"Casas vazias" TAG Curadoria Maio/2022

Page 1

CASAS VAZIAS

MAI 2022



OLÁ, Olá, tagger TAGGER V

ocê certamente será arrebatado pelo livro deste mês. Em seu primeiro romance, Casas vazias, a escritora mexicana Brenda Navarro costura habilmente duas vozes narrativas distintas, marcadas pelo ponto de vista de duas mulheres anônimas, por seus traumas e por suas angústias. São relatos viscerais que trazem à tona o modo como cada uma delas vivencia o mesmo episódio — o desaparecimento de um menino de três anos — e que suscitam reflexões sobre estereótipos associados à maternidade. Socióloga, especialista em direitos humanos e fundadora do Enjambre Literario, projeto que busca formar uma rede de escritoras e jornalistas ibero-americanas, Navarro aborda o tema da maternidade com toda a complexidade em que está envolto, lançando um olhar afiado para problemas sociais como a desigualdade econômica, a violência contra a mulher e até mesmo o capacitismo. Nas páginas a seguir, a autora compartilha as suas reflexões em conversa com a jornalista Tatiana Cruz, que assina também o texto de apresentação do livro. Casas vazias inspira ainda outros conteúdos — nesta edição, você encontrará um panorama da literatura mexicana contemporânea, uma entrevista com o nosso curador do mês, o escritor e editor Emilio Fraia, e uma reportagem sobre a vivência de mães de crianças com autismo. Por fim, a escritora Natalia Timerman destaca uma série de obras recentes que versam sobre a perda de filhos e a culpa materna. Boa leitura!


MAIO 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200

taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com

QUEM FAZ

RAFAELA PECHANSKY

JÚLIA CORRÊA

LIZIANE KUGLAND

Publisher

Editora

Revisora

ANTÔNIO AUGUSTO

PAULA HENTGES

LUANA PILLMANN

Designer

Estagiária de Design

Revisor

Impressão Gráfica Ipsis

Capa Luisa Zardo

Preciso de ajuda, TAG! Olá, eu sou a Sofia, assistente virtual da TAG. Converse comigo pelo WhatsApp para rastrear a sua caixinha, confirmar pagamentos e muito mais! +55 (51) 99196-8623


prefácio

14 11 8 6 4

Experiência do mês

O livro indicado Saiba mais

Entrevista Emilio Fraia

posfácio

32 29 23 20

guia de conteúdos

Por que ler o livro

Reflexão

Entrevista Brenda Navarro

Para ir além

Próximo mês


4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

C

JORNADA DE LEITURA

riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de Casas vazias colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

Marque a cada parte concluída

Inicie o livro e leia até a página 35 Duas vozes narrativas, ambas de mulheres que não são nomeadas, intercalam-se no romance de Brenda Navarro. Acabamos de conhecer a primeira delas. Leia até a página 65 A perspectiva da segunda narradora pautou as últimas páginas. Já deu para notar alguns contrastes entre a vida das duas, não? Comente lá no app! Repare nas epígrafes Você deve ter visto que cada parte do livro se inicia com versos da poeta Wisława Szymborska. Caso precise, volte algumas páginas e perceba como se encaixam com as vivências das personagens. Leia até a página 153 Outros personagens ganham destaque além das narradoras. É o caso de Nagore. Ela é um elo da história com a Espanha. Perdeu sua mãe em um evento trágico e é cheia de força apesar da pouca idade. O que você achou dessa personagem? Leia até a página 181 O desfecho do conflito é realmente arrebatador. A literatura é assim mesmo: tem o poder de nos fazer sentir a dor alheia e convidar à reflexão. Compartilhe as suas impressões no app! Casas vazias pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.


projeto gráfico

mimo

EXPERIÊNCIA DO MÊS

Para este mês, propomos um combo literário e cinematográfico! Fechamos uma parceria com a MUBI, plataforma de streaming com catálogo focado em filmes clássicos e contemporâneos. Os associados da TAG ganham 60 dias de acesso gratuito. Para complementar a experiência, o mimo desta edição será uma pipoca Mais Pura sabor caramelo e flor de sal. Um kit recheado, não é mesmo?

O guarda-chuva usado por uma das personagens e o parque em que ocorre o evento determinante da trama de Brenda Navarro são os elementos que inspiram o projeto gráfico deste mês, assinado pela designer Luisa Zardo. Tanto a luva quanto a capa da revista apostam na padronagem de objetos — no caso, o próprio guarda-chuva e um dos brinquedos presentes no parque —, formando composições aparentemente abstratas. Em cores vibrantes, a capa do livro traz esses mesmos objetos isoladamente, incluindo uma ilustração centralizada da personagem, que parece caminhar deixando o parque para trás.

jan

jul

fev

ago

mar set abr

out

mai

nov

jun

dez

2022

5


Casas vazias POR QUE LER O LIVRO Importante nome da literatura mexicana contemporânea, Brenda Navarro apresenta um romance de estreia perturbador, em que as vozes de duas mulheres se cruzam de modo a expor, visceralmente, conflitos relacionados à maternidade, ao sentimento de culpa e às desigualdades sociais. Com essa obra, na qual se nota seu amplo domínio narrativo, ela foi a vencedora do prêmio Tigre Juan 2020, que distingue produções literárias de língua espanhola.


