"Pesado" - TAG Curadoria Jan/2022

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PESADO

JAN 2022



Olá, tagger É

com enorme satisfação que abrimos o ano com a curadoria de Alice Walker, uma das principais autoras da atualidade. Seu livro A terceira vida de Grange Copeland, enviado em 2020, está entre os mais amados do clube. Agora, temos a chance de desbravar uma obra admirada pela própria autora. Nascido, assim como ela, no Sul dos Estados Unidos, Kiese Laymon, autor de Pesado, faz um retrato nu e cru do que é vivenciar o racismo no país. Por enxergar virtude na imperfeição, Walker celebra a sinceridade desse romance autoficcional em que acompanhamos toda a vulnerabilidade de um rapaz americano negro e gordo. Em texto publicado a seguir, Luiz Maurício Azevedo bem ressalta que Laymon “explora seus fantasmas edipianos e suas limitações afetivas”. Na sequência, Ariel Freitas traça um panorama do Mississippi — pano de fundo da trama —, e Alice Walker concede entrevista exclusiva à TAG. Na segunda parte desta edição, você encontrará uma conversa com Kiese Laymon conduzida por Pâmela Maidana, um artigo de André Cáceres sobre autoficção e uma crítica de Pesado por Iarema Soares. Além dos conteúdos, esperamos que você aproveite o novo formato de nossa revista. Em sentido único de leitura e mais integrada com cada kit, ela conta agora com seções inéditas — na Experiência do mês, sugerimos um guia para que sua jornada de leitura seja ainda mais proveitosa; na Por que ler o livro, destacamos a recepção crítica e outras qualidades da obra. Boa jornada!


JAN 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

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QUEM FAZ

RAFAELA PECHANSKY

JÚLIA CORRÊA

Publisher

Editora

LIZIANE KUGLAND

ANTÔNIO AUGUSTO

PAULA HENTGES

LAÍS FONSECA

Revisora

Revisor

Designer

Designer

PÂMELA MAIDANA

LUANA PILLMANN

GABRIELA BASSO

Estagiária de Editorial

Estagiária de Design

Estagiária de Design

Impressão Gráfica Ipsis

Capa Leandro Assis


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Experiência do mês

Por que ler o livro O livro indicado Contexto histórico Entrevista Alice Walker

posfácio

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guia de conteúdos

prefácio

Para ir além

Entrevista Kiese Laymon

Crítica

Próximo mês


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EXPERIÊNCIA DO MÊS

vamos ler OUVIR PLAYLIST

PESADO? C

riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify.

Marque a cada parte concluída

O primeiro passo você já deu, agora é só terminar de ler o Prefácio da revista. Vamos lá? Inicie o livro e leia até a página 64 Após esses primeiros capítulos, já entendemos a relação de Kie com a mãe. Que tal comentar no aplicativo suas impressões sobre os personagens? Não esqueça de marcar a página em que você está.

Leia até a página 183 Os últimos capítulos foram difíceis, mas também trouxeram um crescimento para o personagem. O que acham? Não esqueçam de comentar no aplicativo!

Leia até a página 275 Nós sabemos, essa obra também nos comoveu. Estamos chegando ao final da história de Kie, e gostaríamos de saber de vocês: é fácil abandonar hábitos nocivos e se tornar uma pessoa melhor? Comente no aplicativo e não esqueça de avaliar o livro! Leia o Posfácio da revista.

Pesado pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.


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EXPERIÊNCIA DO MÊS

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projeto gráfico O designer Leandro Assis (@lebassis) é quem assina o projeto gráfico de janeiro. A ideia do artista foi representar o universo de lembranças revisitadas pelo autor. A linguagem visual reflete o caos e a violência vividos por Kie. Os rabiscos e texturas, aliados a uma caligrafia bruta, fazem referência ao processo de autoconhecimento através da escrita.

mimo Ideal para organizar as tarefas do ano que começa, o mimo de janeiro é um planner, item sempre pedido pelos associados e que, nesta edição, celebra a diversidade. Intitulado Vozes plurais, inclui espaços para o planejamento pessoal e conteúdos sobre expressões literárias as mais variadas, com referências que vão da produção indígena à LGBTQIA+. As ilustrações são de Sophia Andreazza (@sophiandreazza).


ESAD

"Meu deu s! Pesado é surpreend ente. Difíc il. Intenso. C heio de ca madas. Uau. Apen as uau."

Roxane Ga y, autobiografi autora de Fome: Um a a do (meu ) corpo

"Laymon e screve com uma intimidade destemida e abraçando a honestid Cady Lang ade." , TIME

"Com seu novo livro de memór Pesado, o ias, escritor su lista crava seu lugar no cânone da literatu norte-ame ra ricana."

Bim Adew

unmi, BuzzF eed

POR QUE LER O LIVRO Esse é um livro de memórias que não tem medo de ser intenso. Sua força narrativa, centrada em um rapaz gordo e negro do Mississippi, já lhe rendeu distinções como a Carnegie Medal e o LA Times Isherwood Prize na categoria Prosa Autobiográfica. O autor, Kiese Laymon, nos mostra a relação conturbada com a mãe, com o próprio corpo e com um sistema que deseja vê-lo fracassar. Não por acaso, foi indicado para a TAG por uma das principais escritoras da atualidade, Alice Walker, que vê pontos de contato com a sua própria produção.



