Dulac (1909) inspirada no Rubaiyat. Peter Harrington Gallery
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março
vem aí
Indicado por Amara Moira, autora e professora travesti e feminista, o livro do mês recebeu importantes prêmios de literatura em língua espanhola. De origem argentina, a obra retrata a iniciação de sua autora na comunidade travesti de Córdoba, unindo autobiografia e ficção, além de doses de realismo mágico. Para quem gosta de: relatos pessoais, fantasia, histórias LGBTQIA+
abril
Estamos entusiasmados, e não é pouco... Uma das principais autoras da atualidade, a canadense Margaret Atwood será nossa curadora. Ela indica um livro de um autor de origem ameríndia que mostra a viagem de um casal por Praga, capital da República Tcheca. No percurso, surgem questões relacionadas à discriminação racial, à crise dos refugiados na Europa e também à saúde mental de um dos personagens. Para quem gosta de: diálogos envolventes, tramas sobre viagens, reflexões raciais
“A beleza e o mistério deste mundo se revelam no afeto, na atenção, no interesse e na compaixão. Se você deseja viver no paraíso onde vivem éguas e garanhões felizes, saiba abrir bem seus olhos e observar o mundo prestando a maior atenção às cores e aos detalhes, inclusive os mais curiosos.” – MEU NOME É VERMELHO, ORHAN PAMUK