“Casas vazias é um livro difícil de esquecer: contém páginas de acurada e elevada literatura.” El País

“O primeiro romance de Brenda Navarro constrói uma narrativa implacável sobre a maternidade e a violência de gênero.” La Nación

“Este romance poderoso e estranhamente belo nos desafia e nos comove com sua sabedoria única e inquietante.” Alejandro Zambra

“As descrições de Navarro sobre o preço da maternidade são surpreendentes, fortes e originais.” Irish Times


8 O LIVRO INDICADO

Dos desaparecimentos TATIANA CRUZ*

Casas vazias é o retrato da crueldade, embora não seja cruel em sua essência, porque está marcado por uma improvável empatia

P

É jornalista e especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS. É poeta, letrista e colagista no @fabulario.collage, autora do livro Na minha casa há um leão. Como pesquisadora, criou o mapa global de abrir voz de mulheres no Instagram @1minuteslam.

repare os pulmões. Todos os equipamentos de mergulho. Treine a apneia: a obra que você recebe este mês pela TAG vai exigir que você fique sem ar por quase duas centenas de páginas. Respirar é o maior esforço literário em Casas vazias, romance de estreia da autora mexicana Brenda Navarro, que chega ao nosso clube pela indicação de Emilio Fraia. E a viagem é uma descida. Imensa. Para dentro. “Eu não mereço respirar. Respiro. Minha condenação é respirar”, começa a protagonista, mãe de Daniel, o menino que ela perdeu no parque aos três anos de idade e do qual nunca mais teve notícias. Narrado por duas vozes que se intercalam, capítulo por capítulo, em um fluxo de memórias sem ordem cronológica e sem o filtro da maternidade idealizada modulando as falas das personagens, o que vemos são duas mulheres desempenhando o papel de mãe em meio a um contexto de miséria emocional estruturado pela misoginia, marcado nas entranhas pela violência endêmica. “Daniel era um ser irrelevante no presente, mas necessário para nos manter inanimados, sem vontade de viver”, diz a narradora, que ajuda o marido a criar ainda outra criança, Nagore, filha da irmã dele (morta tragicamente) e pela qual ela sente repulsa em vários momentos: “Não parir. Não gerar, não dar motivo às células que criam a existência. Não ser vida, não ser fonte, não deixar que o mito da maternidade se estendesse em mim. Interceptar as possibilidades de Daniel enquanto ele estava no meu ventre, enclausurar Nagore até que ela deixasse de respirar. Ser o travesseiro que


O LIVRO INDICADO

a sufocaria enquanto ela dormia. Recontrair as contrações pelas quais eles dois nasceram. Não parir. (Respire, respire, respire.) Não parir, porque depois que nascem, a maternidade é para sempre.” Nas sequelas da pandemia, de confinamento, a ficção poderia ser fonte de alguma alegria, mas Casas vazias obviamente não atende a esse chamado. É o retrato da crueldade, embora não seja cruel em sua essência, porque está marcado por uma improvável empatia. Somos convidados a entrar em casas onde habita uma moralidade sem redenção, onde a justiça é uma miragem e onde são as mulheres que ficam, que esperam. Nessas casas, a dor das narradoras parece entrar em duelo convocando a nossa torcida. Navarro habilmente executa uma coreografia narrativa para afetar o leitor de modo que ele se identifique, que sinta o cruel tão perto e tão compreensível. Quem gosta de streaming e esteve atento às redes sociais no início deste ano certamente acompanhou a repercussão do lançamento, na Netflix, da adaptação para o cinema do romance homônimo de Elena Ferrante A filha perdida, na direção elogiadíssima de Maggie Gyllenhaal. Resumidamente falando, Leda, na obra, é uma mulher que abandona as filhas para viver com o amante e seguir uma carreira de escritora com certo prestígio acadêmico. Em cenas que misturam frames de prazer e plenitude a névoas de culpa e remorso, quase loucura, quase delírio, quase crueldade, a mulher que Ferrante desenha abre as portas de 2022 derrubando os tabus da maternidade. “Mães são mulheres, antes de mais nada”, ressoaram posts e resenhas pela internet, expondo ainda em sangue, ainda em carne, o impacto que o cuidado quase exclusivo da casa, do espaço doméstico, do crescimento das crianças, da morte dos velhos refletiu, séculos e séculos, sobre as mulheres. É nesse contexto, com essa audiência atenta, que Casas vazias ganha tradução em português, depois de uma ótima recepção na Europa. O estudo de uma nova maternidade, da

9


10 O LIVRO INDICADO

Itália de Leda e Ferrante para o México de Navarro e suas narradoras sem nome, para dentro da nossa casa, no Brasil, com mulheres lançando suas dores de amores, abandonos, violências, filhos, perdas, assim, em giro mesmo, misturados, confusos, na nossa frente: “Fran não queria ter filhos. Ou queria, mas não logo. Para quê? Por isso ejaculava nas minhas pernas. Eu gostava quando ele fazia isso. Seu sêmen branco iluminava minha pele morena. Vladimir usava preservativo. Que fina capa elástica nos separava, como era contundente a sua recusa ao fértil! Quanta vontade ele tinha de pôr uma barreira entre a minha pele e a dele. Por isso que o fato de Fran tocar em mim com sua glande úmida fazia eu sentir que ele me amava. E o amor, tão enganoso, tão febril, que faz com que o sêmen passe das pernas ao útero e do útero à desgraça. [...] Nós, mulheres, costumamos achar que há muita liberdade por aí e não percebemos que é fácil criar uma prisão própria. Deixamos de migrar para a rota estabelecida. Saímos da primeira jaula familiar e nos atrapalhamos, damos passos em falso, batemos as asas desajeitadamente e passamos a ver ninhos de amor em todo canto. Nós mesmas vamos logo gritando: Me ponha na jaula, vamos, vamos, me ponha na jaula! Foi o que fiz quando parei de tomar o anticoncepcional e sussurrei no ouvido do asseado Fran: Me lambuze, me suje por dentro, entre duro, sim, assim, me deixe toda cheia de você, me suje, isso.” No romance de Navarro, as mulheres que dão à luz ou que assim o desejam, loucamente, e lançam meninos para a vida parecem convidar para uma viagem ao contrário, para dentro, para um lugar fundo, úmido, sombrio, que é o útero do que se convencionou chamar de maternidade. Em uma trama de desaparecimento real, elemento máximo para levar uma mãe à loucura, as mães de Casas vazias parecem assumir a figura do bode expiatório, que, em delírio, traz a pergunta que importa, passível de ser recebida e debatida nesse alcance e impacto, por ora, apenas por meio do acordo ficcional, pela arte: quando se é mãe, quem mesmo é que desaparece?