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Um corpo vazio para o próximo verão LUIZ MAURÍCIO AZEVEDO*

Em sua exploração intelectual sobre a sociedade americana, o autor encara seus fantasmas edipianos e suas limitações afetivas

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Crítico literário e pesquisador pós-doc na FFLCH/USP, autor de Wolfsegg, Rio Grande do Sul (Editora Figura de Linguagem).

memória humana é um reservatório de valores afetivos. Lembrar é guardar. O acesso a esse cofre simbólico, porém, se dá através de um território cujo domínio não possui filiação emocional. Há uma política da memória. E controlá-la é a chave para o exercício da liberdade. Esse tema tem sido muito caro à literatura universal. De Santo Agostinho a Carolina Maria de Jesus, passando por Philip Roth, Ta-Nehisi Coates, Paul Auster, Jonathan Franzen, Marcel Proust, Joan Didion, Annie Ernaux, Priscila Pasko, Jean-Jacques Rousseau, Teresa Cárdenas e Raduan Nassar — poderíamos ficar aqui o dia inteiro enfileirando bons nomes, mas, diferente de mim, você precisa viver, nossa capacidade de reelaborar o passado, transformando o ontem em força motora do hoje, é algo central na composição da vida literária. É precisamente isso o que ocorre em Pesado, de Kiese Laymon. Publicado com grande barulho em 2018, a obra arrancou elogios do Times, da NPR, do Washington Post e se tornou a sensação das rodas literárias em Williamsburg. Trata-se de uma bem-sucedida mistura de diário, ensaio, tratado e romance de autoficção. Pesado toma contornos de manifesto antigordofobia ao atacar a dimensão sádica dos controles do corpo negro da infância à fase adulta. O autor coloca em perspectiva a posição do indivíduo obeso no país que vende o excesso como luxo, mas que sugere ser a presença abundante de um corpo um testemunho dos abusos de uma alma. Com uma prosa limpa, porém agressiva, Laymon compele quem o lê a assistir seu embate com a dolorosa evidência da discrepância entre o mundo para o qual foi preparado e o mundo objetivo que


O LIVRO INDICADO

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se vê obrigado a enfrentar. Somos apresentados a um mundo no qual a violência das tentativas de conserto daquilo que está estragado é, por vezes, mais destrutiva do que a ação que causou o dano original. Laymon é um indivíduo gordo e negro que precisa lutar contra as autorizações que seu peso e sua cor parecem sugerir aos outros. Com fortes tons autobiográficos, que emulam uma carta endereçada à própria mãe, o narrador devora suas agonias em uma língua que somente a memória parece capaz de compreender. Em sua exploração intelectual sobre a sociedade americana — e sobre as bases nas quais ela, por vontade ou pressão, ergueu suas estruturas —, o autor encara seus fantasmas edipianos e suas limitações afetivas. A mãe, na ânsia em preparar o filho para um mundo terrível, antecipa a chegada desse reino de horror a ele já na infância. Não há diferença entre um procedimento protetor e um mutilador quando ambos saem da mesma fonte do descontrole, do desmando e do desespero. A linguagem da violência — já tão bem explorada pela tradição literária afro-americana — é revisitada aqui em palavras de beleza e acidez. Na obra, há uma teoria racial bastante simples de se compreender: racismo não é a desaprovação de um indivíduo por outro, mas um sistema de negações de um grupo em relação a outra coletividade. Não há, portanto, racismo individual. Todo racismo é social, político e coletivo, porque destrói a possibilidade de reconhecimento da dimensão individual do outro. A desaprovação do protagonista em relação aos brancos não passava de antipatia, enquanto a desaprovação branca em relação a ele se estendia à interdição de relacionamentos, dos afetos, do cerceamento da mobilidade social, até chegar à ameaça renitente do homicídio por motivações raciais. A objetificação do corpo masculino negro, tratado como inimigo, como testemunho de uma animalidade que deve ser destruída, é um dos epicentros dessa obra cujo alvo parece ser o mito da liberdade nos Estados Unidos. É possível perceber a intenção de Laymon em acompanhar o caminho que liga as raízes da herança escravocrata estadunidense ao sistema de controle de indivíduos que, no presente, embora emancipados, não podem usufruir de suas


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autonomias. A memória dessa certeza condiciona os pares de Laymon a desejar a extinção — pela fome ou pelo bisturi — de uma constituição física que ostenta toda a densidade psíquica que a história nos delegou. Dentre os múltiplos efeitos nocivos do patriarcado, está também o esmagamento da presunção de vida subjetiva dos homens, em especial daqueles que fenotipicamente não podem responder ao padrão desejável pelos sistemas de controle. A força, a agilidade, o relevo dos músculos, a espessura do quadril, o formato do maxilar são tipos de grades que repousam sobre a pele dos homens e, nesse sentido, o corpo negro se torna alvo de um conjunto de expectativas irreais, construídas no útero do imaginário racialista. Não me lembro quando comecei a ser gordo. As fotos de infância — há uma na banheira azul-celeste, em que se pode contar dezesseis dobras no