SAIBA MAIS

11

Contradições da América Latina permeiam a literatura mexicana contemporânea GUILHERME SOBOTA*

Escrita de mulheres também vem ganhando destaque, com uma geração de escritoras jovens em evidência

S

É jornalista cultural com contribuições para os jornais O Estado de S. Paulo, Suplemento Pernambuco, Cândido, entre outros.

ão muitos os fatores da realidade social e histórica do México que se relacionam diretamente com a sua produção literária contemporânea — como Casas vazias, de Brenda Navarro, reforçou desde seu primeiro lançamento, em 2018. As contradições próprias da América Latina do tempo presente, relacionadas de maneira intrínseca à questão colonial, por exemplo, apontam caminhos para entrar nesse universo, dada a dimensão geográfica e imaginária do México. Quem explica isso para a TAG é a pesquisadora e crítica literária Fernanda Lobo, mestre em Literatura Hispano-Americana pela USP. “Brasil e México, cada um à sua maneira, são líderes em movimentos decoloniais e em expressões culturais que funcionam como fendas nas narrativas oficiais”, explica. Ela ressalta que, nos anos 1990, a produção mexicana se empenhou em um combate ao folclorismo latino-americano dos autores das gerações pós-1960. No final do século 20, os escritores mexicanos então cultivaram uma literatura “cosmopolita”, rejeitando a evocação da “cor local” que se vendia a europeus entediados. “Depois, foram anos de vigência do vexatório gesto condescendente de ‘dar voz ao oprimido’ por parte da intelectualidade branca. Agora há um esforço maior em visões múltiplas”, analisa a pesquisadora. “Consequência disso é o grande número de publicações de pessoas até então


12 SAIBA MAIS

Irma Pineda Israel Gutierrez

Nadia López García Nereida Gonzalez

A autora do mês, Brenda Navarro Noelia Olbés

marginalizadas que tomam a palavra. No México, poetas indígenas, como Irma Pineda e Nadia López García, pessoas racializadas, de gêneros dissidentes ou chicanos têm produzido, dialogado e circulado muito mais atualmente. Tudo isso ainda está em andamento.” Em entrevista recente ao Diario Público, de Madri, a escritora e crítica mexicana Gabriela Jauregui disse estar vivendo um momento “muito emocionante” no contexto da literatura mexicana — relacionado aos movimentos sociais de revisão do passado político do México. “Talvez não só na literatura, mas falando em geral, nas esferas política e social, muitas coisas estão se movendo na América Latina e no México. Talvez como resultado da ditadura em muitos países, ou no México da ditadura branda e todos os anos de neoliberalismo exacerbado. Isso gerou movimentos de resistência interessantes e muito poderosos. E nessa mistura de efervescência ou ebulição política, então, obviamente, a literatura e as artes são um reflexo do que está acontecendo e o acompanham”, apontou a escritora, destacando o papel fundamental de escritoras jovens no processo. Essa percepção encontra ecos na própria imprensa mexicana. Em janeiro deste ano, o jornal El Informador publicou uma lista com dez escritoras mexicanas para acompanhar em 2022. “Essas mulheres lutam e abrem caminho no mundo literário para que suas obras cheguem longe”, diz o jornal. Na lista aparece Brenda Navarro, ao lado de nomes como Fernanda Melchor (“autora proveniente da região portuária de Vera Cruz, que dá uma ideia do México contemporâneo e das suas questões estruturais, para além da perspectiva da Cidade do México”, explica Fernanda Lobo) e Cristina Rivera Garza (“cuja obra mereceria atenção especial por parte das editoras brasileiras”). Sobre Navarro, o jornal destaca seu papel no Enjambre Literario, um projeto de escritoras e jornalistas ibero-americanas, mas, principalmente, aponta Casas vazias — publicado primeiro na web, em 2018, com o título Kaja negra, e em 2020 pela editora Sexto Piso — como uma “das


SAIBA MAIS

Gabriela Jauregui Victor Benitez

Fernanda Melchor Maj Lindström

Cristina Rivera Garza Grisel Reyes Pajarito

Juan Rulfo Ricardo Salazar

13

melhores estreias em espanhol dos últimos anos”. O romance nasceu, justamente, da preocupação da escritora com signos com os quais cresceu no México, como a guerra ao narcotráfico, a questão dos desaparecidos políticos, injustiças sociais e a zozobra — um sentimento de tristeza e angústia daqueles que temem algo. Essa reflexão sobre o presente não impede, claro, relações com o passado e a tradição — muitos jovens escritores mexicanos fazem essa conexão em entrevistas e artigos. “Com relação à tradição mexicana, ela é muito presente, é um país muito enraizado”, explica Fernanda Lobo. A pedido da reportagem, ela comentou sobre a presença de dois autores frequentemente citados. Octavio Paz — “um figurão sustentado pela erudição europeia, uma espécie de coronel/caudilho do discurso. Embora sua obra seja incontornável e ele ocupe um lugar importante na trajetória do pensamento crítico mexicano, existem muitos pontos que se tornaram datados” — e Juan Rulfo — “uma obra que sobrevive um tanto mais ao crivo do tempo, e um dos motivos, acredito eu, está em seu próprio modo de narrar. O emprego da polifonia constrói uma narrativa de insurgência de vozes diversas, capta de maneira aguda a imaginação pública mexicana”. O presente, entretanto, acaba sendo o principal fio da costura literária no país. “Acredito que a matéria-prima da literatura sempre será o tempo presente e que, no caso da literatura, o mais coerente é que ela participe do esforço de ampliar a fenda aberta nos muros construídos pelo neoliberalismo, o que, no caso do México, pode ser tomado de maneira bastante literal”, conclui Fernanda Lobo.

Octavio Paz John Leffmann


14 ENTREVISTA

A maneira como Brenda constrói a perda é comovente, brutal, enlouquecedora” Curador do mês, o escritor e editor Emilio Fraia avalia a potência da obra de Brenda Navarro e lista outros nomes mexicanos que estão no seu radar ALERTA Esta entrevista pode conter alguns spoilers de Casas vazias

O

escritor brasileiro Emilio Fraia é, ele mesmo, um expoente da literatura latino-americana contemporânea. Sebastopol, reunião de contos que lançou em 2018, teve boa recepção crítica e já ganhou traduções em países como Estados Unidos, Inglaterra, Suécia e Noruega. Editor na Companhia das Letras, com passagem prévia pela extinta Cosac Naify, Fraia avalia, na entrevista a seguir, que a sua dupla atuação envolve um balanço delicado: “a leitura do editor é muito diferente da leitura do escritor”, diz ele. Exercendo este mês mais um papel, o de curador do nosso clube, ele decidiu indicar Casas vazias, de Brenda Navarro, que lhe foi apresentado por uma amiga tradutora. É uma obra, segundo ele, difícil de parar de ler e que lhe faz lembrar dos contos da argentina Silvina Ocampo. Na conversa com a TAG, ele destaca as qualidades próprias do livro e menciona outros autores mexicanos que merecem atenção.


ENTREVISTA

Como você entrou em contato com a obra de Brenda Navarro? Por que decidiu indicá-la aos nossos associados? Quem me falou sobre o Casas vazias pela primeira vez foi uma amiga tradutora, Julia Sanches [Julia verteu uma série de autores do português e espanhol para o inglês, como Geovani Martins, Daniel Galera, entre outros]. É um romance muito forte sobre trauma, culpa, maternidade, violência, feminicídio. A maneira como Brenda constrói a perda é comovente, brutal, enlouquecedora. É também um livro cheio de ódio. Tem uma crueldade que me lembra os contos de Silvina Ocampo. Acompanhamos a mãe que volta todos os dias ao parque onde o filho desapareceu, que se pune por ter permitido o sumiço do filho. E a mulher que rouba a criança, que deseja ser mãe a qualquer custo — sua esperança, e o amor como algo difícil, que nunca se completa. Os homens são personagens terríveis; as mulheres, “casas vazias para abrigar a vida ou a morte”. É um romance de horror. Mas não conseguimos parar de ler. Casas vazias traz o ponto de vista de duas mulheres sobre um mesmo episódio. Como você avalia esse aspecto da obra, considerando também questões de domínio narrativo da autora? É o grande trunfo do livro, o que mais me atrai nele. Brenda escreve muito bem, cria as vozes sem maneirismos, as diferenças entre as narradoras aparecem na sintaxe, no vocabulário, de um jeito sofisticado, falsamente simples. No relato cheio de culpa e raiva da mãe que tem o filho roubado, o texto se assemelha a pequenas entradas escritas com urgência num caderno, um jeito de não enlouquecer.

O curador do mês, Emilio Fraia Renato Parada

15


16 ENTREVISTA

MINHA ESTANTE O primeiro livro que eu li: Uma adaptação do Robinson Crusoé, do Daniel Defoe, para crianças. O livro que estou lendo: An Inventory of Losses, de Judith Schalansky O livro que mudou a minha vida: Três contos, de Gustave Flaubert O livro que eu gostaria de ter escrito: O discurso vazio, de Mario Levrero O último livro que me fez rir: Poeta chileno, de Alejandro Zambra O último livro que me fez chorar: Caro Michele, de Natalia Ginzburg O livro que eu dou de presente: Coração tão branco, de Javier Marías O livro que eu não consegui terminar: Graça infinita, de David Foster Wallace

A outra história é ágil, um jorro, e marca a diferença social e psicológica entre as duas personagens, sem caricatura. Na confluência dessas duas avalanches, se forma um romance em que a maternidade e a família são a um só tempo miragem e maldição. Você acompanha a produção de outros autores mexicanos contemporâneos? Mario Bellatin é um mestre, criou um mundo. Gosto demais dos romances de Juan Pablo Villalobos, em especial Ninguém precisa acreditar em mim. Los ingrávidos, de Valeria Luiselli, é um livro lindo. Margo Glantz tem coisas maravilhosas. Brenda Lozano e Fernanda Melchor talvez estejam fazendo o que há de melhor na literatura latino-americana hoje. Além de escritor, você também atua como editor. Como essas duas atividades se entrecruzam na sua vida? Fui editor de ficção literária na Cosac Naify, agora trabalho na Companhia das Letras, com autores latino-americanos, brasileiros, alguns europeus e norte-americanos. É um balanço delicado, a leitura do editor é muito diferente da leitura do escritor. Por outro lado, é um privilégio poder observar a escrita a partir dessas duas posições tão distintas. Você lançou Sebastopol em 2018, livro que teve uma boa recepção crítica. Você planeja lançar uma nova obra em breve? Um romance, em breve, espero — mas dá azar falar antes! :)



18

Ilustração do mês Túlio Cerquize é designer gráfico e ilustrador. Trabalha com livros desde que pisou pela primeira vez em um escritório. Pela TAG, já contribuiu em projetos como os de The Underground Railroad, Todas as cores do céu e Nada para ver aqui. Vive em São Paulo e crê que a leitura é um grande agente de transformação pessoal e social. A pedido da TAG, Túlio interpretou uma passagem do livro do mês: "Nesse dia Leonel dormiu cedo. Eu pus ele no bercinho que tinha comprado e fiquei olhando pra ele por muito tempo. Leonel era um bebê muito bonito, acho que quando peguei ele tinha uns dois ou três anos, ainda tinha uma carinha bochechuda, olhos grandes, sobrancelhas grossas e crespas e mãozinhas pequeninas. Acho que voltei a me apaixonar por ele nesse momento, porque a verdade é que nem todos os melhores genes de Rafael nem os meus teriam dado em uma filha tão bonita como era Leonel."


POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.


20 REFLEXÃO

Desafio materno PAULA SPERB*

Criança autista em Casas vazias levanta o tema da neurodiversidade — e gera reflexões sobre o impacto na vida de mulheres que precisam cuidar sozinhas dos filhos

O

Crítica literária e jornalista. Tem pósdoutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e VEJA.

título do livro do mês, Casas vazias, possui diversas camadas de significado. Em certo momento da história, uma das narradoras afirma que as mulheres têm que ser as “casas vazias para abrigar a vida ou a morte, mas, no fim das contas, vazias”. No enredo, essas casas, ou essas mulheres, também são um lugar de solidão. Elas são isoladas afetivamente por parte de seus parceiros e familiares ao assumirem os cuidados de um menino autista de três anos. Com isso, Brenda Navarro joga luz sobre o tema do autismo e, portanto, da neurodiversidade — termo que dá conta de compreender o autismo como mais uma das inúmeras diversidades humanas. O autismo, vale salientar, não é uma doença, mas um transtorno do neurodesenvolvimento. Assim, não é apenas uma das muitas diversidades que existem, mas é diverso em si mesmo. “Uma criança pode ter dificuldade na interação social, sem conseguir manter contato visual. Outra pode não ter a comunicação verbal e uma terceira pode ter comportamentos repetitivos ou até todas essas características. É peculiar de cada criança como esse transtorno vai se apresentar”, diz Sonize Lepke, professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Especial/ Inclusiva (GEPEI). É por esse motivo que um dos símbolos que têm sido adotados para representar o autismo é composto por múltiplas cores e não uma única cor, como o rosa para câncer de mama, o lilás para fibromialgia e o amarelo para depressão. Em seu livro, Navarro deu conta de apresentar diversos traços do autismo no comportamento do menino e também no impacto na sua família. “Eu


REFLEXÃO

A fita colorida de quebra-cabeças é um dos símbolos utilizados para representar o autismo.

21

sabia que ele não era como as outras crianças, não sorria muito nem se interessava pelo que estava à sua volta”, narra a mãe biológica. Ao mesmo tempo que percebia que havia algo distinto no desenvolvimento do filho, ela e o marido inicialmente não admitiam. “Demoramos para assimilar e por isso só aos dois anos e meio foi que o levamos a um especialista”, diz ela. De fato, uma certa negação inicial costuma ocorrer nas famílias, explica Lepke. Quando uma criança nasce, são feitos os testes pelo pediatra após o parto e geralmente a criança se sai bem. Com o passar do tempo é que os pais vão percebendo. Os profissionais, com olhar apurado, identificam logo. Mas os pais às vezes não conseguem ou não admitem, relacionando o comportamento a algum hábito ou traço familiar do tipo ‘isso puxou da mãe, isso puxou do pai’”, diz a professora. Algo semelhante aconteceu com a designer Aline Rebelo, mãe de Emma, de 5 anos. “Até Emma ter um ano, não desconfiávamos de nada. Os avós paternos notavam algumas coisas, como ela não olhar nos olhos. Para mim, isso não era problema, ela se desenvolveu muito rápido e muito bem, com nove meses já caminhava. Sempre foi sorridente e muito feliz. Mas, no aniversário de dois anos, ela estava muito isolada e não queria brincar. Colocamos música e ela ficou extremamente irritada. Acendeu aquele alerta para levá-la a um neuropediatra. Na consulta, o médico diagnosticou o autismo. Fiquei tonta, não sabia o que fazer. Tive que reprogramar tudo, eu não sabia absolutamente nada”, conta Rebelo. A designer passou a estudar sobre o transtorno, procurou terapia ocupacional para a menina e contou com o apoio pedagógico da escola infantil. Emma inspirou a mãe, que a transformou em personagem da ficção. A garotinha é protagonista do jogo de RPG Amigo Dragão, publicado pela editora Coisinha Verde em 2020. O RPG pode ser jogado por qualquer um, mas foi pensado para atender a algumas necessidades de crianças e jovens com o transtorno. Como a dificuldade de interação pode afetar um jogo coletivo, Amigo


"Sem a fala desenvolvida, a comunicação se estabelece de outras maneiras."