O LIVRO INDICADO

pequeno corpo negro de três meses de idade — comprovam que era provável que o adulto obeso estivesse dentro de mim como Capitu estava dentro da casca da obliquidade. Desde cedo, aprendi a desculpar-me pelo corpo que me levava para lá e para cá, como se não fosse justamente o corpo a fonte de todas as delícias, inclusive esta de dizer para vocês agora estas coisas, fruto das minhas sinapses de gordo, transmitidas para as falanges de meus dedos de gordo, enquanto repouso o laptop em minhas coxas de gordo. Tudo isto aqui é meu domínio. A literatura garante conquistas que, uma vez alcançadas, não podem ser suspensas. E, através dela, descobri que alguém que pede para que você reduza seus domínios é alguém que quer dominá-lo. E quem quer dominá-lo é seu inimigo. Há fortes pressões para que esvaziemos nosso corpo, para que o tornemos desidratado, fino e oco, como um espelho onde todos possam se ver em nós. É disso que fala Laymon, da necessidade de resistir às tentativas de colonização da nossa vontade. Essa é uma obra que defende o único tipo de propriedade privada que vale a pena: a do domínio de nossa pele, a indicar os limites de nosso corpo sempre lindo.

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14 CONTEXTO HISTÓRICO

Desigualdade e segregacionismo ARIEL FREITAS*

No Mississippi, região onde se passa a história narrada por Kiese Laymon, reflexos da discriminação racial são visíveis até hoje

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Jornalista no Jornal Voz das Comunidades. Com experiência em pautas humanitárias e raciais, atua no campo comunitário há três anos. É também escritor e rapper e colabora periodicamente para o Alma Preta Jornalismo.

e certa forma, a presença de conflitos raciais nas relações e estruturas sociais em qualquer país do mundo é consequência de uma política desumana herdada do período de escravização da população afrodescendente. Até pouco tempo atrás, a linha de raciocínio racista era uma presença certa no planejamento institucional de uma nação, com pessoas negras convivendo à margem da sociedade e dos indicadores de bem-estar e vida digna. No Mississippi, na região Sudeste dos Estados Unidos, os reflexos dessa gestão discriminatória são visíveis até hoje. Com cerca de 37% de afro-americanos, o estado convive com a maior condição de desigualdade no país. De acordo com as estatísticas disponíveis no Departamento do Censo dos Estados Unidos (DCEU), a taxa de pobreza por família é cerca de 21,9%, tornando o Mississippi a região estadunidense mais pobre. Na mesma pesquisa, o recorte racial aponta que essa realidade financeira alcança mais pessoas pretas do que brancas. Dentre as possíveis raízes desse cenário, está a política econômica adotada no passado. Quando o assunto é a população negra, o passado e o presente do Mississippi — conhecido como "estado da hospitalidade — vão na contramão do significado de gentileza. Antes da abolição da escravatura, os latifundiários exploravam as condições insalubres do trabalho escravo e prosperavam em uma das melhores economias americanas. O surgimento de movimentos contrários à escravização foi recebido por uma alta rejeição local. E, após a vitória nas eleições presidenciais de 1860 por Abraham Lincoln (um defensor do fim da escravatura),


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MISSISSIPPI

Mapa dos Estados Unidos

a gestão política do Mississippi criou, junto com mais seis estados (Carolina do Sul, Alabama, Flórida, Geórgia, Texas e Louisiana), uma ruptura com os ideais federais, originando os Estados Confederados da América, uma organização que defendia a manutenção do sistema da servidão negra, com Jefferson Davis, do Mississippi, como presidente. Essa separação da União Federativa resultou em uma Guerra Civil entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos no ano de 1861, que perdurou até metade de junho de 1865. De um lado, a defesa da abolição da escravatura. De outro, a de sua manutenção, pois, de acordo com o raciocínio racista, o sistema econômico seria tragicamente afetado. Além da morte de mais de 600 mil estadunidenses, esse período de confronto também ficou marcado pela fuga em massa das pessoas negras escravizadas para o território do Norte, pois o linchamento e a morte de afro-americanos eram crescentes na região. Arquivos da Iniciativa por uma Justiça Igualitária revelam que, entre 1877 e 1950, mais de 4,4 mil pessoas passaram por esse processo de agressão moral e física, em sua maioria negras.


16 CONTEXTO HISTÓRICO

Para a psicóloga brasileira Irimara Gomes, que hoje reside em Atlanta, na Geórgia, a ruptura com esse modelo de opressão e dominação racial desencadeou uma realidade segregacionista para as pessoas que residem nos estados sulistas nos dias atuais. Mestranda da Georgia State University, ela explica que as comunidades negras preferem o convívio e o fortalecimento do laço afro-americano. “Por ser de fora, eu enxergo a realidade de forma diferente aqui. Em razão de todo o passado segregacionista e escravagista destas regiões, é bastante comum o convívio entre iguais, independente da condição financeira. Por exemplo, um negro corta cabelo com outro negro, compra de outro negro etc.”, explica. Mesmo com o passar dos anos, a Região Sul dos Estados Unidos ainda convive com um viés mais conservador, com posições políticas próximas às religiosas. Em 2004, no Mississippi, por exemplo, 86% dos eleitores votaram contra os direitos legais para casamentos homossexuais na Constituição Estadual. Diante desse olhar preconceituoso, apenas em 2020 o símbolo da bandeira dos Estados Confederados foi alterado. Por essa perspectiva conservadora, o movimento antivacina ganha espaço nos territórios sulistas. Até outubro de 2021, apenas 45,3% da população do Mississippi havia tomado as duas doses ou a única aplicação A adesão é um agravante para os afro-americanos, pois são os que mais morrem por coronavírus no país. “O movimento antivacina tem crescido por aqui, seja na comunidade branca ou negra. Porém os afro-americanos têm receio de confiar no governo após o processo de cobaia no tratamento de sífilis e as práticas governamentais adotadas na época", comenta Gomes, referindo-se aos experimentos com centenas de homens negros realizados ilegalmente pelo Serviço Público de Saúde entre 1932 e 1972.


ENTREVISTA 17

A "PARA MIM, O Ã Ç I E F R E P ÚNICA ÇÃO" I E F R E P M I ÉA Alice Walker fala de sua identificação com a obra de Kiese Laymon e de sua relação com o público brasileiro

A

clamada por livros como A cor púrpura e A terceira vida de Grange Copeland, Alice Walker é conhecida ainda por seu ativismo pelos direitos civis. Nascida na Geórgia em 1944, a escritora viveu, já adulta, em outro estado também marcado pelo segregacionismo — o Mississippi, onde se passa a trama de Pesado, obra que indicou para o nosso clube. Lá, ela trabalhou como professora de literatura e casou-se com Melvyn Leventhal, advogado judeu com quem formou o primeiro casal interracial da região. Tal como Kiese Laymon, Walker recebeu, na infância, o incentivo da mãe para escrever. Por esses e outros aspectos, sua identificação com o autor é notória: “Tanto Laymon como eu buscamos ferramentas que nos permitam explorar terrenos perigosos em termos políticos e sexuais”, avalia ela na entrevista a seguir. Confira a conversa completa e veja ainda as obras em destaque na sua estante.


18 ENTREVISTA

Por que você gostou tanto de Pesado? Considerando que o autor criou personagens tão falíveis e vulneráveis, o que você sentiu durante a leitura? Personagens com defeitos em um romance, assim como pessoas com defeitos na vida real, são mais interessantes do que personagens ou pessoas que fingem perfeição. Para mim, a única perfeição é a imperfeição. Deveríamos celebrar isso uns nos outros, pois nos torna tanto mais vulneráveis quanto mais corajosos.

Tradução ANA BEATRIZ FIORI

O subtítulo do livro em inglês, An American memoir ("Um relato americano", em tradução livre), revela a conexão entre a história privada de Kie e a história dos Estados Unidos, numa dimensão mais ampla. Como você avalia essa inter-relação no livro? A maioria das crianças tem dificuldade de entender claramente seus pais, o que costuma acontecer quando chegam à meia-idade. O autor de Pesado tenta entender o comportamento incompreensível de sua mãe em um cenário americano de crueldade e indiferença à situação de uma mãe negra que luta para criar um mundo habitável para si e para seu filho. Ainda que de modo tortuoso, Kie é encorajado a começar a escrever. Sua mãe a incentivou a ser escritora quando você era apenas uma garota. Em sua visão, a literatura pode ajudar as pessoas a lidar com os seus próprios traumas? Como você enxerga esse processo em sua própria produção e no livro de Kiese Laymon? É claro que reconheço algumas das minhas próprias dificuldades para ser escritora nesse livro. Tanto Laymon como eu buscamos ferramentas que nos permitam explorar terrenos perigosos em termos políticos e sexuais. Nossas mães nos conhecem muito melhor do que nós mesmos, antes de desenvolvermos nossa consciência interior. É por isso que sabem naturalmente nos direcionar para as ferramentas que podem levar à nossa sobrevivência.


ENTREVISTA

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A terceira vida de Grange Copeland é um dos títulos mais amados pelo nosso clube. O que a inspirou a escrever esse livro? Acredita que há uma razão especial para essa obra fazer sucesso entre o público brasileiro? Primeiramente, fico muito feliz em saber que os leitores brasileiros se identificam com esse livro. Isso me faz querer abraçar todos vocês. O livro mostra como a opressão brutal destrói os sentimentos de amor e compaixão tanto dentro das famílias quanto nas comunidades em geral. Mas ele também demonstra que nossa principal obrigação com quem está sob nossos cuidados — nossos filhos, por exemplo — é amá-los apesar do nosso próprio embrutecimento. É isso que o velho avô demonstra no final, quando se deixa ser assassinado para proteger a neta.