22 REFLEXÃO

Dragão foi pensado para ser jogado sozinho. Além disso, não há violência e o enredo proporciona um ambiente amigável. A chegada de um filho com transtorno do espectro autista (TEA) faz com que as famílias percebam a necessidade de mudança da sociedade para acolher essas crianças. “O desafio é tão grande que sinto como se tivesse que mudar o mundo para ele”, diz Giulia Alessandra Wiggers Peçanha, professora universitária e mãe de Enzo, um menino autista de 11 anos. Morando com o marido em Uruguaiana, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, ela não conta com familiares na cidade, mas formou uma rede de amigos e profissionais que dão suporte ao desenvolvimento de Enzo. Para ela, lutar pelos direitos do Enzo é lutar pelos direitos de todas as crianças com TEA. “Minha realidade não é a da maioria das mães. A rede de apoio para as famílias com crianças autistas deveria ser uma iniciativa do Estado”, ressalta Peçanha. Ela e o marido, Frank Maciel Peçanha, cuidam igualmente de Enzo, o que, infelizmente, não é a realidade de muitas mães com filhos autistas. Lepke explica que, na prática profissional de quem lida com crianças autistas, a maioria das famílias é liderada por uma mãe solo. “Os pais costumam abandonar esse lar”, diz a professora. Em Casas vazias, o pai do garoto não se separa da mãe biológica, mas vive um distanciamento afetivo do filho. Para a especialista, é parte fundamental da inclusão a frequência no ensino regular e não no chamado ensino especial, que deveria funcionar apenas como uma opção de atividades de contraturno, como forma de apoio. Também é fundamental que a criança se sinta acolhida na própria família. Embora algumas crianças não desenvolvam a fala, elas sentem a forma como são tratadas pelo pai e pela mãe. Sem a fala desenvolvida, a comunicação se estabelece de outras maneiras. “O Enzo não fala ‘mamãe, eu te amo’. Mas ele pega o tablet e procura uma música que diz ‘como é grande o meu amor por você’ e coloca para tocar bem pertinho de mim”, conta Peçanha.


ENTREVISTA

23

Quando falo em diversas formas de maternidade, estou questionando a própria maternidade” TATIANA CRUZ*

Autora do mês, Brenda Navarro fala sobre a escrita de Casas vazias, livro em que busca expor o seu incômodo com papéis sociais atribuídos às mulheres

S

É jornalista e especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS. É poeta, letrista e colagista no @fabulario.collage, autora do livro Na minha casa há um leão. Como pesquisadora, criou o mapa global de abrir voz de mulheres no Instagram @1minuteslam.

e você saiu de Casas vazias sentindo como se carregasse também no peito um terceiro desaparecimento, um desaparecimento que agora não pertencia mais apenas às duas mães do livro, mas também a você, saiba que essa era justamente a ideia de Brenda Navarro em seu romance de estreia. Não oferecer uma resposta, deixar espaço para a falta, abrir o caminho da intuição da verdade são atributos que a autora mexicana sente haver na verdadeira experiência literária, um certo incômodo, diz, como é incômoda, segundo ela, a percepção que muitos têm do que é a maternidade. Ao compor duas personagens de universos sociais tão distintos compartilhando dramas parecidos em vozes narrativas moduladas com extrema destreza, a autora parece fazer algo que a interessa para além da ficção. Formada em Sociologia pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), especialista em Direitos Humanos pela Universidad Iberoamericana (UIA) e em Relações de Gênero pelo PUEG/UNAM, a autora de Casas vazias está à frente do Enjambre Literario, um projeto editorial com fins de impulsionar a presença do trabalho intelectual de mulheres no


24 ENTREVISTA

Foto Noelia Olbés

mundo digital, criando uma conexão de escritoras e jornalistas em toda a Ibero-América. Nesta entrevista, Brenda faz questão de lembrar que foi uma rede de leitoras que projetou seu romance de estreia, quando ele ainda era apenas um PDF circulando pela internet. Casas vazias chega ao Brasil poucos meses depois de o romance de Elena Ferrante A filha perdida voltar a ganhar evidência com a adaptação para o cinema na elogiada direção de Maggie Gyllenhaal. No livro e no filme, vemos uma mulher abandonar as filhas para viver um amor e uma carreira, e as redes sociais repercutiram novamente a trama e uma urgência em se debater a maternidade, a não maternidade e o papel dos homens no cuidado com as crianças, entre outros tabus relacionados. Brenda, nesta conversa com a TAG, não se furta de entrar na discussão, aloca responsáveis e clama para o fim da maternidade como a conhecemos.


ENTREVISTA

25

No livro, vemos duas mulheres vivendo desventuras amorosas ao mesmo tempo que enfrentam graves perdas como mães. Como você enxerga essa dualidade, de que mães também são, antes de tudo, mulheres? Entendo que, antes de qualquer papel social, somos mulheres, e que o conceito de maternidade imposto nada tem a ver com a realidade social de nenhum país ocidental. Nós, mulheres, mesmo que não tenhamos representação dentro da literatura ou do cinema, temos vidas que são muito mais ricas do que aquelas que o imaginário coletivo masculino machista pode imaginar. Parece que, quando uma mulher se torna mãe, são criadas certas expectativas de seu comportamento e uma ideia de sacrifício que ela tem de viver. Mas, na realidade, no cotidiano de nós, mulheres, nos reconhecemos como pessoas individuais, com luzes e sombras como qualquer ser humano. A discussão não é sobre como uma mulher deveria ser diante do "mandato social", mas sobre como as mulheres são no dia a dia quando deixamos de estigmatizá-las apenas como mães. Na gangorra narrativa dessas duas vozes, ora sentimos empatia pela mãe que perde o filho que não desejava, ora pela não mãe que perde o filho que não era dela, o filho roubado. Como foi o retorno a respeito da identificação das leitoras com essas personagens? Você se identificou por uma dessas narradoras em especial? Como você explica que fiquemos ligados emocionalmente à personagem que rouba o filho de outra mulher? Falo de mulheres que vivem sistematicamente violadas pelo Estado, que, não contente em estigmatizá-las por seu papel biológico-reprodutivo, tem uma estrutura econômica que faz com que o cuidado com a infância recaia sobre elas. Por que, diante de um livro que expõe a dor do duplo desaparecimento de um filho, as pessoas só pensam na maternidade? A maternidade atravessa essas duas mulheres, mas elas também perdem outras coisas, vivem outras coisas que não as reduzem ao seu papel materno ou não materno. Foram as leitoras que divulgaram meu romance quando era