A curadora do mês, Alice Walker

Aliás, você poderia deixar um recado para os seus leitores do Brasil? Eu me apaixonei completamente pelo Brasil e pelos brasileiros em uma breve visita. Fui a Brasília, que me disseram nem ser o verdadeiro Brasil, e isso me convenceu de que os habitantes do Brasil preservaram, de seus vários países de origem, a capacidade de ver uns aos outros de uma forma muito humana. Ninguém parecia ter desconfortos raciais, como frequentemente acontece nos Estados Unidos. Além disso, suas cores de diversos tons são uma celebração deslumbrante da natureza deixada a suas próprias preferências. Que eu, como escritora, e vocês, como povo brasileiro, estejamos conectados através dos meus romances é uma grande alegria para mim.


20 ENTREVISTA

E STANT

E MINHA

O primeiro livro que você leu: Talvez tenha sido uma página do catálogo de onde meus pais encomendavam nossas roupas de inverno. Depois, As viagens de Gulliver e poemas de Rudyard Kipling. Jane Eyre, O morro dos ventos uivantes, Jude, o obscuro, etc. O livro que você está lendo: The Love Songs of W.E.B. Du Bois, de Honorée Fanonne Jeffers (longo e incrível!). O livro que mudou a sua vida: São tantos! Mas Um teto todo seu, de Virginia Woolf, foi uma grande influência no final dos meus trinta anos. O livro que você gostaria de ter escrito: O I Ching! Ele é tão útil para entender a natureza humana e é tão antigo. É claro que, se eu o escrevesse hoje, seria muito mais compreensível. O último livro que a fez chorar: Todo livro bom tem um momento que nos faz chorar. Às vezes, são lágrimas de alegria. O último livro que a fez rir: Todo livro bom deveria ter um momento que nos faz rir. Mas, como sabemos, alguns livros não foram escritos para nos fazer rir. O livro que você dá de presente: Qualquer livro pelo qual eu estiver apaixonada. Geralmente é algo sobre budismo ou taoismo. Ou poesia. Os poemas budistas e taoistas têm alimentado meu amor pela natureza desde que os descobri na faculdade. Bashō, Issa, e o resto. O livro que você não conseguiu terminar: São muitos para listar! Percebo que frequentemente a culpa é do meu próprio desinteresse ou limitação. Estou prestes a começar The Three Mothers, de Anna Malaika Tubbs. Não aguentei ficar escutando (em áudio) porque a voz da narradora é muito aguda. Espero ter mais sucesso na leitura!



Ilustração do mês Cássia Roriz é artista gráfica goiana. Apaixonada pela cultura e a arte popular brasileira, mistura técnicas digitais e analógicas, criando narrativas expressivas e autênticas. Enxerga em cada projeto uma oportunidade de experimentar e explorar diferentes técnicas e materiais. @cassiaroriz. A pedido da TAG, a artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Naquela noite, eu me alonguei na nossa calçada e observei as estrelas. Pela primeira vez em anos, pensei sobre o quanto esperei por você naquele dia em que fugi da casa de Beulah Beauford. Antes, eu sonhava que todos os meus anos se passariam no Mississippi, independente de quão estranhos, quentes ou aterrorizantes eles pudessem ser. Mas agora eu sentia um sentimento diferente. Eu não queria flutuar por dentro, por baixo ou por cima de todas as estrelas laranja-avermelhadas da nossa galáxia, se a nossa galáxia fosse somente o Mississippi. Eu queria poder olhar o Mississippi a partir de outras estrelas e eu queria nunca mais voltar para casa.”


TENÇÃ

!

Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.

A seguir, você confere o posfácio — conteúdos com spoilers, indicados para depois da leitura da obra.


24 PARA IR ALÉM

O peso da vivência ANDRÉ CÁCERES*

Com Pesado, Kiese Laymon se insere na tradição do que se convencionou chamar de autoficção

O

É autor de Nebulosa e coautor de Corações de asfalto, tem contos em antologias e publicações literárias, como Gueto, Capitolina, Cândido, RelevO e Qorpus, foi finalista do V Prêmio Internacional de Teatro Jovem, escreve sobre literatura para o Estadão e ministra oficinas de crítica literária.

escritor argentino Jorge Luis Borges enxergava a memória como atributo quintessencial da identidade. Em seu derradeiro conto, um escritor solitário recebe as recordações pessoais de Shakespeare e sua individualidade vai sendo minada: “Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase submergiu, meu modesto caudal”. O leitor de Pesado, magistral relato da infância de Kiese Laymon como um jovem negro e obeso no Mississippi, tem acesso, como a personagem borgiana, às reminiscências de outra pessoa, mas o caudaloso livro enriquece em vez de minguar a experiência de quem o lê, oferecendo novas perspectivas a questões de relevo social, cultural, psicológico e econômico. Estudar as mazelas da desigualdade nos Estados Unidos, as consequências da escravidão para os afrodescendentes, a humilhação de quem foge ao padrão estético e os efeitos da educação demasiadamente rígida ou do abuso sexual na psique juvenil é fundamentalmente diferente de ter acesso ao depoimento cru de quem sofreu essas mazelas. É o abismo entre teoria e vivência que a obra de Laymon permite ao leitor atravessar a cada vez que sua mãe austera corrige erros gramaticais ou seu corpo é objeto de constrangimento, ou ele percebe não gozar na prática dos mesmos direitos dos brancos, ou um de seus amigos é abusado. Laymon se insere na tradição do que se convencionou chamar de autoficção, termo cunhado pelo francês Serge Doubrovsky em 1977, embora o estilo remonte à antiguidade, dos diálogos de Platão e Luciano de Samósata ao roman à clef, passando por narrativas de viagem, confessionais e memorialísticas. Desde as passagens autobiográficas de Em busca do


"Fato e ficção são rios cujas águas se misturam de modo quase indistinguível."

PARA IR ALÉM

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tempo perdido, de Marcel Proust, à obra-prima de Gustave Flaubert (“Madame Bovary c’est moi”), ou os textos híbridos de W.G. Sebald e o New Journalism de Truman Capote e Gay Talese, fato e ficção são rios cujas águas se misturam de modo quase indistinguível. Quando Theodor Adorno indaga se será possível escrever poesia depois de Auschwitz, ele pressente a incapacidade da literatura de dar conta da barbárie do século XX por meio da invenção. É o que defende Julián Fuks, ele próprio expoente da autoficção no Brasil, em Romance: História de uma ideia: “Diante da insuficiência que se verifica na ficção nesse novo contexto, o real acode para devolver ao romance sua relevância. Um real transformado, porém: não a velha tentativa de emular o mundo numa ficção convincente, ou de aprimorá-lo em sua reinvenção fantasiosa, mas um real acessado de maneira direta”. Para além de Pesado, essa fusão de ficção e testemunho deu origem a obras como a aclamada e brutalmente honesta série autobiográfica Minha luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, ou os clássicos contemporâneos O lugar e Os anos, da francesa Annie Ernaux, que une suas reminiscências particulares à história de seu país. Um dispositivo comum na autoficção é a criação de um alter ego. Philip Roth narrou nove romances pela perspectiva do escritor Nathan Zuckerman; boa parte dos contos de Oswaldo de Camargo no recém-reeditado O carro do êxito, de 1972, é protagonizada pelo ativista da imprensa negra paulistana Lírio da Conceição; Sylvia Plath canalizou suas angústias na personagem Esther Greenwood, de A redoma de vidro; e seria difícil imaginar a obra de Charles Bukowski sem o bêbado misantropo Henry Chinaski. O gênero já foi usado por pais para elaborar o luto pela perda de um filho (O pai da menina morta, de Tiago Ferro; Fora do tempo, de David Grossman), falar de crianças com condições especiais (O filho eterno, de Cristóvão Tezza; Uma questão pessoal, de Kenzaburo Oe) ou para debater a decisão de gerar ou não um filho (Maternidade, de Sheila Heti). Esse jogo sutil entre fato e ficção é particularmente útil para investigar os temas que Laymon aborda. Como ele, a moçambicana Isabela Figueiredo tratou da


26 PARA IR ALÉM

gordofobia em A gorda, e a norte-americana Maya Angelou testemunhou a opressão da população negra. O termo autoficção ainda é cercado de debate e desconfiança, mas esse terreno pantanoso pode abrigar uma instigante descoberta literária. A admissão da porosidade das lembranças pela ficcionalização talvez faça o relato íntimo ser mais honesto que a biografia e o jornalismo. Ao menos de acordo com neurocientistas como Oliver Sacks e Rosalind Cartwright, para quem a memória “nunca é uma cópia precisa do original, mas um ato recorrente de criação”. Se a memória é, em Borges, metáfora da herança cultural, a leitura é a construção de um arcabouço pessoal com recordações alheias.

O AS MARCADAS PELA AUTOFICÇÃ

CONFIRA UMA SELEÇÃO DE OBR

O carro do êxito, de Oswaldo de Camargo Um dos editores dos Cadernos Negros, ativista de longa data e grande poeta, Oswaldo de Camargo fez autoficção antes de essa modalidade literária ter um nome. Em 1972, seu único livro de contos, O carro do êxito, fazia um contraponto ao poema "O carro da miséria", de Mário de Andrade, ao traçar os percursos que levam os negros à emancipação. Muitos dos protagonistas de suas narrativas compartilham trajetórias semelhantes à dele, tendo se interessado por música na infância e atuado na chamada imprensa negra paulistana.


PARA IR ALÉM

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Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida A escritora angolana radicada em Portugal Djaimilia Pereira de Almeida fundiu autoficção, prosa poética e romance de formação em seu livro de estreia, Esse cabelo. Na obra, ela retrata passagens de sua infância e juventude, mostrando como precisou aprender o que é ser negra e se autoafirmar como tal a partir das circunstâncias ao redor. O fio condutor dessa jornada de descoberta do eu é, curiosamente, seu próprio cabelo, algo que pode parecer fútil à primeira vista, mas que a define sob os olhares alheios.

A resistência, de Julián Fuks Um irmão adotado. Pais psicanalistas. Uma experiência reveladora na Argentina. Cicatrizes deixadas pelos regimes ditatoriais latino-americanos. Esses elementos poderiam constituir — e constituem — a vida de Julián Fuks, mas são os blocos com os quais o escritor e crítico monta o mosaico panorâmico de seu alter ego Sebastián, personagem quase autoconsciente de seu papel veicular como vetor principal da literatura de seu autor, tanto que retorna no romance seguinte de Fuks, A ocupação.