26 ENTREVISTA

"Não há bem ou mal. Há intenções, desejos frustrados e relações de poder."

um PDF circulando na internet e são elas que o fizeram vender tanto em sua versão física. Elas se interessam por histórias em que as protagonistas são mulheres. E isso é normal quando o cânone literário é escrito e feito por homens. Sou muito grata por cada uma das leituras do meu livro. Ter a experiência estética mediante a leitura literária nos aproxima mais do mundo. E isso tem a ver com a sua questão sobre se é válido sentir empatia com a mulher que leva a criança. Essa empatia nasce do fato de testemunharmos uma vida cheia de circunstâncias que lhe são estranhas e na qual ela tem apenas capacidade de reação. E creio que é esse o poder da literatura: que uma história ficcional tenha a capacidade de fazer esses questionamentos que rompem a dicotomia do bem ou do mal e levam a humanidade à sua justa dimensão. Não há bem ou mal. Há intenções, desejos frustrados e relações de poder. A violência endêmica, o machismo e a misoginia parecem acompanhar ambas as narradoras a despeito de suas origens distintas. Até que ponto esse contexto as aproxima e até que ponto as separa? Como isso impacta a maternidade em geral? Nesse sentido, você acredita que o livro provoque uma discussão também sobre o papel da paternidade e sobre um reposicionamento do espaço do homem e da mulher nas esferas do cuidado, da casa, da criação das crianças na sociedade? Quando falo em diversas formas de maternidade, estou questionando a própria maternidade e inclusive fazendo um apelo para buscar sua abolição. Quando conseguirmos desfazer o conceito de maternidade de classe média ocidental, o que vamos encontrar é a socialização do cuidado. Não serão apenas as mulheres que cuidam dos filhos, mas também as outras pessoas ao seu redor. Como nos posicionamos diante do mundo e permitimos que as mulheres estejam sujeitas às decisões de homens que têm a capacidade de tomar decisões de poder ou às necessidades


ENTREVISTA

27

de mulheres que não têm consciência de classe, gênero ou etnia? Essa é a verdadeira questão sobre a qual eu gostaria de conversar! A maternidade é somente a consequência de algo mais profundo. Em Casas vazias, conhecemos Daniel/Leonel apenas pelas perspectivas da mãe e de sua raptora, a criança inexiste como voz narrativa. As descrições não só sobre ele como também sobre a menina Nagore carregam uma honestidade sem verniz, descarregando na palavra sentimentos que a sociedade não vincula facilmente ao que se imagina de uma mãe. É uma maternidade não romantizada, real, muitas vezes até cruel. Para quem atravessa o livro, o peso se impregna de forma física e imagino que, para quem escreve, também. Ou não? Como foi para você, sendo mãe, dar vida a essas duas narradoras? Doeu escrever? Não me doeu escrever, pelo contrário! Gosto de escrever; escrever criativamente é uma das coisas que mais aproveito nesta vida e agradeço por, apesar das coisas que sem dúvida mudaria, poder ter a oportunidade e o privilégio de sentar para escrever e que as pessoas também queiram ler meu trabalho. Como isso iria me machucar? Insisto que não estou falando de uma maternidade cruel, que estou falando de mulheres exercendo a maternidade e que é o viés social e cultural que nos faz pensar que essas mulheres têm que responder a um certo mandato da boa mãe. Aí está o verdadeiro drama, que mesmo personagens fictícios são julgados tão cruelmente por terem sentimentos inerentes à humanidade.


28 ENTREVISTA

Como foi a repercussão a respeito do final? Você foi procurada por leitores pedindo uma resolução? O que você responde quando lhe perguntam o que aconteceu com Daniel/Leonel? Foi sua intenção conceder ao leitor o mesmo destino das narradoras, o peso do desaparecimento, de um não desfecho, de um não morto? Há quem me pergunte o que aconteceu com a criança e há quem me agradeça por não ter sido explícita no final. Nesse sentido, defendo com firmeza que quem escreve coloca uma tese literária na mesa e que a concretização da obra vem quando é lida, e que, claro, a experiência pessoal de cada pessoa que lê determina sua própria anagnórise [palavra grega para "reconhecimento"]. Essa é a verdadeira experiência literária. Agora, como escritora, sim, quando perguntada se eu queria gerar esse sentimento, sim, sempre tive a clara ideia de que o final tinha de deixar esse sentimento de mal-estar, de desassossego, mesmo que possamos intuir onde está a verdade.


PARA IR ALÉM

29

O fim do futuro NATALIA TIMERMAN*

É notável a profusão de obras contemporâneas que se debruçam sobre o doloroso acontecimento que é a perda de um filho — e, consequentemente, sobre a culpa materna

O

Psiquiatra, escritora e doutoranda em Literatura na Universidade de São Paulo. Autora dos livros Copo vazio, Rachaduras (finalista do prêmio Jabuti) e Desterros.

título Casas vazias, de Brenda Navarro, poderia caber a outros romances da literatura recente, tanto brasileira quanto estrangeira. Crianças que somem, são raptadas ou assassinadas não configuram um tema novo: Medeia, por exemplo, tragédia de Eurípides, provavelmente a obra que inaugurou a questão (e não por acaso trata da morte dos rebentos pelas mãos da própria mãe), nos mostra que o infanticídio já estava presente como possibilidade narrativa desde antes de Cristo. Mas é notável a profusão de obras contemporâneas que se debruçam sobre esse que é dos acontecimentos mais dolorosos entre as possibilidades humanas: a perda de um filho. Em Casas vazias, Daniel e Leonel são a mesma criança em duas histórias entrecruzadas por seu sequestro. Quem nos narra cada uma é a mãe — ponto de vista, aliás, privilegiado para (não) dar conta do insuportável dessa dor, explorado em muitas das obras sobre o tema. Aqui, as mães: a biológica e a que se fez adotiva a partir do rapto, cujas vozes, diferindo, determinam nuances de origem, de anseio, de perspectiva. Uma é rica e não queria ser mãe; outra é pobre e tem a maternidade como grande sonho. Ambas sofrem, mesmo quando a realidade segue a direção de seu desejo (admissível ou não): uma, quando o filho que não queria some; outra, quando o filho que tanto quer passa a existir e não é exatamente como imaginava, nem transforma magicamente seu relacionamento destruído em um casamento feliz.