Meu pequeno país, de Gaël Faye O rapper e escritor Gaël Faye incorpora um dos mais sangrentos conflitos do século XX: filho de pai francês e mãe ruandesa tútsi, viu a etnia materna ser vítima de um genocídio durante o Massacre de Ruanda, em 1994. Nascido no Burundi, ele mora na França e se sente um apátrida, como deixa claro no início de Meu pequeno país: “Não moro mais em lugar algum. Morar significa fundir-se carnalmente à topografia de um lugar, aos meandros desiguais de um ambiente. Aqui, não sinto nada disso. Apenas transito. Alojo-me. Hospedo-me. Albergo-me”.


28 ENTREVISTA

"NÃO O T I D E R AC S I A N I F EM " S E Z I L FE PÂMELA MAIDANA*

Honrado com a indicação de Alice Walker, Kiese Laymon fala do processo de escrita de Pesado e de como foi crescer em um Mississippi marcado pelo racismo

C É estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária de Editorial na TAG.

om uma prosa fluida e visceral, Kiese Laymon, nascido em 1974 no Mississippi, apresenta um livro de memórias que deveria ser referência para quem quer escrever autoficção. Em Pesado, conhecemos a infância, a adolescência e a vida adulta de um homem negro e gordo, e a sua relação muitas vezes conflituosa com a mãe e seu próprio corpo. É sobre esses temas que o autor conversou com a TAG, em entrevista exclusiva na qual fala também sobre a sua admiração pela nossa curadora do mês.


ENTREVISTA

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Alice Walker nos recomendou Pesado e nós adoramos a indicação. Como você se sente tendo uma grande escritora te prestigiando assim? A cor púrpura é o livro mais importante da minha vida. Eu lia Alice Walker fora da escola no primeiro e no segundo graus. Ela era uma divindade para mim. Tê-la recomendando Pesado é como ser recomendado por Deus. Uma questão muito marcante do livro é a sua relação com o seu corpo e como você chegou a se machucar na tentativa de atingir um físico “perfeito”. Como foi para você escrever sobre esse tópico, expondo essa e outras vulnerabilidades? Foi realmente difícil descrever o dano que fiz com o meu corpo. Precisei desacelerar o ritmo do livro nessas partes porque eu sabia que olhar para quem eu me tornei foi o que me motivou a escrever o livro. Foi muito difícil. Enquanto lemos o livro, ficamos torcendo o tempo todo para que tudo acabe bem com Kie. Enquanto escrevia, você cogitou fazer o final “mais água com açúcar" para seu personagem, com todos os problemas sendo resolvidos? Sim, eu considerei. Acho que nós frequentemente queremos finais felizes para nos convencermos de que nós, também, um dia viveremos felizes para sempre. Eu não acredito em nenhum tipo de final, especialmente os felizes. Acredito mesmo é em um trabalho feliz. Desejo que o resto das nossas vidas seja um trabalho feliz. Em certo momento do livro, você cita o caso Rodney King, um homem negro que foi agredido por policiais brancos na época em que você ainda era um menino. Como foi para você, um homem negro, ter crescido no Mississippi tendo consciência de como o perfilamento racial funciona? Sabíamos que sempre tínhamos que esperar que a polícia visse o pior em nós, porque ela tendia a sempre ver o pior em nós. Eles tinham o poder de nos matar impunemente. É um grande poder a se manejar e resistir.


30 ENTREVISTA

MINHA ESTANTE O primeiro livro que eu li: Uma edição de poemas de Langston Hughes para jovens leitores. O livro que estou lendo: The Movement Made Us, de David J. Dennis, Jr. e David J. Dennis, Sr. O livro que mudou a minha vida: A cor púrpura, de Alice Walker. O livro que eu gostaria de ter escrito: Sing, Unburied, Sing, de Jesmyn Ward. O último livro que me fez rir: The Secret Lives of Church Ladies, de Deesha Philyaw.

Você é super ativo nas redes sociais e vive recomendando novos livros e autores. Qual a importância dessas ferramentas para o seu trabalho? Tento ampliar a comunidade e ser útil como posso. As mídias sociais me conectam aos leitores de maneiras realmente empolgantes e inovadoras. Estamos nisso para os leitores e isso me dá a chance de realmente ouvi-los. Além de escritor, você também é professor. Quais dicas básicas você daria para alguém que quer começar a escrever? Comprometa-se com um regime de revisão e leitura. Essas são as duas partes mais importantes do que fazemos. E sempre tente ser uma pessoa melhor do que você é escritor.

O último livro que me fez chorar: The Prophets, de Robert Jones, Jr. O livro que eu dou de presente: Breathe, de Imani Perry. O livro que eu não consegui terminar: Um conto de duas cidades, de Charles Dickens. O autor do mês, Kiese Laymon Larry D. Moore


CRÍTICA

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Quando existir não é algo leve IAREMA SOARES*

Kiese Laymon escreveu o que precisava ser dito para que pudesse entender o que foi feito com ele e com aqueles que vieram antes dele

O

Jornalista e especialista em Literatura Brasileira, ambas pela UFRGS. Vencedora do Prêmio Neusa Maria de Jornalismo e também do Prêmio Direitos Humanos, da OAB.

que é ser um homem negro estadunidense? Qual o peso que esse corpo carrega quando é atravessado por vivências marcadas pelo racismo, pelo abuso, pelo trauma, pela compulsão alimentar, pelas mentiras e pelo vício? Pesado (2018) é um livro de memórias de Kiese Laymon que narra desde a sua infância em Jackson, Mississippi, nos Estados Unidos, até o momento em que ele já é professor universitário na Faculdade de Vassar, em Poughkeepsie, no estado de Nova York. Porém, mais do que falar de si, esse é um livro dedicado à mãe do escritor, persona a quem ele chama de “você” ao longo das páginas. E, ao nos depararmos com o primeiro “você”, percebemos o quão grandioso é esse livro. Grandioso, porque é colocada no centro da narrativa uma mulher negra — com toda a sua fragilidade, ferocidade e humanidade — e isso é algo radical, visto que não nos é permitido esquecer, nem por um segundo, de um corpo que é cotidianamente deixado à margem. Nascido em 1974, no sul dos EUA, Kiese não teve uma vida fácil de ser digerida, e o escritor transpõe o amargor dessa vivência para as páginas de maneira visceral, verdadeira e sem nos dar tempo de recuperação entre os relatos, porque, logo na sequência, outro episódio de abuso e de complexidade das relações interpessoais se agiganta. Dirigida à mãe, a narrativa parte de um lugar de dor, mas que busca a cura para tantas feridas. A mãe de Kiese é uma mulher negra, cientista política, extremamente inteligente e que se empenha muito para obter seu


"A excelência é exigida da população negra, mas quando ela é alcançada, de nada vale, porque não significa redenção."

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doutorado. Esse é o alicerce dela. Ela entende a educação como uma ferramenta para se proteger e proteger o filho dos policiais, dos brancos e dos EUA. Desde pequeno, Kiese é pressionado a fazer o correto uso da gramática, bem como a escrever e revisar artigos demandados pela própria mãe. O objetivo era a excelência, para tentar manter o filho “a salvo" das punições e críticas de terceiros. Porém o mundo continua sendo racista e opressor mesmo que um negro seja impecável no que ele faça. A excelência é exigida da população negra, mas quando ela é alcançada, de nada vale, porque não significa redenção. A despeito dessa constatação, a cobrança pela precisão persistia e ultrapassava o verbo, chegando à carne de Kiese por meio de marcas. Em meio a essa relação sufocante com a mãe e um pai ausente, o amparo afetuoso do narrador era sua avó materna — uma senhora que inventava palavras, que lavava roupas de pessoas brancas para sobreviver e que, de maneira singela, falava ao neto os motivos pelos quais a filha tinha determinados comportamentos e como era a lógica de pensamento dos brancos. A comida é outra faceta da violência que assola Kiese. Seja na sua escassez, seja na fartura, sua relação com o alimento é o espelho do modo como ele lida com o mundo. Por expor tantas feridas, esse livro é desafiador ao leitor, porque somos colocados de frente com as pessoas que formamos — enquanto comunidade —, nos deparamos com o resultado da alquimia fracassada da sociedade na qual estamos inseridos e precisamos encarar o sobrevivente de tamanha opressão falar diretamente conosco, trazendo de arrasto todas as sequelas causadas por esses marcadores sociais. Pesado é uma obra sobre uma família negra, formada por pessoas que amam, mas que não sabem como fazê-lo, e que, há gerações, é marcada pela violência. Kiese escreveu o que precisava ser dito para que pudesse entender o que foi feito com ele e com aqueles que vieram antes dele, pois essas vivências também integram a história americana.



34 PRÓXIMO MÊS

março

fevereiro

vem aí

Um dos principais nomes da imprensa brasileira, o jornalista Guga Chacra indica uma obra cujo autor — de origem libanesa como a sua família — propõe uma incursão pelo Oriente Médio no século XI. A vida e os versos de um poeta persa daquela época inspiram a trama, que se estende à virada do século XIX para o XX, momento a partir do qual o narrador, obcecado pelos manuscritos do poeta, conta a história. Para quem gosta de: ficção histórica, cultura oriental, aventuras e reviravoltas

Indicado por Amara Moira, autora e professora trans e feminista, o livro do mês recebeu importantes prêmios de literatura em língua espanhola. De origem argentina, a obra retrata a iniciação da autora na comunidade travesti de Córdoba, unindo autobiografia e ficção, além de doses de realismo mágico. Para quem gosta de: relatos pessoais, fantasia, histórias LGBTQIA+



“Eu não sabia até então que a vida era isto — quando você acaba de dominar a geometria de um mundo, ela lhe escapa e, de repente, você é invadido de novo por formas estranhas e ângulos impossíveis.” – TA-NEHISI COATES


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