30 PARA IR ALÉM

Cruzamento semelhante de vozes há em Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso (2020). Maju, a babá, sequestra Cora, de quem cuida; Fernanda, a mãe, engajada no trabalho, só se dá conta do sumiço quando elas já estão longe. O rapto, a culpa e o recorte de classe aproximam Suíte Tóquio e Casas vazias, assim como as vozes distintas das narradoras, a da mãe biológica e a da raptora. Ainda assim, são romances muito diferentes. As palavras de Navarro têm um peso que o humor de Madalosso consegue, nas suas, amainar. Ambas logram, cada uma à sua maneira, acessar a injustiça e a impossibilidade de conciliação entre demandas pessoais e coletivas que recaem sobre as mulheres, sobre as mães. Dois lados de uma mesma história, a história de uma criança que desaparece, são elaborados também em Resta um (2015), romance de Isabela Noronha. Lúcia é matemática e vê ruir o anteparo de racionalidade que a protege do mundo quando a filha, Amália, não chega em casa de uma festa. Sua esperança é espicaçada por mensagens que chegam ao longo de anos, com supostas notícias do paradeiro e a promessa jamais cumprida de resolução do caso, ponto de contato com Rebentar (2015), de Rafael Gallo. Aqui, é Ângela a mãe da criança desaparecida, mas o vazio na casa com o passar dos anos parece o mesmo. É curioso que ambos os romances tenham sido lançados no mesmo ano e concorrido na mesma categoria ao Prêmio São Paulo de Literatura, vencido por Gallo. Mais recentemente, Nara Vidal abre sua coletânea de contos Mapas para desaparecer (2020) com "Castanheira”, de mesma temática: uma filha some e então permanece “com nove anos. Nunca mais fez aniversário”, a partir de que, então, vêm as buscas, a esperança recorrentemente renovada e estilhaçada, a culpa, fator comum entre todas essas mães órfãs. Saindo do panorama latino-americano, em Canção de ninar (2016), da franco-marroquina Leïla Slimani, o abismo entre os contextos socioeconômicos de uma mãe, Myriam, e de uma babá,


PARA IR ALÉM

31

Louise, se aprofunda até culminar no assassinato dos filhos, ponto de partida do romance. A narração em terceira pessoa aproxima-se ora do ponto de vista da família, ora do da babá, que cuida de filhos alheios, mas não consegue cuidar da própria. Que o bebê que morre se chame Adam chama a atenção: o nome bíblico do primeiro homem aponta simbolicamente para o fim da possibilidade do começo. Na tetralogia napolitana (2011–2014) e em A filha perdida (2006), a italiana Elena Ferrante também perpassa o tema dos filhos que desaparecem, ou ameaçam desaparecer perdendo-se na praia. A desarticulação do binômio mãe-filha é, em Ferrante, tateada ficcionalmente com densidade e complexidade, e acrescida de simbologia pelo elemento da boneca com que brinca uma criança, o sumiço da qual é outra das recorrências em sua obra. A dificuldade de conciliação de uma carreira com a maternidade, a solidão e o desgaste que assolam o puerpério, o desejo de ser mãe e o de deixar de ser e, figurando, talvez, a junção de todos esses elementos, o pavor e a concretização do sumiço dos filhos aproximam esses textos, cada qual com sua dicção. Mas a recorrência do tema pode ter algo a mais para nos dizer. Joan Didion, em Noites azuis (2011), texto autobiográfico sobre a adoção e a morte de sua filha, assevera: “Quando falamos sobre mortalidade, estamos falando sobre nossos filhos.” Quando falamos recorrentemente sobre a morte ou o desaparecimento de crianças, quando falamos sobre essas casas vazias, estamos também falando, talvez, sobre uma incapacidade geracional de manter esses que são o símbolo do futuro. Nós, a geração que começa a viver a catástrofe climática, que transita entre a tecnologia e o arcaísmo de um legado com o qual não definimos como lidar, talvez estejamos, na literatura, escrevendo sobre filhos que falhamos em cuidar, quebrando metaforicamente o nexo entre o presente e o futuro.


32 PRÓXIMO MÊS

junho

vem aí

Para fechar o primeiro semestre de 2022, o livro de junho, indicado pela escritora Natalia Timerman, é sobre um dos momentos mais repressivos da história do Brasil. Situada na cidade de São Paulo durante a ditadura militar, a trama mostra a busca incessante de um pai pela filha desaparecida. Para quem gosta de: literatura brasileira, autoficção, história contemporânea

julho

Tem Nobel na área! No mês de aniversário da TAG, enviamos um livro inédito no Brasil de um grande escritor africano, laureado com o prêmio mais importante da literatura mundial. A história traz o ponto de vista de dois homens sobre conflitos familiares do passado, em uma trama que une habilmente episódios pessoais e eventos históricos. Para quem gosta de: literatura africana, tramas históricas, narrativas surpreendentes



“Mas como, desabituar-se de si tão de repente? da ordem das noites e dos dias? das neves do próximo ano? do rubro das maçãs? da mágoa pelo amor que nunca é demais?” – WISŁAWA SZYMBORSKA


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.